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Gabriel Menna Barreto Von Gehlen

All I want for christmas is… Papai Noel, Fux e uma boa tese 6 do STF

I.

Em 2005, a corte constitucional alemã deferiu uma terapia para doença de Duchene que não havia sido autorizada administrativamente ao paciente. A corte não ingressou no aspecto do custo do tratamento. A decisão foi então alcunhada de “acórdão Nicolau” (“Nikolaus-Entscheidung”), porque proferida em 6 de dezembro, dia onomástico do santo de mesmo nome, quando alemãezinhos acordam para encontrar meias cheias de doces e guloseimas.

No Brasil, não raro, a doutrina e a jurisprudência, antes de concluir que há um direito subjetivo a qualquer medicamento, citam com gosto a decisão alemã. É a confirmação do fascínio do brasileiro pela Kultur germânica, fascínio que Alfredo Augusto Becker referia em obra seminal:

Se aquilo que ele está lendo foi escrito por um alemão e está impresso no idioma teutônico, então, é algo tanto mais admirável quanto mais complicado. E recebido respeitosamente como a verdade científica que não admite prova em contrário, salvo se escrita por outro alemão, de preferência em letras góticas1(Carnaval Tributário. 2ª ed. São Paulo: LEJUS, 2004, p.111-2).

Mas como aos alemães também não faltam humor acadêmico e ironia e, tendo em vista que o autor da alcunha foi um crítico da decisão, não é de duvidar que a referência a São Nicolau tinha a ver com o outro nome pelo qual o santo se tornou famoso: Papai Noel. Afinal, essa linha de entendimento, que não considera os custos da saúde, parece fundada num pensamento mágico, que levaria a caneta do juiz a produzir expansão orçamentária da pasta da saúde.

Na Alemanha, até julho de 2019, o acórdão Nicolau deu ensejo a quase oitocentas ações em que se pleiteavam as mais diversas tecnologias em saúde. Todavia, em decisões de 2015 e 2017, a corte constitucional alemã entendeu que as cortes ordinárias não deveriam usar a Nikolaus como precedente, já que ela deveria ser tratada como caso excepcional. Ou seja, passaram-se mais de dez anos desde a decisão Nicolau até que sobreviesse esse esclarecimento da corte constitucional. Durante esse tempo, o próprio legislador alemão e a jurisprudência dos tribunais previdenciários alemães já haviam se adequado àquele precedente… que se descobriu que não era precedente!

Já a versão tropical da Nicolau tomou dimensões epidêmicas. Temos em tramitação (excluídos portanto os processos já extintos) perto de um milhão e trezentos processos que de alguma forma envolvem o SUS.

Então meu primeiro desejo: quero no Natal um Papai Noel/São Nicolau bem generoso, gordo e bonachão. Mas só no Natal. Não quero antes, nem em decisões judiciais, e muito menos… em alemão!

Mas quero mais de Natal. Então, meu Bom Velhinho, presta bem atenção.

II.

Se os americanos se deleitam com a lembrança de uma “Warren Court” e sua construção dos direitos civis, eu quero uma “Fux Court” na judicialização da saúde.

No dia 10 de setembro, o ministro Luiz Fux, que é reconhecido estudioso de “law and economics”, assume a presidência do STF. No ano passado, ele relatou um precedente importantíssimo do STF sobre controle da administração pública perante questões tecnicamente complexas (AG REG REX 1.083.955). A ementa, mesmo longa, é primorosa em sua síntese e merece ser transcrita:

1. A capacidade institucional na seara regulatória, a qual atrai controvérsias de natureza acentuadamente complexa, que demandam tratamento especializado e qualificado, revela a reduzida expertise do Judiciário para o controle jurisdicional das escolhas políticas e técnicas subjacentes à regulação econômica, bem como de seus efeitos sistêmicos.
2. O dever de deferência do Judiciário às decisões técnicas adotadas por entidades reguladoras repousa na (i) falta de expertise e capacidade institucional de tribunais para decidir sobre intervenções regulatórias, que envolvem questões policêntricas e prognósticos especializados e (ii) possibilidade de a revisão judicial ensejar efeitos sistêmicos nocivos à coerência e dinâmica regulatória administrativa.
3. A natureza prospectiva e multipolar das questões regulatórias se diferencia das demandas comumente enfrentadas pelo Judiciário, mercê da própria lógica inerente ao processo judicial.
4. A Administração Pública ostenta maior capacidade para avaliar elementos fáticos e econômicos ínsitos à regulação.
5. A intervenção judicial desproporcional no âmbito regulatório pode ensejar consequências negativas às iniciativas da Administração Pública. Em perspectiva pragmática, a invasão judicial ao mérito administrativo pode comprometer a unidade e coerência da política regulatória, desaguando em uma paralisia de efeitos sistêmicos acentuadamente negativos.
6. A expertise técnica e a capacidade institucional do CADE em questões de regulação econômica demanda uma postura deferente do Poder Judiciário ao mérito das decisões proferidas pela Autarquia. O controle jurisdicional deve cingir-se ao exame da legalidade ou abusividade dos atos administrativos, consoante a firme jurisprudência desta Suprema Corte.
9. In casu, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, após ampla análise do conjunto fático e probatório dos autos do processo administrativo, examinou circunstâncias fáticas e econômicas complexas, incluindo a materialidade das condutas, a definição do mercado relevante e o exame das consequências das condutas das agravantes no mercado analisado. No processo, a Autarquia concluiu que a conduta perpetrada pelas agravantes se enquadrava nas infrações à ordem econômica previstas nos artigos 20, I, II e IV, e 21, II, IV, V e X, da Lei 8.884/1994 (Lei Antitruste).
10. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE detém competência legalmente outorgada para verificar se a conduta de agentes econômicos gera efetivo prejuízo à livre concorrência, em materialização das infrações previstas na Lei 8.884/1994 (Lei Antitruste).

Resumidamente, o STF nesse precedente entendeu que: a) questões complexas exigem trato por especialistas; b) que falta expertise ao juiz; c) que o juiz tem dever de deferência à decisão administrativa técnica; d) que o  processo judicial individual é impróprio para questões multipolares; e) que a administração é mais capacitada para avaliar o quadro global; f) que a intervenção judicial mais perturba do que ajuda; g) que o controle judicial deve ser apenas de legalidade ou abusividade do ato administrativo; e h) que a administração tem competência legal para a decisões técnicas.

Tudo aquilo que o STF disse em relação ao CADE pode ser transposto para um órgão fundamental do SUS, a CONITEC (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS).  Esse órgão foi criado pela Lei nº 12.401/11 e tem por finalidade a “avaliação de tecnologias em saúde” (ATS), examinando a eficácia clínica de novas tecnologias e aspectos de economia da saúde, para ao final opinar sobre se devem ou não ser incorporadas ao SUS. Se o direito da concorrência manejado pelo CADE já é complexo, a  avaliação de tecnologia em saúde exige um conhecimento ainda mais interdisciplinar, que envolve Medicina, metodologia científica para leitura crítica da literatura médica e, por fim, economia da saúde.

O STF, no precedente Fux citado, adotou uma postura deferente perante o administrador. Porém, na judicialização da saúde, após aparente metaformose do julgador, longe de deferência, tem-se verdadeira indiferença em relação ao órgão competente para o processo de incorporação de tecnologias. Aliás, o juiz, muitas vezes, sequer sabe da existência da CONITEC, um órgão que, mesmo jovem, é fundamental ao SUS.

Segundo pesquisa do INSPER contratada pelo CNJ, a CONITEC foi citada em apenas 0,51% (!) das decisões judiciais envolvendo a judicialização da saúde. E quando o juiz desconsidera o trâmite administrativo para que uma tecnologia seja incorporada, é possível cogitar-se de ranhura à própria separação de poderes. Afinal uma coisa é o juiz controlar a administração – isto é, reconhecer a existência de um ato administrativo, controlar sua legalidade e eventualmente anulá-lo por conta de algum vício. Outra, já agora com aparência de inconstitucionalidade, é o juiz desconsiderar que essa mesma administração existe.

Afora a evidência estatística apresentada pelo INSPER, a jurisprudência do STJ confirma essa postura de indiferença perante a CONITEC. Com efeito, em 2018, quando do julgamento do tema 106, o STJ fixou as balizas entendidas por indispensáveis para deferimento de tecnologias em saúde, somente o autorizando para medicamentos registrados na ANVISA e on label. Ou seja, até mesmo o STJ desconsiderou a CONITEC, ao definir que o que importa é exclusivamente o registro pela ANVISA.

Antes que alguém acuse o legislador brasileiro de mesquinho e desalmado, é bom esclarecer que não é só no Brasil que existe um órgão técnico que promove esse tipo de avaliação antes de incorporar uma nova tecnologia ao sistema de saúde. A “avaliação de tecnologia em saúde” (ATS) é metodologia consagrada internacionalmente. Confira-se tabela produzida pela Alta Autoridade em Saúde (a CONITEC francesa), contemplando os múltiplos itens que compõem os métodos de diversas agências responsáveis pela ATS mundo afora:

Quadro comparativo da incorporação

A tabela revela que a atividade promovida pela CONITEC também é repetida, a título meramente exemplificativo, na Austrália, no Canadá, na Dinamarca, na Finlândia, na França, em Israel, na Noruega, na Nova Zelândia, no estado norte-americano do Oregon, na Holanda, no Reino Unido e na Suécia. Ou seja, mesmo em países com orçamentos da saúde bem mais generosos, a economia da saúde também é elemento chave do processo de incorporação de medicamentos.

Então, Papai Noel, não se esqueça da minha “Corte Fux”, porque o pensamento de direito e economia é imprescindível à judicialização da saúde e à sua racionalização. Quiçá o fato da presidência do STF vir a ser ocupada por um especialista na matéria gere inflexão no pensamento do STF.

III.

E, Papai Noel, porque fomos todos merecedores neste annus horribilis, um último pedido: que a “Corte Fux” produza uma tese do tema 6 que reorganize a judicialização da saúde e, especialmente, não esqueça da economia da saúde. É no tema 6 que o STF decidirá se o estado deve entregar tecnologias não previamente incorporadas (fora de lista). O processo já está praticamente concluído, havendo sinalização de que apenas excepcionalmente o juiz poderá conceder medicamentos fora de lista. É na elaboração da tese que o tribunal fixará essas excepcionalidades que autorizam o deferimento do pedido.

Meu Bom Velhinho, é nas exceções e detalhes que as coisas se complicam, então é aí que precisamos da sua ajuda. E tomo como exemplo o voto do ministro Alexandre de Morais, no julgamento do tema 6.

O ministro Alexandre, em voto profundo e minucioso, explicou os fundamentos da economia da saúde e seus dilemas alocativos. Ensinou sobre direito orçamentário e financeiro e sobre como a judicialização tira de vários para dar para um. Fez alusão à CONITEC e a noções de custo-efetividade. Porém, após essa sua manifestação ex cathedra,  ele concluiu (em 1:12:00 do canal youtube do STF) que em ações individuais não se deveria tratar de custo da tecnologia, ao argumento de que ali não havia incorporação universal, mas só para o autor da demanda.

O voto do ministro parece contemplar duas racionalidades diversas: uma do juiz generoso, em que custos e economia na saúde são tabu; e outra da administração, muito mais mesquinha, pois é ela que fará a análise de custo-efetividade e impacto orçamentário.

Sobre o tema, note-se que a análise do custo-efetividade e de impacto orçamentário são duas etapas necessárias no processo de incorporação de tecnologia em saúde, previstas na Lei nº 8.080/90. Diante disso, o espectador fica com uma certa perplexidade, porque a lei que rege o SUS é uma só e ela exige expressamente essas análises. Seria de se esperar que essa norma regesse todas as determinações de fornecimento de tecnologia em saúde, tanto pelo administrador quanto pelo juiz.

A análise do impacto orçamentário, que visa justamente a contemplar as consequências sistêmicas e orçamentárias da incorporação de uma nova tecnologia ao SUS, tem por objetivo avaliar se o estado tem condições de dar aquela tecnologia para todos que padecem daquela condição (incidência/prevalência da doença). É de certa forma o economista da saúde a ensinar ao juiz constitucional que a igualdade pede isso: ou se dá para todos ou, se o estado não tem condições, não dá para ninguém. E me pergunto cá: como o juiz terá condições técnicas de fazer uma análise de impacto orçamentário num processo individual? Aí a lição do ministro Fux no caso do CADE adquire mais relevância, quando ele escreveu faltar ao juiz “expertise”, que “há natureza prospectiva e multipolar das questões” e que “a administração ostenta maior capacidade para avaliar elementos fáticos e econômicos”.

É essa a grande missão que os sistemas de saúde têm de enfrentar atualmente: os custos (tratamos do tema em outro post aqui no Direito em Comprimidos), a ponto de a OCDE estimar que pela metade deste século eles serão insuportáveis se nada for feito para regulá-los de forma eficiente. Por isso, a própria OMS vem capitaneando um movimento internacional objetivando preços justos nos medicamentos e exigindo dos laboratórios mais transparência sobre os custos de desenvolvimento das tecnologias e nas negociações com os sistemas de saúde.

Aliás, a OMS, há bem pouco tempo, foi erigida pelo STF a paradigma de racionalidade do administrador, a ponto de estabelecer que descumprimento de “standards, normas e critérios científicos e técnicos, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente conhecidas” indiciam improbidade administrativa (ADI 6421 MC/DF, rel. Min. Roberto Barroso, julgamento em 20 e 21.5.2020).

Por um lado, a OMS vem postulando políticas públicas de racionalização dos preços em saúde e, por outro, o STF reputa potencialmente incurso em improbidade o gestor que desconhecer as recomendações da OMS. Ergo, Papai Noel, a tese a ser votada no tema 6 não pode esquecer a recomendação da OMS, de que o custo-efetividade é um requisito indispensável para a sustentabilidade do SUS e de qualquer sistema de saúde (aliás, repito: custo-efetividade é requisito de incorporação previsto em lei, lei que até hoje não foi declarada  inconstitucional pelo STF).

A inflação de preços na área da saúde pode ser explicada por meio do critério mais consagrado da economia da saúde para avaliar o custo-efetividade, o ano de vida ajustado pela qualidade (AVAC, ou QALY em inglês). Cada QALY custa em torno de quinze mil libras ao SUS da Inglaterra (NHS). Porém, quando novas tecnologias são incorporadas via NICE (a CONITEC inglesa), elas já custam o dobro para obter o mesmo “ano de vida ajustado pela qualidade“.

Conclui-se que, a cada novo medicamento incorporado, há uma perda coletiva de saúde: se a nova tecnologia gera por exemplo 2 “anos de vida com qualidade” (AVACs) a mais, ela acarreta a perda de 4 AVACs no sistema como um todo, porque o que se gasta na nova tecnologia faz falta em tratamentos mais baratos e mais eficazes. Isso demonstra que a tecnologia na área médica, diferentemente de em outras áreas, não diminui custos; ela só os faz aumentar! Na oncologia, o fenômeno inflacionário é ainda mais extraordinário: houve inflação de 800% entre o tratamento médio mensal para novas tecnologias oncológicas comparando-se o quinquênio que encerrou em 1999 e o que encerrou em 2019.

Saliente-se que o SUS inglês adota limiares de disposição a pagar explícitos de custo-efetividade para incorporação de tecnologias, a depender do tipo de agravo à saúde de que se trata. Limiares de disposição a pagar (ou limiares de custo-efetividade) são o limite que o sistema de saúde está disposto a pagar para obter um ganho em saúde. Pois bem, como se vinha de demonstrar, no NHS, cada nova tecnologia representa uma perda em saúde dentro do sistema. E isso só se agrava à medida que os limiares aumentam – o limiar geral do NHS é de trinta mil libras; o limiar de medicamentos de fim de vida (oncológicos) é de cinquenta mil libras; o para doenças raras vai até trezentas mil libras.  Se um juiz inglês deferisse uma tecnologia para doença rara (e ele não o faz, diga-se), ele daria dois anos de vida com qualidade ao autor da ação e comprometeria 40 anos de vida com qualidade de outros usuários do SUS inglês. O quadro abaixo  demonstra-o visualmente:

QALY na Grã Bretanha

Essa referência ao SUS britânico é um chamado à responsabilidade judicial. Se a jurisprudência brasileira continuar insistindo que o judiciário é uma via de incorporação de tecnologias paralela à via da CONITEC, que ao menos tenha os olhos voltados não apenas à eficácia/efetividade da tecnologia; por comando legal – e porque qualquer país sério o faz – deverá o juiz examinar também aos custos e o real valor terapêutico da tecnologia, ou seja, a sua relação de custo/efetividade. Do contrário, longe de produzir saúde, ou produzindo-a em medida restrita, muito possivelmente a sentença judicial estará privando de ganhos de saúde dezenas ou centenas de usuários do SUS sequer ouvidos no processo.

E o precedente Fux (sobre o CADE) fez outro alerta, ao dizer que “A intervenção judicial desproporcional no âmbito regulatório pode ensejar consequências negativas às iniciativas da Administração Pública”. E, de fato, a judicialização da saúde compromete significativamente a capacidade dos sistemas públicos de negociarem preços centralizadamente, ao criar um  mecanismo paralelo e pulverizado de acesso, em que o juiz ordena a disponibilização do medicamento em prazo curto (e não raro a realização do direito se concretiza pelo bloqueio de valores ao preço orçado em farmácias). Nesse cenário os gestores de saúde perdem poder de barganha perante os laboratórios. Afinal, o fornecedor da tecnologia em saúde, quando em mesa de negociação, sempre poderá rebater eventuais contrapropostas de preço do gestor público, com a sinalização de que há juiz disposto a deferir o pedido desimportante o preço. A não incorporação, enquanto não houver custo-efetividade, é a única arma do sistema de saúde para forçar o laboratório a precificar seu produto de acordo com seu real valor terapêutico. Essa é  a solução também do SUS inglês, que desde 2016 recusava a incorporação de remédio para fibrose cística. Foram necessários nada menos que quatro anos de negociação até que as partes chegassem a um consenso sobre o preço, e a tecnologia fosse disponibilizada no SUS da Inglaterra.

Então aí vai meu sonho de Natal, e utilizo como inspiração outra recente tese fixada pelo STF para a judicialização da saúde, a do tema 500 (ANVISA), que veio assim redigida:

A ausência de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.
É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos:
a) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);
b) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e
c) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.
STF. Plenário. RE 657718/MG, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgado em 22/5/2019 (repercussão geral) (Info 941).

Ali no tema 500 o STF respaldou atuação da ANVISA. Espero que o mesmo STF, agora no tema 6, não se esqueça da existência da CONITEC. Então lá vai a tese 500  convertida para a tese 6 e para uma realidade em que o juiz reconhece e dialoga com a CONITEC:

A ausência de incorporação na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (CONITEC) impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.
É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem incorporação, em caso de mora irrazoável da CONITEC em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto no art. 19-R da Lei 12401/2011), quando preenchidos três requisitos:
a) a existência de pedido de incorporação do medicamento no Brasil junto à CONITEC;
b) a incorporação do medicamento por renomadas agências de avaliação de tecnologias no exterior (NICE, CADTH, HAS), e obtenção por esses sistemas de saúde de preço  conforme o valor terapêutico, caso a incorporação fique condicionada à negociação de preços;
c) a inexistência de substituto terapêutico mais custo-efetivo, com registro no Brasil, atestada por NATJUS ou por perito versado em Medicina Baseada em Evidências (MBE).

Todos esses desejos não pretendem deixar nenhum brasileiro ao desamparo, não importa a raridade ou gravidade das doenças de que padeça. A tragédia pessoal e familiar de cada doente deve sim ser contemplada e mitigada pelo SUS. Este é o comando de universalidade consagrado pelo constituinte de 1988: que ninguém seja deixado para trás. Isso porém se obtém com um processo institucionalmente organizado e centralizado de incorporação de tecnologias, sujeito ao controle social – e naturalmente judicial, quando vícios nele houver. Assim, bem aplicado o orçamento da saúde, poder-se-á contemplar e tratar um universo muito maior de doentes e de doenças, mesmo as mais raras.

Tampouco aqui se afirma que o processo de ATS é um instrumento perfeito e acabado, e que uma conta matemática resolve todas as questões delicadíssimas de alocações de recursos em saúde. A Alta Autoridade em Saúde (a CONITEC francesa) admite que ao pensamento econômico se devem agregar considerações éticas e políticas. Uma vez conhecida e prestigiada a CONITEC, e se poderão discutir com mais transparência os limiares que ela adota, e se são social ou juridicamente aceitáveis, e se  suas decisões são formal e materialmente legítimas. Isso pressupõe, repito, reconhecer que a CONITEC existe e contemplá-la na judicialização da saúde. E prestigiá-la, em especial, na redação do tema 6 do STF.

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1 Comentário
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Excelente texto! Objetivo, esclarecedor e ao mesmo tempo palpável à compreensão de qualquer indivíduo!