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Solidarity

Bruno Henrique Silva Santos

Responsabilidade Solidária Consentida na Judicialização da Saúde – A Rede SUS dentro dos Processos

Por que deixar para o outro decidir, quando se pode fazer por conta própria?

Os litígios presentes na judicialização da saúde envolvendo o SUS são multipolares. Não há apenas uma lide entre o autor e o réu, como normalmente ocorre nos processos em geral.

Via de regra, o polo passivo nas ações em que se busca o recebimento de tratamento médico do SUS é composto por dois ou três entes federativos distintos. É bastante comum, com isso, que surjam no curso dos processos litígios específicos entre os próprios réus no que diz respeito à responsabilidade pelo fornecimento e pelo custeio do tratamento. Em suma, nenhum deles reconhece a responsabilidade pela entrega ou pelo financiamento do medicamento, do produto médico ou do procedimento concedidos judicialmente.

Esse cenário faz-se presente sobretudo nos processos em que se pretende o recebimento de tecnologia em saúde não incorporada ao sistema público.

A diferença entre uma lide multipolar nas ações de saúde e uma lide tradicional pode ser assim representada:

Multi

Com isso, há que se resolver não apenas se um tratamento deve ou não ser oferecido ao paciente demandante, mas também quem é o responsável pelo seu oferecimento. Aliás, a segunda discussão tem ganhado cada vez mais atenção dos tribunais, tornando-se tão ou até mesmo mais debatida do que a primeira. Basta verificar, por exemplo, que ela já é objeto de três temas afetados pelas cortes superiores como precedentes qualificados que já foram ou estão sendo decididos.

O Supremo Tribunal Federal abordou a responsabilidade dos entes federativos nas ações de saúde no Tema 793 de Repercussão Geral, quando firmou a seguinte tese:

Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.

Como a controvérsia jurisprudencial não cessou mesmo após o seu advento e sobretudo em relação aos tratamentos não incorporados ao SUS, o STF afetou um novo tema relacionado à mesma questão, que é o de número 1.234, no qual a corte apreciará a “Legitimidade passiva da União e competência da Justiça Federal, nas demandas que versem sobre fornecimento de medicamentos registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, mas não padronizados no Sistema Único de Saúde – SUS”.

Paralelamente a isso, o Superior Tribunal de Justiça também decidirá, em precedente qualificado, questão relacionada à responsabilidade dos entes federativos nas ações de saúde. No Incidente de Assunção de Competência 14, a corte afetou a seguinte matéria a julgamento:

Tratando-se de medicamento não incluído nas políticas públicas, mas devidamente registrado na ANVISA, analisar se compete ao autor a faculdade de eleger contra quem pretende demandar, em face da responsabilidade solidária dos entes federados na prestação de saúde, e, em consequência, examinar se é indevida a inclusão da União no polo passivo da demanda, seja por ato de ofício, seja por intimação da parte para emendar a inicial, sem prévia consulta à Justiça Federal.

Esse cenário demonstra como as controvérsias relacionadas à divisão de responsabilidades entre os entes federativos nas ações de saúde vêm ocupando espaço nos tribunais.

A jurisprudência, que em um primeiro momento parecia estar sendo aperfeiçoada e sedimentada no trato da questão, posteriormente deu demonstrações claras de persistência da controvérsia, especialmente em razão da divergência de entendimentos entre o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça quanto à responsabilidade solidária simples entre os entes federativos e o litisconsórcio necessário da União nas demandas por tratamentos não padronizados.

Enquanto o STF, após o julgamento do Tema 793 e por ambas as suas turmas, vem reiteradamente decidindo que a União deve necessariamente compor o polo passivo dos processos em que se pretende o recebimento de tratamentos não incorporados ao SUS, o Superior Tribunal de Justiça – interpretando a tese do Tema 793 do STF em sentido contrário ao da própria Corte Suprema –  permanece com o entendimento de que os entes da federação são solidariamente responsáveis pela dispensação de quaisquer tratamentos postulados em Juízo, cabendo aos autores das ações escolher contra quais pretende demandar. Espera-se ansiosamente que com o julgamento do Tema 1.234/STF e do IAC 14/STJ a controvérsia jurisprudencial seja finalmente dirimida.

Independentemente disso, o fato é que as disputas internas entre os entes federativos sequer deveriam fazer parte da judicialização da saúde. Acontece que o SUS é por sua própria definição um Sistema Único de Saúde, que forma uma rede regionalizada e hierarquizada, nos expressos termos do art. 198 da Constituição. É mais do que evidente que isso não significa que todos os entes federativos devam prestar e possam ser cobrados por quaisquer serviços de saúde à população. Muito pelo contrário, é justamente pela atuação em rede que cada um deles possui competências próprias definidas pela legislação e atos normativos de regência. Há que se respeitar essa repartição de competências também em sede judicial.

Ainda assim, o fato é que essa rede pressupõe uma atuação coordenada e harmônica entre União, Estados e Municípios. Um dos principais pilares do sistema de operação em rede do SUS é a pactuação das responsabilidades dos entes federativos nas Comissões Intergestores Tripartite e Bipartite.

O art. 14-A da Lei nº 8.080/90 é bastante elucidativo quanto à importância dessas comissões na estruturação do SUS, especificamente em relação às responsabilidades dos entes federativos:

Art. 14-A.  As Comissões Intergestores Bipartite e Tripartite são reconhecidas como foros de negociação e pactuação entre gestores, quanto aos aspectos operacionais do Sistema Único de Saúde (SUS). 
Parágrafo único.  A atuação das Comissões Intergestores Bipartite e Tripartite terá por objetivo: 
I - decidir sobre os aspectos operacionais, financeiros e administrativos da gestão compartilhada do SUS, em conformidade com a definição da política consubstanciada em planos de saúde, aprovados pelos conselhos de saúde;
II - definir diretrizes, de âmbito nacional, regional e intermunicipal, a respeito da organização das redes de ações e serviços de saúde, principalmente no tocante à sua governança institucional e à integração das ações e serviços dos entes federados;
III - fixar diretrizes sobre as regiões de saúde, distrito sanitário, integração de territórios, referência e contrarreferência e demais aspectos vinculados à integração das ações e serviços de saúde entre os entes federados. 

É na Comissão Intergestores Tripartite que se pactuam, por exemplo, as responsabilidades pelo custeio, aquisição e entrega dos medicamentos, produtos de interesse para a saúde e procedimentos disponíveis no SUS, nos termos dos arts. 19-P, I e 19-U, da Lei nº 8.080/90. Vejamos:

Art. 19-P.  Na falta de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, a dispensação será realizada:
I - com base nas relações de medicamentos instituídas pelo gestor federal do SUS, observadas as competências estabelecidas nesta Lei, e a responsabilidade pelo fornecimento será pactuada na Comissão Intergestores Tripartite; 
(...)
Art. 19-U.  A responsabilidade financeira pelo fornecimento de medicamentos, produtos de interesse para a saúde ou procedimentos de que trata este Capítulo será pactuada na Comissão Intergestores Tripartite.

Além disso, as Comissões Intergestores Bipartites tratam da divisão de responsabilidades entre os Estados e Municípios nos mais diversos serviços de saúde por eles desempenhados.

Tudo isso serve para demonstrar que os entes federativos têm a prerrogativa de, negociando entre si e dentro dos critérios gerais estabelecidos em lei, definirem as próprias responsabilidades no SUS. Uma vez definidas, eles estão vinculados ao que foi pactuado.

Dentro de todo este contexto, separemos a judicialização da saúde em dois cenários: o que trata de demandas por tratamentos já incorporados ao SUS e o que diz respeito a pedidos de tratamentos não incorporados.

No que diz respeito às demandas por tratamentos incorporados, não há nenhuma razão para que o Poder Judiciário deixe de dirigir suas determinações ao ente administrativamente competente para prestá-los. É isso o que determina, aliás, a parte final da tese do Tema 793/STF (“…diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências”), cuja clareza, entretanto, nem sempre é vista na jurisprudência.

Por outro lado, também não há nenhum motivo para que o ente que é o responsável por oferecer um tratamento já incorporado ao SUS, mas que veio, por alguma razão, a ser demandado judicialmente, não se disponha voluntariamente a entregá-lo.

Questões processuais à parte, isso pode ser feito independentemente de sua presença no processo, já que sequer uma ordem judicial precisaria ser proferida para assegurar um tratamento segundo os protocolos clínicos instituídos. Se ainda assim a ordem foi dada, a esperada atuação em rede dentro SUS impõe que o ente que figura como réu no processo, caso não seja o competente para oferecer o tratamento, diligencie junto ao que é para que a decisão judicial seja atendida. Da mesma maneira, o ente que não está no processo, mas é o que tem atribuição para oferecer o serviço, deve atender à solicitação do que foi demandado judicialmente. É assim, afinal, que ambos atuariam fora de um processo judicial.

De fato, se um paciente busca um determinado atendimento no SUS junto a uma instituição que não é a porta de entrada definida nos fluxos do sistema de saúde, não se pode imaginar que o atendimento seja simplesmente recusado sem o devido esclarecimento e encaminhamento do cidadão ao serviço correto. O serviço que constitui a porta de entrada, por sua vez, não vai recusar o atendimento pelo fato de o encaminhamento ter sido feito por outro órgão que não tinha atribuição para prestá-lo. Não há nenhuma razão, então, para que o mesmo procedimento não seja observado em sede judicial. Se for, não haverá mais discussão entre os entes federativos quanto à legitimidade passiva, litisconsórcio necessário, ressarcimentos etc.

Já em relação às demandas por tratamentos não incorporados, a situação é um pouco mais complexa, mas nem por isso impossível de ser resolvida.

É certo que, não sendo um tratamento incluído nas políticas públicas de saúde, logicamente as competências para o seu custeio e disponibilização não foram pactuadas entre os entes federativos. Por conseguinte, nenhum deles assumirá espontaneamente a obrigação do cumprimento de ordem judicial que o conceda.

Para solucionar esse impasse, entretanto, basta que a União, os Estados e os Municípios pactuem nas Comissões Intergestores as responsabilidades relacionadas aos atendimentos de ordens judiciais de tratamentos não padronizados.

Neste ponto, é preciso ter em mente que, queira-se ou não, a judicialização da saúde é um fato posto e que certamente não acabará tão cedo, apesar de poder e dever ser cada vez mais qualificada e menos invasiva. Por essa razão – e, repise-se, ainda que não seja desejável -, ela deve estar permanentemente presente no planejamento das políticas públicas de saúde.

Se a judicialização é inevitável, é preciso, no mínimo, que com ela se lide estrategicamente.

Sendo assim, os dados da judicialização da saúde devem ser devidamente coletados, tratados e analisados pelos técnicos e gestores dos entes federativos para que, com base neles, os próprios entes avaliem a melhor forma de divisão de responsabilidades entre si, seguindo, sempre que possível, as mesmas linhas gerais adotadas para os tratamentos já disponíveis no SUS e pactuados.

Essa divisão de atribuições dos tratamentos judicializados e não padronizados poderá abranger não apenas competências para custeio, aquisição e prestação ou entrega do tratamento, mas também compensações financeiras ou ressarcimentos diretos entre União, Estados e Municípios, que poderão ser feitos inclusive fundo a fundo de saúde.

Não há razão plausível para que o Poder Judiciário tenha que definir qual o ente federativo responsável pelo fornecimento de um tratamento não incorporado ao SUS se os próprios entes podem pactuar isso entre eles. Os juízes, definitivamente, não possuem as mesmas condições dos técnicos e gestores do SUS para avaliar de que modo a distribuição de atribuições para o cumprimento das ordens judiciais menos interfere e mais otimiza o funcionamento de todo o sistema. Por isso, quanto menos os magistrados e magistradas precisarem resolver essa questão, melhor.

Aliás, a própria Comissão Intergestores Tripartite já cogitou a possibilidade de pactuar responsabilidades relacionadas a medicamentos não incorporados ao SUS e que sejam objetos de determinações judiciais. A reunião de novembro de 2019 da CIT foi especialmente interessante porque, além de tratar da dificuldade do ressarcimento pela União aos Estados das despesas que estes tiveram com a aquisição judicial de medicamentos que não estavam na sua esfera de responsabilidade, abordou também os impactos da judicialização da saúde no custeio de medicamentos não incorporados ao SUS. A comissão aventou a possibilidade de que a própria CIT definisse os critérios de custeio dos fármacos não padronizados e adquiridos por força judicial.

Neste sentido, o Presidente do CONASS “Indicou acrescentar um tema na CIT, que diz respeito à adoção da conduta de divisão de custos de medicamentos quando não houver a incorporação pela Conitec, pois a referida temática não está consolidada e carece de entendimento”.

Se as responsabilidades fossem acordadas entre os próprios entes federativos – e isso só depende deles -, muito da judicialização da saúde estaria hoje resolvido. Com isso, juízes e juízas não precisariam definir segundo critérios próprios – ou mesmo sem critério algum, como muitas vezes ocorre – quem é que deve cumprir suas decisões.

Não há razão para que a rede SUS simplesmente se desfaça a partir do momento em que um tratamento é judicializado, de forma que os entes federativos passem a atuar cada um por si e contra os outros. A mesma atuação coordenada e harmoniosa que existe na prestação administrativa dos serviços de saúde deve se refletir também na esfera judicial. Isso colaborará sobremaneira para a manutenção da higidez do sistema público de saúde, cada vez mais afetado pela interferência judicial.

Certamente, a complexidade das divisões de competências internas no SUS, bem como o anseio para que as ordens judiciais sejam cumpridas com a máxima celeridade possível acabam servindo como estímulos para que se adote o entendimento jurisprudencial pela solidariedade passiva dos entes federativos nas ações de saúde. Com ele, evita-se – indevidamente, no meu ponto de vista – a árdua tarefa de investigar as pactuações administrativas dos diversos serviços de saúde disponíveis no SUS. Por outro lado, entretanto, promove-se nefasta desorganização do sistema, tanto do ponto de vista logístico e operacional, como também financeiro e orçamentário.

Se, por um lado, juízes e tribunais devem estar conscientes da importância de entenderem e seguirem as responsabilidades de cada ente federativo na estruturação do SUS; por outro, os próprios entes têm em suas mãos a possibilidade de resolverem internamente o que caberá a cada um quando o tratamento a ser oferecido decorre de determinação judicial. Com isso, evita-se o litígio desnecessário, que consome tempo e recursos pessoais e financeiros. Evita-se, também, interferências judiciais que passam a ser desnecessárias.

Enfim, não há razão para que os entes federativos deixem para o Poder Judiciário decidir questão que eles próprios podem resolver.

Deixem, os entes federativos, de lado discussões processuais e passem a atuar em rede também em sede judicial. Não importará, assim, quem é que figura na relação processual. O ente que lá estiver terá condições de, se não for o responsável pelo tratamento concedido judicialmente, viabilizar a sua prestação junto ao ente competente, tendo a segurança de que este acatará a demanda, sendo ou não parte processual. É assim que as coisas funcionam quando não há intervenção judicial. É assim que devem funcionar quando há.

Não se tem a ingenuidade de pretender que todos os litígios entre os próprios entes federativos sejam eliminados por este sistema, mas sim a confiança de que grande parte deles sejam.

Busquemos, então, uma solidariedade passiva consentida na judicialização da saúde, pela qual os entes federativos se comprometam a cumprir com as obrigações por eles próprios definidas, independentemente de qual seja o réu do processo.

Muitos complicadores para esta proposta surgirão e precisarão ser enfrentados. Alguns serão superáveis; outros, talvez não. Ainda assim, é preciso sonhar grande para realizar o possível.

Imagem do post Iwaria Inc. on Unsplash

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