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Presente de natal

Bruno Henrique Silva Santos

A Nova Lei da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer (Lei nº 14.758/2023) – um Presente de Natal, mas sem Pilhas

No dia 20 de dezembro de 2023 foi publicada a Lei nº 14.758, do dia anterior, que “Institui a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e o Programa Nacional de Navegação da Pessoa com Diagnóstico de Câncer; e altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990 (Lei Orgânica da Saúde)”.

A lei é um presente de Natal para as pessoas com câncer que precisam do SUS para se tratarem. Aliás, não só para elas, mas também para os familiares e cuidadores dos doentes, gestores públicos, prestadores de serviços e trabalhadores e trabalhadoras da saúde que há tanto tempo anseiam por uma melhor estruturação da política oncológica do nosso sistema público.

No entanto, é um daqueles presentes eletrônicos ou brinquedos que o Papai Noel entrega sem pilhas e por isso demandam uma certa paciência para que a criança saiba exatamente como vai funcionar e se, uma vez ligado, será de seu agrado.

De fato, a Lei nº 14.758/2023 elenca, no seu art. 2º, os principais objetivos da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer – PNPCC1I- diminuir a incidência dos diversos tipos de câncer; II – garantir o acesso adequado ao cuidado integral; e III – contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos usuários diagnosticados com câncer, que foram instituídos, como não poderia deixar de ser, de maneira genérica e na forma de escopos que deverão nortear as medidas a serem adotadas daqui para frente pelo Poder Executivo. Essas medidas é que de fato construirão a nova política pública.

Os arts. 3º, 5º, 6º e 7º da lei arrolam os princípios e diretrizes da PNPCC, que também são um farol a guiar os administradores e gestores da saúde na concretização da nova política.

Vários dos objetivos, princípios e diretrizes estabelecidos nos dispositivos legais referidos já constavam, expressa ou implicitamente, no Anexo IX da Portaria de Consolidação nº 02/2017 do Ministério da Saúde, que teve como origem a Portaria MS/GM nº 874/2013.

Ainda que isso possa indicar, em um primeiro momento, que muito do que agora deve ser feito pelos diversos entes federativos que integram o SUS já o poderia ser mesmo antes do advento da Lei nº 14.758/2023, o fato é que a encampação de todas aquelas normas programáticas pela lei lhes confere agora maior força jurídica e vinculação do Administrador aos propósitos que devem conduzir a elaboração e o aperfeiçoamento da PNPCC, uma vez que não está mais a critério do Poder Executivo defini-los ou reduzi-los.

Ainda assim, a verdade é que o efetivo cumprimento de todas as promessas trazidas com a nova lei depende da boa vontade dos gestores, da disponibilidade orçamentária e da adoção de bons critérios técnicos na concretização da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer. São essas as pilhas necessárias para que o brinquedo funcione e faça a criança feliz.

Além do mais, a edição de um marco legal de uma política pública, mesmo quando ela já vem sendo construída antes dele, é sempre um novo incentivo para que a sua regulamentação avance e se aperfeiçoe. É isso o que se espera agora com o tratamento oncológico no SUS.

Como a Lei nº 14.758/2023 acabou de “sair do forno”, é necessário algum tempo e uma reflexão detida sobre suas normas para que seja devidamente interpretada e avaliada. Por isso, opiniões ou críticas mais assertivas neste momento seriam precipitadas e temerárias. Isso não impede, de qualquer modo, que se apontem novidades por elas trazidas que já se pode perceber serem de grande impacto na política de tratamento do câncer pelo SUS.

Neste momento, o foco dos apontamentos é sobre as questões que mais costumam ser tratadas na judicialização do tratamento oncológico do Sistema Único de Saúde.

Em relação a isso, o primeiro ponto que chama a atenção na Lei nº 14.758/2023 é o princípio instituído em seu art. 7º, I, que estabelece o seguinte:

Art. 7º São princípios e diretrizes relacionados ao tratamento do paciente com diagnóstico de câncer no âmbito da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer:

I - incorporação e uso de tecnologias, consideradas as recomendações formuladas por órgãos governamentais a partir do processo de avaliação de tecnologias em saúde e da avaliação econômica;

A novidade, aqui, reside no fato de que até o presente momento, a regra era a de que os medicamentos destinados ao tratamento dos diversos tipos de câncer fossem definidos por cada Centro de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (CACON) ou Unidade de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (UNACON), observadas as Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas (DDT’s) elaboradas pelo Ministério da Saúde.

Como o próprio nome sugere, essas “diretrizes” são apenas orientações não vinculantes para que os CACON’s e UNACON’s definam quais os tratamentos que disponibilizarão a seus pacientes.

Sempre existiu, contudo, uma limitação fática para essa liberdade de definição dos CACON’s e UNACON’s quanto aos tratamentos oncológicos a serem oferecidos, que é o valor da APAC (Autorização de Procedimento Ambulatorial de Alta Complexidade) paga pelo SUS como ressarcimento das despesas com o custo de tais tratamentos.

Como é muito comum que os valores tabelados sejam insuficientes para o custeio dessas despesas e estejam defasados em comparação com o custo atual das terapias, na prática, muito do que há disponível no mercado para os cuidados com os pacientes com câncer – especialmente medicamentos e procedimentos mais modernos -, mesmo quando previsto em Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas, acaba não sendo efetivamente disponibilizado pelo sistema público de saúde.

A título de exemplo, a seguinte tabela elaborada pela Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica – SBOC bem demonstra o descompasso entre o valor da APAC e o custo mensal do tratamento com diversos medicamentos antineoplásicos que já foram incorporados ao SUS (fugindo à regra de que tais medicamentos usualmente são definidos pelos próprios CACON’s e UNACON’s sem necessidade de prévia incorporação):

Essa situação, por outro lado, muitas vezes implica afronta ao princípio da universalidade do SUS, uma vez que os CACON’s ou UNACON’s que contam com fontes complementares de recursos públicos ou privados conseguem adquirir para os seus pacientes medicamentos que outros hospitais cujas fontes adicionais são menores ou mesmo inexistentes não conseguem.

O resultado disso é a tão propalada ideia da existência “do meu SUS é melhor que o seu SUS”, que evidentemente caracteriza uma violação à isonomia no Direito à Saúde garantida pela Constituição.

Por essas razões, veio em boa hora a determinação legal de que a incorporação efetiva das tecnologias de tratamento oncológico pelo SUS é agora um dos princípios da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer.

Com isso, uma vez estando os novos tratamentos formalmente incorporados após avaliação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde – Conitec, a lógica das Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas – que, como visto, servem apenas como recomendações de tratamentos cuja disponibilização ou não pode ser decidida por cada CACON/UNACON – é substituída pela dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT’s), que são documentos elaborados pelo Ministério da Saúde que estabelecem os medicamentos ou produtos a serem obrigatoriamente ofertados pelo SUS para o tratamento das doenças de que tratam.

Esses medicamentos ou produtos são aqueles avaliados pela Conitec quanto à sua eficácia, segurança, efetividade e custo-efetividade no procedimento prévio à incorporação, tudo nos termos dos arts. 19-O e 19-Q da Lei nº 8.080/90.

É justamente isso o que dispõe o art. 10, § 4º, da nova Lei nº 14.758/2023, em outra de suas bem-vindas novidades:

Art. 10. A partir da publicação da decisão de incorporar uma nova tecnologia em oncologia, as áreas técnicas terão o prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias para efetivar sua oferta no SUS.

(...)

§ 4º A utilização dos tratamentos incorporados deverá seguir os protocolos clínicos de diretrizes terapêuticas vigentes do Ministério da Saúde ou, na sua ausência, a recomendação para utilização da tecnologia realizada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS.

Com isso, os tratamentos oncológicos passam a ser formalmente incorporados ao SUS e assim de dispensação obrigatória aos pacientes que se encontrem dentro dos critérios previstos nos PCDT’s, sem depender da decisão de cada CACON ou UNACON.

Para que esta medida funcione da maneira adequada, contudo, é preciso que o Ministério da Saúde, mediante pactuação administrativa com os demais entes federativos na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), assegurem a efetiva disponibilidade dos novos tratamentos oncológicos incorporados ao SUS, seja mediante aquisição centralizada pelo próprio ministério, seja por meio de ressarcimento dos gastos dos prestadores dos serviços de oncologia por meio das APAC’s. Essa é, inclusive, mais uma das novidades trazidas pela Lei nº 14.758/2023, cujo art. 10, §§ 1º, 2º e 3º, estabelecem que:

Art. 10. A partir da publicação da decisão de incorporar uma nova tecnologia em oncologia, as áreas técnicas terão o prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias para efetivar sua oferta no SUS.

§ 1º Na fluência do prazo definido no caput deste artigo, deverão ser discutidas e pactuadas no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite as responsabilidades de cada ente federado no processo de financiamento, de aquisição e de distribuição da tecnologia, respeitadas a manutenção do equilíbrio financeiro entre as esferas de gestão do SUS e a garantia da linha de cuidado da doença, admitidas as seguintes modalidades:

I - aquisição centralizada pelo Ministério da Saúde, prioritariamente nos casos de:

a) neoplasias com tratamento de alta complexidade;

b) incorporações que representem elevado impacto financeiro para o SUS; ou

c) neoplasias com maior incidência, de forma a garantir maior equidade e economicidade para o País;

II - Autorização de Procedimento Ambulatorial de Alta Complexidade (APAC) exclusiva para aquisição do tratamento incorporado no SUS.

§ 2º Os medicamentos e os tratamentos previstos para a modalidade referida no inciso II do § 1º deste artigo serão negociados pelo Ministério da Saúde, e poderá ser estabelecido sistema de registro de preços conforme preceitua a Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos).

§ 3º Caso a incorporação de novo procedimento resulte em incremento do teto financeiro dos gestores municipais, estaduais e do Distrito Federal, estes deverão realizar os devidos ajustes nos contratos dos serviços sob sua gestão.

O maior mérito das normas transcritas é esclarecer e conferir alguma objetividade às responsabilidades dos entes federativos no fornecimento do tratamento oncológico pelo SUS, que tem sido uma das questões mais discutidas na chamada judicialização da saúde.

Como, via de regra, os medicamentos para tratamento de câncer não eram, até o advento da Lei nº 14.758/2023, formalmente incorporados ao SUS – ou, em grande parte dos casos de exceção em que eram incorporados, não tinham as respectivas responsabilidades pactuadas na CIT -, esses fármacos não estão incluídos na RENAME e, com isso, não têm as responsabilidades pela aquisição, custeio e fornecimento objetivamente repartidas entre os entes federativos. É óbvio que, neste cenário, nenhum dos entes reconhece a própria responsabilidade nos processos judiciais que discutem essa questão.

Agora, com a entrada em vigor da Lei nº 14.758/2023, ficou definido que nos casos de tratamentos de alta complexidade, que representem elevado impacto financeiro ao SUS ou sejam relacionados a neoplasias com maior incidência, é o Ministério da Saúde que deve, prioritariamente, adquirir centralizadamente os medicamentos (art. 10, §1º, I).

Nos outros casos, o fornecimento pode ser feito mediante aquisição direta pelos prestadores de serviço e posterior ressarcimento via APAC (inciso II). Neste último caso, entretanto, os medicamentos ou tratamentos deverão ser ainda assim negociados pelo Ministério da Saúde, inclusive com o estabelecimento de sistema de registro de preços, permitindo que as entidades particulares adquirentes possam se beneficiar dos preços mais vantajosos decorrentes da negociação em grande escala (art. 10, § 2º).

É importante observar que mesmo nos casos em que os medicamentos não sejam adquiridos centralizadamente pelo Ministério da Saúde, eles devem agora ser objeto de incorporação formal pelo SUS após o devido procedimento de avaliação de tecnologia em saúde pela Conitec uma vez que, como visto, esse passou a ser um dos princípios da PNPCC (art. 7º, I da Lei nº 14.758/2023). Além disso, os medicamentos incorporados de qualquer forma precisarão estar previstos em PCDT (art. 10, §4º, da mesma lei).

É de se esperar que, nas hipóteses em que o tratamento seja disponibilizado mediante aquisição direta pelos CACON’s/UNACON’s e posterior reembolso via Autorização de Procedimento Ambulatorial de Alta Complexidade, o Ministério da Saúde revise o valor da respectiva APAC de forma que ele seja suficiente para cobrir as despesas com o referido tratamento.

De fato, agora, com a Lei nº 14.758/2023, não cabe mais aos centros de referência em tratamento oncológico definir os medicamentos ou terapias que disponibilizarão a seus pacientes. Eles passam a ser obrigados a oferecer as tecnologias incorporadas ao SUS e previstas nos PCDT’s.

É dever do Ministério da Saúde, portanto, assegurar que os prestadores de serviço sejam devidamente ressarcidos das despesas que tiverem neste mister. Não há mais espaço, com isso, para argumentos normalmente levantados no sentido de que os CACON’s/UNACON’s poderiam ou deveriam se valer de fontes de receitas alternativas para cobrir as despesas com o tratamento.

Como os custos dos novos tratamentos poderão ser objetivamente aferidos de forma mais segura, já que existe a possibilidade de implantação de sistema de registro de preços nacional (art. 10, § 2º, da Lei nº 14.758/2023), é possível apurar com maior acurácia os valores das APAC’s necessários para a cobertura das despesas com as terapias incorporadas e, consequentemente, avaliar a necessidade de seu reajustamento.

É partindo desses pressupostos, inclusive, que o art. 10, § 3º, da Lei nº 14.758/2023 prevê a possibilidade de incremento do teto financeiro dos gestores municipais e estaduais em decorrência da incorporação de novas tecnologias para o tratamento do câncer.

Em uma rápida análise, essas parecem ser as novidades mais relevantes da Lei nº 14.758/2023 em relação às questões que são normalmente discutidas judicialmente nas demandas por tratamentos oncológicos pelo SUS. São medidas que, sem dúvida, aperfeiçoam e tornam mais racional a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer.

Esse é, portanto, um grande presente de Natal aos pacientes com câncer e a todos e todas que lidam de perto com suas angústias e sofrimentos. O que resta a ser feito agora é colocar boas pilhas neste presente para que ele funcione como se espera. Isso significa, dentre outras coisas:

a) efetivamente implantar a substituição do modelo de definição dos tratamentos oncológicos por meio de Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas pelo modelo dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas;

b) pactuar na CIT as responsabilidades pela aquisição, financiamento e entrega de todos os medicamentos oncológicos já incorporados ao SUS, mas até o momento não disponíveis para os pacientes;

c) implementar um fluxo que realmente permita que, após a incorporação de um novo tratamento oncológico ao SUS, a pactuação das responsabilidades na CIT, a resolução das questões orçamentárias e a efetiva disponibilização aos cidadãos sejam feitas dentro do prazo de 180 dias previsto no caput do art. 10 da Lei nº 14.758/2023;

d) revisar e, sempre que necessário, reajustar o valor das APAC’s nos casos em que a disponibilização dos tratamentos ocorrer mediante posterior ressarcimento aos CACON’s e UNACON’s, de maneira que elas sejam de fato suficientes para a cobertura das despesas incorridas pelos prestadores de serviços;

e) o Ministério da Saúde colocar em prática a obrigação de negociar centralizadamente os preços dos medicamentos e tratamentos oncológicos incorporados, viabilizando que as tratativas em grande escala resultem em preços mais acessíveis, inclusive quando a compra dos medicamentos for feita pelos CACON’s e UNACON’s; e

f) tornar claras as responsabilidades – especialmente financeiras – de cada um dos entes federativos nas hipóteses de dispensação dos tratamentos oncológicos mediante ressarcimento via APAC.

Com isso, certamente as expectativas criadas com a nova lei não se transformarão em frustração, mas em efetiva melhoria da vida e da saúde de pessoas tão carentes do auxílio estatal como são aquelas que sofrem com o câncer.

Imagem do postFoto de Kira auf der Heide na Unsplash

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