Há um tempo atrás, publicamos neste blog o artigo Pactuação da assistência farmacêutica no SUS: decifra-me ou te devoro. Para quem acha que a divisão de responsabilidades entre os entes federativos em relação à aquisição e ao fornecimento de medicamentos pelo sistema público de saúde já é complexa, tenho a dizer que seus problemas aumentaram. Mas é preciso enfrentá-los, porque o conhecimento da repartição das atribuições administrativas entre União, estados e municípios nas ações e serviços públicos em saúde em geral dentro do SUS é fundamental para a definição de questões processuais e materiais na judicialização da saúde, especialmente a competência jurisdicional e a legitimidade das partes, na esteira do que decidido pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 793 em sede de repercussão geral, cuja análise também foi objeto de estudo aqui no blog.
A maior parte das discussões voltadas à judicialização da saúde no âmbito do SUS costuma versar sobre a entrega de medicamentos, que tem uma sistemática específica de repartição de competências administrativas regulamentada pela Política de Assistência Farmacêutica. Não se pode desconsiderar, entretanto, as não menos importantes demandas pelas demais tecnologias em saúde, tais como próteses, órteses, exames laboratoriais e de diagnósticos, procedimentos cirúrgicos e toda a gama de demais procedimentos inseridos dentro das ações e dos serviços públicos de saúde do SUS.
Tanto os medicamentos como as demais ações e serviços públicos de saúde estão inseridos na assistência terapêutica integral do SUS referida pelo art. 6º, I, “d” da Lei nº 8.080/90, a qual consiste, nos termos do art. 19-M da mesma lei, na “dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde” (inciso I) e na “oferta de procedimentos terapêuticos, em regime domiciliar, ambulatorial e hospitalar, constantes de tabelas elaboradas pelo gestor federal do Sistema Único de Saúde – SUS” (inciso II). Os produtos a que se refere o inciso I são as órteses, próteses, bolsas coletoras e equipamentos médicos (art. 19-N, I da Lei nº 8.080/90).
Todos esses produtos e procedimentos devem estar inseridos em Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas e são incorporados ao SUS, excluídos ou alterados pelo Ministério da Saúde, após a necessária avaliação técnica pela CONITEC em relação à sua eficácia, segurança, efetividade e ao custo-efetividade (art. 19-O, parágrafo único e art. 19-Q da Lei nº 8.080/90).
Especificamente em relação aos medicamentos, o art. 19-P da Lei nº 8.080/90 estabelece que sejam instituídas pelos respectivos gestores do SUS listas de todos os fármacos incorporados nas respectivas esferas. São as conhecidas Relações nacional (RENAME), estaduais e municipais (REMUME’s) de medicamentos, atualizadas periodicamente conforme novas drogas são nelas incluídas, atualizadas ou delas excluídas.
Além dessas relações específicas para os medicamentos previstas na Lei nº 8.080/90, o Decreto nº 7.508/2011 previu a criação da RENASES (Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde), a qual, como o próprio nome diz, “compreende todas as ações e serviços que o SUS oferece ao usuário para atendimento da integralidade da assistência à saúde” (art. 21). É nesta lista, portanto, que constam todos os produtos (órteses, próteses, bolsas coletoras e equipamentos médicos) e demais procedimentos (exames, procedimentos cirúrgicos, tratamentos ambulatoriais e hospitalares, etc) disponíveis no sistema público de saúde. De forma bastante didática, o art. 14 da Portaria de Consolidação nº 01/2017 do Ministério da Saúde dispõe o seguinte:
Art. 14. Fica publicada a Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (RENASES), que compreende todas as ações e serviços que o SUS oferece ao usuário, para atendimento da integralidade da assistência à saúde, em atendimento ao disposto no art. 22 do Decreto nº 7.508 de 28 de junho de 2011 e no art. 7º, inciso II da Lei nº 8.080/90, disponível no endereço eletrônico do Ministério da Saúde: http://portalsaude.saude.gov.br.
§ 1º Esta versão contém as ações e serviços ofertados pelo SUS na data de publicação do Decreto nº 7508, de 28 de junho de 2011, com acréscimo dos novos serviços e ações instituídos posteriormente.
§ 2º As ações e serviços descritos na RENASES contemplam, de forma agregada, toda a Tabela de Procedimentos, Órteses, Próteses e Medicamentos do SUS.
A elaboração da RENASES é atribuição do Ministério da Saúde, que deve, entretanto, observar as diretrizes gerais pactuadas pela Comissão Intergestores Tripartite – CIT, tudo nos termos do art. 22 e do art. 32, parágrafo único, I do Decreto nº 7.508/2011. Essa comissão reúne representantes das três esferas de gestão do SUS, harmonizando as respectivas competências comuns e operacionalizando as deliberações conjuntas dentro da estrutura estabelecida pelo pacto federativo. Atualmente, é a Resolução 02/2012 da CIT que dispõe sobre as diretrizes para a elaboração da RENASES no âmbito do SUS.
Assim como ocorre em relação às listas de medicamentos, além da Relação Nacional de Ações e Serviços em Saúde, “os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão adotar relações específicas e complementares de ações e serviços de saúde, em consonância com a RENASES, respeitadas as responsabilidades dos entes pelo seu financiamento, de acordo com o pactuado nas Comissões Intergestores” (art. 24 do Decreto nº 7.508/2011). No entanto, mesmo as tecnologias em saúde a serem incorporadas às relações estaduais ou municipais, em complemento à relação nacional, deverão ser previamente submetidas à análise da CONITEC (art. 18, §3º da Portaria de Consolidação nº 01/2017 do Ministério da Saúde).
Obedecendo ao comando do art. 16 da Portaria de Consolidação/MS 01/2017, a RENASES é dividida em cinco partes, a saber: I – Ações e Serviços da Atenção Primária; II – Ações e Serviços da Urgência e Emergência; III – Ações e Serviços da Atenção Psicossocial; IV – Ações e Serviços de Atenção Especializada, esta subdividida em Atenção Ambulatorial Especializada, Odontologia Especializada e Atenção Hospitalar; e V – Ações e Serviços da Vigilância em Saúde.
Ao contrário da RENAME, que é dividida em diversos componentes (grupos de medicamentos), cada qual com atribuições específicas de financiamento, aquisição e distribuição pelos diversos entes federativos, os componentes da RENASES não guardam relação necessária com as competências administrativas ou responsabilidades financeiras da União, estados e municípios. A divisão, como visto acima, dá-se de acordo com o tipo de atendimento à saúde prestado (atenção primária, urgência e emergência, atenção psicossocial, atenção especializada e vigilância sanitária). Dentro destes grupos, os deveres assumidos por cada ente federativo deverão ser necessariamente pactuados na Comissão Intergestores Tripartite – CIT. É o que estabelece o art. 23 do Decreto nº 7.508/2011:
Art. 23. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios pactuarão nas respectivas Comissões Intergestores as suas responsabilidades em relação ao rol de ações e serviços constantes da RENASES.
Importante pontuar que as responsabilidades a serem pactuadas na CIT não são apenas as financeiras, mas também aquelas relativas à efetiva prestação dos serviços, tudo de acordo com as particularidades administrativas e sociais de cada região. Sobre isso, o art. 15 da Portaria de Consolidação/MS 01/2017 traz diretrizes importantes a serem observadas:
Art. 15. O financiamento das ações e serviços da RENASES será tripartite, conforme pactuação, e a oferta das ações e serviços pelos entes federados deverá considerar as especificidades regionais, os padrões de acessibilidade, o referenciamento de usuários entre municípios e regiões, e a escala econômica adequada.
A RENASES também categoriza as diversas formas de acesso às ações e serviços de saúde nela constantes, que deverão estar de acordo com critérios de referenciamento fundamentados nas normas e Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do SUS, conforme dispõe o art. 19 da Portaria de Consolidação/MS 01/2017. De acordo com o art. 20 da mesma portaria, as formas de acesso são as seguintes:
I - mediante procura direta pelos usuários, sem exigência de qualquer tipo de encaminhamento ou mecanismo de regulação de acesso. São as denominadas “portas de entrada do SUS” (unidades básicas de saúde, urgência e emergência, centros de atenção psicossocial, dentre outras);
II - mediante encaminhamento de serviço realizado por um serviço próprio do SUS;
III - mediante autorização prévia de dispositivo de regulação de acesso (central de regulação, complexo regulador ou outro dispositivo incumbido de regulação, coordenação de cuidado ou controle de fluxo de pacientes entre serviços de saúde);
IV - com exigência de habilitação, ou seja, autorização pelo gestor municipal, estadual ou federal para que um estabelecimento de saúde já credenciado ao SUS passe a realizar o procedimento necessário;
V - com indicação e autorização prevista em Protocolos Clínicos ou Diretrizes Terapêuticas específicos; e
VI – tratando-se de ação ou serviço voltado para a saúde coletiva, com intervenções individuais, em grupo e na regulação e controle de produtos e serviços, no campo da vigilância.
Para cada uma dessas formas de acesso, a RENASES estabeleceu um código numérico (1 a 6, respectivamente), que foi marcado ao lado de cada tratamento nela constante. Para se ter uma ideia de como a lista foi elaborada, tomemos como exemplo o procedimento de elaboração de plano terapêutico individual para o tratamento de doenças crônicas:
Explicada como se dá a repartição de competências entre os entes federativos e a forma de acesso às ações e serviços listados na RENASES, e nos termos da tese firmada pelo STF no Tema 793 de repercussão geral1“Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”, cabe aos autores de demandas judiciais que pleiteiam algum dos tratamentos não medicamentosos constantes na referida relação2A repartição de competências administrativas específica para a assistência farmacêutica possui regulamentação própria, explicada em outro post do blog., bem como ao Juízo, apontar qual é, no caso concreto, o ente competente para seu o custeio ou fornecimento.
Como visto anteriormente, para isso será necessário verificar como a prestação do serviço ou o fornecimento da tecnologia em saúde foi pactuado na Comissão Intergestores Tripartite, o que, há que se reconhecer, não será nada fácil em grande parte dos casos, já que as pactuações individuais da CIT, caso estejam disponibilizadas ao público, são de pesquisa e acesso complexos. Sendo assim, a medida que parece mais célere e produtiva é a consulta pelo Juízo diretamente aos gestores do SUS, no bojo do processo e preferencialmente antes da decisão de eventual pedido de tutela de urgência, para que indiquem como foram pactuados a prestação e o custeio da ação ou serviço público de saúde requerido na ação.
Essa consulta prévia aos gestores do SUS pode ser antecipada por outros atores da judicialização da saúde que tenham prerrogativas de obtenção de informações para o desempenho de suas funções institucionais, tal como ocorre com o Ministério Público e a Defensoria Pública. Assim procedendo, o direcionamento da ação judicial contra os réus legítimos será mais seguro e a análise de tutelas de urgência pelo Poder Judiciário poderá ser mais ágil. Também os particulares podem requerer esse tipo de informação, de acordo com a Lei nº 12.527/2011. Todavia, exigir que eles a apresentem no processo seria um ônus demasiado diante da dificuldade que podem encontrar nos casos concretos.
A definição dos entes federativos competentes para o fornecimento e custeio da tecnologia em saúde, previamente à eventual determinação judicial de sua entrega, é fundamental para a qualificação da judicialização da saúde e para a mínima interferência jurisdicional na gestão do SUS. De fato, o que se tem observado na prática é que condenações solidárias resultam, via de regra, na assunção de responsabilidade do ônus não necessariamente pelo ente administrativamente competente, mas por aquele que atua com mais eficiência e boa vontade no processo. Isso sem contar a afronta expressa à tese do Tema 793/STF, segundo a qual “diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”.
A questão se torna bem mais complexa quando a ação ou serviço de saúde postulado judicialmente não consta na RENASES. Como não houve incorporação ao SUS, também não houve pactuação de responsabilidades pela CIT. Desta forma, não há, a rigor, um ente federativo ao qual foi atribuída competência para o seu custeio ou fornecimento. Para piorar, não existem no ordenamento jurídico sequer diretrizes gerais a serem observadas pelos gestores para a fixação das competências por ocasião da pactuação e que pudessem ser perquiridas judicialmente, ao contrário do que ocorre em relação aos medicamentos, cuja divisão de responsabilidades e enquadramento nos diversos componentes da assistência farmacêutica são norteados pelos artigos 50 a 53 do Anexo XXVIII da Portaria de Consolidação/MS 02/2017.
Haveria, em tese, três saídas dessa encruzilhada.
A primeira seria atribuir à União a responsabilidade pelo custeio e fornecimento da ação ou serviço de saúde não incluído na RENASES, já que cabe ao Ministério da Saúde elaborar e atualizar a lista, padronizando as tecnologias a serem oferecidas pelo SUS. Esta alternativa não parece a mais adequada, basicamente por duas razões:
a) via de regra, o custeio das ações e serviços das tecnologias incluídas na RENASES será repartido entre os entes federativos, respeitando-se (ao menos assim deveria ser) a capacidade financeira de cada um. Se, de um lado, estados e municípios não possuem condições de arcar com tratamentos, procedimentos e serviços em geral de alto custo, é preciso que eles ao menos participem do financiamento das ações realizadas nos respectivos territórios, que atendem à população local em relação às necessidades mais corriqueiras ou mesmo às mais complexas, mas dentro de suas possibilidades no cofinanciamento;
b) o Ministério da Saúde teria grandes dificuldades (ou mesmo impossibilidade) operacionais para disponibilizar judicialmente tratamentos de saúde que devam ser ministrados em estabelecimentos administrados ou contratados pelos estados e municípios. Basta considerar, a título de exemplo, pedidos de procedimentos cirúrgicos não constantes na RENASES que demandem leitos, internações ou consultas médicas cuja regulação não é feita normalmente pela União, com poucas exceções relacionadas aos hospitais federais. Na realidade, o cumprimento das ordens judiciais pelo gestor federal em tais hipóteses pode inclusive desorganizar a regulação feita pelos municípios, estados ou instituições de saúde por eles contratadas.
A segunda saída seria, na falta de pactuação das competências dos entes federativos pela CIT, atribuir responsabilidade solidária entre todos eles. Neste caso, corre-se o mesmo risco apontado na alternativa anterior ao se exigir o cumprimento da ordem judicial inclusive de ente que pode não ter ingerência nenhuma na ação ou serviço de saúde postulado. A situação é mais delicada sobretudo nos casos em que a prestação a ser cumprida não pode ser convertida em pagamento em pecúnia, como ocorre na liberação de consultas médicas e disponibilização de leitos hospitalares, por exemplo. Isso sem falar no risco de se sobrecarregar financeiramente os entes federativos menores com eventuais altos custos do tratamento a ser providenciado, incompatível com os respectivos orçamentos.
A terceira alternativa – que parece ser a mais adequada, apesar de também trazer algumas dificuldades – é definir a responsabilidade pelo cumprimento de ordens judiciais para prestação de ações ou serviços de saúde não incluídos na RENASES mediante uma interpretação analógica das tecnologias já incorporadas e com competências pactuadas. A proposta consiste, basicamente, em verificar como foram pactuados o custeio e o fornecimento da tecnologia mais próxima possível daquela que se pretende obter judicialmente, aplicando-se as mesmas regras em relação à tecnologia não padronizada.
Há duas principais vantagens na adoção desta solução.
A primeira é preservar, na medida do possível, as competências dos entes administrativos já previstas para casos semelhantes, evitando-se a imposição de obrigações de difícil ou impossível cumprimento e preservando ao máximo a capacidade financeira de arcar com o ônus da determinação judicial.
A segunda é facilitar o cumprimento da ordem judicial, já que ela será direcionada contra o ente já preparado para disponibilizar a ação ou serviço de saúde buscado, supondo-se que outros congêneres ou próximos já estão sendo oferecidos.
Um exemplo real ajudará a esclarecer o raciocínio.
Um indivíduo com suspeita de ter uma doença rara denominada Xantomatose Cerebrotendínea necessitava de um exame genético (teste genético para xantomatose cerebrotendínea com pesquisa de mutação no gene da enzima esterol 27-hidroxilase) para confirmar a existência da doença e com isso iniciar o tratamento adequado. Foi informado pela Regional de Saúde do estado onde reside que referido teste não está contemplado na tabela de procedimentos do SUS. No entanto, consta no item 4.1 da RENASES (Atenção Ambulatorial Especializada) o procedimento “Exames complementares do diagnóstico: exames de genética”, com a descrição “exames de análise cromossômica para diagnóstico de malformações congênitas e aconselhamento genético”.
Na hipótese de a realização do referido exame ser postulada judicialmente e o pedido ser acolhido, o Juízo poderia verificar junto aos gestores do SUS qual a forma de pactuação do procedimento constante na RENASES (Exames complementares do diagnóstico: exames de genética) e aplicá-la analogicamente ao caso concreto para definir o ente responsável pelo cumprimento da ordem judicial, já que a tecnologia buscada também é um exame genético, ainda que não padronizado.
Uma excelente ferramenta para a busca por procedimentos congêneres ao pretendido judicialmente e que estejam incorporados ao SUS é o SIGTAP (Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS), disponível para consulta na internet. O sistema, de manuseio intuitivo, traz informações muito importantes a respeito da modalidade de cada atendimento, financiamento, correlações com a RENASES, CID, CBO, além de outras. Como exemplo, veja o resultado para a consulta ao procedimento de mastectomia radical com linfadenectomia:
Como já adiantado, entretanto, algumas dificuldades podem se apresentar nos casos concretos. É o que aconteceria, por exemplo, se o procedimento solicitado e não padronizado, apesar de ter natureza semelhante a um outro já incorporado ao SUS, tiver um custo acentuadamente maior, o que poderia levar a uma pactuação distinta na CIT no caso de incorporação. Outra hipótese seria a de uma complexidade elevada na própria identificação de procedimento padronizado semelhante. Pode-se citar, ainda, a simples inexistência de qualquer ação ou serviço de saúde oferecido pelo SUS e parecido com aquele que se busca judicialmente, impossibilitando a aplicação analógica da divisão de competências.
Em quaisquer dessas situações, a melhor solução a ser adotada é determinar que a ação ou serviço público de saúde objeto de demanda judicial seja viabilizada pelo ente federativo que possui ingerência sobre a instituição de saúde em que o tratamento deve ser realizado (via de regra, o município, quando o tratamento for feito em unidades básicas de saúde ou ambulatórios; e município ou estado, conforme a gestão local, quando for feito em hospitais ou clínicas especializadas), seja por via direta ou pela contratualização firmada com entidades privadas que prestam serviços ao SUS.
Além disso, é necessário que ao menos se enquadre a ação ou serviço de saúde objeto do processo em um dos componentes da RENASES (I – Ações e Serviços da Atenção Primária; II – Ações e Serviços da Urgência e Emergência; III – Ações e Serviços da Atenção Psicossocial; IV – Ações e Serviços de Atenção Especializada; e V – Ações e Serviços da Vigilância em Saúde) para então se determinar que o seu custeio seja suportado pelos entes federativos de acordo com as regras de financiamento previstas para cada um dos referidos componentes.
Acerca deste ponto, a Portaria de Consolidação/MS 06/2017 traz, de forma sistematizada, as normas sobre o financiamento e a transferência dos recursos federais para as ações e os serviços de saúde do SUS para cada uma das partes (componentes) da RENASES. Vejamos:
Componente da RENASES | Regras de financiamento (Portaria de Consolidação/MS 06/2017) |
---|---|
I- Ações e Serviços da Atenção Primária | Título II – Do custeio da Atenção Básica |
II – Ações e Serviços da Urgência e Emergência | Título VIII, Capítulo II – Do financiamento da Rede de Atenção às Urgências e Emergências |
III – Ações e Serviços da Atenção Psicossocial | Título VIII, Capítulo III – Do financiamento da Rede de Atenção Psicossocial |
IV – Ações e Serviços de Atenção Especializada | Título III – Do custeio da Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar |
V – Ações e Serviços da Vigilância em Saúde | Título IV – Do custeio da Vigilância em Saúde |
As normas sobre o financiamento de cada um dos componentes da RENASES são complexas e envolvem questões técnicas que dificilmente serão assimiladas de forma segura pelos atores de uma ação judicial. Ainda assim, é importante que o Juízo, ao determinar a disponibilização de um tratamento não medicamentoso que não esteja padronizado no SUS e não possa ser equiparado a outro já oferecido pelo sistema público para a definição das responsabilidades pelo fornecimento e custeio, assegure ao menos que, após a prestação da ação ou serviço de saúde objeto do processo, o seu ônus financeiro seja suportado ou ressarcido de acordo com as regras da Portaria de Consolidação/MS 06/2017, conforme dispõe a tese do Tema 793/STF. Este acerto de contas pode ser feito diretamente entre os gestores dos entes federativos envolvidos, mas para isso é fundamental que a decisão judicial assegure o direito do ente federativo que a cumpriu de ser eventualmente ressarcido, caso o custeio (parcial ou integral) não lhe coubesse.
Por mais que a apuração e definição das responsabilidades dos entes federativos pela prestação de ações e serviços de saúde que não consistem na simples entrega de medicamentos seja trabalhosa, sobretudo no caso de procedimentos e terapias não padronizados, ela deve ser feita tanto pela determinação contida na tese do Tema 793/STF como para se preservar ao máximo o bom funcionamento administrativo e a higidez orçamentária do SUS, que já são inevitavelmente afetados pela simples judicialização da saúde.
De todo modo, há medidas que poderiam ser implementadas para facilitar a resolução de controvérsias que chegam ao Poder Judiciário, qualificando a judicialização da saúde e, consequentemente, mitigando os efeitos maléficos que ela causa ao SUS em termos de gestão. Dentre elas, podem ser citadas as seguintes:
a) maior transparência e acessibilidade às formas de pactuação das ações e serviços públicos de saúde pelos gestores do SUS na CIT, permitindo uma melhor compreensão ao público em geral;
b) maior objetividade no regramento aplicável à pactuação das competências dos entes federativos das ações e serviços públicos de saúde; e
c) aprimoramento da interlocução entre os órgãos do Poder Judiciário e os gestores do SUS, para que estes tenham conhecimento das demandas que costumeiramente são levadas à apreciação judicial e assim possam, eventualmente, definir as responsabilidades administrativas como forma de organizar o cumprimento das determinações judiciais ou mesmo padronizar os tratamentos mais demandados, de acordo com os critérios técnicos e orçamentários adequados.
Imagem do Post: Paul Hanaoka on Unsplash