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Folha de canabis

Ana Carolina Morozowski e Luís Correia

Juíza da 3ª Vara Federal de Curitiba e Professor Adjunto da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública

São Tomé e o canabidiol – breves considerações à luz da Medicina Baseada em Evidências

Recentemente, foi criada a Rede Parlamentar em Defesa da Cannabis Medicinal, na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Um dos seus objetivos é trabalhar para a aprovação do Projeto de Lei nº 1.180/2019, dessa casa legislativa, que visa à instituição de política pública que garanta o fornecimento de produtos de Cannabis no SUS, em SP.

O plantio domiciliar da Cannabis, bem como a sua comercialização e de seus derivados para fins medicinais são assunto corriqueiro na mídia, nas sociedades médicas, associações de pacientes e nos órgãos reguladores em nosso país. Ocorre que muitas das ideias divulgadas trazem uma análise simplista do assunto, desvinculada da realidade científica a respeito dos tratamentos propostos. Isso se deve, em parte, ao grande investimento em marketing das empresas que comercializam os produtos derivados da Cannabis, cujo faturamento está na ordem de bilhões de dólares ao ano, tendo atingido 21,3 bilhões de dólares em vendas, em 2020. 

É necessário enfatizar que os autores deste texto não possuem vínculo com ordem religiosa, nem perfil conservador, o que poderia levar a uma análise enviesada da questão científica em função de um prejulgamento a respeito do seu uso para fins recreativos. O presente artigo tem por base apenas a análise do propugnado valor terapêutico da planta, sem adentrar na questão da aceitação ou da legalização de seu uso para fins recreativos. Não menos importante é esclarecer que os autores se sensibilizam com os pacientes e familiares que encontram esperança na utilização de produtos à base de Cannabis.

Dentre os cerca de 100 canabinoides existentes na planta, os dois mais utilizados são o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC). O CBD é o mais estudado na medicina e não possui efeito psicoativo, ao contrário do THC, cujo uso não é recomendado para indivíduos com menos de 25 anos. Isso porque, em pessoas com o cérebro em desenvolvimento, ele pode provocar quadros de psicose, transtornos psiquiátricos, crises convulsivas etc.

A primeira coisa que precisa ficar clara é o fato de que a Cannabis, para servir como tratamento médico, deve passar por um processo de separação de seus canabinoides. Se a planta for consumida de maneira tradicional, o paciente receberá todos os seus canabinoides, inclusive os tóxicos. Por isso, autorizar o plantio da Cannabis pode servir a outros fins, mas não é a saída para tratar doenças.

A segunda questão que merece ser pontuada diz respeito à comprovação dos benefícios terapêuticos que os produtos da Cannabis podem trazer. Apesar das notícias e dos relatos de que eles trazem benefícios espetaculares, pelo menos no atual estágio de pesquisa, não há comprovação de eficácia a amparar a prescrição da substância para a maioria dos casos, como doenças do sono, dor e doenças psiquiátricas.

Há, contudo, estudos indicando um benefício clínico no tratamento de epilepsias refratárias, nos quadros das síndromes de Lennox-Gastaut e de Dravet. Para esses dois casos, e somente para eles, foram feitos ensaios clínicos randomizados de qualidade, controlados por placebo, demonstrando um efeito terapêutico com a utilização do canabidiol. Em contrapartida, foram descritos alguns efeitos adversos, tais como sonolência, redução de apetite e alterações hepáticas, que não se demonstraram graves.

Diante disso, com base no conhecimento que se tem hoje, a prescrição do canabidiol deve se dar com cautela, somente para os quadros de epilepsia acima descritos, após o uso de outras substâncias, sem que tenha havido o controle das crises. A sua indicação para todas as outras doenças não tem respaldo científico. Prescrever o canabidiol para outras situações é como prescrever substâncias sem comprovação de eficácia, como infelizmente ocorreu em grande escala no Brasil, no combate à COVID-19.

Se indicar o canabidiol para situações em relação às quais não há comprovação dos benefícios é desaconselhável, pretender que o Sistema Único de Saúde incorpore a substância em suas listas para esses casos é inadmissível. Para que uma determinada tecnologia seja incorporada no SUS, ela deve ser analisada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), conforme estabelecido pela Lei nº 12.401/2011. Nessa análise, a Conitec considera as evidências científicas a respeito da tecnologia, bem como questões econômicas. Esse processo se chama avaliação de tecnologia em saúde (ATS) e ocorre em vários países que possuem sistema público de saúde. Isso já demonstra a inadequação de qualquer iniciativa do poder legislativo que objetive criar para o SUS a obrigação de fornecer determinado medicamento.

Recentemente, a Conitec avaliou o canabidiol para epilepsia refratária a medicamentos antiepilépticos, para os casos das síndromes de Lennox-Gastaut e de Dravet, recomendando a sua não incorporação. A comissão, embora tenha admitido que os estudos demonstraram efeito do tratamento, considerou que eles não foram convincentes no sentido de demonstrar a relevância média do seu impacto, pois não conseguiu apontar melhora na qualidade de vida dos pacientes. A conclusão foi de que o tamanho do efeito “em média” não está provado como relevante. Além disso, a relação de custo-efetividade desfavorável e o alto impacto orçamentário que haveria com a oferta do medicamento pelo SUS também foram considerados para a negativa de recomendação de incorporação.

Ainda que o canabidiol não esteja incluído nas políticas públicas de saúde, o SUS vem sendo compelido a fornecê-lo a vários pacientes com as mais diversas doenças, em razão de decisões judiciais. A título de exemplo, a substância é um dos dez tratamentos mais concedidos em ações judiciais em face do Estado do PR, no ano de 2021.

É necessário estabelecer mecanismos que assegurem e incentivem a pesquisa do uso do canabidiol para outras doenças. Enquanto isso, a sociedade, os órgãos de comunicação e o poder público em geral devem estar cientes das limitações dos estudos hoje existentes a respeito da eficácia dos produtos da Cannabis, porque, na medicina, não basta crer em um medicamento, tem que haver prova de que ele funciona.

Foto de David Gabrić – Unsplash

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