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Coparticipação no SUS

Bruno Henrique Silva Santos

Coparticipação da parte autora no custeio de tratamentos de saúde fornecidos judicialmente pelo SUS

Uma releitura da hipossuficiência financeira

1. Propósito da reflexão

Este artigo propõe uma reflexão acerca da possibilidade de que o indivíduo que pretende receber judicialmente do SUS um tratamento não incluído nas políticas públicas participe, ainda que parcialmente e segundo suas condições econômicas, do seu custeio.

2. O Dogma da gratuidade no SUS

De antemão, é preciso deixar claro que não se pretende afastar o acesso universal e igualitário às ações e serviços públicos do SUS, até porque ele está previsto de forma expressa no art. 196 da Constituição. Muito embora seja largamente difundida a ideia de que os tratamentos disponíveis no Sistema Único de Saúde devam ser necessariamente gratuitos, essa exigência não se faz presente de forma clara no texto constitucional. Ela pode ser tida como uma decorrência da universalidade e da igualdade de acesso ao sistema público.

Por outro lado, não parece evidentemente equivocada uma leitura da Constituição que permita interpretá-la no sentido de que a universalidade estaria resguardada na medida em que ninguém fosse impedido de ter acesso ao SUS. Assim, quem não tem condições de pagar pelo tratamento, deve recebê-lo gratuitamente, mas o pagamento, ainda que parcial, poderia ser exigido daqueles que possuem capacidade financeira para tanto.

Essa lógica prestigiaria também o princípio da igualdade por tratar de maneira distinta situações fáticas diferentes. Em abono a esse entendimento, pode-se socorrer do art. 145, II, da Constituição, que autoriza os entes federativos a instituírem taxas pela utilização de serviços públicos específicos e divisíveis prestados aos contribuintes, bem como do art. 175, parágrafo único, III, também da Constituição, que atribui à lei ordinária dispor sobre a política tarifária relacionada à prestação de serviços públicos.

Nessa perspectiva, a gratuidade do SUS seria apenas uma opção legislativa, mas não uma imposição constitucional. Essa opção, de qualquer forma, foi feita pelo legislador ordinário, haja vista o teor do art. 43 da Lei nº 8.080/90:

Art. 43. A gratuidade das ações e serviços de saúde fica preservada nos serviços públicos contratados, ressalvando-se as cláusulas dos contratos ou convênios estabelecidos com as entidades privadas.

Por outro lado, nada impediria, a prevalecer a conclusão de que a Constituição não exige a gratuidade dos serviços do SUS em toda e qualquer situação, que alguma forma de cobrança viesse a ser prevista em lei, mas respeitando os princípios da universalidade e igualdade de acesso, de forma que nenhum indivíduo seja privado dos tratamentos oferecidos no sistema público de saúde por não ter condições financeiras de custeá-los.

A respeito dessa interessante discussão, vale uma leitura das seguintes lições de ALCENI GUERRA, BÁRBARA MENDONÇA BERTOTTI e SÍLVIO GUIDI1Comentários à Lei Orgânica da Saúde – LOS, Quartier Latin, p. 381/385:

Há vozes na doutrina que entendem a gratuidade como princípio do SUS. Consequência disso seria a impossibilidade de o legislador alterar o conteúdo do artigo 43 da LOS, de modo a tornar possível a cobrança por ações e serviços executados no âmbito do SUS. Essa é a posição de Suelli Gandolfi Dallari e Vidal Serrano. Esses professores entendem que a gratuidade no SUS é princípio, que aparece de forma implícita no ordenamento jurídico. Entendem que o princípio da gratuidade deriva da lógica da arrecadação de tributos que viabilizam as ações e serviços de saúde. Argumentam, ainda, a existência de tributos vinculados à saúde, como as taxas derivadas da fiscalização sanitária, por exemplo.
(...)
A posição nesse trabalho é diferente, compreendendo que a gratuidade é mera opção do legislador, que atualmente comporta uma série de exceções. Ou seja, a gratuidade dos serviços públicos de saúde não deriva de princípio, mas sim de regra.
(...)
Partindo dessa premissa (gratuidade como regra), ela pode ser alterada pela técnica legislativa adequada, podendo haver situações nas quais seja legítima a cobrança por certas atividades executadas no âmbito do SUS.
Se é certo que nem todas as atividades administrativas são financiadas por meio de arrecadação que exigem a lógica de prestação/contraprestação, a espécie de atividade serviço público parte da premissa da possibilidade de cobrança de taxa ou tarifa. E a política tarifária é base constitucional (art. 175) do regime jurídico da prestação de qualquer serviço público. Ocorre que, por uma opção do legislador infraconstitucional, decidiu-se que a política, nas hipóteses de prestação de serviços de saúde, seria a de subsídio integral.
(...)
Assim, a gratuidade não é, portanto, princípio, pois não “dispõe sobre os conteúdos intelectivos, racionalizados juridicamente e que representam os valores superiores adotados pela sociedade” brasileira. A gratuidade é mera opção do legislador infraconstitucional, que, como regra geral, preferiu impedir que os serviços públicos de saúde tenham uma política de financiamento ligada, total ou parcialmente, à cobrança de taxa ou tarifa.
(...)
Evidentemente que, alterada a predileção legislativa e abrindo-se com maior amplitude a possibilidade de cobrança pelo uso do serviço público de saúde, o administrador público deverá organizar o serviço de tal forma a viabilizar o acesso àqueles que não detiverem condições de arcar com os custos da atenção à sua saúde, impedindo que a existência de tarifa ou taxa seja um impedimento ao dever estatal e ao direito do cidadão de viver dignamente.

É preciso extrema cautela, de qualquer forma, na eventual adoção do entendimento de que é possível a cobrança por ações e serviços de saúde do SUS a quem tenha condições de pagar por eles. Acontece que o SUS foi concebido como um sistema universal e igualitário de saúde para toda a população, sem distinção de renda, classe social ou profissional, raça, idade ou qualquer outra. Antes do seu advento, a iniciativa privada e os parcos serviços públicos então existentes definitivamente não atendiam a esse propósito, o que fazia com que somente as classes mais privilegiadas tivessem acesso efetivo a serviços de qualidade.

Neste cenário, a hipotética permissão de cobrança pelas ações e serviços de saúde do SUS não poderia, em hipótese alguma, resultar em redução do já insuficiente orçamento da saúde, tampouco em um avanço da iniciativa privada sobre o sistema público que tirasse o seu controle das mãos do Estado, seja em termos financeiros, gerenciais, executivos ou de formulação de política pública, porque essa foi uma das maiores conquistas da sociedade brasileira com a Constituição de 1988.

Além do mais, seria razoável a destinação obrigatória ao orçamento do SUS de todos os pagamentos que viessem a ser feitos em razão de serviços por ele prestados. Assim, a cobrança funcionaria como um mecanismo de equidade no financiamento da saúde pública, com indivíduos que possuem condições econômicas de pagar pelos atendimentos recebidos, auxiliando no custeio dos atendimentos daqueles que não as possuem.

Tudo isso está sendo dito apenas para demonstrar que a participação do cidadão no custeio de um tratamento de saúde oferecido pelo SUS, quando há efetivas condições econômicas para tanto, não é algo inimaginável em relação àquilo que está disponível nas políticas públicas de saúde.

3. Uma noção ampliada e mais profunda da hipossuficiência econômica e o dever de coparticipação no custeio de tratamentos não padronizados requeridos judicialmente

O foco deste artigo, entretanto, diz respeito aos tratamentos demandados judicialmente, mas não padronizados no SUS. Em relação a eles, há fundamentos consistentes que permitem atribuir às autoras e autores das ações uma participação no custeio da prestação pretendida quando tenham condições financeiras para tanto. Não há, aqui, nenhuma afronta ao princípio da igualdade ou da universalidade do SUS porque as ações e serviços públicos de saúde já incorporados ao sistema público continuam disponíveis de forma gratuita a todos que deles necessitarem.

Agora, se o tratamento que se busca não é oferecido aos demais cidadãos, é razoável que o postulante, no mínimo, não tenha recursos para obtê-lo por conta própria, já que pretende algo além do que todos os outros recebem. Essa exigência tem sido aceita sem maiores divergências na jurisprudência. Ela consta expressamente na tese do Tema 106 dos recursos repetitivos do STJ (REsp 1.657.156), segundo a qual:

A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos:
i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;
ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito;
iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência.

Já no tema 6 de repercussão geral do STF (RE 566.471), que trata do dever do Estado de fornecer medicamentos de alto custo, ainda que a respectiva tese não tenha sido até o momento definida, ao menos seis ministros (Marco Aurélio, Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Rosa Webber e Ricardo Lewandowski) já consignaram em seus respectivos votos que a hipossuficiência econômica do demandante é um requisito a ser observado para tanto.

O que se defende neste momento é que não se deve ater a uma lógica estritamente dualista em relação à hipossuficiência econômica, de maneira a considerar que ou o autor da ação não tem condições financeiras de pagar por todo o tratamento – e assim pode recebê-lo do Estado -, ou tem condições de custeá-lo totalmente, caso em que não terá direito de recebê-lo do SUS.

Sem dúvida, haverá situações em que a autora ou o autor da demanda terá condição de pagar ao menos parte do tratamento vindicado, mas não a sua totalidade. A hipossuficiência, nessas hipóteses, é apenas parcial. Neste caso, se a capacidade econômica permite uma colaboração com o Estado no pagamento do tratamento que não é oferecido aos demais indivíduos, assim deve ser feito.

Essa possibilidade de análise mais ampla da hipossuficiência financeira, que em determinadas situações pode ser apenas parcial e por isso merece tratamento diferenciado, foi adotada pelo Código de Processo Civil na normatização da assistência judiciária gratuita. De fato, seu artigo 98, §§5º e 6º, dispõe o seguinte:

Art. 98. A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei.
(...)
§ 5º A gratuidade poderá ser concedida em relação a algum ou a todos os atos processuais, ou consistir na redução percentual de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento.
§ 6º Conforme o caso, o juiz poderá conceder direito ao parcelamento de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento.

Atentou-se o legislador às situações em que a parte requerente da assistência judiciária gratuita não tem condições econômicas para arcar com a integralidade das custas e despesas processuais, mas tem para pagar ao menos parte delas. Não há razões para que essa distinção não seja feita também em relação à hipossuficiência econômica exigida como condição para o fornecimento judicial de tratamentos não incluídos nas políticas públicas do SUS.

Pelo contrário, o tratamento diferenciado dispensado às pessoas que possuem condições de arcar com ao menos parte das despesas de um medicamento ou procedimento médico postulado em Juízo é medida que concretiza os princípios da equidade e da isonomia.

A equidade impõe que os recursos públicos sejam destinados prioritariamente àqueles que dependem exclusivamente do Estado para os cuidados com a sua saúde e não ao pagamento de despesas com tratamentos não disponíveis aos cidadãos em geral e em favor de pessoas que podem arcar, ainda que parcialmente, com os seus custos.

Já a isonomia exige tratamento diferenciado a situações distintas. Por isso, referido princípio é afrontado quando um indivíduo que possui condições financeiras de arcar com parcela dos custos de um tratamento não incorporado ao SUS recebe tratamento idêntico àquele que não possui condição alguma. Da mesma maneira, é anti-isonômica a conduta de tratar aquele primeiro indivíduo da mesma maneira que um outro que tem condições de pagar a totalidade das despesas do medicamento ou prestação de saúde requerida em Juízo e não incorporada ao SUS.

A única solução, portanto, que atende à equidade e à isonomia nas ações judiciais que buscam a concessão de tratamento médico não incorporado ao SUS, desde que preenchidos os demais requisitos impostos pela jurisprudência, é:

a) reconhecer o direito ao recebimento do tratamento independentemente de qualquer coparticipação financeira àqueles que não têm condições para tanto;

b) não reconhecer o direito ao recebimento do tratamento àqueles que possuem condições financeiras para arcar com os seus custos; e

c) reconhecer o direito ao recebimento do tratamento, mas mediante a devida coparticipação no custeio, àqueles que possuem condições de pagar parte das despesas, mas não a sua integralidade.

A repartição do custeio do tratamento, em determinadas hipóteses, entre o Estado e o beneficiário da tutela jurisdicional reduz o impacto orçamentário direto da judicialização da saúde. Além disso, provavelmente acarretará análises mais criteriosas dos demandantes na propositura das ações judiciais.

O ser humano intuitivamente tem um maior zelo por aquilo que adquire ou recebe com algum custo próprio quando comparado ao que é “de graça”. Por outro lado, sopesa com parâmetros mais restritos a real necessidade de um bem da vinda cuja aquisição demanda algum ônus seu.

4. Propostas de critérios para a aferição dos graus de hipossuficiência

O ponto mais sensível para essa análise ampliada da hipossuficiência econômica aqui proposta é delimitar critérios de alguma forma objetivos para diferenciar as situações em que o indivíduo não tem condições alguma de participar do custeio do tratamento médico reivindicado em juízo daquelas em que há condições de custeio total ou, mais difícil ainda, de custeio ao menos parcial e, neste caso, em que proporção.

A definição de parâmetros seguros, objetivos e justos para a distinção das diversas situações demanda reflexão mais aprofundada e estará sujeita, inevitavelmente, a críticas. Por isso, não se pretende neste momento propor uma solução definitiva ou mesmo reputada como a mais correta. Se a compreensão alargada da hipossuficiência econômica aqui defendida for aceita, certamente surgirão propostas interessantes de fixação de critérios para a definição de incapacidade financeira total, parcial ou capacidade financeira plena para custeio dos tratamentos. O importante neste momento é lançar uma ideia para discussão.

Ainda assim, com o propósito de alimentar o debate, duas sugestões para a fixação de critérios de hipossuficiência econômica nas ações de medicamentos podem ser feitas.

A primeira se dá por analogia ao entendimento jurisprudencial acerca dos critérios para concessão de assistência judiciária gratuita nos processos judiciais e para a penhora de parcela dos salários dos devedores em execuções judiciais.

A regra da impenhorabilidade de salários e vencimentos incide apenas quanto à fração do patrimônio pecuniário do devedor que se revele efetivamente necessária à manutenção de seu mínimo existencial, bem como à preservação de sua dignidade e da de seus dependentes, conforme entendimento firmado pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça no EREsp nº 1.582.475:

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. IMPENHORABILIDADE DE VENCIMENTOS. CPC/73, ART. 649, IV. DÍVIDA NÃO ALIMENTAR. CPC/73, ART. 649, PARÁGRAFO 2º. EXCEÇÃO IMPLÍCITA À REGRA DE IMPENHORABILIDADE. PENHORABILIDADE DE PERCENTUAL DOS VENCIMENTOS. BOA-FÉ. MÍNIMO EXISTENCIAL. DIGNIDADE DO DEVEDOR E DE SUA FAMÍLIA.
1. Hipótese em que se questiona se a regra geral de impenhorabilidade dos vencimentos do devedor está sujeita apenas à exceção explícita prevista no parágrafo 2º do art. 649, IV, do CPC/73 ou se, para além desta exceção explícita, é possível a formulação de exceção não prevista expressamente em lei.
2. Caso em que o executado aufere renda mensal no valor de R$ 33.153,04, havendo sido deferida a penhora de 30% da quantia.
3. A interpretação dos preceitos legais deve ser feita a partir da Constituição da República, que veda a supressão injustificada de qualquer direito fundamental. A impenhorabilidade de salários, vencimentos, proventos etc. tem por fundamento a proteção à dignidade do devedor, com a manutenção do mínimo existencial e de um padrão de vida digno em favor de si e de seus dependentes. Por outro lado, o credor tem direito ao recebimento de tutela jurisdicional capaz de dar efetividade, na medida do possível e do proporcional, a seus direitos materiais.
4. O processo civil em geral, nele incluída a execução civil, é orientado pela boa-fé que deve reger o comportamento dos sujeitos processuais. Embora o executado tenha o direito de não sofrer atos executivos que importem violação à sua dignidade e à de sua família, não lhe é dado abusar dessa diretriz com o fim de impedir injustificadamente a efetivação do direito material do exequente.
5. Só se revela necessária, adequada, proporcional e justificada a impenhorabilidade daquela parte do patrimônio do devedor que seja efetivamente necessária à manutenção de sua dignidade e da de seus dependentes.
6. A regra geral da impenhorabilidade de salários, vencimentos, proventos etc. (art. 649, IV, do CPC/73; art. 833, IV, do CPC/2015), pode ser excepcionada quando for preservado percentual de tais verbas capaz de dar guarida à dignidade do devedor e de sua família.
7. Recurso não provido. 
(STJ, Corte Especial, Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 1.582.475/MG, rel. Min. Benedito Gonçalves, data da decisão: 03/10/2018, DJe 16/10/2018)

Se é possível destinar parte do salário da pessoa para o pagamento de dívidas cobradas em juízo – e isso já considerando todas as despesas já existentes para a própria manutenção -, certamente também o será para o custeio de sua própria saúde. Restaria definir, então, em que situação a destinação de parte da remuneração mensal não comprometeria a subsistência do devedor/paciente.

No julgamento do IRDR nº 25 (Processo Representativo: 50300419520194047000/PR), que teve como objeto os critérios para a concessão de Assistência Judiciária Gratuita nos processos judiciais, o TRF/4ªR firmou a seguinte tese:

"A gratuidade da justiça deve ser concedida aos requerentes pessoas físicas cujos rendimentos mensais não ultrapassem o valor do maior benefício do regime geral de previdência social, sendo prescindível, nessa hipótese, qualquer comprovação adicional de insuficiência de recursos para bancar as despesas do processo, salvo se aos autos aportarem elementos que coloquem em dúvida a alegação de necessidade em face, por exemplo, de nível de vida aparentemente superior, patrimônio elevado ou condição familiar facilitada pela concorrência de rendas de terceiros. Acima desse patamar de rendimentos, a insuficiência não se presume, a concessão deve ser excepcional e dependerá, necessariamente, de prova, justificando-se apenas em face de circunstâncias muito pontuais relacionadas a especiais impedimentos financeiros permanentes do requerente, que não indiquem incapacidade eletiva para as despesas processuais, devendo o magistrado dar preferência, ainda assim, ao parcelamento ou à concessão parcial apenas para determinado ato ou mediante redução percentual."

Considerou o tribunal, então, que os rendimentos que atingem até o valor teto dos benefícios do Regime Geral da Previdência Social são presumidamente indispensáveis para o sustento dos requerentes da AJG e de suas famílias, de forma que não podem ser comprometidos com o pagamento de custas e demais despesas processuais. Quando os rendimentos superam aquele patamar, deverão os requerentes comprovar que, ainda assim, são necessários para a sua sobrevivência digna e por isso autorizariam a obtenção do benefício econômico processual.

Por questão de coerência, este mesmo raciocínio poderia ser utilizado na análise da hipossuficiência econômica nas ações de medicamentos. Poderia se presumido, então, que o paciente que aufere rendimentos mensais em valores que não superam o teto dos benefícios previdenciários pagos pelo INSS deles necessitam para a digna manutenção de sua sobrevivência e de sua família, não havendo possibilidade de coparticipação no custeio dos tratamentos vindicados.

Por outro lado, quando os rendimentos superam tal patamar, a presunção seria a de que há possibilidade de repartição dos custos sem que a parte interessada tenha comprometida a sua própria manutenção e a de seus familiares. Neste caso, a parcela de participação da parte autora da ação judicial poderia corresponder a 20% ou 30% de sua remuneração mensal total, que são os patamares normalmente fixados pela jurisprudência para a penhora nos processos de execução. O valor remanescente do tratamento seria arcado pelo Estado.

É preciso ressalvar, entretanto, que, tratando-se de presunções, elas poderiam ser afastadas em cada caso concreto pelas partes interessadas. Sendo assim, seria facultado ao autor da ação comprovar que, mesmo auferindo rendimentos superiores ao teto dos benefícios do Regime Geral da Previdência Social, suas particulares condições impediriam que parcela de sua renda fosse comprometida com o custeio do tratamento. Por outro lado, poderiam os réus comprovar que, ainda que o autor receba rendimentos inferiores ao teto do INSS, seu padrão de vida é compatível com a destinação de parcela de seus rendimentos para o pagamento do medicamento ou procedimento médico.

A segunda sugestão de fixação de critérios objetivos para a coparticipação dos autores e autoras das ações de saúde no custeio dos tratamentos é a correlação com as faixas de rendimentos para a fixação das alíquotas de pagamento do imposto de renda das pessoas físicas.

Desta forma, neste ano de 2023:

a) estariam dispensados de qualquer coparticipação as pessoas com rendimentos mensais de até R$ 1.903,98 (faixa 1 do IR – isenção);

b) aqueles que ganham entre R$ 1.903,99 e R$ 2.826,65 deveriam participar do custeio até o limite de 7,5% de seus rendimentos mensais (faixa 2 do IR – alíquota de 7,5%);

c) os que ganham entre R$ 2.826,65 e 3.751,05 participariam até o limite de 15% de seus rendimentos (faixa 3 do IR – alíquota de 15%);

d) se os ganhos mensais forem entre R$ 3.751,06 e R$ 4.664,68, a participação seria de até 22,5% dos rendimentos (faixa 4 do IR – alíquota de 22,5%);

e) por fim, quando os rendimentos mensais fossem acima de R$ 4.664,68, a coparticipação seria até o limite de 27,5% (faixa 5 do IR – alíquota de 27,5%).

Caso o custo do tratamento seja inferior ao limite da coparticipação do autor da ação, então ele deveria arcar sozinho com as despesas, ou seja, sua pretensão não poderia ser acolhida pelo Poder Judiciário.

Como dito anteriormente, ambas as propostas certamente podem ser objeto de críticas e por isso substituídas por outras, desde que sejam razoavelmente objetivas e com aplicação prática viável. Mesmo assim, há ao menos ideias iniciais que podem ser utilizadas para que a judicialização da saúde, aplicando um conceito mais amplo de hipossuficiência financeira, seja mais equânime, isonômica e menos prejudicial ao erário.

Não é fácil buscar alguma inovação jurídica em matéria que desperta tantos questionamentos e controvérsias. Essa é, entretanto, a razão para se tentar algo de novo. Como disse Platão, “o começo é a metade do todo”.

Imagem do post Mathieu Stern na Unsplash

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