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bandeira e mariposa

Bruno Henrique Silva Santos

A reserva do possível na assistência farmacêutica do SUS: A mariposa e a estrela

Diz a lenda que uma jovem mariposa, quando rodopiava pelos ares em uma certa noite, viu distante uma estrela brilhante pela qual se apaixonou. Decidiu, então, que iria voar em torno do astro que conquisto seu coração. Retornando ao lar, contou à sua mãe a súbita paixão e a ideia de ir ao encontro da estrela. A mãe mariposa, como era de se esperar, não tardou a dizer à filha que seu desejo era impossível. Mandou que parasse de ocupar a mente com bobeiras e que seguisse o exemplo de suas irmãs, da própria mãe e de todas as outras mariposas, voando em volta de postes e lâmpadas cujos brilhos lhes eram acessíveis.

A jovem mariposa, logicamente, não deu ouvidos aos conselhos da mãe. Ciente de que a jornada até a estrela amada era muito longa e que ainda não estava preparada para isso, resolveu tentar alçar voos progressivamente mais altos. E assim o fez. Todas as noites, esforçava-se para chegar um pouco mais próximo da estrela, voando um pouco mais alto do que a noite anterior.

Depois de algum tempo nessa incessante busca, a jovem mariposa evidentemente não conseguiu aproximar-se da estrela o suficiente para voar ao redor dela. Na verdade, ainda estava bem longe disso. Ainda assim, por conta de seu esforço e da incessante dedicação ao objetivo proposto, ela conseguia voar a uma altitude muito maior do que todas as outras mariposas. Com isso, podia contemplar os prédios, as nuvens e as montanhas bem do alto. Por mais que não tenha atingido a felicidade plena de se encontrar com a estrela amada, a felicidade de voar tão alto somente a ela era possível, não às outras mariposas.

Não conseguiu fazer o que era impossível, mas o possível que ela atingiu realmente valeu a pena.

A relação entre o real, o que é possível e o que é impossível é um tema mais do que recorrente na judicialização da saúde. Não é exagero dizer que quase sempre essa é a essência das lides que envolvem tecnologias de saúde reivindicadas do SUS. De um lado, está o paciente buscando um tratamento que não é padronizado pelo sistema público de saúde, e, de outro, estão os entes públicos afirmando que não lhes é possível fornecer todos e quaisquer tratamentos a todos os indivíduos que os postularem, e isso simplesmente porque os recursos públicos são finitos, de forma que devem ser alocados segundo uma política pública criteriosamente estabelecida.

O princípio da reserva do possível – sobretudo quando relacionado à concretização dos direitos fundamentais de segunda dimensão, que são aqueles que demandam mais recursos financeiros para sua implementação – já é bastante conhecido e trabalhado pela doutrina constitucional e pela jurisprudência. Via de regra, entretanto, a sua análise é feita de forma abstrata, pregando a necessidade de ponderação entre a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial com as condições orçamentárias do Estado para, em cotejo com todas as suas outras obrigações e funções, assegurar os direitos sociais na medida do que é possível ser feito.

Quanto mais abstrata é a argumentação, mais suscetível ela é de embasar decisões tomadas por subjetivismos ou por convicções políticas ou ideológicas. Daí a importância de se estabelecer, na medida do que é viável, parâmetros concretos para a aferição do princípio da reserva do possível, especificamente, neste modesto artigo, na judicialização da saúde.

Já de início é preciso deixar claro que, apesar de a discussão sobre a reserva do possível nas lides que envolvem a concessão judicial de tratamentos médicos quase sempre girar em torno dos recursos financeiros existentes no orçamento do SUS e daqueles que são necessários para o custeio das prestações demandadas, ela não pode, de forma alguma, ater-se a esta questão, por mais relevante que seja.

Tão importante como destinar recursos públicos necessários e suficientes para uma adequada concretização do direito à saúde é bem administrá-los. Mais do que isso, se o orçamento é limitado, um bom gerenciamento torna-se ainda mais imperativo.

No Brasil, infelizmente, tanto o financiamento como a gestão da saúde pública têm deixado a desejar. Procurei demonstrar isso de forma objetiva em um outro artigo, que pode ser acessado por aqui.

O subfinanciamento da saúde já vem sendo demonstrado há tanto tempo que dispensa, aqui, maiores comentários. Convém, ainda assim, relembrar que ele vem sendo paulatinamente agravado com os limites impostos pela EC 95/2016, que congelou, por vinte anos, o orçamento do SUS.

Já em relação ao gerenciamento dos recursos públicos destinados à saúde, ainda há muito a ser feito para que seja considerado de excelência.

Antes de prosseguir neste ponto, no entanto, é preciso deixar bem claro que o SUS tem incontáveis virtudes e exemplos de excelência na atenção à saúde que são motivos de muito orgulho para o país e seus cidadãos. Da mesma maneira, é fato que a maioria dos profissionais da saúde, agentes técnicos, administrativos e gestores que atuam nos mais diversos serviços públicos de saúde são pessoas de muita competência, dedicadíssimas a um trabalho hercúleo, pouco valorizado, mas que proporciona resultados grandiosos comparados às condições em que exercido. Não são essas pessoas, definitivamente, as responsáveis pela falta de oxigênio que mata pacientes internados em hospitais públicos, pela falta de agulhas e seringas para vacinar a população que passa pela maior e mais grave pandemia dos últimos tempos ou pelas filas intermináveis para consultas médicas, exames ou cirurgias. Isso tudo decorre da falta de suporte ao trabalho dos profissionais sérios que o SUS tem. Mesmo esses problemas, de todo modo, não podem ser imputados a todos os gestores, porque há, sim, muitos lugares em que o atendimento à saúde funciona bem.

Feitas essas ressalvas por questão de justiça, retomemos a análise do panorama geral.

Conforme o relatório do TCU no processo TC 023.961/16-3, que tratou da Gestão em Saúde no Brasil, 46% dos municípios possuíam capacidade de gestão em estágio inicial, 51% em estágio intermediário e apenas 3% em estágio aprimorado. Em relação aos Estados, 52% estavam no estágio inicial, 41% no estágio intermediário e somente 7% possuíam capacidade de gestão aprimorada.

Esta apuração foi feita mediante mecanismos de avaliação trabalhados junto aos órgãos envolvidos. Dentre inúmeras outras necessidades apuradas pela Corte de Contas para o aprimoramento da gestão, foram elencadas as seguintes:  a) incremento na regulação do acesso à assistência à saúde; b) melhorias no monitoramento e gestão de filas; c) medidas estruturantes para controles na gestão de utilização de órteses, próteses e materiais especiais; d) constituição de consórcios públicos na assistência farmacêutica; e) aumento no controle relativo à dispensação de medicamentos aos usuários do SUS, realizada pelas farmácias da rede própria; f) estabelecimento de processo de seleção dos gestores das secretarias de forma transparente; e g) utilização de sistemas informatizados, prioritariamente aqueles disponibilizados pelo Ministério da Saúde. 

É preciso deixar claro, entretanto, que há em meio às diversas unidades gestoras do SUS aquelas que atuam com elevado padrão de gestão, como demonstram os próprios números levantados pelo TCU.

De acordo com o Banco Mundial, em relatório elaborado no ano de 2017, somente com a otimização do orçamento já disponível, o Brasil poderia ter prestado o mesmo nível de serviços de saúde pública usando 34% menos recursos. O relatório informa que “se o Brasil equiparasse a eficiência de todos os municípios aos mais eficientes, o país poderia economizar aproximadamente R$ 22 bilhões, ou 0,3% do PIB, no seu Sistema Único de Saúde (SUS) sem nenhum prejuízo ao nível dos serviços prestados, nem aos resultados de saúde”; bem como que “em nível nacional, os serviços ambulatoriais e hospitalares poderiam crescer em 140% e 79%, respectivamente, por meio da maximização da eficiência“. Diversos problemas relacionados à gestão são apontados, tais como a excessiva descentralização na aquisição de medicamentos e a falta de integração dos serviços diagnósticos, especializados e hospitalares.

Na esfera federal, a situação não é muito distinta. Alguns exemplos recentes trazidos com a pandemia da COVID-19 servem para demonstrar que o emprego adequado dos escassos recursos públicos que compõem o orçamento SUS ainda é deixado de lado em diversas ocasiões.

Contra todas as evidências científicas levantadas por estudos sérios e respeitados, o Ministério da Saúde recomendou, por meio da Nota Informativa nº 17/2020- SE/GAB/SE/MS, a utilização da hidroxicloroquina como tratamento precoce da COVID-19, o que causou protestos das mais diversas e gabaritadas instituições, como o Conselho Nacional de Saúde, a Fiocruz e a Sociedade Brasileira de Infectologia, dentre outras.

Tão certa é a falta de mínimo respaldo científico para a recomendação do propalado “tratamento precoce” que o Twitter anotou em um post do Ministério da Saúde que incentivava essa forma de tratamento a informação de que teria havido “a publicação de informações enganosas e potencialmente prejudiciais relacionadas à COVID-19”. A própria ANVISA, dias depois, ao analisar pedidos de uso emergencial de vacinas contra o vírus, esclareceu de maneira categórica que, nas palavras da Diretora Relatora, Meiruze de Freitas,até o momento não contamos com alternativa terapêutica aprovada disponível para prevenir ou tratar a doença causada pelo novo coronavírus.”

Evidentemente, a utilização de medicação sem eficácia no combate à doença, além dos possíveis efeitos adversos à saúde, acarreta gastos desnecessários de recursos públicos. O mesmo se diz em relação aos tão propalados quanto ineficazes “Kits COVID”.

Outro exemplo de gestão ineficiente de recursos públicos da saúde foi a manutenção em estoque de quase sete milhões de testes diagnósticos para COVID-19 (RT-PCR) que tiveram seu prazo de validade expirado, conforme noticiado pela imprensa, e posteriormente prorrogado pela ANVISA, mas, ainda assim, com riscos de nova expiração sem utilização.

Cite-se, ainda, o gasto de trinta milhões de reais com campanha publicitária do SUS que, supostamente relacionada à COVID-19, teve como foco a exaltação ao agronegócio e a retomada das atividades comerciais, como informado pela mídia.

Por outro lado, análises do Tribunal de Contas da União vêm apontando uma inequívoca necessidade de aprimoramento também na gestão da judicialização da saúde pelo Ministério da Saúde. No Processo 009.253/2015-7 (Acórdão 1.787/2017 – Rel. Min. Bruno Dantas), o TCU realizou uma “auditoria operacional, sob a forma de fiscalização de orientação centralizada (FOC), no Ministério da Saúde e nas Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, com o objetivo de identificar o perfil, o volume e o impacto das ações judiciais na área da saúde, bem como investigar a atuação do Ministério da Saúde e de outros órgãos e entidades dos três poderes para mitigar os efeitos negativos da judicialização nos orçamentos e no acesso dos usuários à assistência à saúde. (Judicialização da Saúde)”. A apreciação da Corte de Contas resultou na recomendação de diversas providências, das mais variadas naturezas, ao Ministério da Saúde. São as seguintes:

9.1. recomendar ao Ministério da Saúde (...) que, em articulação com os demais órgãos envolvidos, avalie a conveniência e a oportunidade de adotar os seguintes procedimentos, com vistas à melhoria do controle administrativo sobre as ações judiciais referentes à saúde, bem como da eficiência, eficácia e economicidade dos procedimentos adotados para tratar o problema dos crescentes gastos com a judicialização da saúde:
9.1.1. rotinas permanentes de coleta, processamento e análise de dados relativos às ações judiciais de saúde, bem como rotinas de detecção de indícios de fraude (...);
9.1.2. estabelecimento de objetivos e metas com o intuito de minimizar os impactos da crescente judicialização da saúde;
9.1.3. criação de coordenação, núcleo ou congênere para centralizar todas as informações relativas aos processos judiciais e coordenar todas as ações que envolvam a judicialização da saúde, com atribuições, em especial, de:
9.1.3.1. auxiliar a formulação da defesa do ente público pela respectiva procuradoria;
9.1.3.2. produzir um diagnóstico preciso e consistente sobre o impacto da judicialização no orçamento e na gestão da política pública;
9.1.3.3. tornar mais racional, eficiente e econômica a compra de medicamentos que deverão ser fornecidos por força de decisões judiciais;
9.1.3.4. tornar mais racional, eficiente e econômica a prestação de serviços concernentes ao tratamento médico-hospitalar a ser fornecido por força de decisões judiciais;
9.1.3.5. detectar a ocorrência de fraudes cometidas no âmbito da judicialização da saúde;
9.1.3.6. identificar duplicidades de pagamento por parte dos entes federativos;
9.1.3.7. monitorar os pacientes beneficiários de decisões judiciais;
9.1.3.8. realizar inspeções em processos e avaliações de pacientes, selecionados conforme critérios de risco e materialidade;
9.1.3.9. classificar os itens de saúde judicializados (como, por exemplo: existência ou não de registro na Anvisa, apreciação ou não pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS – Conitec, incorporados ou não às políticas do SUS e uso off-label);
9.1.3.10. identificar os itens incorporados ao SUS que são judicializados, de forma a reconhecer e corrigir eventuais falhas na gestão;
9.1.3.11. auxiliar os magistrados na tomada de decisão por meio do fornecimento de informações técnicas, a serem disponibilizadas preferencialmente na internet, a fim de que possam alcançar as varas judiciais mais remotas, sobre medicamentos e tratamentos incorporados ao SUS, protocolos clínicos, medicamentos e tratamentos alternativos, medicamentos não registrados na Anvisa etc.;
9.1.3.12. monitorar o atingimento dos objetivos e metas estabelecidos, propondo melhorias;
9.2. recomendar ao Ministério da Saúde (...) que, em articulação com os demais órgãos envolvidos, avalie a conveniência e a oportunidade de adotar os seguintes procedimentos, com vistas a diminuir gastos com medicamentos judicializados de alto custo não incorporados ao SUS, não registrados na Anvisa ou já regularmente fornecidos pelo SUS:
9.2.1. envio tempestivo das informações ao Ministério Público Federal, diante do indício de fraudes no âmbito da judicialização da saúde, como, por exemplo, a repetição sistemática de prescrições por parte dos mesmos profissionais de saúde e/ou de advogados e a existência de rede entre pacientes, associações, médicos e advogados que denotem ações articuladas objetivando benefícios indevidos;
9.2.2. exame da possibilidade e da pertinência de concessão, de ofício, de licença compulsória para a exploração da patente, nos casos de emergência nacional ou interesse público, conforme disposto no art. 71 da Lei 9.279, de 14 de maio de 1996;
9.3. recomendar ao Ministério da Saúde (...) que, em articulação com os demais órgãos e entidades envolvidos, avalie a conveniência e a oportunidade de adotar os seguintes procedimentos, com vistas à melhoria dos procedimentos de ressarcimento financeiro a estados e municípios que custeiam ações e serviços de saúde judicializados que são de competência federal:
9.3.1. regulamentação do processo de ressarcimento de valores despendidos pelas secretarias estaduais e municipais de saúde em face do cumprimento de decisões judiciais que imputam a estados, ao Distrito Federal e aos municípios obrigações diversas das estabelecidas nas políticas de saúde do SUS, considerando, inclusive, a glosa de valores despendidos pela União no cumprimento de decisões judiciais cujas ações e serviços de saúde são de competência de outro ente federativo;9.3.2. controle e divulgação do ressarcimento dos valores acima descritos;

Como se pode perceber, as recomendações envolvem tanto medidas para evitar a judicialização da saúde (identificar os itens incorporados ao SUS que são judicializados, de forma a reconhecer e corrigir eventuais falhas na gestão e examinar a possibilidade e a pertinência de concessão de licença compulsória para a exploração de patentes), como para reduzir o seu impacto financeiro (adotar procedimentos para detecção de fraudes; estabelecer diagnósticos, objetivos e metas de minimização dos impactos econômicos; tornar mais racional, eficiente e econômica a compra de medicamentos judicializados) ou melhor administrá-la (adotar rotinas permanentes de coleta, processamento e análise de dados relativos às ações judiciais de saúde; criar núcleos e coordenações de centralização de informações de processos judiciais; auxiliar na elaboração de defesa pela procuradoria; implementar ou aperfeiçoar procedimentos de repasses financeiros aos demais entes federativos que cumpriram as decisões judiciais, etc).

A simples existência de tantas recomendações já serve para demonstrar que ainda há muito a ser feito no aprimoramento da gestão da judicialização da saúde, o que sem dúvida impactará positivamente na racionalização de recursos públicos. Por outro lado, nenhuma delas pode ser considerada impossível de ser adotada, ou seja, estão todas dentro da “reserva do possível”.

Ainda assim, nova auditoria realizada pelo TCU cerca de três anos depois para acompanhar a implementação das referidas recomendações concluiu que nenhuma delas havia sido efetivamente concluída. De fato, no Processo de Tomada de Contas 034.546/2018-9 (Acórdão 3.036/2020 – Rel. Min. Bruno Dantas), o Tribunal considerou que as recomendações 9.1.1, 9.1.3.2, 9.1.3.3, 9.1.3.4, 9.1.3.5, 9.1.3.6, 9.1.3.8, 9.1.3.9, 9.1.3.10 e 9.1.3.11 ainda estavam em implementação; que as recomendações 9.1.2, 9.1.3.1, 9.2.2 e 9.3.2 estavam parcialmente implementadas; e que as recomendações 9.1.3.7, 9.1.3.12, 9.2.1 e 9.3.1 não foram implementadas.

Fora isso, a compreensão do princípio da reserva do possível, quando se trata da implementação da política de assistência terapêutica do SUS, não pode ficar restrita apenas aos recursos financeiros nela alocados e na sua gestão.

Não há nenhuma dúvida de que o custo dos tratamentos médicos mais modernos e eficazes é um dos maiores obstáculos à sua acessibilidade, e isso não apenas para as populações ou países de baixa renda. No entanto, existem diversas alternativas para lidar com este problema que vão além do simples pagamento pelas novas tecnologias ou da negociação de preços com a indústria farmacêutica, que, como se sabe, não costuma ceder a quaisquer razões que impeçam a obtenção de excepcionais lucros.

É de se esperar, por exemplo, que o governo invista seriamente na pesquisa científica destinada ao desenvolvimento de novos tratamentos médicos, seja para suplantar vazios terapêuticos decorrentes do desinteresse da iniciativa privada em desenvolver tecnologias que não se mostrem lucrativas como se espera (cite-se, neste caso, a grave e iminente ameaça à saúde pública mundial decorrente da falta de desenvolvimento de novos antibióticos, que tem o potencial de vitimar cerca de dez milhões de pessoas por ano até 2050, segundo estimativa da OMS), seja para buscar alternativas mais baratas e acessíveis para tratamentos patenteados e com custos elevados demais para serem suportados pelo sistema público de saúde. 

Não custa lembrar que a Constituição atribuiu expressamente ao SUS a responsabilidade por “participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos” (art. 200, I) e por “incrementar, em sua área de atuação, o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação” (art. 200, V). Mais do que isso, a mesma Constituição determinou que “a pesquisa científica básica e tecnológica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação” (art. 218, § 1º).

O Brasil conta com universidades públicas e institutos de pesquisa científica altamente qualificados e que podem colaborar muito na pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias em saúde, inclusive mediante parcerias com instituições privadas, mas desde que satisfatoriamente financiados.

Outra área crucial para a atuação do Estado na promoção do acesso da população a tecnologias em saúde modernas e eficazes é a dos direitos sobre a propriedade intelectual, mais especificamente as patentes de medicamentos novos e inovadores.

Não há dúvida de que uma proteção adequada aos direitos sobre a propriedade intelectual é indispensável para incentivar o investimento privado na pesquisa e desenvolvimento científicos na área da saúde. Por outro lado, o acesso às novas tecnologias é uma questão de saúde pública e de proteção a direito fundamental que não pode, de forma alguma, submeter-se exclusivamente às regras de mercado e aos interesses de empresas privadas que, ao fim e ao cabo, atuam sempre na expectativa de lucro, como é de se esperar em uma sociedade capitalista.

Por isso, sempre que os interesses particulares e econômicos de detentores de patentes que as utilizam para obter lucros exorbitantes obstarem o necessário acesso da população a tratamentos médicos indispensáveis a uma adequada proteção de sua saúde, é preciso que o Estado intervenha sobre os direitos de propriedade intelectual, compatibilizando o interesse particular do detentor da patente com o interesse público na concretização do direito fundamental à saúde. O que não falta é respaldo jurídico para isso.

O Acordo Sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS) estabelece o seguinte em seus artigos 30 e 31:

Artigo 30
Exceções aos Direitos Conferidos

Os Membros poderão conceder exceções limitadas aos direitos exclusivos conferidos pela patente, desde que elas não conflitem de forma não razoável com sua exploração normal e não prejudiquem de forma não razoável os interesses legítimos de seu titular, levando em conta os interesses legítimos de terceiros.

Artigo 31
Outro Uso sem Autorização do Titular
Quando a legislação de um Membro permite outro uso do objeto da patente sem a autorização de seu titular, inclusive o uso pelo Governo ou por terceiros autorizados pelo governo, as seguintes disposições serão respeitadas:
(...)
(b) esse uso só poderá ser permitido se o usuário proposto tiver previamente buscado obter autorização do titular, em termos e condições comerciais razoáveis, e que esses esforços não tenham sido bem sucedidos num prazo razoável. Essa condição pode ser dispensada por um Membro em caso de emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência ou em casos de uso público não comercial. No caso de uso público não comercial, quando o Governo ou o contratante sabe ou tem base demonstrável para saber, sem proceder a uma busca, que uma patente vigente é ou será usada pelo ou para o Governo, o titular será prontamente informado;

Tornando mais assertiva a necessidade da compatibilização dos direitos sobre a propriedade intelectual – notadamente as patentes farmacêuticas – com a proteção da saúde pública, a própria Organização Mundial do Comércio emitiu a conhecida Declaração de Doha, na qual consignou que:

4. Nós concordamos que o Acordo TRIPS não impede e não deveria impedir seus membros de adotar medidas para proteger a saúde pública. Em conseqüência, enquanto reiteramos nosso compromisso com o Acordo TRIPS, nós afirmamos que o acordo pode e deve ser interpretado e implementado de modo a apoiar o direito dos membros da OMC de proteger a saúde pública e, em particular, de promover o acesso aos medicamentos para todos.
Assim sendo, nós reafirmamos o direito dos membros da OMC de utilizarem, em toda sua extensão, as disposições do acordo TRIPS que fornecem a flexibilidade necessária a esse propósito.

A possibilidade de concessão de licença compulsória de ofício pelo Poder Público em casos de interesse público, e desde que o titular da patente não atenda a essa necessidade, também está prevista no art. 71 da Lei nº 9.279/96. Foi com base neste dispositivo legal, inclusive, que o TCU, no já referido Processo 009.253/2015-7, recomendou ao Ministério da Saúde que avaliasse a possibilidade e a conveniência de concessão de licenças compulsórias para exploração de patentes de medicamentos a serem eventualmente incorporados ao SUS.

Apesar da existência de fundamentos jurídicos sólidos para a concessão de licenças compulsórias de medicamentos indispensáveis à política de assistência farmacêutica quando os detentores das patentes não colaboram para viabilizar o acesso aos medicamentos à população em geral por intermédio do Estado, a experiência tem demonstrado que essas medidas são normalmente seguidas de sérias resistências, ameaças e retaliações por parte da indústria farmacêutica e até mesmo dos países em que elas estão sediadas, tudo em razão dos interesses econômicos que orbitam a discussão. Daí a importância de a questão ser trabalhada também junto à OMS e à OMC, evitando-se que o país seja indevidamente penalizado por buscar assegurar o direito à saúde de seus cidadãos.

Aliás, este problema vem sendo debatido seriamente há alguns anos pela Organização Mundial da Saúde, que chegou a instituir o “High-Level Panel on Acces do Medicines”, do qual resultou um excelente relatório com um diagnóstico das sérias dificuldades de acessibilidade da população mundial a medicamentos e com diversas recomendações de medidas a serem implementadas pelos Estados-partes e pelas instituições privadas para afastar os óbices existentes. Dentre essas recomendações, estão as seguintes (em tradução livre):

Os membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) devem se comprometer eles próprios, nos mais altos níveis políticos, a respeitar a letra e o espírito da Declaração de Doha sobre TRIPS e a Saúde Pública, abstendo-se de qualquer ação que limite a sua implementação e uso para promover o acesso a tecnologias em saúde. Mais especificamente:
(...)
Os membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) devem fazer uso completo das flexibilidades do direito de propriedade do Acordo sobre Aspectos Intelectuais Relacionados ao Comércio (TRIPS), conforme confirmado pela Declaração de Doha para promover o acesso às tecnologias de saúde quando necessário.
(...)
Os governos devem adotar e implementar legislação que facilite a concessão de licenças compulsórias. Tal legislação deve ser projetada para efetuar de forma rápida, justa e previsível e implementável as licenças compulsórias ​​para as necessidades públicas em saúde legítimas, e particularmente no que diz respeito aos medicamentos. O uso da licença compulsório deve ser baseado nas disposições encontradas na Declaração de Doha e os fundamentos para a emissão de licenças compulsórias deixados ao critério dos governos.
(...)
Os governos e o setor privado devem se abster de ameaças explícitas ou implícitas, táticas ou estratégias que prejudiquem o direito dos Membros da OMC de usar as flexibilidades do TRIPS. Pressões políticas e comerciais indevidas devem ser relatadas ao Secretariado da OMC durante a Revisão da Política Comercial dos Membros. Membros da OMC devem registrar reclamações contra pressão política e econômica indevidas, que inclui a tomada de medidas punitivas contra os Membros da OMC ofensores.

Desta forma, as ameaças de retaliações políticas ou econômicas não podem inibir o Poder Público de relativizar os direitos sobre as patentes quando eles são exercidos em desconformidade com o interesse de todos os cidadãos atendidos pela política de assistência terapêutica. Neste caso, deve o governo buscar por meios diplomáticos o necessário apoio internacional, bem como o respaldo da OMS e da OMC em sua atuação.

Como se pode perceber, fazer todo o possível na assistência terapêutica do SUS é muito mais do que aplicar os recursos existentes em rubricas orçamentárias específicas. É financiar adequadamente o SUS, gerir com excelência os recursos financeiros disponíveis e a própria judicialização da saúde, investir na pesquisa, desenvolvimento e fabricação de medicamentos e evitar que interesses particulares da indústria farmacêutica se sobreponham ao direito à saúde de toda a população. Somente quando conseguir demonstrar de forma clara que atua de maneira séria em todas essas frentes é que o Poder Público poderá arguir legitimamente o princípio da reserva do possível como obstáculo intransponível para o fornecimento de quaisquer outros tratamentos a seus cidadãos além daqueles já padronizados.

Enfim, se a mariposa (SUS) certamente não conseguirá chegar à sua amada estrela (atingir o brilho de poder fornecer a todos os cidadãos todos os tratamentos que necessitem ou desejam), ela pode ao menos buscar alçar voos mais altos (melhorar significativamente a atual assistência terapêutica) ao invés de permanecer queimando suas asas nas lâmpadas baixas tão atrativas, mas tão limitantes.

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