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criando medicamentos

Ana Carolina Morozowski

Anuência prévia da ANVISA nos pedidos de patente de medicamentos

1 – Introdução

A atuação da ANVISA como anuente em pedidos de patente de produtos ou processos farmacêuticos é um tema que sempre suscitou muitos debates. Desde o início da instituição da anuência prévia, pela MP nº 2.006/1999, houve divergências entre a autarquia sanitária e o INPI, assim como vários processos foram ajuizados por empresas farmacêuticas contestando a sua obrigatoriedade. O Superior Tribunal de Justiça está analisando o tema no RESP 1.543.826.

A doutrina especializada aponta vários motivos para que a norma que instituiu a anuência prévia seja considerada inválida. Alguns deles não têm consistência e merecem ser revistos, mas outros demonstram claramente que ela padece do vício de inconstitucionalidade.

2 – A propriedade industrial como direito fundamental

A propriedade industrial é o privilégio que o inventor tem de proteger os seus inventos contra quem queira se utilizar deles. Trata-se de um direito fundamental, que vem erigido no art. 5º, XXIX, da Constituição Federal, que diz que “a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País”. A sua proteção atende aos princípios constitucionais da ordem econômica e, mais especificamente, ao da propriedade privada (art. 170, III, da CF).

A despeito das críticas que se fazem às patentes farmacêuticas por dificultarem o acesso à saúde, elas são imprescindíveis para reconhecer e proteger o esforço intelectual e fomentar a investigação, inovação e o desenvolvimento da economia e do setor ao qual a patente está vinculada. É intuitivo que se deva outorgar o privilégio de exclusividade de exploração econômica e industrial àquele que foi responsável por determinada invenção, ainda que por um período de tempo. Por outro lado, também é fácil perceber que a ausência de proteção à propriedade industrial teria efeitos graves, fazendo com que o aprimoramento da técnica e o avanço das tecnologias fosse desestimulado.

Como direito fundamental, a propriedade industrial merece proteção e pode ser relativizado quando em conflito com outros direitos fundamentais, sem que, todavia, seu núcleo seja esvaziado. Alexandre de Moraes explica que “quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito do alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua”1Direito Constitucional. 24ª ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2009..

3 – Evolução legislativa da patente para produtos e processos farmacêuticos

3.1 – A legislação em vigor (Lei nº 9.279/1996)

A propriedade industrial – inclusive de produtos farmacêuticos – é regida atualmente pela Lei nº 9.279/96 (Lei de Propriedade Industrial), que disciplina os direitos e as obrigações a ela relativos, adequando-os ao Acordo TRIPS (ACORDO SOBRE ASPECTOS DOS DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL RELACIONADOS AO COMÉRCIO), que foi incorporado ao nosso sistema jurídico pelo Decreto nº 1.355/94.

3.2 – A previsão anterior: ausência de patenteabilidade (Lei 5.772/1971)

Antes disso, no Brasil, quando ainda estava em vigor a Lei nº 5.772/71, os produtos farmacêuticos não podiam ser objeto de patente, de acordo com o seu art. 9º, c, que estabelecia que não eram privilegiáveis “as substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos, de qualquer espécie, bem como os respectivos processos de obtenção ou modificação”.

3.3 – A superveniência do acordo TRIPS

Todavia, com a incorporação do acordo TRIPS, a vedação ficou superada. Isso porque o artigo 27.1 do referido acordo estabeleceu que “qualquer invenção, de produto ou de processo, em todos os setores tecnológicos, será patenteável”, desde que atenda a determinados requisitos.

3.4 – A previsão de anuência prévia pela ANVISA (MP nº 2.006/1999)

Sob o fundamento de adequar a novidade trazida ao nosso ordenamento jurídico, em 1999 foi editada a MP nº 2.006, alterando a Lei nº 9.279/96, para acrescer o artigo 229-C.

O dispositivo estabeleceu que “A concessão de patentes para produtos e processos farmacêuticos dependerá da prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVS)”. A regra foi repetida pelas MPs nºs 2.104 e 2.105 e suas reedições, até ser convertida na Lei nº 10.196/2001. Assim, o processo de concessão de patentes, cujo andamento e julgamento competia unicamente ao INPI, passou também a depender de ato de outra autarquia, a ANVISA, quando se tratar de produto ou processo farmacêutico.

Instituiu-se, assim, a obrigatoriedade de anuência prévia da ANVISA.

4 – Evolução regulamentar

Tendo em vista que o art. 229-C tratou somente de estabelecer o instituto da anuência prévia, sem fixar, ainda que minimamente, qualquer aspecto relativo à atuação da ANVISA, ficou a cargo da regulamentação estabelecer como ela se daria nos processos de patentes.

4.1 – Amplitude e objeto do exame exercido na anuência prévia

Em vista da ausência de concretude da lei de propriedade industrial no que tange à anuência prévia, surgiram diversas dúvidas a seu respeito, principalmente acerca: a) do objeto da atividade a ser exercida pela ANVISA (se dizia respeito à patenteabilidade do produto ou somente a questões de saúde pública); b) do momento em que se daria a anuência prévia; c) do processo a ser seguido pela ANVISA para a análise do pedido; d) do recurso cabível contra o ato de indeferimento da ANVISA; e e) do destino a ser dado ao processo de pedido de patente em caso de indeferimento da anuência.

4.2 – Evolução normativa regulamentar

A RDC nº 45/08 da ANVISA foi o primeiro ato regulamentar sobre o assunto. Posteriormente, foi editada a Portaria Interministerial nº 1.065/2011, do Ministério da Saúde e do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, que estabeleceu novo fluxo de análise dentro da autarquia. Em 2013, adveio a RDC nº 21/2016 da ANVISA, alterando a RDC de 2008. Também a Portaria Conjunta nº 01/2017 da ANVISA e do INPI tratou do tema. Por fim, em novembro de 2020, a ANVISA publicou 4 manuais sobre o exame de pedidos de patentes de produtos e processos farmacêuticos, em cumprimento ao determinado no acórdão nº 1.199/2020, do Tribunal de Contas da União.

Os manuais publicados no final de 2020 estabelecem 3 etapas para o processo de anuência prévia: a análise da admissibilidade, a avaliação se os pedidos são contrários à saúde pública e a decisão final.

4.3 – Objeto do mérito a ser avaliado pela ANVISA

Com relação ao mérito da avaliação a ser feita pela ANVISA, após longo debate, ficou definido entre INPI e ANVISA que esta só avaliaria questões relativas à saúde pública e não entraria no mérito da patenteabilidade do produto ou processo. Assim, o manual estabelece que a ANVISA analisa: a) se eles representam risco à saúde; e b) se eles são considerados de interesse para as políticas de assistência farmacêutica no SUS2Disponível em https://www.gov.br/anvisa/pt-br/setorregulado/regularizacao/medicamento..

5 – Questionamentos usuais contra a anuência prévia

5.1 – Da transitoriedade da anuência prévia

A anuência prévia integra as disposições transitórias da Lei de Propriedade Industrial. Em razão disso, João Paulo Remédio Marques sustenta que ela teria natureza transitória e seria destinada a disciplinar apenas situações especiais, a exemplo das patentes “pipeline”3A figura da anuência prévia da autoridade sanitária brasileira no quadro da concessão de patentes e o Acordo TRIPS. In: Actas de Derecho Industrial y Derecho de Autor, Volumen 31 (2010-2011), Instituto de Derecho Industrial, Universidad de Santiago de Compostela, Madrid, Barcelona, Buenos Aires: Marcial Pons, pp. 373-400..

No julgamento do processo que deu origem ao RESP 1.543.826, o desembargador André Fontes, do TRF da 2ª Região, também se manifestou no sentido de que a norma teria sua aplicação limitada no tempo ou a algumas situações. Por oportuno, transcrevo a sua fala: “essa legislação sobre patente de remédio veio muito rapidamente, e o INPI não tinha condições de fazer isso. Ele não tinha farmacêutico, não tinha Engenheiro Químico, para fazer o que a lei mandava. Ele tinha para fazer o que já fazia, porque ninguém consegue tudo de um dia para o outro, as coisas vêm aos poucos. Quem tinha condições de fazer isso? A Anvisa. A Anvisa tinha condições de fazer essa apuração. Então, o que o Governo fez? Sabendo que a Anvisa tinha especialistas e técnicos, criou a necessidade de a Anvisa fazer o exame, até o dia em que o INPI pudesse, de fato, exercer a sua função. Vejam: não estou diminuindo a função do INPI. O Doutor André, presente aqui, sabe que eu jamais falaria mal dos advogados dos laboratórios, muito menos do INPI. A verdade é que a Anvisa vem fazendo algo que todos nós poderíamos fazer”.

A despeito dessas respeitáveis opiniões, a natureza transitória da atuação da ANVISA nos processos de patente não vingou, mesmo porque a ANVISA, desde o início, demonstrou que a considerava imprescindível e nunca quis abrir mão dessa função.

5.2 – Distinção das competências do INPI e da ANVISA

Uma alegação comumente invocada para que a norma que instituiu a anuência prévia seja afastada diz respeito ao fato de a lei não ter outorgado competência para que a ANVISA atue em processos de patentes.

O INPI, criado pela Lei nº 5.648/70, é uma autarquia federal. Sua finalidade vem prevista no art. 2º, nos seguintes termos: “O INPI tem por finalidade principal executar, no âmbito nacional, as normas que regulam a propriedade industrial, tendo em vista a sua função social, econômica, jurídica e técnica, bem como pronunciar-se quanto à conveniência de assinatura, ratificação e denúncia de convenções, tratados, convênios e acordos sobre propriedade industrial”. Seu escopo é precipuamente a análise de pedidos de patentes de invenção e modelos de utilidade, de registro de desenho industrial e de registro de marca.

Para que seja concedida a patente, é necessário que se cumpram os requisitos do art. 8º da Lei de Propriedade Industrial, quais sejam,  a novidade, a atividade inventiva e a aplicação industrial,  que estão também mencionados no art. 27.I, do acordo TRIPS. A nossa lei nada mais fez do que reproduzir o já estabelecido no acordo incorporado ao nosso ordenamento jurídico. E nem poderia ser diferente. São esses os requisitos que devem ser verificados para a concessão de patente. O objetivo é saber se o produto ou processo constitui novidade.

A seu turno, a ANVISA, também autarquia federal, foi criada pela Lei nº 9.782/99. Sua finalidade foi fixada no art. 6º: “A Agência terá por finalidade institucional promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras”.

A autarquia sanitária, na área farmacêutica, deve processar e julgar os pedidos de registro de medicamentos e outros produtos para a saúde, avaliando-os quanto à sua segurança e eficácia, a fim de que eles possam ser comercializados no território nacional. Para tanto, faz uma análise dos estudos pré-clínicos e clínicos dos produtos objeto de processo, verificando se eles causam danos à saúde, quais são seus possíveis efeitos adversos, se eles funcionam ainda que minimamente, para quais doenças e em que doses eles são indicados, etc. O objetivo é saber qual a repercussão do produto para a saúde, para que se determine se ele pode entrar no mercado nacional.

Disso se percebe que a competência e os objetivos outorgados pela Lei às duas autarquias são diferentes, não havendo competências comuns a ambas. Uma lida com proteção de invenções. Outra, com questões de saúde.

Todavia, ainda que dentre as áreas de atuação da ANVISA não esteja a análise de pedidos de patente, a anuência prévia poderia ser vista como atividade abarcada no art. 8º da Lei nº 9.782/99, que diz que “Incumbe à Agência, respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública”.

Portanto, o argumento da diversidade de competências das duas autarquias não constitui, em princípio, algo que determine por si só a invalidade da norma instituidora da anuência prévia.

5.3 – Possibilidade de legislação em contrariedade a tratado

Outro argumento muito utilizado para questionar a anuência prévia consiste na impossibilidade de a legislação interna ir contra tratado internacional ao estabelecer novo requisito de patenteabilidade. Além dos requisitos previstos no art. 17.1 do acordo TRIPS, a legislação acabou introduzindo um novo (compatibilidade do produto com a saúde pública).

No entanto, o tratado internacional que não diga respeito a direitos humanos, quando incorporado ao direito brasileiro, possui status de lei ordinária. Assim, o conflito entre o tratado e a lei ordinária deve ser resolvido à luz dos princípios da anterioridade e da especialidade.

O tratado do TRIPS não trata de direitos humanos. Como a alteração do art. 229-C é posterior ao tratado, isso indica que este, por si só, também não seria motivo para a sua desconsideração.

5.4 – Falso motivo em que se embasou a inclusão da anuência prévia

A alteração promovida na Lei nº 9.279/99, que acrescentou o seu art. 229-C, foi inicialmente introduzida pela MP nº 2.006/99. Em sua exposição de motivos, foi consignado que “Quanto ao artigo quarto, prevê-se que a concessão de patente – tanto de processo quanto de produto-, pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial, somente será feita com a anuência prévia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Este trabalho em conjunto entre INPI e ANVISA garantirá os melhores padrões técnicos no processo de decisão de patentes farmacêuticas, à semelhança dos procedimentos aplicados pelos mais avançados sistemas de controle de patentes e de vigilância sanitária em funcionamento nos países desenvolvidos”.

Eis o motivo dado para o ato legislativo: melhorar a capacidade técnica de análise dos pedidos, tal qual países avançados. Todavia, nunca existiu nenhum país, avançado ou não, que tenha estabelecido, por ato normativo ou regulamentar, a necessidade de que a sua agência sanitária interfira no processo de patente. O motivo para a alteração legislativa, portanto, não condiz com a realidade.

Ainda que o motivo falso não leve à invalidação da norma, é importante ter em mente que a justificativa para a criação da anuência prévia estava desvinculada da realidade. O problema da figura da anuência já estava presente desde o seu nascimento.

6 – A inconstitucionalidade da previsão normativa

Tratemos agora dos argumentos que demonstram a inconstitucionalidade do art. 229-C da Lei de Propriedade Industrial.

6.1 – Necessidade de observância ao princípio da proporcionalidade

Tanto as leis, como os atos de direito público devem atender ao princípio da proporcionalidade. De acordo com Marçal Justen Filho, “A proporcionalidade é um instrumento jurídico adequado para controlar as decisões que importem restrições a direitos, prerrogativas e outras liberdades de um sujeito. […] Segundo a proporcionalidade, toda decisão de cunho restritivo deve ser examinada sob três primas diversos. A validade dessa restrição dependerá da ausência de violação às três dimensões da proporcionalidade”4Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 17. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 91..

Os três prismas mencionados pelo doutrinador são: proporcionalidade-adequação (atingimento do objetivo), proporcionalidade-necessidade (não há nenhuma outra medida disponível que seja menos restritiva) e proporcionalidade em sentido estrito (não há desproporcionalidade com o objetivo buscado).

O Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência sólida no sentido de que as leis devem estar em consonância com o princípio da proporcionalidade. Confira-se decisão proferida na ADI 2667, no início de 2020, de relatoria do Ministro Celso de Mello:

“TODOS OS ATOS EMANADOS DO PODER PÚBLICO ESTÃO NECESSARIAMENTE SUJEITOS, PARA EFEITO DE SUA VALIDADE MATERIAL, À INDECLINÁVEL OBSERVÂNCIA DE PADRÕES MÍNIMOS DE RAZOABILIDADE – As normas legais devem observar, no processo de sua formulação, critérios de razoabilidade que guardem estrita consonância com os padrões fundados no princípio da proporcionalidade, pois todos os atos emanados do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do “substantive due process of law”.”

Na ADI 5468, o mesmo Ministro explicou o seguinte:

“Impende advertir, desse modo, considerada a essencialidade de tal princípio, que todos os atos emanados do Poder Público, inclusive as leis por ele editadas, devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do “substantive due process of law”. A essência do “substantive due process of law” reside na necessidade de proteger os direitos, as liberdades e as prerrogativas das pessoas e instituições contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou destituída do necessário coeficiente de razoabilidade. Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal.”

Veremos, a seguir, que a obrigatoriedade de anuência prévia não passa pelo crivo da proporcionalidade.

6.2 – Desnecessidade de análise prévia pela ANVISA no que diz respeito ao risco à saúde

Uma das atribuições clássicas da ANVISA é verificar se uma determinada tecnologia em saúde atende aos requisitos de segurança e eficácia, ou seja, aferindo se uma tecnologia traz riscos à saúde.

A pesquisa farmacêutica se inicia com a fase de inovação, em que são descobertas novas moléculas para selecionar compostos promissores. Encontrada uma molécula, ela será objeto de estudos pré-clínicos, nos quais se avaliam a sua toxicidade, a sua segurança, suas ações e seus efeitos. Passa-se então aos estudos clínicos, desenvolvidos em 4 fases. Na primeira, estuda-se a farmacocinética, o intervalo de doses, os efeitos e a toxicidade do composto. Na segunda, a análise é das doses, da eficácia e da segurança. Na terceira, que consiste, via de regra, nos ensaios clínicos randomizados com maior número de participantes, o foco é também na eficácia, na segurança e na qualidade de vida. Por fim, a fase IV (farmacovigilância) é realizada após a introdução da tecnologia no mercado, para verificarem a efetividade e a segurança no mundo real.

O pedido de concessão de patente de produto ou processo farmacêutico se dá logo na fase inicial, de descoberta da molécula, quando ainda nem se sabe se ela trará qualquer benefício para a saúde. Note-se que a cada 10.000 moléculas descobertas, apenas uma será viável para uso em humanos.

Em vista disso, a anuência prévia da ANVISA é totalmente desnecessária, pois quando ela é feita nem se sabe se o produto vai ter bons resultados nos estudos pré-clínicos e clínicos, podendo gerar desperdício de dinheiro e de força de trabalho, descurando do princípio da eficiência que rege a administração pública.

Pode-se argumentar que os pedidos de patente demoram tanto para serem analisados que, quando da anuência prévia, os demais estudos já poderiam estar concluídos.

Ainda assim, a análise pela ANVISA é despicienda e vai contra a eficiência administrativa, ao menos no que diz respeito à avaliação de risco à saúde. Isso porque ela já terá lugar no processo de pedido de registro, não havendo nenhuma razão para que ela ocorra duas vezes. A não anuência poderá ser substituída pelo não deferimento do registro. 

Há ainda mais um argumento que aponta para a desproporcionalidade da norma. O processo de pesquisa e desenvolvimento farmacêutico é dinâmico. Assim, pode-se até mesmo pensar que algo que, em um determinado momento, seja considerado nocivo à saúde, venha a apresentar resultados positivos no futuro para a mesma patologia ou para outra. Caso isso venha a ocorrer, o inventor que teve seu pedido de patente negado por contrariedade à saúde não poderá usufruir do privilégio de patente que lhe seria devido.

Assim, fica claro que o fim objetivado pela norma não é razoável e fere a proporcionalidade.

6.3 – Inviabilidade de a ANVISA verificar as circunstâncias que são objeto do exame da anuência prévia

Depois, considerando que o pedido de registro de patente dá-se num estágio muito inicial do desenvolvimento do produto ou processo farmacêutico, é até mesmo inviável à ANVISA apurar se ele representa risco à saúde se ele é considerado de interesse para as políticas de assistência farmacêutica no SUS. Esses são os objetivos do exame feito pela ANVISA na anuência prévia do processo de registro de patente.

No entanto, como o pedido de registro se dá muito antes do início das fases de estudos clínicos, a ANVISA nem mesmo detém dados que possam amparar sua decisão a respeito da existência de eventual risco à saúde e sobre o interesse às políticas de assistência farmacêutica do SUS. E nem pode exigir daquele que formulou o pedido de registro a apresentação desses estudos, que são exigíveis apenas posteriormente, quando do registro do produto ou processo farmacêutico junto à ANVISA.

Para fins de registro industrial, exige-se apenas a demonstração de novidade, de atividade inventiva e de aplicação industrial.

Isso torna inócuo o exame produzido pela ANVISA por ocasião da anuência prévia, confirmando a ausência de razoabilidade e proporcionalidade de sua exigência para fins de registro de patente.

6.4 – Inadequação, desnecessidade e desproporcionalidade em sentido estrito da anuência prévia em razão do interesse do Ministério da Saúde para políticas de assistência farmacêutica

Se a atuação da ANVISA nos pedidos de patente por razões de risco à saúde não leva em conta os princípios da eficiência e da proporcionalidade, a atuação para verificação de interesse do Ministério da Saúde para a inclusão do produto em sua assistência farmacêutica é ainda mais descabida. Isso porque, caso haja a negativa da ANVISA ao pedido de patente, o direito fundamental à propriedade industrial seria completamente aniquilado, sem garantir o seu núcleo.

A Lei de Propriedade Industrial prevê, em seu art. 71, a licença compulsória de patentes, nos seguintes termos: “Nos casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular”.

Percebe-se, pois, que, caso haja interesse público em uma determinada tecnologia farmacêutica, não há que se obstar a concessão de patente, esvaziando completamente o núcleo do direito de propriedade industrial e o esforço de pesquisa e desenvolvimento da indústria farmacêutica, sem qualquer indenização. Caso haja interesse público na tecnologia, a norma a ser seguida é a que prevê o licenciamento compulsório da patente, uma vez que ela prevê a remuneração do seu detentor pela expropriação de seu patrimônio, conforme estabelecido no art. 73, da Lei nº 9.279/96. E isso, apenas naqueles casos em que não haja possibilidade de atendimento da necessidade pública pelo titular da patente ou do seu licenciado.

Sobre o tema, Vitor Pamela Fidalgo ensina que as licenças compulsórias, “permitindo a um terceiro explorar a patente sem o consentimento de seu titular, mas mediante uma remuneração, vêm equilibrar todo este sistema, sendo mais do que apenas válvula de escape do mesmo, na medida em que permitem a prossecução dos objetivos próprios do Direito de Propriedade Industrial ou mesmo do interesse público em geral. Como medidas excecionais que são, nunca deverão ser discricionárias”5As Licenças Compulsórias de Direitos de Propriedade Industrial. In: Coleção de Estudos de Direito Intelectual, TOMO 1, Coimbra: Almedina, 2016. p. 19..

Também em relação a este aspecto, configura-se a inconstitucionalidade do art. 229-C.

7 – Conclusão

No presente artigo, tratou-se da irrazoabilidade da necessidade de anuência prévia da ANVISA no processo de registro de patentes, quer no que diz respeito aos produtos e processos farmacêuticos que apresentam riscos à saúde, quer em relação àqueles que sejam interessantes ao SUS e à saúde pública. Excluir a anuência prévia não permite de forma alguma que medicamentos nocivos sejam utilizados ou comercializados, já que a avaliação quanto à eficácia e à segurança da tecnologia será feita quando do processo de registro, de competência da própria ANVISA. Tampouco impede que medicamentos que são importantes ao SUS sejam por ele oferecidos, com ou sem licença compulsória. Ou seja, nenhum prejuízo advém da supressão da atuação da ANVISA no processo de registro de patentes.

Por outro lado, impedir a concessão de patente em situações de não anuência da ANVISA significa violação ao princípio da eficiência, implicando custos desnecessários, assim como esvaziamento indevido e desproporcional do direito de propriedade industrial constitucionalmente assegurado.

Por tudo isso, antes de impedir a patente de medicamentos, a ANVISA deve seguir apreciando com o cuidado de sempre os processos de registro de medicamentos, assim como o poder público deve atentar às situações que podem ensejar a sua licença compulsória, na medida em que este, sim, é um instrumento de proteção ao direito à saúde da coletividade, que não suprime completamente o direito à propriedade industrial.

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