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Gabriel Menna Barreto Von Gehlen

“It’s the prices, stupid” – O tema 500/STF, judicialização da saúde e doenças raras

Gerard Anderson e outros conseguiram um feito em 2002: publicaram em revista científica de prestígio – a Health Affairsum artigo com um título nada menos que injurioso.

O artigo explicava por que nos Estados Unidos se gasta tanto em saúde, porém lá os indicativos de saúde são piores que os de outros vários países desenvolvidos. E a explicação já vinha no título e no seu vocativo desaforado: estúpido, são os preços. Ou seja, é por causa dos preços em saúde que nos EUA se gasta um percentual enorme daquele que é o maior PIB do mundo, sem que isso redunde em saúde da população.

E o que o “estúpido americano” tem a nos ensinar? Pois a história do ianque gastão e morboso é um típico “cautionary tale”, e com uma lição bem clara: quando se esquecem os custos em saúde e quando políticas públicas que os controlam são ineficazes, quem sofre é a saúde da população.

O legislador brasileiro, ao contrário do americano, foi sábio e criou uma série de mecanismos tendentes a regular excessos no mercado de tecnologias em saúde.

Um deles é a CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos), órgão interministerial responsável pela regulação econômica do mercado de medicamentos no Brasil, composto pelo Ministério da Saúde, pela Casa Civil, pelo Ministério da Fazenda, pelo Ministério da Justiça e pelo Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços. Caso necessário, há a reunião dos seis ministros, a demonstrar que não se trata de mero órgão burocrático, mas de um dos colegiados mais poderosos da república1A CMED foi criada em 2003 pela Lei nº 10.742, de 6 de outubro de 2003 e regulamentada pelo Decreto nº 4.766, de 26 de junho de 2003.

Depois de um medicamento ser registrado pela ANVISA e antes de sua comercialização, ele ainda deve se submeter à precificação perante a CMED, que fixará o preço-teto no mercado nacional. Além disso, quando a compra de medicamentos se der pelo SUS, a CMED impõe ainda o CAP (Coeficiente de Adequação de Preços), que reduz ainda mais os preços do fabricante.

A precificação da CMED tem dois parâmetros: o referenciamento externo de preços e o referenciamento interno.

O referenciamento externo se aplica a tecnologias superiores ao tratamento padrão, e, por meio dele, o preço no Brasil não pode exceder o menor preço encontrado numa cesta de preços de nove países (Austrália, Canadá, França, Grécia, Itália, Nova Zelândia, Portugal, Espanha e Estados Unidos).

Já o referenciamento interno se aplica quando a nova tecnologia não é superior ao tratamento padrão. Nesse caso, o preço inicial não pode exceder o do tratamento padrão.

Apesar de responsável por uma relevantíssima política pública, a CMED não é grande conhecida do juiz brasileiro. E o caso do medicamento Soliris é emblemático para demonstrar esse desconhecimento. Ele foi judicializado por quase dez anos sem registro na ANVISA e, portanto, sem precificação na CMED, sendo à época reputado o medicamento mais caro do mundo. Quando finalmente o laboratório promoveu o registro na ANVISA e sobreveio a precificação em 2017, concluiu-se que toda a judicialização anterior do Soliris representou um prejuízo ao SUS de algo como 300 milhões de reais por ano.

Eis um incentivo perverso promovido pelo judiciário: por que cargas d’água o laboratório se submeteria à precificação da CMED quando há juiz que manda bloquear valores do estado ou município e adquire o medicamento pelo preço de farmácia dos EUA (não raro com gordas taxas do importador)?

Verdade que desde 2018 há autorização para a CMED precificar o medicamento mesmo em face da inação do laboratório, impedindo repetição dessas condutas comercialmente perversas como a do Soliris. Porém, o juiz no Brasil é muito rápido no bloqueio de valores: é muito provável que, antes que a CMED constate processos judiciais sobre novos medicamentos e os precifique de ofício, um grande prejuízo já tenha se concretizado especialmente contra municípios e estados. E isso desonera o laboratório de um ônus instrutório imposto a todos os fabricantes de medicamento.

Pois bem.

Está explicada a importância da CMED e como ela protege o Brasil de injúrias desferidas pela academia (“stupid!”). E o que tem isto tudo a ver com o tema 500 do STF? Ele teve a seguinte tese aprovada:

1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais.
 
2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.
 
3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos:
(i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras) grifo nosso;
(ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e
(iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.
 
4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União”, vencido o Ministro Marco Aurélio. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello. Plenário, 22.05.2019.  

A proposta original de tese do relator para o acórdão, Ministro Barroso, não continha a exceção contida no item i, relativamente a drogas órfas/doenças raras. Ela surge no voto do Ministro Alexandre de Moraes (1:20:03) e é depois acolhida pelo ministro Barroso (1:30:24), ao argumento de que “nesses casos, muitas vezes o laboratório não tem interesse comercial em pedir o registro”.

A matéria não foi objeto de outras considerações senão essa lacônica passagem dos dois ministros. Então, de acordo com o entendimento do STF, os laboratórios não estão obrigados a submeter “orphan drugs” a controle de preços destinadas ao tratamento de doenças raras.

A CONITEC explica que doenças raras, segundo a OMS, são as que afetam até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos. Ou seja, cada uma delas afeta uma população limitada de doentes. O que não se pode esquecer é que existem mais de 8.000 doenças raras conhecidas, que afligem aproximadamente 8% da população mundial. Transposto este percentual para o Brasil, teríamos mais de 11 milhões de portadores de doenças raras.

Nos EUA, estima-se essa prevalência em aproximadamente 30 milhões de americanos, mesmo número de doentes de diabetes. Apenas uma pequena fração das doenças raras tem tratamento, mas se trata de um dos campos mais cobiçados pela indústria farmacêutica e conta com uma bem sucedida lei de estímulo nos EUA (o orphan drugs act2E como a criatividade não tem limites, ainda mais quando isso representa um gordo faturamento, já houve laboratório buscando o status de orphan drug para tratar a COVID19, quando nada há mais de antitético que doença rara e pandemia. A grita foi tão grande que a Gilead desistiu da ousadia.). Para se ter uma ideia, de 59 medicamentos aprovados pela FDA em 2018, 34 se enquadraram como orphan drugs.

Trata-se de medicamentos cujos preços partem de centenas de milhares de dólares até alguns milhões de dólares anuais. E apesar de cada uma dessas doenças afetar um número não significativo de doentes, elas resultam em faturamentos extraordinários. O Strensig (alfa-asfotase) já rendeu 1,1 bilhão para o laboratório Alexion, sendo quase 300 milhões apenas na primeira metade de 2019. Aliás, a Alexion é justamente a fabricante do Soliris, que lhe rendeu, em 2018, 3,5 bilhões de dólares.

O que seria um farol de esperança para os doentes tornou-se um quebra-cabeças até agora insolúvel para os gestores na saúde privada e pública. A Organização Mundial da Saúde da ONU, objetivando maior justiça na fixação de preços  dos medicamentos, vem exigindo dos laboratórios mais transparência sobre os custos de desenvolvimento das tecnologias e sobre os preços nas negociações com os sistemas de saúde. A questão dos preços dos medicamentos conseguiu unir até antagonistas famosos, pois até o presidente Trump tem discurso contra os preços da indústria farmacêutica.

A ANVISA publicou a Resolução 205/17, para acelerar o registro de tratamentos para  doenças raras. Trata-se de procedimento tão expedito que, a partir daí, há casos de pedidos de registros de tecnologias no Brasil sem qualquer registro no mundo, ou apenas nos EUA. Essa circunstância impede a aplicação da precificação baseada na cesta de países estrangeiros, o que exigiu revisão da Resolução CMED 02/2004, estando em trâmite análise de impacto regulatório sobre a nova resolução.

Qual o panorama então? Temos tema – controle de preços estratosféricos de novos medicamentos – que une democratas e republicanos, Trump e OMS. E temos um órgão estatal (CMED) eficiente e que se esforça tecnicamente para estar à altura do desafio por meio de análise de impacto regulatório (AIR), que reformulará a política de preços de medicamentos no Brasil.

E então, em 2019, a despeito do primoroso voto-líder no Ministro Barroso, o STF vota o tema 500 e desvirtua essa política pública tão benfazeja ao mercado de saúde nacional. Porque se os laboratórios das orphan drugs não precisam se submeter à ANVISA, tampouco terão que se submeter à fixação de preço perante a CMED.

Isso parece reforçar que os chamados processos judiciais estruturantes devem ter a mais ampla participação, a fim de que o juiz não decida sem os influxos dos mais diversos interessados e experts na matéria. No processo que gerou o tema 500, ingressaram como interessados apenas a União e o colégio de procuradores-gerais dos estados. Não foram ouvidas a Anvisa, a CMED, as associações de pacientes nem a indústria farmacêutica. Tampouco se ouviu a academia. Ao final, parece que o Ministro Barroso, na discussão da tese, incorreu na censura da doutrina que ele próprio citara no voto:

“a cegueira diante das capacidades institucionais dos intérpretes da Constituição pode gerar perspectivas hermenêuticas muito bonitas na teoria, mas que, quando aplicadas na prática, se revelem desastrosas para a própria concretização dos valores constitucionais” (Daniel Sarmento, Interpretação Constitucional, Pré-compreensão e Capacidade Institucional do Intérprete. In: Cláudio Pereira de Souza Neto, Daniel Sarmento e Gustavo Binenbojm (coord.) Vinte anos da Constituição Federal de 1988, 2009, p. 312-313)

Porém, há ainda esperança. Resta ainda por votar a última e mais importante tese da judicialização da saúde no STF, o tema 6. A depender do que dele constar, pode-se retomar a deferência a uma política pública que, se não é perfeita, é muito melhor que deixar os laboratórios sem quaisquer freios na precificação das drogas órfãs.

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