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Bruno Henrique Silva Santos

Registro tácito de medicamentos no Brasil: A (inconstitucional) RDC 416/2020 da ANVISA

Foi publicada no Diário Oficial da União de 31 de agosto de 2020 a Resolução de Diretoria Colegiada da ANVISA (RDC) nº 416/2020, que institui a aprovação tácita de registro de medicamentos no Brasil. Aliás, não apenas de medicamentos, mas também de praticamente todos os produtos cuja vigilância cabe à autarquia, dentre eles saneantes, cosméticos, alimentos etc.

Não há necessidade de ser um expert em saúde pública para perceber a magnitude e a gravidade da mudança trazida com a RDC nº 416/2020. Basta ter em mente os notórios riscos que os medicamentos (é sobre eles que a análise será feita neste artigo) oferecem à saúde mesmo após aprovados previamente pela ANVISA. Imagine-se, então, o perigo da liberação da comercialização de drogas que sequer passaram pelo crivo da agência.

As coisas chegaram a esse ponto da seguinte forma.

A Lei nº 13.874/2019, autodenominada como “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, estabeleceu o seguinte em seu art. 3º, IX:

Art. 3º  São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal:
(...)
IX - ter a garantia de que, nas solicitações de atos públicos de liberação da atividade econômica que se sujeitam ao disposto nesta Lei, apresentados todos os elementos necessários à instrução do processo, o particular será cientificado expressa e imediatamente do prazo máximo estipulado para a análise de seu pedido e de que, transcorrido o prazo fixado, o silêncio da autoridade competente importará aprovação tácita para todos os efeitos, ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas em lei.

O § 6º do mesmo dispositivo legal traz como exceções à regra da aprovação tácita: a) questões tributárias de qualquer espécie; b) concessão de registro de marcas; c) decisões que importarem em compromisso financeiro da administração pública; e d) situações em que houver objeção expressa em tratado em vigor no País.

Em outras palavras, interesses econômicos do Estado ou a titularidade de marcas não podem ser colocados em risco por meio da permissão de aprovação tácita de requerimento administrativo não apreciado no prazo oportuno. Já a saúde pública e a vida dos cidadãos, segundo a lei tratada, não demandam tamanha proteção.

O § 7º do mesmo artigo 3º da Lei nº 13.874/2019 também excepciona da regra da aprovação tácita os requerimentos formulados no interesse de agentes públicos ou seus parentes e perante os órgãos ou entidades em que desempenham suas atividades. Por fim, o § 12 afasta ainda os pedidos relacionados a atividades com impacto significativo no meio ambiente.

Fora das exceções expressamente previstas em lei, qualquer requerimento de autorização (aqui considerada em seu mais amplo sentido) para o exercício de uma atividade econômica está sujeito à presunção de deferimento quando não apreciado dentro do período estipulado.

O prazo máximo no qual a administração deve apreciar os requerimentos de atos de liberação da atividade econômica, sob pena de se considerar a aprovação tácita, deverá ser definido pelo órgão ou pela entidade da administração pública solicitada (art. 3º, § 8º da Lei nº 13.874/2019).

A regulamentação das normas concernentes à aprovação tácita foi feita pelo Decreto nº 10.178/2019, cujo art. 10, caput e § 1º, estabelecem o seguinte:

Art. 10.  A autoridade máxima do órgão ou da entidade responsável pelo ato público de liberação fixará o prazo para resposta aos atos requeridos junto à unidade.
§ 1º  Decorrido o prazo previsto no caput, a ausência de manifestação conclusiva do órgão ou da entidade acerca do deferimento do ato público de liberação requerido implicará sua aprovação tácita.

Foi justamente com base na Lei nº 13.874/2019 e no Decreto nº 10.178/2019 que a ANVISA editou a RDC 416/2020, que “estabelece a classificação de riscos e os prazos para resposta aos requerimentos de atos públicos de liberação de responsabilidade da Anvisa, conforme o disposto no caput do art. 3° e art. 10 do Decreto nº 10.178, de 18 de dezembro de 2019”. A resolução conta com um enorme anexo no qual estão discriminados os prazos específicos para análise dos diversos atos públicos de liberação relacionados a produtos para a saúde. Dentre eles está o “registro de medicamentos e produtos biológicos”, cujo prazo é de 365 dias. Há previsão de vários outros atos relacionados a medicamentos, mas também a alimentos, produtos fumígenos, sangue e tecidos humanos, avaliações toxicológicas e tecnologias de saúde em geral.

Em síntese, por incrível que pareça o ordenamento jurídico infraconstitucional brasileiro permite, a partir de 01/09/2020, que medicamentos sejam livremente produzidos, importados ou comercializados sem qualquer análise prévia da ANVISA, caso a agência não se manifeste conclusivamente no prazo de 365 dias contados da data do pedido de registro.

Há que se lembrar que ao apreciar um pedido de registro de medicamento, a ANVISA analisa não apenas a sua eficácia, mas também a segurança da droga para a saúde humana. Para bem demonstrar a tamanha importância que o ato de registro possui, vale observar que, nos termos do art. 16 da Lei nº 6.360/76, dentre os requisitos para tanto necessários estão os seguintes: que o produto, através de comprovação científica e de análise, seja reconhecido como seguro e eficaz para o uso a que se propõe, e possua a identidade, atividade, qualidade, pureza e inocuidade necessárias (inciso II); e, tratando-se de produto novo, que sejam oferecidas amplas informações sobre a sua composição e o seu uso, para avaliação de sua natureza e determinação do grau de segurança e eficácia necessários (inciso III).

A par das questões jurídicas, é difícil crer que alguém com um mínimo de sensatez e que não esteja interessado exclusivamente nos proveitos econômicos daí advindos aceite a disponibilização no mercado de medicamentos que não passaram por uma análise efetiva da agência de vigilância sanitária. É bom esclarecer que nem a lei, nem o decreto, tampouco a RDC acima tratados fazem qualquer ressalva em relação à existência de registro do medicamento em outros órgãos ou agências estrangeiras como condição para a possibilidade de aprovação tácita no Brasil. Desta forma, inclusive fármacos que jamais tenham sido analisados em órgãos de vigilância sanitária no Brasil ou no exterior poderiam, em tese, ter uma aprovação tácita de produção, importação ou comercialização por aqui, sem prévia apreciação efetiva da ANVISA.

A quem interessa situação como essa? Se há problemas ou dificuldades com o cumprimento dos prazos de análise pela ANVISA, então o que se deve buscar é que ela efetivamente cumpra seus deveres conforme previstos. Se os prazos são demasiadamente longos (o que se coloca apenas a título hipotético mesmo), então que se avalie a possibilidade de reduzi-los. O que não pode ser admitido é que a vida e a saúde de toda uma população sejam colocadas em risco na busca pela almejada liberdade econômica.

Tratando com maestria de problema correlato (Licenciamentos Ambientais “a jato”), Egon Bockmann Moreira pontuou que:

(...) o discurso legitimador gira em torno dos motes da “desburocratização” e da “flexibilização”, em vista a demora – em alguns casos, inaceitável – na expedição de licenças ambientais que permitam a instalação de investimentos em infraestrutura. A ideia central seria a de abreviar radicalmente a emissão de licenças ambientais pelas autoridades constituídas. Mas o problema está em que isso não se daria por meio de aprimoramento tecnológico ou treinamento de servidores públicos. Nem através da contratação de corpo funcional apto – em quantidade e qualidade – a examinar com eficiência os pedidos de licenciamento, muitos de extrema complexidade, a envolver vários ramos do conhecimento (engenharia, ecologia, história, antropologia, etc.). Nada disso: o que se pretende é instituir a velocidade decorrente da omissão.

Da forma como a questão foi regulamentada, os interessados em colocar no mercado medicamentos que não passariam pelo crivo da agência de regulação seriam estimulados a protelar e dificultar ao máximo uma análise real do produto ofertado, buscando que ele seja contemplado com a aprovação tácita. Mais uma vez se aplica aqui o raciocínio do Professor Egon, no artigo referido acima:

(...) a aprovação tácita instala o incentivo para que o pedido tenha todas as qualidades que impeçam a Administração Pública de analisá-lo com cuidado e assim tomar a decisão. O decurso de prazo cria o estímulo para que empresários menos escrupulosos produzam pedidos de licenciamento inviáveis de ser examinados em curto espaço de tempo. Ou que muitos pedidos de licenciamento sejam apresentados ao menos tempo. Todos os esforços serão poucos para se conseguir o licenciamento implícito. Assim, se antes os pedidos continham 100 páginas, passarão a contar com 100.000. Se traziam documentos de fácil acesso e leitura, serão instruídos com texto em grego antigo. Isto é: ganhará a aprovação tácita aquele que impedir o exame do licenciamento no prazo previsto em lei.

Afora esses argumentos de ordem moral, há fundamentos jurídicos sólidos para que se reconheça a inconstitucionalidade da previsão da concessão tácita de registro de medicamentos no Brasil.

O primeiro deles é o direito fundamental à vida e à saúde, previsto nos arts. 5º, 6º e 196 da Constituição, que jamais poderia ser relativizado em benefício de uma pretensa liberdade econômica. Ainda que nenhum direito seja absoluto, segundo a moderna doutrina constitucional, é sabido que a ponderação de valores imposta pelo princípio da proporcionalidade impõe que o direito prevalente seja de igual ou maior valor, no caso concreto, do que o relativizado.

O art. 1º da Lei nº 13.874/2019 fundamenta a “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica” nos arts. 1º, IV; 170, parágrafo único; e 174 da Constituição Federal. Analisemos cada um deles.

O art. 1º, IV elenca “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Acontece que, antes dele, no inciso III, encontra-se “a dignidade da pessoa humana” como outro desses fundamentos, que não pode ser deixada de lado com a permissão de que a população faça uso de medicamentos não avaliados pela ANVISA.

O art. 170, parágrafo único, estabelece que “é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. É evidente, entretanto, que o legislador ordinário não tem liberdade absoluta para decidir quais atividades demandarão prévia autorização do Poder Público. De fato, o caput do referido dispositivo constitucional, do qual o parágrafo único não pode se dissociar, arrola os princípios da ordem econômica, dentre eles a defesa do consumidor (inciso V). Não é preciso muito esforço argumentativo para demonstrar que o consumidor fica absolutamente desprotegido diante da possibilidade de ver no mercado medicamentos que não passaram pelo crivo efetivo da ANVISA (nem, talvez, de nenhum outro órgão estrangeiro de vigilância sanitária), o que ocorreria em uma eventual hipótese de concessão tácita do registro.

Por fim, o art. 174 da Constituição impõe que o Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, exerça também a função de “fiscalização”, o que definitivamente não ocorre quando libera ao público o uso de medicamentos não avaliados pela ANVISA.

Como se vê, nenhum dos fundamentos constitucionais invocados pelo art. 1º da Lei nº 13.874/2019 legitima a concessão tácita do registro de medicamentos pela ANVISA. Pelo contrário, a medida afronta diretamente os direitos à vida e à saúde, assim como a proteção ao consumidor.

Há outra razão que leva ao reconhecimento da inconstitucionalidade da malfadada aprovação tácita. Trata-se do princípio da precaução no direito sanitário.

A tutela estatal sobre a saúde e a vida das pessoas, por serem esses bens jurídicos de restauração difícil ou impossível após a sua violação, deve se dar antecipadamente, ou seja, de maneira que evite a própria violação. O dever de adoção, pelo Poder Público, de medidas de proteção dos cidadãos ou prevenção em relação ao desenvolvimento técnico ou tecnológico está ligado ao dever de evitar riscos, que é uma decorrência do princípio da proibição de proteção insuficiente dos direitos fundamentais, sobretudo os sociais, nos quais se insere a saúde. Por isso é que o art. 196 da Constituição estabelece que o direito à saúde é garantido “mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Note-se bem: não se trata apenas de prevenção de danos, mas de redução de riscos. A norma trabalhou com o conceito de incerteza ao se referir a risco. Além disso, o que se buscou afastar de qualquer risco não foi apenas a doença, mas também outros agravos, ou seja, quaisquer prejuízos à saúde humana. Não é difícil concluir, então, que o princípio da precaução, que tem como escopo justamente impedir o desenvolvimento de atividades ou produtos com potencial de causar danos à saúde, ainda que não comprovados (ou seja, que tragam consigo riscos), encontra guarida na norma constitucional em foco.

O princípio da precaução é um desdobramento do princípio constitucional da eficiência da Administração (art. 37 da Constituição), porque busca priorizar o impedimento da ocorrência do agravo à saúde, mesmo quando incerto, ao invés de se contentar em tratá-lo, até porque muitas vezes o tratamento sequer será possível.

A precaução também decorre de uma das várias vertentes do princípio da segurança jurídica. A segurança reside, aqui, na garantia de que o Estado tutela a vida e a saúde das pessoas da forma mais eficiente possível, ou seja, inclusive agindo antecipadamente para evitar os riscos à saúde, mesmo quando os danos são ainda incertos, mas possíveis. A segurança, aliás, foi erigida a direito fundamental tanto sob a ótica individual (caput do art. 5º) como social (caput do art. 6º).

A vigilância sanitária e epidemiológica, que é certamente uma das principais atribuições do Sistema Único de Saúde (art. 200, II da Constituição), emerge como a faceta mais visível e concreta do princípio da precaução, que constitui a sua própria essência.

O princípio em questão incide de maneira clara na política de assistência farmacêutica à população, seja a pública ou a privada.

O art. 16, II da Lei nº 6.360/76 impõe que para o registro de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos na ANVISA – o que constitui requisito indispensável para a comercialização em território nacional, salvo hipóteses excepcionais – é necessária a comprovação científica de sua segurança. Esses produtos estão dentre aqueles cuja potencialidade lesiva à saúde é notoriamente alta. Assim, cabe a quem pretende o registro comprovar de antemão que o produto é seguro para a saúde humana, sem a necessidade de prévios indícios de que haja algum dano decorrente do seu uso ou mesmo de que há riscos de danos incertos. Além do mais, a mera suspeita de que um daqueles produtos, ainda que já registrado, possa ter efeitos nocivos à saúde humana já é causa suficiente a autorizar a suspensão de sua fabricação e venda pelo Ministério da Saúde (art. 7º da Lei nº 6.360/76).

Nesta mesma linha, o art. 19-O, parágrafo único, da Lei nº 8.080/90 determina que os medicamentos ou produtos inseridos nos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas do SUS devem ser previamente avaliados quanto à sua segurança. Já o art. 19-Q da mesma lei impõe que a CONITEC (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) avalie antes da incorporação as evidências científicas sobre a segurança da tecnologia analisada. Busca-se com isso evitar que os tratamentos oferecidos pelo sistema público de saúde causem mal aos pacientes, ainda que não haja demonstração concreta de potencial prejuízo.

Tudo isso é jogado por terra quando se autoriza o registro tácito de medicamentos no Brasil nos casos em que a ANVISA não se manifesta conclusivamente no prazo de 365 dias, conforme estipulado pela RDC 416/2020. Produtos com potencialidade lesiva sabidamente alta poderiam ser distribuídos livremente aos pacientes em nome de uma pretensa “liberdade econômica”, sobrepondo a saúde financeira das empresas envolvidas à saúde dos cidadãos em geral.

Foi por essas razões, aliás, que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADPF’s 656 e 658 (Rel. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgados em 22/06/2020) reconheceu que a previsão de aprovação tácita de registro de agrotóxicos afronta, dentre outros princípios e normas constitucionais, o princípio da precaução. Sobre tal princípio, o Ministro relator fez algumas considerações em seu voto que são plenamente aplicáveis ao tema aqui tratado:

No entanto, o que se tem, a partir da portaria questionada do próprio MAPA, é justamente uma lógica inversa: em face de uma suposta demora na análise de registros de agrotóxicos, fertilizantes e diversos produtos químicos indiscutivelmente prejudiciais à saúde - de resto absolutamente normal e até recomendável - , esvaído o exíguo prazo para essa averiguação, considera-se tacitamente aprovada a sua liberação para utilização indiscriminada em solo brasileiro.
(...)
Fixadas acima essas premissas mínimas, forçoso é concluir que não se afigura aceitável que uma norma posterior - aliás de hierarquia normativa inferior – estabeleça a liberação tácita do registro de uma substância química ou agrotóxica sem examinar, com o devido rigor, os requisitos básicos de segurança para sua utilização por seres humanos, em patente afronta, ademais de todo o já exposto, ao que preconiza o art.196 da nossa Carta Magna.

Essa mesma lógica já havia levado o Supremo Tribunal Federal a suspender a exigibilidade da Lei nº 13.269/2016, que liberava a utilização da fosfoetalonamina (pílula do câncer) sem a prévia (e expressa, evidentemente) autorização da ANVISA, o que se deu na análise da medida cautelar na ADI 5.501/DF (Rel. MARCO AURÉLIO, Julgamento: 19/05/2016 – Publicação: 01/08/2017). Naquela ocasião, o Ministro relator consignou em seu voto que:

Ao suspender a exigibilidade de registro sanitário da fosfoetanolamina sintética, o ato atacado discrepa das balizas constitucionais concernentes ao dever estatal de reduzir o risco de doença e outros agravos à saúde dos cidadãos – artigo 196 da Constituição Federal.
(...)
Ao dever de fornecer medicamentos à população contrapõe-se a responsabilidade constitucional de zelar pela qualidade e segurança dos produtos em circulação no território nacional, ou seja, a atuação proibitiva do Poder Público, no sentido de impedir o acesso a determinadas substâncias. (...) Foi-se o tempo da busca desenfreada pela cura sem o correspondente cuidado com a segurança e eficácia das substâncias. O direito à saúde não será plenamente concretizado sem que o Estado cumpra a obrigação de assegurar a qualidade das drogas distribuídas aos indivíduos mediante rigoroso crivo científico, apto a afastar desenganos, charlatanismos e efeitos prejudiciais ao ser humano.
(...)
Na elaboração do ato impugnado, o Congresso Nacional, ao permitir a distribuição de remédio sem o controle prévio de viabilidade sanitária, não cumpriu com o dever constitucional de tutela da saúde da população.
(...)
No caso, a lei suprime, casuisticamente, a exigência do registro da fosfoetanolamina sintética como requisito para comercialização, evidenciando que o legislador deixou em segundo plano o dever constitucional de implementar políticas públicas voltadas à garantia da saúde da população. O fornecimento de medicamentos, embora essencial à concretização do Estado Social de Direito, não pode ser conduzido como atropelo dos requisitos mínimos de segurança para o consumo da população, sob pena de esvaziar-se, por via transversa, o próprio conteúdo do direito fundamental à saúde.

Por outro lado, o plenário do Supremo Tribunal Federal, na voz do Ministro Marco Aurélio, cujo voto conduziu o acórdão, entendeu que, em prestígio ao princípio da separação dos poderes, o legislador ordinário não pode subtrair da ANVISA a competência para analisar tecnicamente (e aqui se deve pressupor que seja uma análise efetiva, e não presumida que leve à aprovação tácita) a segurança dos produtos cuja regulação lhe cabe. Vejamos:

Vislumbro, na publicação do diploma combatido, ofensa ao postulado da separação de Poderes. A Constituição incumbiu o Estado, aí incluídos todos os respectivos Poderes, do dever de zelar pela saúde da população. No entanto, considerada a descentralização técnica necessária para a fiscalização de atividades sensíveis, foi criada, nos termos do artigo 37, inciso XIX, do Diploma Maior, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, à qual compete, enquanto autarquia vinculada ao Ministério da Saúde, autorizar a distribuição de substâncias químicas, segundo protocolos cientificamente validados.
O controle dos medicamentos fornecidos à população é efetuado, tendo em conta a imprescindibilidade de aparato técnico especializado, por agência reguladora supervisionada pelo Poder Executivo. A atividade fiscalizatória – artigo 174 da Constituição Federal – dá-se mediante atos administrativos concretos de liberação das substâncias, devidamente precedidos dos estudos técnicos – científicos e experimentais. Ao Congresso Nacional não cabe viabilizar, por ato abstrato e genérico, a distribuição de qualquer medicamento.

Enfim, mais do que a prerrogativa, o Estado tem a obrigação constitucional de efetivamente avaliar, em procedimento prévio, a segurança dos medicamentos que permite serem utilizados por seus cidadãos. Este dever é irrenunciável, seja para a proteção da vida e da saúde das pessoas, inclusive mediante a aplicação do princípio da precaução (arts. 5º, 6º e 196 da CF/88), seja pela obrigação de fiscalizar a atividade econômica em amparo aos direitos do consumidor (arts. 170, V e 174 da CF/88).

Por todas essas razões, não restam dúvidas a respeito da inconstitucionalidade do art. 3º, IX da Lei nº 13.874/2019, ao menos no que diz respeito aos atos relacionados ao registro e regulação dos medicamentos pela ANVISA. Consequentemente, o fundamento de validade da RDC 416/2020 da ANVISA deixa de existir, o que afasta qualquer possibilidade de registro tácito de fármacos no Brasil.

Nenhuma liberdade, inclusive a econômica, sobrepõe-se à vida.

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