Competência Judicial sobre Medicamentos e Procedimentos de Saúde: Resumo do Tema 1234

1. Competência:

1.1 Procedimentos, órteses, próteses, cirurgias e exames

1.2 Medicamentos

1.2.1 Incorporados com pactuação na Comissão Intergestores Tripartite (CIT)

  • Relacionados no Grupo 1A do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) → Justiça Federal (União no polo passivo);
  • Relacionados no Grupo 1B do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) → Justiça Estadual (Estado no polo passivo);
  • Relacionados no Grupo 2 do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) → Justiça Estadual (Estado no polo passivo);
  • Relacionados no Grupo 3 do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) → Justiça Estadual (Município no polo passivo);
  • Relacionados no Componente Básico da Assistência Farmacêutica (CBAF) → Justiça Estadual (Município no polo passivo);
  • Relacionados no Componente Estratégico da Assistência Farmacêutica (CESAF) → Justiça Federal (União no polo passivop. 67 do voto do relator;
  • Relacionados com Saúde Indígena → Justiça Federal (União no polo passivo).
1.2.2 Medicamentos não incorporados (não incluídos nas políticas públicas ou não incluídos para a situação específica, inclusive os com uso off label) ou incorporados sem pactuação na CIT

  • Valor da causa maior que 210 salários mínimos (ver item 4, valores superiores a R$ 296.500,00, em 2024) → Justiça Federal (União responsável por 100% do custeio);
  • Valor da causa entre 7 e 210 salários mínimos (valores entre R$ 9,884,00 e R$ 296.500,00, em 2024) → Justiça Estadual (sem a participação da União, Estado custeia e depois é ressarcido em 65% ou em 80% no caso de medicamentos oncológicos);
  • Valor da causa abaixo de 7 salários mínimos (valores inferiores a R$ 9.884,00, em 2024) → Justiça Estadual (Estado custeia totalmente). 
1.1.3 Não registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA)

  • Tema 500 STF – Justiça Federal (União no polo passivo).

2. Inclusão dos outros entes no processo

O Estado e/ou o Município poderão ser incluídos nos processos para facilitar o cumprimento em todos os casos, inclusive de medicamentos incorporados. Eles podem ser compelidos a pagar ou fornecer o medicamento, mas deverá haver a condenação da União a ressarcir o Estado ou o Município via Fundo Nacional de Saúde devendo constar EXPRESSAMENTE NA DECISÃO. Nesses casos não haverá condenação em custas e despesas ao Estado ou ao Município. Eventualmente, a obrigação do Estado pode ser transferida ao Município.

3. Ônus da parte autora

3.1.1 Medicamentos não incorporados:

  • Demonstrar segurança e eficácia com base na Medicina Baseada em Evidências e inexistência de substituto terapêutico;
  • Prova de que existem ensaios clínicos randomizados ou revisão sistemática com ou sem meta-análise que indiquem a segurança e a eficácia do medicamento não incorporado. 

4. Valor da Causa

  • Deve-se considerar o valor anual do tratamento, aferido com base no Preço Máximo de Venda do Governo (PMVG), situado na alíquota zero, do fármaco ou do princípio ativo, com menor valor divulgado pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED);
  • Havendo mais de um medicamento no pedido, necessário somar o valor dos medicamentos não incorporados;
  • Não havendo valor de tabela, deve-se oficiar à CMED para que ela indique um valor. Caso ela demore em indicar, usa-se o valor da proposta inicial da parte autora;
  • Se identificar que o valor da causa não irá ultrapassar 210 salários mínimos, deve-se excluir a União e declinar para a Justiça Estadual, salvo outra hipótese competência da Justiça Federal. 

5. Aquisição do Medicamento

Na aquisição do medicamento o valor do medicamento será limitado ao preço com desconto, proposto no processo de incorporação na Conitec ou ao valor já praticado pelo ente em compra pública, o que for menor. Nunca poderá haver pagamento judicial à parte em valor superior ao teto do PMVG, devendo-se contratar com o fabricante ou distribuidor.

6. Defensoria Pública

Excepcionalmente, até 19 de setembro de 2025, nos casos de declinação da Justiça Estadual para a Justiça Federal, e na hipótese de não atendimento pela Defensoria Pública da União (DPU) – seja pela ausência de atuação institucional na respectiva Subseção Judiciária, seja por ultrapassar o limite de renda para atendimento –, a Defensoria Pública Estadual (DPE), responsável pelo ajuizamento da demanda, permanecerá conduzindo o processo até que a DPU se organize administrativamente e passe a representar os interesses da parte autora. Obs: Esse ponto é objeto de Embargos de Declaração ainda pendentes de julgamento. 

7. Novidades na análise do processo pelo Juiz

Caso o medicamento já tenha sido analisado pela Conitec, o juiz deverá fazer o exame de legalidade do ato do órgão referido, mas sem entrar no mérito. Deverá fazer o exame de acordo com as questões procedimentais e ver a teoria dos motivos determinantes (se os motivos que fundamentaram a decisão são existentes e verdadeiros).

Cumpre a parte autora terá que apontar as causas pelas quais o ato deverá ser desconsiderado (ver item 3).

8. Quadro comparativo

Para facilitar a compreensão, segue quadro comparativo acerca da competência para processamento e julgamento dos processos considerando a publicação da decisão de julgamento do Tema 1234 em 19 de setembro de 2024:

CATEGORIA COMPETÊNCIA
(ações ajuizadas antes da publicação do Tema 1234)
COMPETÊNCIA
(ações ajuizadas após a publicação do Tema 1234)
CUSTEIO DA DECISÃO JUDICIAL
(ações anteriores ou posteriores ao Tema 1234)
Medicamentos
CEAF – 1A
Justiça Federal Justiça Federal União, com posterior ressarcimento caso outro Ente cumpra
Medicamentos
CEAF – 1B
Justiça Estadual Justiça Estadual Estado, com ressarcimento pela União no caso de ausência ou insuficiência de financiamento Portaria de Consolidação nº 2/2017
Medicamentos
CEAF – 2
Justiça Estadual Justiça Estadual Estado, com posterior ressarcimento caso o Município cumpra
Medicamentos
CEAF –
3
Justiça Estadual Justiça Estadual Município, com ressarcimento pela União em caso de ausência ou insuficiência de financiamento
Medicamentos
CESAF
Justiça Federal Justiça Federal União, com posterior ressarcimento, caso outro Ente cumpra
Medicamentos
CBAF
Justiça Estadual Justiça Estadual Municípiosalvo pactuação diversa na Comissão Intergestores Bipartite, com ressarcimento pela União em caso de ausência ou insuficiência de financiamento
Medicamentos
Saúde Indígena
Justiça Federal Justiça Federal UniãoPortaria GM/MS 4/2017
Não incorporados
(Valor da causa superior a 210 SM)
Mantém a competência
(Justiça Estadual ou Federal)
Justiça Federal União, com ressarcimento posterior caso o Estado cumpra
Não incorporados
(Valor da causa entre 7 e 210 SM)
Mantém a competência
(Justiça Estadual ou Federal)
Justiça Estadual Estado, mas a União deve ressarcir 65% nos medicamentos em geral e 80% nos oncológicos, independente do trânsito em julgado p. 69, voto do Relator
Não incorporados
(Valor da causa inferior a 7 SM)
Mantém a competência
(Justiça Estadual ou Federal)
Justiça Estadual Estado, com ressarcimento caso o município pague, ressalvada pactuação diferente na CIB
Medicamentos não registrados na ANVISA Tema 500
(Justiça Federal)
Tema 500
(Justiça Federal)
União, mas sem uma definição específica no Tema 1234
Demais pedidos
(órteses, próteses insumos e regulação)
Tema 793 Tema 793 Tema 793
Nota: A modulação dos efeitos da decisão do Tema 1234 foi exclusiva quanto à competência para o julgamento das ações dos medicamentos não incorporados, motivo pelo qual em relação aos demais critérios e determinações o julgado será aplicado a todos os processos, independente da data do ajuizamento da ação.

(atualizado em 24.09.2024).

Imagem de Suzanne D. Williams em Unsplash




Judicialização de medicamentos psiquiátricos no Brasil: a realidade nos estados do Paraná e Santa Catarina.

Mulher e saúde mental

1. Introdução:

Saúde mental é parte integrante do conceito de saúde e é considerada um direito básico para toda a população Mental health and human rights. Report of the United Nations High Commissioner for Human Rights. Um transtorno mental é caracterizado por perturbações na cognição e na regulação das emoções ou nos comportamentos, além de ser associado ao sofrimento e a incapacidades com impacto social, profissional e individualGalderisi S, Heinz A, Kastrup M, Beezhold J, Sartorius N. Toward a new definition of mental health. World Psychiatry. 2015 Jun;14(2):231–3. Geralmente, os transtornos mentais são doenças crônicas e atingem cerca de 15% da população mundial. No Brasil, estima-se que mais de 45 milhões de pessoas tenham diagnóstico de algum transtorno mentalGlobal Burden of Disease Collaborative Network. Global Burden of Disease Study 2019 (GBD 2019).. Além do sofrimento individual, esses transtornos geram impactos econômicos e sociais importantes, como maior afastamento de trabalho, mortalidade precoce e menores ganhos financeirosArias D, Saxena S, Verguet S. Quantifying the global burden of mental disorders and their economic value. eClinicalMedicine. 2022 Dec;54:101675.

Figura 1. Número absoluto de pessoas com transtorno mental no Brasil. ( Gráfico criado com Datawrapper)

Os transtornos mentais podem ser classificados e agrupados de acordo com a apresentação básica de sintomasAmerican Psychiatric Association, American Psychiatric Association, editors. Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-5. 5th ed. Washington, D.C: American Psychiatric Association; 2013. 947 p., por exemplo:

i) os transtornos ansiosos, que incluem o transtorno de pânico, o transtorno de ansiedade generalizada, fobias, entre outros;

ii) os transtornos de humor, nos quais se enquadram o transtorno depressivo maior e o transtorno bipolar;

iii) os transtornos psicóticos, em que a esquizofrenia é o principal diagnóstico; e

iv) os transtornos de uso de substâncias, quando há o uso problemático de drogas lícitas e ilícitas.

No Brasil, assim como em diversos outros países, os transtornos mentais com maior prevalência são os transtornos ansiosos, seguidos pelos transtornos de uso de substâncias e depressãoGlobal Burden of Disease Collaborative Network. Global Burden of Disease Study 2019 (GBD 2019).. O tratamento geralmente é feito por equipe multiprofissional, e diversas terapias são necessárias, inclusive a utilização de medicação.

Figura 2. Porcentagem de pessoas com transtornos mentais no Brasil. ( Gráfico criado com Datawrapper)

No Brasil, a assistência à saúde da população é oferecida de acordo com um modelo misto. Os serviços de saúde são prestados tanto pelo sistema público de saúde, conhecido como Sistema Único de Saúde (SUS), como pelo sistema de saúde privado (suplementar). Cerca de 75% da população brasileira depende do SUS como forma de acesso assistencial à saúde. A gestão do SUS é tripartite, o que significa dizer que a sua organização e suas obrigações são estabelecidas e divididas entre municípios, estados e Distrito Federal e a União. Dentre outras responsabilidades, cabe precipuamente ao governo federal elaborar diretrizes terapêuticas e orientações de diagnóstico e decidir as opções farmacológicas para as mais diversas doenças, incluindo os transtornos mentaisCastro MC, Massuda A, Almeida G, Menezes-Filho NA, Andrade MV, de Souza Noronha KVM, et al. Brazil’s unified health system: the first 30 years and prospects for the future. Lancet. 2019 Jul 27;394(10195):345–56 Souza Júnior PRBD, Szwarcwald CL, Damacena GN, Stopa SR, Vieira MLFP, Almeida WDSD, et al. Cobertura de plano de saúde no Brasil: análise dos dados da Pesquisa Nacional de Saúde 2013 e 2019. Ciênc saúde coletiva. 2021 Jun;26(suppl 1):2529–41.

De acordo com o art. 19-Q, da Lei nº  12.401/2011, que alterou a Lei nº 8.080/90, o Ministério da Saúde do Brasil define os medicamentos que devem ser disponibilizados aos usuários do SUS. Após a decisão de incorporação ao sistema, eles passam a integrar a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), uma lista que traz todas as substâncias que devem ser dispensadas gratuitamente no SUS. Essa lista contempla medicamentos de uso na rede básica (unidades de saúde e médicos de família) e na rede especializada em saúde (centros de especialidades e médicos especialistas). Quando se trata de medicamento utilizado na atenção especializada à saúde, o seu uso é regido pelos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDTs) do Ministério da Saúde do Brasil.

Em uma revisão recente, mostramos que existem hoje no SUS os PCDTs dos seguintes transtornos mentais: esquizofrenia, transtorno esquizoafetivo, transtorno bipolar, transtorno do espectro autista, tabagismo, deficiência intelectual e doença de Alzheimer. Posteriormente ao estudo, houve a publicação do PCDT para transtorno de déficit de atenção com hiperatividade. Não obstante, não existem protocolos especializados nacionais para tratamento das condições mais prevalentes, como os transtornos ansiosos, depressão e transtornos de uso de substâncias. 

Na ausência de medicamentos e de orientações oficiais sobre como tratar essas doenças, os estados e municípios podem definir se realizam uma ampliação da assistência farmacológica com a inclusão de determinada substância nas suas listas próprias de medicamentos (listas estaduais e municipais). Não raro, muitas situações clínicas ainda ficam sem tratamento adequado no SUS. Nesse caso, os usuários do sistema podem adquirir a medicação necessária com seus recursos. Quando eles não são suficientes, uma das formas para a sua obtenção tem sido o acionamento do Poder Judiciário. 

Na última década, ocorreu um aumento percentual importante dos processos judiciais no Brasil com temáticas de saúde. Estima-se que mais de 13% dos processos judiciais solicitam tratamentos (cirurgias, exames, internações, medicamentos etc.) Instituto de Ensino e Pesquisa INSPER. Judicialização da saúde no Brasil: Perfil das demandas, causas e propostas de solução – Relatório analítico propositivo Justiça Pesquisa. 2019. Há, porém, poucos estudos ou estatísticas demonstrando a frequência e as características dos medicamentos solicitados pela via judicial no Brasil. O objetivo deste artigo é demonstrar a porcentagem e a frequência dos diferentes grupos medicamentosos utilizados para tratamento psiquiátrico solicitados judicialmente contra os Estados de Santa Catarina e Paraná. 

2. Metodologia:

Foram solicitadas às Farmácias do Estado do Paraná e do Estado de Santa Catarina, as quantidades de medicações dispensadas por ordem judicial com pacientes ativos e a lista de frequências de medicações consideradas no tratamento de transtornos mentais nos respectivos estados. Eles foram separados em antidepressivos, estabilizadores de humor, antipsicóticos, estimulantes, indutores do sono, ansiolíticos e outros. Algumas das medicações utilizadas em transtornos mentais também são usadas em outras doenças, como valproato de sódio, lamotrigina, carbamazepina, gabapentina, pregabalina e duloxetina. Optamos por manter essas medicações em nossas análises.

3. Resultados:

Foram solicitados todos os medicamentos dispensados por ordens judiciais ativas na data de 27 de agosto 2022.

Ao todo, nessa data, existiam 20.985 solicitações de medicamentos pela via judicial para a Farmácia do Estado do Paraná, vinculada à Secretaria de Saúde do Estado do Paraná. Dessas, 3.176 (15%) eram de medicamentos utilizados em tratamentos psiquiátricos.

No Estado de Santa Catarina, havia 18.855 solicitações judiciais deferidas de medicamentos, e 4.923 (26%) delas eram de uso em tratamentos psiquiátricos. Considerando o total de medicações psiquiátricas fornecidas, os antidepressivos foram os mais deferidos (PR: 48%; SC: 46%). Em seguida, figuravam os antipsicóticos (PR: 24%; SC: 18%), os estabilizadores de humor (PR: 7%; SC: 15%) e os estimulantes ( PR: 12%; SC: 7%).

Em ambos os Estados, a maioria das decisões favoráveis ao usuário do SUS era para a disponibilização de drogas do grupo dos antidepressivos. Dentre os antidepressivos, a droga mais deferida judicialmente era a venlafaxina em ambos os estados. Individualmente, no Estado do Paraná, a droga mais fornecida judicialmente era o estimulante metilfenidato. Já em Santa Catarina era a venlafaxina. 

Grupo de medicamentos psiquiátricos deferidos judicialmente nos Estados do Paraná e Santa Catarina: 

Paraná  Santa Catarina
Antidepressivos 1513 (44,16%) 2285 (39,86%)
Antipsicóticos 822 (23,99%) 1013 (17,67%)
Ansiolítico e Benzodiazepínicos 161 (4,70%) 384 (6,70%)
Canabidiol 24 (0,70%) 88 (1,54%)
Estabilizador de humor 250 (7,30%) 843 (14,71%)
Estimulantes 420 (12,26%) 395 (6,89%)
Hipnóticos 76 (2,22%) 157 (2,74%)
Medicamento para Demências 53 (1,55%) 108 (1,88%)
Outros* 107 (3,12%) 459 (8,01%)
Total  3426  (100%) 5732 (100%)
*Outros: pregabalina, biperideno e naltrexona 

4. Discussão:

Nosso estudo mostra que, de todas as solicitações por via judicial, no Estado do Paraná, 15% de solicitações de medicação estão relacionadas a diagnóstico psiquiátrico  e, no Estado de Santa Catarina, 26%. 

Os antidepressivos proporcionalmente são as drogas mais deferidas judicialmente e apresentam-se como cerca da metade das solicitações. Essas drogas são utilizadas para o tratamento de quadros de depressão e ansiedade, justamente transtornos mentais de maior prevalência na população.

O segundo grupo medicamentoso mais frequentemente concedido por via judicial foram os antipsicóticos. Dentre as medicações desse grupo, no Paraná, a mais deferida foi o aripiprazol, enquanto em Santa Catarina foi a quetiapina. O aripiprazol não está presente na RENAME, o que explica as solicitações judiciais. Já a quetiapina, por outro lado, está listada na RENAME, com PCDT com previsão de dispensação para diagnósticos de transtorno bipolar, transtorno esquizoafetivo e esquizofrenia, se solicitado via componente especializado da assistência farmacêutica. A quetiapina, porém, é uma medicação que pode ser utilizada para outros transtornos, além desses aprovados, como o transtorno depressivo. Todavia, de acordo com as regras da RENAME, a medicação pode ser dispensada apenas nos diagnósticos aprovados pelos PCDTs. Uma hipótese é que a quetiapina esteja sendo solicitada para fins diversos dos previstos nos PCDTs Maan JS, Ershadi M, Khan I, Saadabadi A. Quetiapine. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022.

Existem duas situações relacionadas aos diagnósticos psiquiátricos e ao uso e à dispensação medicamentosa no SUS. A primeira situação ocorre quando um determinado transtorno mental não foi contemplado com protocolo clínico e diretrizes terapêuticas elaborado pelo Ministério da Saúde. Nesse caso, os fármacos disponíveis no SUS para o seu tratamento estarão alocados no componente básico da assistência farmacêutica. A outra se dá quando o transtorno possui protocolo clínico e diretrizes terapêuticas. Com isso, os medicamentos mencionados no PCDT para o manejo da doença integrarão o componente especializado da assistência farmacêuticaRelação Nacional de Medicamentos Essenciais – RENAME. Ministério da Saúde – Brasil; 2022.

Na primeira situação, de transtornos mentais sem PCDTs, estão os diagnósticos de transtornos depressivos e transtornos ansiosos. As drogas disponíveis para o tratamento dessas condições são aquelas listadas no componente básico da RENAME do Ministério da Saúde.

Estão disponibilizados quatro medicamentos: um inibidor seletivo de recaptação de serotonina, a fluoxetina, e três antidepressivos tricíclicos, menos utilizados atualmente pelos efeitos colaterais:  amitriptilina, clomipramina e nortriptilinaRelação Nacional de Medicamentos Essenciais – RENAME. Ministério da Saúde – Brasil; 2022. Mesmo sendo as duas condições mais prevalentes, presente em cerca de 10% da população, não há diretrizes terapêuticas produzidas pelo Ministério da Saúde do Brasil para eles. Essa pode ser a principal explicação para o fato de que quase metade das solicitações judiciais são desse grupo medicamentoso. 

Transtornos mentais que apresentam PCDTs têm medicamentos aprovados e listados na RENAME no componente especializado. Para a prescrição do medicamento, há, em tese, a necessidade da avaliação de um especialista. Como já salientado, existem hoje PCDTs para os seguintes diagnósticos: esquizofrenia, transtorno esquizoafetivo, transtorno bipolar, transtorno do espectro autista, tabagismo, deficiência intelectual, doença de Alzheimer e transtorno de déficit de atenção com hiperatividade. 

Ocorre que, mesmo quando existe um PCDT, nem todas as medicações registradas no país para uma respectiva doença são incluídas nele. Há medicamentos que não passam pela análise do órgão responsável pela avaliação de tecnologias em saúde no SUS (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde-Conitec) e há aqueles cuja incorporação não é recomendada pela comissão. Assim, drogas não contempladas nos PCDTs podem ser objeto de processo judicial. Um outro fator que provoca a judicialização de medicamentos para doenças com PCDTs é a ausência de atualização dessas orientações. O de esquizofrenia, por exemplo, foi publicado há 10 anos, sem uma nova atualização até o momento

Quando observado em número absoluto, no estado do Paraná, a medicação mais deferida foi o metilfenidato, que foi aprovado e indicado para o tratamento do transtorno de hiperatividade e déficit de atenção. O metilfenidato e a lisdexanfetamina fazem parte do grupo de medicamentos denominados de estimulantes. Essas medicações passaram por uma recente revisão da Conitec, que considerou que o custo dessas medicações eram altos e as evidências eram de baixa qualidade para a recomendação de sua incorporação no SUS.

A existência de diferenças entre as frequências de solicitações de medicações psiquiátricas nos estados do Paraná e de Santa Catarina pode ser reflexo das diferenças regionais tanto na distribuição de medicamentos por municípios, como na própria judicialização da saúde em cada ente federativo, com perfis diferentes de solicitações ao poder judiciário, por mais que ambos os estados tenham semelhanças no perfil socioeconômico Instituto de Ensino e Pesquisa INSPER. Judicialização da saúde no Brasil: Perfil das demandas, causas e propostas de solução – Relatório analítico propositivo Justiça Pesquisa. 2019 Sistema de contas regionais : Brasil 2020 / IBGE, Coordenação de Contas Nacionais. Rio de Janeiro: IBGE; 2022.

A promoção de acesso a medicamentos e novas terapias passa por uma decisão técnica, política e econômica e representa uma tarefa complexa dada a evolução na ciência médica e assistência à saúde. O equilíbrio entre a garantia de direitos fundamentais individuais dos cidadãos e a garantia de um Estado eficiente com distribuição de recursos escassos e que garanta universalidade e equidade da política pública em saúde para a população são desafios para o poder judiciárioVieira FS. Judicialização e direito à saúde no Brasil: uma trajetória de encontros e desencontros. Rev saúde pública. 2023 Feb 17;57(1):1..  

Nosso trabalho tem algumas limitações. Ele foi realizado com dados fornecidos pelas Secretarias de Estado da Saúde dos dois estados, Paraná e Santa Catarina. Portanto, não foram consideradas as demandas que tiveram ordem judicial dirigida à União ou aos municípios desses estados. Ainda, ambos os estados pertencem à região sul do Brasil, o que impossibilita a extensão de seus resultados para outras regiões do Brasil. Por ser um corte transversal, não avalia de forma longitudinal como se deu a solicitação das medicações psiquiátricas nesses estados.

Com base nos dados apresentados, podemos concluir que a judicialização para acesso a medicamentos para transtornos mentais é uma realidade. Os números mostram que um número significativo de medicamentos dispensados por ordem judicial são destinados a transtornos mentais, especialmente antidepressivos e antipsicóticos. É importante ressaltar que a RENAME, tanto no seu conteúdo básico como especializado, nem sempre é suficiente para atender às necessidades de tratamento medicamentoso em saúde mental, o que pode levar à busca por alternativas através da via judicial. Esses dados são um indicativo da importância de avaliar e implementar políticas públicas que possam ampliar o acesso a medicamentos e outras terapias em saúde mental, reduzindo assim a necessidade de recorrer à judicialização para obter tratamento.

Imagem criada no Ideogrram.ai




Coparticipação da parte autora no custeio de tratamentos de saúde fornecidos judicialmente pelo SUS

Coparticipação no SUS

Uma releitura da hipossuficiência financeira

1. Propósito da reflexão

Este artigo propõe uma reflexão acerca da possibilidade de que o indivíduo que pretende receber judicialmente do SUS um tratamento não incluído nas políticas públicas participe, ainda que parcialmente e segundo suas condições econômicas, do seu custeio.

2. O Dogma da gratuidade no SUS

De antemão, é preciso deixar claro que não se pretende afastar o acesso universal e igualitário às ações e serviços públicos do SUS, até porque ele está previsto de forma expressa no art. 196 da Constituição. Muito embora seja largamente difundida a ideia de que os tratamentos disponíveis no Sistema Único de Saúde devam ser necessariamente gratuitos, essa exigência não se faz presente de forma clara no texto constitucional. Ela pode ser tida como uma decorrência da universalidade e da igualdade de acesso ao sistema público.

Por outro lado, não parece evidentemente equivocada uma leitura da Constituição que permita interpretá-la no sentido de que a universalidade estaria resguardada na medida em que ninguém fosse impedido de ter acesso ao SUS. Assim, quem não tem condições de pagar pelo tratamento, deve recebê-lo gratuitamente, mas o pagamento, ainda que parcial, poderia ser exigido daqueles que possuem capacidade financeira para tanto.

Essa lógica prestigiaria também o princípio da igualdade por tratar de maneira distinta situações fáticas diferentes. Em abono a esse entendimento, pode-se socorrer do art. 145, II, da Constituição, que autoriza os entes federativos a instituírem taxas pela utilização de serviços públicos específicos e divisíveis prestados aos contribuintes, bem como do art. 175, parágrafo único, III, também da Constituição, que atribui à lei ordinária dispor sobre a política tarifária relacionada à prestação de serviços públicos.

Nessa perspectiva, a gratuidade do SUS seria apenas uma opção legislativa, mas não uma imposição constitucional. Essa opção, de qualquer forma, foi feita pelo legislador ordinário, haja vista o teor do art. 43 da Lei nº 8.080/90:

Art. 43. A gratuidade das ações e serviços de saúde fica preservada nos serviços públicos contratados, ressalvando-se as cláusulas dos contratos ou convênios estabelecidos com as entidades privadas.

Por outro lado, nada impediria, a prevalecer a conclusão de que a Constituição não exige a gratuidade dos serviços do SUS em toda e qualquer situação, que alguma forma de cobrança viesse a ser prevista em lei, mas respeitando os princípios da universalidade e igualdade de acesso, de forma que nenhum indivíduo seja privado dos tratamentos oferecidos no sistema público de saúde por não ter condições financeiras de custeá-los.

A respeito dessa interessante discussão, vale uma leitura das seguintes lições de ALCENI GUERRA, BÁRBARA MENDONÇA BERTOTTI e SÍLVIO GUIDIComentários à Lei Orgânica da Saúde – LOS, Quartier Latin, p. 381/385:

Há vozes na doutrina que entendem a gratuidade como princípio do SUS. Consequência disso seria a impossibilidade de o legislador alterar o conteúdo do artigo 43 da LOS, de modo a tornar possível a cobrança por ações e serviços executados no âmbito do SUS. Essa é a posição de Suelli Gandolfi Dallari e Vidal Serrano. Esses professores entendem que a gratuidade no SUS é princípio, que aparece de forma implícita no ordenamento jurídico. Entendem que o princípio da gratuidade deriva da lógica da arrecadação de tributos que viabilizam as ações e serviços de saúde. Argumentam, ainda, a existência de tributos vinculados à saúde, como as taxas derivadas da fiscalização sanitária, por exemplo.
(...)
A posição nesse trabalho é diferente, compreendendo que a gratuidade é mera opção do legislador, que atualmente comporta uma série de exceções. Ou seja, a gratuidade dos serviços públicos de saúde não deriva de princípio, mas sim de regra.
(...)
Partindo dessa premissa (gratuidade como regra), ela pode ser alterada pela técnica legislativa adequada, podendo haver situações nas quais seja legítima a cobrança por certas atividades executadas no âmbito do SUS.
Se é certo que nem todas as atividades administrativas são financiadas por meio de arrecadação que exigem a lógica de prestação/contraprestação, a espécie de atividade serviço público parte da premissa da possibilidade de cobrança de taxa ou tarifa. E a política tarifária é base constitucional (art. 175) do regime jurídico da prestação de qualquer serviço público. Ocorre que, por uma opção do legislador infraconstitucional, decidiu-se que a política, nas hipóteses de prestação de serviços de saúde, seria a de subsídio integral.
(...)
Assim, a gratuidade não é, portanto, princípio, pois não “dispõe sobre os conteúdos intelectivos, racionalizados juridicamente e que representam os valores superiores adotados pela sociedade” brasileira. A gratuidade é mera opção do legislador infraconstitucional, que, como regra geral, preferiu impedir que os serviços públicos de saúde tenham uma política de financiamento ligada, total ou parcialmente, à cobrança de taxa ou tarifa.
(...)
Evidentemente que, alterada a predileção legislativa e abrindo-se com maior amplitude a possibilidade de cobrança pelo uso do serviço público de saúde, o administrador público deverá organizar o serviço de tal forma a viabilizar o acesso àqueles que não detiverem condições de arcar com os custos da atenção à sua saúde, impedindo que a existência de tarifa ou taxa seja um impedimento ao dever estatal e ao direito do cidadão de viver dignamente.

É preciso extrema cautela, de qualquer forma, na eventual adoção do entendimento de que é possível a cobrança por ações e serviços de saúde do SUS a quem tenha condições de pagar por eles. Acontece que o SUS foi concebido como um sistema universal e igualitário de saúde para toda a população, sem distinção de renda, classe social ou profissional, raça, idade ou qualquer outra. Antes do seu advento, a iniciativa privada e os parcos serviços públicos então existentes definitivamente não atendiam a esse propósito, o que fazia com que somente as classes mais privilegiadas tivessem acesso efetivo a serviços de qualidade.

Neste cenário, a hipotética permissão de cobrança pelas ações e serviços de saúde do SUS não poderia, em hipótese alguma, resultar em redução do já insuficiente orçamento da saúde, tampouco em um avanço da iniciativa privada sobre o sistema público que tirasse o seu controle das mãos do Estado, seja em termos financeiros, gerenciais, executivos ou de formulação de política pública, porque essa foi uma das maiores conquistas da sociedade brasileira com a Constituição de 1988.

Além do mais, seria razoável a destinação obrigatória ao orçamento do SUS de todos os pagamentos que viessem a ser feitos em razão de serviços por ele prestados. Assim, a cobrança funcionaria como um mecanismo de equidade no financiamento da saúde pública, com indivíduos que possuem condições econômicas de pagar pelos atendimentos recebidos, auxiliando no custeio dos atendimentos daqueles que não as possuem.

Tudo isso está sendo dito apenas para demonstrar que a participação do cidadão no custeio de um tratamento de saúde oferecido pelo SUS, quando há efetivas condições econômicas para tanto, não é algo inimaginável em relação àquilo que está disponível nas políticas públicas de saúde.

3. Uma noção ampliada e mais profunda da hipossuficiência econômica e o dever de coparticipação no custeio de tratamentos não padronizados requeridos judicialmente

O foco deste artigo, entretanto, diz respeito aos tratamentos demandados judicialmente, mas não padronizados no SUS. Em relação a eles, há fundamentos consistentes que permitem atribuir às autoras e autores das ações uma participação no custeio da prestação pretendida quando tenham condições financeiras para tanto. Não há, aqui, nenhuma afronta ao princípio da igualdade ou da universalidade do SUS porque as ações e serviços públicos de saúde já incorporados ao sistema público continuam disponíveis de forma gratuita a todos que deles necessitarem.

Agora, se o tratamento que se busca não é oferecido aos demais cidadãos, é razoável que o postulante, no mínimo, não tenha recursos para obtê-lo por conta própria, já que pretende algo além do que todos os outros recebem. Essa exigência tem sido aceita sem maiores divergências na jurisprudência. Ela consta expressamente na tese do Tema 106 dos recursos repetitivos do STJ (REsp 1.657.156), segundo a qual:

A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos:
i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;
ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito;
iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência.

Já no tema 6 de repercussão geral do STF (RE 566.471), que trata do dever do Estado de fornecer medicamentos de alto custo, ainda que a respectiva tese não tenha sido até o momento definida, ao menos seis ministros (Marco Aurélio, Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Rosa Webber e Ricardo Lewandowski) já consignaram em seus respectivos votos que a hipossuficiência econômica do demandante é um requisito a ser observado para tanto.

O que se defende neste momento é que não se deve ater a uma lógica estritamente dualista em relação à hipossuficiência econômica, de maneira a considerar que ou o autor da ação não tem condições financeiras de pagar por todo o tratamento – e assim pode recebê-lo do Estado -, ou tem condições de custeá-lo totalmente, caso em que não terá direito de recebê-lo do SUS.

Sem dúvida, haverá situações em que a autora ou o autor da demanda terá condição de pagar ao menos parte do tratamento vindicado, mas não a sua totalidade. A hipossuficiência, nessas hipóteses, é apenas parcial. Neste caso, se a capacidade econômica permite uma colaboração com o Estado no pagamento do tratamento que não é oferecido aos demais indivíduos, assim deve ser feito.

Essa possibilidade de análise mais ampla da hipossuficiência financeira, que em determinadas situações pode ser apenas parcial e por isso merece tratamento diferenciado, foi adotada pelo Código de Processo Civil na normatização da assistência judiciária gratuita. De fato, seu artigo 98, §§5º e 6º, dispõe o seguinte:

Art. 98. A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei.
(...)
§ 5º A gratuidade poderá ser concedida em relação a algum ou a todos os atos processuais, ou consistir na redução percentual de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento.
§ 6º Conforme o caso, o juiz poderá conceder direito ao parcelamento de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento.

Atentou-se o legislador às situações em que a parte requerente da assistência judiciária gratuita não tem condições econômicas para arcar com a integralidade das custas e despesas processuais, mas tem para pagar ao menos parte delas. Não há razões para que essa distinção não seja feita também em relação à hipossuficiência econômica exigida como condição para o fornecimento judicial de tratamentos não incluídos nas políticas públicas do SUS.

Pelo contrário, o tratamento diferenciado dispensado às pessoas que possuem condições de arcar com ao menos parte das despesas de um medicamento ou procedimento médico postulado em Juízo é medida que concretiza os princípios da equidade e da isonomia.

A equidade impõe que os recursos públicos sejam destinados prioritariamente àqueles que dependem exclusivamente do Estado para os cuidados com a sua saúde e não ao pagamento de despesas com tratamentos não disponíveis aos cidadãos em geral e em favor de pessoas que podem arcar, ainda que parcialmente, com os seus custos.

Já a isonomia exige tratamento diferenciado a situações distintas. Por isso, referido princípio é afrontado quando um indivíduo que possui condições financeiras de arcar com parcela dos custos de um tratamento não incorporado ao SUS recebe tratamento idêntico àquele que não possui condição alguma. Da mesma maneira, é anti-isonômica a conduta de tratar aquele primeiro indivíduo da mesma maneira que um outro que tem condições de pagar a totalidade das despesas do medicamento ou prestação de saúde requerida em Juízo e não incorporada ao SUS.

A única solução, portanto, que atende à equidade e à isonomia nas ações judiciais que buscam a concessão de tratamento médico não incorporado ao SUS, desde que preenchidos os demais requisitos impostos pela jurisprudência, é:

a) reconhecer o direito ao recebimento do tratamento independentemente de qualquer coparticipação financeira àqueles que não têm condições para tanto;

b) não reconhecer o direito ao recebimento do tratamento àqueles que possuem condições financeiras para arcar com os seus custos; e

c) reconhecer o direito ao recebimento do tratamento, mas mediante a devida coparticipação no custeio, àqueles que possuem condições de pagar parte das despesas, mas não a sua integralidade.

A repartição do custeio do tratamento, em determinadas hipóteses, entre o Estado e o beneficiário da tutela jurisdicional reduz o impacto orçamentário direto da judicialização da saúde. Além disso, provavelmente acarretará análises mais criteriosas dos demandantes na propositura das ações judiciais.

O ser humano intuitivamente tem um maior zelo por aquilo que adquire ou recebe com algum custo próprio quando comparado ao que é “de graça”. Por outro lado, sopesa com parâmetros mais restritos a real necessidade de um bem da vinda cuja aquisição demanda algum ônus seu.

4. Propostas de critérios para a aferição dos graus de hipossuficiência

O ponto mais sensível para essa análise ampliada da hipossuficiência econômica aqui proposta é delimitar critérios de alguma forma objetivos para diferenciar as situações em que o indivíduo não tem condições alguma de participar do custeio do tratamento médico reivindicado em juízo daquelas em que há condições de custeio total ou, mais difícil ainda, de custeio ao menos parcial e, neste caso, em que proporção.

A definição de parâmetros seguros, objetivos e justos para a distinção das diversas situações demanda reflexão mais aprofundada e estará sujeita, inevitavelmente, a críticas. Por isso, não se pretende neste momento propor uma solução definitiva ou mesmo reputada como a mais correta. Se a compreensão alargada da hipossuficiência econômica aqui defendida for aceita, certamente surgirão propostas interessantes de fixação de critérios para a definição de incapacidade financeira total, parcial ou capacidade financeira plena para custeio dos tratamentos. O importante neste momento é lançar uma ideia para discussão.

Ainda assim, com o propósito de alimentar o debate, duas sugestões para a fixação de critérios de hipossuficiência econômica nas ações de medicamentos podem ser feitas.

A primeira se dá por analogia ao entendimento jurisprudencial acerca dos critérios para concessão de assistência judiciária gratuita nos processos judiciais e para a penhora de parcela dos salários dos devedores em execuções judiciais.

A regra da impenhorabilidade de salários e vencimentos incide apenas quanto à fração do patrimônio pecuniário do devedor que se revele efetivamente necessária à manutenção de seu mínimo existencial, bem como à preservação de sua dignidade e da de seus dependentes, conforme entendimento firmado pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça no EREsp nº 1.582.475:

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. IMPENHORABILIDADE DE VENCIMENTOS. CPC/73, ART. 649, IV. DÍVIDA NÃO ALIMENTAR. CPC/73, ART. 649, PARÁGRAFO 2º. EXCEÇÃO IMPLÍCITA À REGRA DE IMPENHORABILIDADE. PENHORABILIDADE DE PERCENTUAL DOS VENCIMENTOS. BOA-FÉ. MÍNIMO EXISTENCIAL. DIGNIDADE DO DEVEDOR E DE SUA FAMÍLIA.
1. Hipótese em que se questiona se a regra geral de impenhorabilidade dos vencimentos do devedor está sujeita apenas à exceção explícita prevista no parágrafo 2º do art. 649, IV, do CPC/73 ou se, para além desta exceção explícita, é possível a formulação de exceção não prevista expressamente em lei.
2. Caso em que o executado aufere renda mensal no valor de R$ 33.153,04, havendo sido deferida a penhora de 30% da quantia.
3. A interpretação dos preceitos legais deve ser feita a partir da Constituição da República, que veda a supressão injustificada de qualquer direito fundamental. A impenhorabilidade de salários, vencimentos, proventos etc. tem por fundamento a proteção à dignidade do devedor, com a manutenção do mínimo existencial e de um padrão de vida digno em favor de si e de seus dependentes. Por outro lado, o credor tem direito ao recebimento de tutela jurisdicional capaz de dar efetividade, na medida do possível e do proporcional, a seus direitos materiais.
4. O processo civil em geral, nele incluída a execução civil, é orientado pela boa-fé que deve reger o comportamento dos sujeitos processuais. Embora o executado tenha o direito de não sofrer atos executivos que importem violação à sua dignidade e à de sua família, não lhe é dado abusar dessa diretriz com o fim de impedir injustificadamente a efetivação do direito material do exequente.
5. Só se revela necessária, adequada, proporcional e justificada a impenhorabilidade daquela parte do patrimônio do devedor que seja efetivamente necessária à manutenção de sua dignidade e da de seus dependentes.
6. A regra geral da impenhorabilidade de salários, vencimentos, proventos etc. (art. 649, IV, do CPC/73; art. 833, IV, do CPC/2015), pode ser excepcionada quando for preservado percentual de tais verbas capaz de dar guarida à dignidade do devedor e de sua família.
7. Recurso não provido. 
(STJ, Corte Especial, Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 1.582.475/MG, rel. Min. Benedito Gonçalves, data da decisão: 03/10/2018, DJe 16/10/2018)

Se é possível destinar parte do salário da pessoa para o pagamento de dívidas cobradas em juízo – e isso já considerando todas as despesas já existentes para a própria manutenção -, certamente também o será para o custeio de sua própria saúde. Restaria definir, então, em que situação a destinação de parte da remuneração mensal não comprometeria a subsistência do devedor/paciente.

No julgamento do IRDR nº 25 (Processo Representativo: 50300419520194047000/PR), que teve como objeto os critérios para a concessão de Assistência Judiciária Gratuita nos processos judiciais, o TRF/4ªR firmou a seguinte tese:

"A gratuidade da justiça deve ser concedida aos requerentes pessoas físicas cujos rendimentos mensais não ultrapassem o valor do maior benefício do regime geral de previdência social, sendo prescindível, nessa hipótese, qualquer comprovação adicional de insuficiência de recursos para bancar as despesas do processo, salvo se aos autos aportarem elementos que coloquem em dúvida a alegação de necessidade em face, por exemplo, de nível de vida aparentemente superior, patrimônio elevado ou condição familiar facilitada pela concorrência de rendas de terceiros. Acima desse patamar de rendimentos, a insuficiência não se presume, a concessão deve ser excepcional e dependerá, necessariamente, de prova, justificando-se apenas em face de circunstâncias muito pontuais relacionadas a especiais impedimentos financeiros permanentes do requerente, que não indiquem incapacidade eletiva para as despesas processuais, devendo o magistrado dar preferência, ainda assim, ao parcelamento ou à concessão parcial apenas para determinado ato ou mediante redução percentual."

Considerou o tribunal, então, que os rendimentos que atingem até o valor teto dos benefícios do Regime Geral da Previdência Social são presumidamente indispensáveis para o sustento dos requerentes da AJG e de suas famílias, de forma que não podem ser comprometidos com o pagamento de custas e demais despesas processuais. Quando os rendimentos superam aquele patamar, deverão os requerentes comprovar que, ainda assim, são necessários para a sua sobrevivência digna e por isso autorizariam a obtenção do benefício econômico processual.

Por questão de coerência, este mesmo raciocínio poderia ser utilizado na análise da hipossuficiência econômica nas ações de medicamentos. Poderia se presumido, então, que o paciente que aufere rendimentos mensais em valores que não superam o teto dos benefícios previdenciários pagos pelo INSS deles necessitam para a digna manutenção de sua sobrevivência e de sua família, não havendo possibilidade de coparticipação no custeio dos tratamentos vindicados.

Por outro lado, quando os rendimentos superam tal patamar, a presunção seria a de que há possibilidade de repartição dos custos sem que a parte interessada tenha comprometida a sua própria manutenção e a de seus familiares. Neste caso, a parcela de participação da parte autora da ação judicial poderia corresponder a 20% ou 30% de sua remuneração mensal total, que são os patamares normalmente fixados pela jurisprudência para a penhora nos processos de execução. O valor remanescente do tratamento seria arcado pelo Estado.

É preciso ressalvar, entretanto, que, tratando-se de presunções, elas poderiam ser afastadas em cada caso concreto pelas partes interessadas. Sendo assim, seria facultado ao autor da ação comprovar que, mesmo auferindo rendimentos superiores ao teto dos benefícios do Regime Geral da Previdência Social, suas particulares condições impediriam que parcela de sua renda fosse comprometida com o custeio do tratamento. Por outro lado, poderiam os réus comprovar que, ainda que o autor receba rendimentos inferiores ao teto do INSS, seu padrão de vida é compatível com a destinação de parcela de seus rendimentos para o pagamento do medicamento ou procedimento médico.

A segunda sugestão de fixação de critérios objetivos para a coparticipação dos autores e autoras das ações de saúde no custeio dos tratamentos é a correlação com as faixas de rendimentos para a fixação das alíquotas de pagamento do imposto de renda das pessoas físicas.

Desta forma, neste ano de 2023:

a) estariam dispensados de qualquer coparticipação as pessoas com rendimentos mensais de até R$ 1.903,98 (faixa 1 do IR – isenção);

b) aqueles que ganham entre R$ 1.903,99 e R$ 2.826,65 deveriam participar do custeio até o limite de 7,5% de seus rendimentos mensais (faixa 2 do IR – alíquota de 7,5%);

c) os que ganham entre R$ 2.826,65 e 3.751,05 participariam até o limite de 15% de seus rendimentos (faixa 3 do IR – alíquota de 15%);

d) se os ganhos mensais forem entre R$ 3.751,06 e R$ 4.664,68, a participação seria de até 22,5% dos rendimentos (faixa 4 do IR – alíquota de 22,5%);

e) por fim, quando os rendimentos mensais fossem acima de R$ 4.664,68, a coparticipação seria até o limite de 27,5% (faixa 5 do IR – alíquota de 27,5%).

Caso o custo do tratamento seja inferior ao limite da coparticipação do autor da ação, então ele deveria arcar sozinho com as despesas, ou seja, sua pretensão não poderia ser acolhida pelo Poder Judiciário.

Como dito anteriormente, ambas as propostas certamente podem ser objeto de críticas e por isso substituídas por outras, desde que sejam razoavelmente objetivas e com aplicação prática viável. Mesmo assim, há ao menos ideias iniciais que podem ser utilizadas para que a judicialização da saúde, aplicando um conceito mais amplo de hipossuficiência financeira, seja mais equânime, isonômica e menos prejudicial ao erário.

Não é fácil buscar alguma inovação jurídica em matéria que desperta tantos questionamentos e controvérsias. Essa é, entretanto, a razão para se tentar algo de novo. Como disse Platão, “o começo é a metade do todo”.

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Responsabilidade Solidária Consentida na Judicialização da Saúde – A Rede SUS dentro dos Processos

Solidarity

Por que deixar para o outro decidir, quando se pode fazer por conta própria?

Os litígios presentes na judicialização da saúde envolvendo o SUS são multipolares. Não há apenas uma lide entre o autor e o réu, como normalmente ocorre nos processos em geral.

Via de regra, o polo passivo nas ações em que se busca o recebimento de tratamento médico do SUS é composto por dois ou três entes federativos distintos. É bastante comum, com isso, que surjam no curso dos processos litígios específicos entre os próprios réus no que diz respeito à responsabilidade pelo fornecimento e pelo custeio do tratamento. Em suma, nenhum deles reconhece a responsabilidade pela entrega ou pelo financiamento do medicamento, do produto médico ou do procedimento concedidos judicialmente.

Esse cenário faz-se presente sobretudo nos processos em que se pretende o recebimento de tecnologia em saúde não incorporada ao sistema público.

A diferença entre uma lide multipolar nas ações de saúde e uma lide tradicional pode ser assim representada:

Multi

Com isso, há que se resolver não apenas se um tratamento deve ou não ser oferecido ao paciente demandante, mas também quem é o responsável pelo seu oferecimento. Aliás, a segunda discussão tem ganhado cada vez mais atenção dos tribunais, tornando-se tão ou até mesmo mais debatida do que a primeira. Basta verificar, por exemplo, que ela já é objeto de três temas afetados pelas cortes superiores como precedentes qualificados que já foram ou estão sendo decididos.

O Supremo Tribunal Federal abordou a responsabilidade dos entes federativos nas ações de saúde no Tema 793 de Repercussão Geral, quando firmou a seguinte tese:

Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.

Como a controvérsia jurisprudencial não cessou mesmo após o seu advento e sobretudo em relação aos tratamentos não incorporados ao SUS, o STF afetou um novo tema relacionado à mesma questão, que é o de número 1.234, no qual a corte apreciará a “Legitimidade passiva da União e competência da Justiça Federal, nas demandas que versem sobre fornecimento de medicamentos registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, mas não padronizados no Sistema Único de Saúde – SUS”.

Paralelamente a isso, o Superior Tribunal de Justiça também decidirá, em precedente qualificado, questão relacionada à responsabilidade dos entes federativos nas ações de saúde. No Incidente de Assunção de Competência 14, a corte afetou a seguinte matéria a julgamento:

Tratando-se de medicamento não incluído nas políticas públicas, mas devidamente registrado na ANVISA, analisar se compete ao autor a faculdade de eleger contra quem pretende demandar, em face da responsabilidade solidária dos entes federados na prestação de saúde, e, em consequência, examinar se é indevida a inclusão da União no polo passivo da demanda, seja por ato de ofício, seja por intimação da parte para emendar a inicial, sem prévia consulta à Justiça Federal.

Esse cenário demonstra como as controvérsias relacionadas à divisão de responsabilidades entre os entes federativos nas ações de saúde vêm ocupando espaço nos tribunais.

A jurisprudência, que em um primeiro momento parecia estar sendo aperfeiçoada e sedimentada no trato da questão, posteriormente deu demonstrações claras de persistência da controvérsia, especialmente em razão da divergência de entendimentos entre o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça quanto à responsabilidade solidária simples entre os entes federativos e o litisconsórcio necessário da União nas demandas por tratamentos não padronizados.

Enquanto o STF, após o julgamento do Tema 793 e por ambas as suas turmas, vem reiteradamente decidindo que a União deve necessariamente compor o polo passivo dos processos em que se pretende o recebimento de tratamentos não incorporados ao SUS, o Superior Tribunal de Justiça – interpretando a tese do Tema 793 do STF em sentido contrário ao da própria Corte Suprema –  permanece com o entendimento de que os entes da federação são solidariamente responsáveis pela dispensação de quaisquer tratamentos postulados em Juízo, cabendo aos autores das ações escolher contra quais pretende demandar. Espera-se ansiosamente que com o julgamento do Tema 1.234/STF e do IAC 14/STJ a controvérsia jurisprudencial seja finalmente dirimida.

Independentemente disso, o fato é que as disputas internas entre os entes federativos sequer deveriam fazer parte da judicialização da saúde. Acontece que o SUS é por sua própria definição um Sistema Único de Saúde, que forma uma rede regionalizada e hierarquizada, nos expressos termos do art. 198 da Constituição. É mais do que evidente que isso não significa que todos os entes federativos devam prestar e possam ser cobrados por quaisquer serviços de saúde à população. Muito pelo contrário, é justamente pela atuação em rede que cada um deles possui competências próprias definidas pela legislação e atos normativos de regência. Há que se respeitar essa repartição de competências também em sede judicial.

Ainda assim, o fato é que essa rede pressupõe uma atuação coordenada e harmônica entre União, Estados e Municípios. Um dos principais pilares do sistema de operação em rede do SUS é a pactuação das responsabilidades dos entes federativos nas Comissões Intergestores Tripartite e Bipartite.

O art. 14-A da Lei nº 8.080/90 é bastante elucidativo quanto à importância dessas comissões na estruturação do SUS, especificamente em relação às responsabilidades dos entes federativos:

Art. 14-A.  As Comissões Intergestores Bipartite e Tripartite são reconhecidas como foros de negociação e pactuação entre gestores, quanto aos aspectos operacionais do Sistema Único de Saúde (SUS). 
Parágrafo único.  A atuação das Comissões Intergestores Bipartite e Tripartite terá por objetivo: 
I - decidir sobre os aspectos operacionais, financeiros e administrativos da gestão compartilhada do SUS, em conformidade com a definição da política consubstanciada em planos de saúde, aprovados pelos conselhos de saúde;
II - definir diretrizes, de âmbito nacional, regional e intermunicipal, a respeito da organização das redes de ações e serviços de saúde, principalmente no tocante à sua governança institucional e à integração das ações e serviços dos entes federados;
III - fixar diretrizes sobre as regiões de saúde, distrito sanitário, integração de territórios, referência e contrarreferência e demais aspectos vinculados à integração das ações e serviços de saúde entre os entes federados. 

É na Comissão Intergestores Tripartite que se pactuam, por exemplo, as responsabilidades pelo custeio, aquisição e entrega dos medicamentos, produtos de interesse para a saúde e procedimentos disponíveis no SUS, nos termos dos arts. 19-P, I e 19-U, da Lei nº 8.080/90. Vejamos:

Art. 19-P.  Na falta de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, a dispensação será realizada:
I - com base nas relações de medicamentos instituídas pelo gestor federal do SUS, observadas as competências estabelecidas nesta Lei, e a responsabilidade pelo fornecimento será pactuada na Comissão Intergestores Tripartite; 
(...)
Art. 19-U.  A responsabilidade financeira pelo fornecimento de medicamentos, produtos de interesse para a saúde ou procedimentos de que trata este Capítulo será pactuada na Comissão Intergestores Tripartite.

Além disso, as Comissões Intergestores Bipartites tratam da divisão de responsabilidades entre os Estados e Municípios nos mais diversos serviços de saúde por eles desempenhados.

Tudo isso serve para demonstrar que os entes federativos têm a prerrogativa de, negociando entre si e dentro dos critérios gerais estabelecidos em lei, definirem as próprias responsabilidades no SUS. Uma vez definidas, eles estão vinculados ao que foi pactuado.

Dentro de todo este contexto, separemos a judicialização da saúde em dois cenários: o que trata de demandas por tratamentos já incorporados ao SUS e o que diz respeito a pedidos de tratamentos não incorporados.

No que diz respeito às demandas por tratamentos incorporados, não há nenhuma razão para que o Poder Judiciário deixe de dirigir suas determinações ao ente administrativamente competente para prestá-los. É isso o que determina, aliás, a parte final da tese do Tema 793/STF (“…diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências”), cuja clareza, entretanto, nem sempre é vista na jurisprudência.

Por outro lado, também não há nenhum motivo para que o ente que é o responsável por oferecer um tratamento já incorporado ao SUS, mas que veio, por alguma razão, a ser demandado judicialmente, não se disponha voluntariamente a entregá-lo.

Questões processuais à parte, isso pode ser feito independentemente de sua presença no processo, já que sequer uma ordem judicial precisaria ser proferida para assegurar um tratamento segundo os protocolos clínicos instituídos. Se ainda assim a ordem foi dada, a esperada atuação em rede dentro SUS impõe que o ente que figura como réu no processo, caso não seja o competente para oferecer o tratamento, diligencie junto ao que é para que a decisão judicial seja atendida. Da mesma maneira, o ente que não está no processo, mas é o que tem atribuição para oferecer o serviço, deve atender à solicitação do que foi demandado judicialmente. É assim, afinal, que ambos atuariam fora de um processo judicial.

De fato, se um paciente busca um determinado atendimento no SUS junto a uma instituição que não é a porta de entrada definida nos fluxos do sistema de saúde, não se pode imaginar que o atendimento seja simplesmente recusado sem o devido esclarecimento e encaminhamento do cidadão ao serviço correto. O serviço que constitui a porta de entrada, por sua vez, não vai recusar o atendimento pelo fato de o encaminhamento ter sido feito por outro órgão que não tinha atribuição para prestá-lo. Não há nenhuma razão, então, para que o mesmo procedimento não seja observado em sede judicial. Se for, não haverá mais discussão entre os entes federativos quanto à legitimidade passiva, litisconsórcio necessário, ressarcimentos etc.

Já em relação às demandas por tratamentos não incorporados, a situação é um pouco mais complexa, mas nem por isso impossível de ser resolvida.

É certo que, não sendo um tratamento incluído nas políticas públicas de saúde, logicamente as competências para o seu custeio e disponibilização não foram pactuadas entre os entes federativos. Por conseguinte, nenhum deles assumirá espontaneamente a obrigação do cumprimento de ordem judicial que o conceda.

Para solucionar esse impasse, entretanto, basta que a União, os Estados e os Municípios pactuem nas Comissões Intergestores as responsabilidades relacionadas aos atendimentos de ordens judiciais de tratamentos não padronizados.

Neste ponto, é preciso ter em mente que, queira-se ou não, a judicialização da saúde é um fato posto e que certamente não acabará tão cedo, apesar de poder e dever ser cada vez mais qualificada e menos invasiva. Por essa razão – e, repise-se, ainda que não seja desejável -, ela deve estar permanentemente presente no planejamento das políticas públicas de saúde.

Se a judicialização é inevitável, é preciso, no mínimo, que com ela se lide estrategicamente.

Sendo assim, os dados da judicialização da saúde devem ser devidamente coletados, tratados e analisados pelos técnicos e gestores dos entes federativos para que, com base neles, os próprios entes avaliem a melhor forma de divisão de responsabilidades entre si, seguindo, sempre que possível, as mesmas linhas gerais adotadas para os tratamentos já disponíveis no SUS e pactuados.

Essa divisão de atribuições dos tratamentos judicializados e não padronizados poderá abranger não apenas competências para custeio, aquisição e prestação ou entrega do tratamento, mas também compensações financeiras ou ressarcimentos diretos entre União, Estados e Municípios, que poderão ser feitos inclusive fundo a fundo de saúde.

Não há razão plausível para que o Poder Judiciário tenha que definir qual o ente federativo responsável pelo fornecimento de um tratamento não incorporado ao SUS se os próprios entes podem pactuar isso entre eles. Os juízes, definitivamente, não possuem as mesmas condições dos técnicos e gestores do SUS para avaliar de que modo a distribuição de atribuições para o cumprimento das ordens judiciais menos interfere e mais otimiza o funcionamento de todo o sistema. Por isso, quanto menos os magistrados e magistradas precisarem resolver essa questão, melhor.

Aliás, a própria Comissão Intergestores Tripartite já cogitou a possibilidade de pactuar responsabilidades relacionadas a medicamentos não incorporados ao SUS e que sejam objetos de determinações judiciais. A reunião de novembro de 2019 da CIT foi especialmente interessante porque, além de tratar da dificuldade do ressarcimento pela União aos Estados das despesas que estes tiveram com a aquisição judicial de medicamentos que não estavam na sua esfera de responsabilidade, abordou também os impactos da judicialização da saúde no custeio de medicamentos não incorporados ao SUS. A comissão aventou a possibilidade de que a própria CIT definisse os critérios de custeio dos fármacos não padronizados e adquiridos por força judicial.

Neste sentido, o Presidente do CONASS “Indicou acrescentar um tema na CIT, que diz respeito à adoção da conduta de divisão de custos de medicamentos quando não houver a incorporação pela Conitec, pois a referida temática não está consolidada e carece de entendimento”.

Se as responsabilidades fossem acordadas entre os próprios entes federativos – e isso só depende deles -, muito da judicialização da saúde estaria hoje resolvido. Com isso, juízes e juízas não precisariam definir segundo critérios próprios – ou mesmo sem critério algum, como muitas vezes ocorre – quem é que deve cumprir suas decisões.

Não há razão para que a rede SUS simplesmente se desfaça a partir do momento em que um tratamento é judicializado, de forma que os entes federativos passem a atuar cada um por si e contra os outros. A mesma atuação coordenada e harmoniosa que existe na prestação administrativa dos serviços de saúde deve se refletir também na esfera judicial. Isso colaborará sobremaneira para a manutenção da higidez do sistema público de saúde, cada vez mais afetado pela interferência judicial.

Certamente, a complexidade das divisões de competências internas no SUS, bem como o anseio para que as ordens judiciais sejam cumpridas com a máxima celeridade possível acabam servindo como estímulos para que se adote o entendimento jurisprudencial pela solidariedade passiva dos entes federativos nas ações de saúde. Com ele, evita-se – indevidamente, no meu ponto de vista – a árdua tarefa de investigar as pactuações administrativas dos diversos serviços de saúde disponíveis no SUS. Por outro lado, entretanto, promove-se nefasta desorganização do sistema, tanto do ponto de vista logístico e operacional, como também financeiro e orçamentário.

Se, por um lado, juízes e tribunais devem estar conscientes da importância de entenderem e seguirem as responsabilidades de cada ente federativo na estruturação do SUS; por outro, os próprios entes têm em suas mãos a possibilidade de resolverem internamente o que caberá a cada um quando o tratamento a ser oferecido decorre de determinação judicial. Com isso, evita-se o litígio desnecessário, que consome tempo e recursos pessoais e financeiros. Evita-se, também, interferências judiciais que passam a ser desnecessárias.

Enfim, não há razão para que os entes federativos deixem para o Poder Judiciário decidir questão que eles próprios podem resolver.

Deixem, os entes federativos, de lado discussões processuais e passem a atuar em rede também em sede judicial. Não importará, assim, quem é que figura na relação processual. O ente que lá estiver terá condições de, se não for o responsável pelo tratamento concedido judicialmente, viabilizar a sua prestação junto ao ente competente, tendo a segurança de que este acatará a demanda, sendo ou não parte processual. É assim que as coisas funcionam quando não há intervenção judicial. É assim que devem funcionar quando há.

Não se tem a ingenuidade de pretender que todos os litígios entre os próprios entes federativos sejam eliminados por este sistema, mas sim a confiança de que grande parte deles sejam.

Busquemos, então, uma solidariedade passiva consentida na judicialização da saúde, pela qual os entes federativos se comprometam a cumprir com as obrigações por eles próprios definidas, independentemente de qual seja o réu do processo.

Muitos complicadores para esta proposta surgirão e precisarão ser enfrentados. Alguns serão superáveis; outros, talvez não. Ainda assim, é preciso sonhar grande para realizar o possível.

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STF e STJ na judicialização da saúde: o passo que ainda falta ser dado

Chegando ao destino

Nas ações judiciais pelas quais os cidadãos pretendem receber do Poder Público tratamentos não disponíveis no SUS, três grandes questões normalmente precisam ser resolvidas. São elas:

  1. O tratamento postulado é realmente necessário e eficaz, considerando inclusive as alternativas terapêuticas já disponibilizadas no SUS?
  2. Quem é o ente federativo responsável pela sua dispensação?
  3. O valor do tratamento, inclusive em uma relação “custo x efetividade”, é um ponto a ser considerado para que se decida se o Poder Público deve ou não fornecê-lo? Se for, qual o seu limite?

Não se pretende, neste momento, adentrar nas nuances e nas diversas vertentes que cada uma dessas questões apresenta. Quem estiver interessado em se aprofundar nessas discussões tem muitos outros posts aqui no blog para se entreter.

O que este artigo quer demonstrar é que a jurisprudência do STJ e, principalmente, do STF – que vem abordando cada vez mais aspectos da judicialização da saúde – já confere critérios mais ou menos objetivos para nortear as decisões dos demais tribunais e juízes brasileiros em relação às questões 1 e 2, mas precisa, por outro lado, tratar com toda a prioridade possível a questão 3.

Antes de demonstrar a lacuna existente e o tamanho da sua relevância, é preciso enfatizar a importância da existência de diretrizes jurisprudenciais seguras a respeito dos aspectos envolvidos na judicialização da saúde.

Se a judicialização em si já traz impactos negativos para o sistema público de saúde como um todo (não se está a dizer que impactos positivos também não ocorram), eles serão tanto mais graves quanto maior a falta de critérios objetivos para a intervenção judicial nas políticas públicas existentes. É nesse aspecto que a atuação uniformizadora do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça ganha fundamental papel.

Deixando de lado quaisquer considerações sobre o mérito das decisões em si, são muito bem vindas as teses que paulatinamente vêm sendo estabelecidas pelo STJ e pelo STF nos recursos repetitivos e representativos de controvérsia relacionados à judicialização da saúde. Foram essas teses, aliás, que buscaram definir critérios para que as questões 1 e 2, mencionadas logo no início deste texto, fossem resolvidas.

De fato, o STF já se manifestou mais de uma vez a respeito do dever de que se avaliem em Juízo a efetiva necessidade e a eficácia do tratamento médico reivindicado, bem como a inexistência de alternativas terapêuticas adequadas no SUS (questão 1).

Na tese do Tema 1.161“Dever do Estado de fornecer medicamento que, embora não possua registro na ANVISA, tem a sua importação autorizada pela agência de vigilância sanitária”, ele consignou que o fornecimento em sede judicial de fármaco sem registro, mas com importação autorizada pela ANVISA, pressupõe a constatação da “imprescindibilidade clínica do tratamento, e a impossibilidade de substituição por outro similar constante das listas oficiais de dispensação de medicamentos e os protocolos de intervenção terapêutica do SUS”. Eis a tese:

“Cabe ao Estado fornecer, em termos excepcionais, medicamento que, embora não possua registro na ANVISA, tem a sua importação autorizada pela agência de vigilância sanitária, desde que comprovada a incapacidade econômica do paciente, a imprescindibilidade clínica do tratamento, e a impossibilidade de substituição por outro similar constante das listas oficiais de dispensação de medicamentos e os protocolos de intervenção terapêutica do SUS”.

Já no julgamento do Tema 6/STF“Dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras para comprá-lo”, embora a tese ainda esteja pendente de definição, ao menos sete ministrosaqueles cujos votos puderam ser verificados: Marco Aurélio, Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski já se posicionaram no sentido de que o fornecimento do fármaco não padronizado pressupõe a constatação da necessidade do tratamento – com comprovação mediante prova técnica qualificada (medicina baseada em evidências) – e da inexistência de alternativas adequadas no SUS.

Nesta mesma linha, o STJ, no julgamento do Tema 106“Obrigatoriedade do Poder Público de fornecer medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS” estabeleceu que a o fornecimento de medicamentos não disponíveis no sistema público depende da “comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS”.

Dessa forma, mesmo sendo os critérios mais ou menos abstratos, é perfeitamente possível aos litigantes e ao julgador compreenderem que a concessão judicial de tratamento não disponível no SUS impõe que se verifique a comprovação de sua efetiva necessidade, bem como da inexistência de alternativas adequadas dentro do sistema público, tudo de acordo com as evidências médico-científicas.

No que diz respeito ao ente federativo obrigado a disponibilizar o tratamento médico (questão 2), a matéria foi objeto de tese específica firmada pelo STF no Tema 793, a qual dispõe que:

“Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”

A tese acima gerou e ainda gera distintas linhas interpretativas cuja análise não cabe nos propósitos deste artigo. O que é importante observar é que, da forma como entendeu por bem, o Supremo Tribunal Federal preocupou-se em estabelecer os critérios a serem adotados pelos demais tribunais e juízos quanto à responsabilidade dos entes federativos pelo cumprimento das decisões judiciais de entrega de tratamentos não inseridos nas políticas públicas. Para uma compreensão mais profunda do entendimento da Corte, é indispensável a leitura do voto do min. Edson Fachin, relator para o acórdão.

Como se vê, a jurisprudência do STF e do STJ vem se empenhando em definir quando o fornecimento de um tratamento médico não disponível no SUS pode ser determinado judicialmente e quem é responsável por seu cumprimento. A grande lacuna que remanesce é aquela relativa à questão financeira: a que custo isso pode ser feito? Há um limite? Se há, qual é ele? Essa é a questão 3, que ainda não foi respondida.

A discussão sobre os custos dos tratamentos e seus impactos no orçamento público existe desde os primórdios da judicialização da saúde. Ela está inevitavelmente atrelada ao confronto argumentativo entre “reserva do possível” e “máxima efetividade dos direitos fundamentais”. O tema rendeu e ainda rende incessantes pesquisas, teses e obras jurídicas, além de debates jurisprudenciais. Aqui no blog, o(a) leitor(a) pode refletir um pouco mais sobre o assunto no post “A reserva do possível na assistência farmacêutica do SUS: A mariposa e a estrela”.

Na verdade, tudo o mais que se discute na judicialização da saúde acaba figurando como mecanismo de defesa da Administração contra o comprometimento de recursos públicos não reservados no orçamento da saúde. O que os entes federativos pretendem, ao fim e ao cabo, é que a intervenção judicial não acarrete maiores ônus financeiros ao Estado, até porque isso pode inclusive comprometer as políticas de saúde já existentes.

Mesmo neste cenário, não há, até o presente momento, uma definição jurisprudencial segura a respeito de eventuais limites financeiros à atuação do Poder Judiciário na judicialização da saúde.

É certo que a jurisprudência do STF, ao menos desde o julgamento da ADPF 45 (min. Celso de Mello), vem afastando alegações genéricas de escassez de recursos públicos (“reserva do possível”) como obstáculos à determinação de fornecimento de prestações não previstas nas políticas públicas de saúde. No entanto, isso não significa que a Corte Suprema entenda inexistir limite orçamentário algum à atuação jurisdicional.

De todas as teses firmadas pelo STJ e pelo STF em questões relacionadas à judicialização da saúde, nenhuma trata especificamente de eventuais limites a serem observados em relação ao custo dos tratamentos ou de sua ausência. Aparentemente, a situação não deverá mudar com a definição da tese do Tema 6/STF.

O seguinte quadro sintetiza os requisitos para o fornecimento judicial de medicamentos de alto custo estabelecidos por diversos Ministros do Supremo Tribunal Federal cujas manifestações já estão disponíveis ao público:

Tabela comparativa

Como se vê, muitas são as condições propostas pelos Ministros, mas nenhuma delas relacionada a eventual custo do tratamento, o que chega a ser curioso, já que o tema em debate foi definido justamente como “dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras para comprá-lo”. Seria importante, então, que ao menos a definição de “alto custo” fosse abordada, já que ela é precisamente o objeto do tema.

Seria possível argumentar que se nem o STF, nem o STJ incluíram em seus diversos acórdãos submetidos à sistemática dos recursos repetitivos quaisquer referências a eventuais limites orçamentários à concessão judicial de tratamentos médicos não disponíveis no SUS, a conclusão seria a de que, de fato, os aspectos financeiros seriam irrelevantes para a solução dos casos. Realmente, caso se considere que os requisitos a serem observados são exclusivamente aqueles explicitados nas diversas teses, não deveriam os litigantes e os juízes preocupar-se com os custos do tratamento nas demandas judiciais.

A questão, entretanto, não é tão simples.

Em primeiro lugar, o próprio STF já se manifestou no sentido de que o elevado impacto financeiro do tratamento pode, sim, ser óbice à concessão judicial, ainda que em face de particularidades do caso concreto. A título de exemplo, tem-se a decisão do min. Luiz Fux na STP 856/RN, de 09/03/2022, na qual consta que:

(...)
À luz das premissas assentadas no julgamento do RE 855.178-ED, passo a analisar o caso concreto, pontuando que o valor da prestação de saúde no caso sub examine revela-se sobremaneira elevado proporcionalmente à capacidade econômica do Município requerente, de modo que, neste juízo não exauriente, revela-se a existência de potencial lesão de natureza grave ao interesse público (à economia pública municipal), a ensejar o deferimento parcial da medida liminar.
Com efeito, dos elementos constantes nos autos e nos estritos limites da cognição possível em sede de incidente de contracautela, vislumbra-se a existência de plausibilidade na argumentação do requerente, no sentido de que o imediato cumprimento da decisão impugnada seria capaz de gerar desorganização financeira e orçamentária no âmbito da Administração do Município de Assú/RN, haja vista o seu porte atual. O imediato cumprimento da decisão impugnada representa grave risco à manutenção do equilíbrio das contas municipais, revelando-se imperiosa a parcial concessão da medida de liminar, a fim de que o juízo de origem proceda à devida delimitação da responsabilidade pela prestação entre os entes que compõem o SUS.

Além do mais, não se identifica na jurisprudência das cortes superiores uma corrente sustentando que o custo do tratamento não é um critério ao qual o julgador deva se atentar. Via de regra, as decisões apenas deixam de tratar da questão, atendo-se à necessidade do tratamento e à inexistência de alternativas no SUS. No entanto, a relevância do tema impede que conclusões sejam implícitas ou de difícil constatação.

Como já dito, os custos da judicialização sobre o orçamento da saúde e seus impactos na política pública existente são da essência dessa discussão. A preocupação com a repercussão financeira dos tratamentos não padronizados concedidos judicialmente nasceu com a judicialização da saúde e permanecerá sempre a ela umbilicalmente ligada. Não se pode esperar, então, que sua solução nos tribunais se dê por meras inferências ou, mais grave do que isso, que simplesmente seja contornada para que não precise ser decidida, seja para se estabelecer que aspectos financeiros do tratamento são irrelevantes para a aferição do direito individual dos demandantes, seja para se consignar que devem ser observados e, neste último caso, em que termos.

É fato que as decisões monocráticas e acórdãos das cortes superiores não vêm afastando o direito aos tratamentos requeridos tendo como base apenas o seu valor. O que aparenta ocorrer, entretanto, é que a questão não é enfrentada por ser absolutamente tormentosa e de dificílima solução. É até possível que a constante ausência de quaisquer referências, nas decisões, sobre a capacidade de absorção, pelo orçamento público, do valor dos tratamentos seja realmente porque o seu custo é considerado algo irrelevante para a solução das ações individuais, bastando que estejam demonstradas, por elementos técnicos e científicos robustos, a necessidade e eficácia do tratamento, bem como a ausência de alternativas terapêuticas no SUS. Ainda que a hipótese se confirme, a falta de um claro posicionamento neste sentido faz proliferar e se perpetuar a controvérsia jurisprudencial nos tribunais de segunda instância e nos juízos de primeiro grau.

Além do mais, não parece correto que se conclua automaticamente que a falta de consideração dos impactos financeiros de tratamentos concedidos judicialmente nos casos concretos que se apresentam às cortes superiores signifique que em nenhuma hipótese os custos da terapia devam ser tomados em consideração. A riqueza e a variabilidade das situações específicas, a rápida evolução da medicina e a assombrosa elevação dos preços das tecnologias em saúde que se dizem revolucionárias impõem, no mínimo, cautela na afirmação de que as questões orçamentárias não devem, em hipótese alguma, constituir óbice à concessão de tratamentos pela via judicial.

Imagine-se, hipoteticamente, que em pouco tempo surja um tratamento “revolucionário” que ofereça consideráveis chances (note-se bem: sem certeza) de se impedir por completo a progressão de uma doença degenerativa rara ao custo de vinte milhões de reais por paciente. A hipótese parece absurda, mas não é. Seria possível afirmar que a jurisprudência aceitaria a dispensação judicial sem qualquer consideração relacionada ao custo? É até possível que sim, mas a conclusão contrária também seria plausível.

Por outro lado, certamente o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça, conscientes de que estarão a definir uma tese que vinculará todos os demais tribunais e juízes do país em casos futuros, analisarão de forma mais criteriosa eventuais limites financeiros à atuação do Poder Judiciário, o que poderá os levar à adoção de parâmetros econômicos a serem considerados, ainda que com certa dose de subjetividade a ser empregada em cada caso concreto.

Pronunciar-se expressamente a respeito da (ir)relevância de critérios econômicos na solução de processos individuais de saúde não significa empregar um raciocínio binário na busca da solução. Em tese, os parâmetros financeiros de análise podem ser agregados a outros critérios que também devam ser considerados, numa espécie de análise de relação custo x efetividade do tratamento.

Mesmo que as cortes superiores não estabeleçam balizas objetivas e rígidas de apuração desta relação – o que, aliás, seria o mais provável de acontecer -, o simples fato de decidir que os demais juízes devem ou não devem levar em consideração, no julgamento dos casos concretos, os custos do tratamento em comparação com os benefícios esperados já seria um avanço na busca pela segurança jurídica.

É de suma relevância, ainda, que se defina se o Poder Judiciário está vinculado às conclusões da Conitec de que a incorporação de determinada tecnologia ao SUS não é recomendada por questões orçamentárias ou de relação custo x efetividade desfavorável. O STF vem paulatinamente adotando maior deferência judicial às análises científicas da Anvisa e da Conitec no registro e na incorporação de novos tratamentos de saúde ao SUS, sem que se trate, entretanto, do grau de deferência a ser adotado em relação às análises econômicas, que também são atribuição legal da agência de avaliação de tecnologias em saúde do SUS.

De fato, o art. 19-O, parágrafo único, da Lei nº 8.080/90 estabelece que os medicamentos incorporados ao SUS “serão aqueles avaliados quanto à sua eficácia, segurança, efetividade e custo-efetividade para as diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde de que trata o protocolo”.

O art. 19-Q, §2º, II, por sua vez, dispõe que os relatórios de recomendação da Conitec deverão levar em consideração, necessariamente, “a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas, inclusive no que se refere aos atendimentos domiciliar, ambulatorial ou hospitalar, quando cabível”.  

Por fim, o parágrafo terceiro do art. 19-Q da Lei nº 8.080/90, recentemente acrescentado pela Lei nº 14.312/2022, proporcionará um considerável incremento no grau de tecnicidade e na objetividade das análises de custo x efetividade feitas pela Conitec ao impor que “as metodologias empregadas na avaliação econômica a que se refere o inciso II do § 2º deste artigo serão dispostas em regulamento e amplamente divulgadas, inclusive em relação aos indicadores e parâmetros de custo-efetividade utilizados em combinação com outros critérios”.

Como se pode perceber, a capacitação e a competência da Conitec no processo de incorporação de novas tecnologias de saúde ao SUS não se restringe à análise das evidências científicas do tratamento em si. Elas também incluem a avaliação econômica e de custo x efetividade dos novos tratamentos, que sem dúvida alguma impõe conhecimento técnico especializado que o Poder Judiciário não tem e que, via de regra, não é suprido por provas periciais médicas ou notas técnicas emitidas pelos diversos Núcleos de Apoio Técnico (NAT’s) que assessoram os juízes nas demandas de saúde.

A questão que precisa ser resolvida, então, é a seguinte: no julgamento das ações individuais de saúde, exige-se a mesma deferência do Poder Judiciário tanto em relação às análises científicas das tecnologias em saúde quanto em relação à avaliação econômica feita pela Conitec?

É importante que a resposta seja dada de forma clara e objetiva pelas cortes superiores, porque inferências jurisprudenciais indiretas ou, o que é ainda mais problemático, a simples omissão no trato da questão financeira impede que se atinja o grau possível e desejado de segurança jurídica.

Não é o propósito deste artigo defender a melhor solução a ser adotada, até porque são vastas as pesquisas e os ensaios jurídicos que investigam a relação entre a “reserva do possível” e a “máxima efetividade do direito à saúde”.

O que se pretende, aqui, é apenas alertar para a importância de que nossas cortes superiores definam de forma clara:

  1. se o Poder Judiciário deve ou não levar em consideração o custo do tratamento nas ações individuais, inclusive prestando ou não deferência às recomendações da CONITEC; e, em caso positivo,
  2. quais são os critérios a serem adotados nessa análise.

Ao resolverem esses pontos tão sensíveis na judicialização da saúde, a cúpula do Poder Judiciário dará um grande passo rumo à segurança jurídica e ao trato sistêmico de um problema que tanto aflige os gestores e procuradores públicos, os magistrados e os cidadãos.

Imagem do Post:Salmen Bejaoui 




Deferência judicial e controlabilidade das decisões da Conitec: o caso do nusinersena

legos em deferência

1. Introdução

Este artigo traz uma avaliação crítica dos diversos posicionamentos expressados pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) nas vezes em que se manifestou sobre a incorporação do medicamento nusinersena para o tratamento de Atrofia da Medula Espinhal – AME. O tratamento é de custo elevadíssimo e a doença é rara e muito grave. Daí decorre a relevância das análises feitas pelo órgão, tanto em relação à própria política de assistência farmacêutica como em relação à judicialização da saúde.

Antes de mais nada, é preciso enaltecer a existência e o trabalho desenvolvido pela Conitec para a qualificação do SUS. A comissão, sem dúvida, foi uma das maiores conquistas do sistema público de saúde. Sua atuação é fundamental para a existência de uma política de assistência terapêutica qualificada, para a sustentabilidade do SUS e para a incorporação real da ciência como padrão de conduta no trato da saúde dos cidadãos. O trabalho por ela desempenhado é digno de elogios.

As considerações feitas neste texto têm como propósito apenas contribuir para o contínuo aprimoramento das atividades da Conitec e para uma aproximação harmoniosa entre ela e o Poder Judiciário, que cada vez mais é chamado a se manifestar sobre as questões avaliadas pela comissão de avaliação de tecnologias em saúde.

2. Deferência judicial e controlabilidade das decisões da Conitec

A importância da deferência judicial às análises e decisões técnicas da Administração Pública na fixação da política de assistência farmacêutica é inquestionável. De fato, o Poder Executivo – especialmente por meio da Conitec – é a instância com competência, legitimidade e capacidade técnica para avaliar as novas tecnologias em saúde passíveis de incorporação ao SUS, devendo as suas decisões ser respeitadas pelo Poder Judiciário, que normalmente atua em caráter pontual nas demandas de saúde, sem uma perspectiva global e necessária para o aperfeiçoamento e a sustentabilidade do SUS.

Por essas razões, havendo decisão expressa do Ministério da Saúde, após a devida avaliação da Conitec, pela não incorporação de um determinado medicamento ao SUS, não cabe, via de regra, ao Poder Judiciário imiscuir-se em nova análise e desconsiderar a decisão do gestor e do órgão técnico capacitado para avaliação de tecnologias em saúde.

Isso não significa, entretanto, que as avaliações técnicas e as decisões sobre incorporação de medicamentos ao SUS estejam imunes a qualquer apreciação judicial. Na medida em que tais atos impactam diretamente no direito fundamental à saúde (seja ele analisado sob a perspectiva individual ou coletiva), é atribuição do Poder Judiciário verificar se a Administração atua segundo o dever constitucional a ela imposto de proteção aos direitos fundamentais e dentro da margem de discricionariedade atribuída.

Neste cenário, ainda que o Poder Judiciário não seja o órgão tecnicamente preparado para a avaliação da necessidade e da conveniência de incorporação de novos tratamentos ao SUS, ele deve atuar no controle da Administração ao menos em relação a critérios de legalidade, razoabilidade e motivação das decisões administrativas, de forma a assegurar que o Poder Executivo exerça suas competências de forma satisfatória e legítima. Para tanto, é de suma importância que a motivação dos atos administrativos, especialmente daqueles que interferem no delineamento dos direitos fundamentais, seja adequada para justificar as razões pelas quais o Estado nega uma proteção pretendida pelo cidadão, ainda que por meio da instituição de uma política pública que não atenda ao caso concreto por fatos compreensíveis.

Especificamente na tutela do direito à saúde, é preciso que as decisões que recusam a incorporação de novos tratamentos ao SUS demonstrem de forma objetiva e consistente as razões que as fundamentam. É assim que se legitima a política pública, mesmo que ela não seja capaz de atender a todos os anseios dos cidadãos.

Como bem ensina CASS SUNSTEIN (The Cost-Benefit Revolution, p. 153, aqui em livre tradução):

“A desconfiança nas decisões de uma agência pode produzir considerações compensatórias. Se as agências são sistematicamente enviesadas ou se erros graves de análise são prováveis, a revisão da arbitrariedade pode ser intensificada.”

É justamente a clara motivação das decisões que afasta a desconfiança do órgão controlador e, consequentemente, reduz as chances de sua revisão.

Enfim, o dever de deferência do Judiciário às decisões técnicas da Administração pressupõe, no mínimo, que elas sejam satisfatoriamente justificadas. Com isso, os juízes podem ao menos compreender as razões de decidir e visualizar a sua razoabilidade, ainda que com elas não concordem.

Por esses motivos é que tanto a doutrina como a jurisprudência admitem, ao lado da deferência, um controle judicial mínimo sobre a competência e a motivação das decisões técnicas proferidas pelo Poder Executivo, inclusive para afastá-las quando for o caso.

 No voto condutor do acórdão que resultou na tese do Tema 500/STF (RE 657.718/MG) – relativo à obrigação do Estado de fornecer medicamentos não registrados na ANVISA – o ministro Roberto Barroso, após salientar a importância do respeito, pelo Poder Judiciário, às decisões técnicas da agência reguladora, ponderou que “isso, é claro, não impede a propositura de demandas judiciais que questionem a própria decisão da agência, comprovando-se técnica e cientificamente que foi equivocada”.

O voto do ministro Edson Fachin no mesmo julgamento tratou de forma substanciosa dos limites do controle judicial sobre as decisões das agências reguladoras. O seguinte trecho é digno de nota:

Em termos práticos, isso impõe ao Estado o dever de dar transparência às decisões tomadas pelas agências reguladoras. A transparência deve, ainda, atingir a todos os que forem afetados pela decisão. Ademais, deve a decisão também ter fundamentos verificáveis, isto é, ainda que se discorde das razões adotadas, todos devem reconhecer como suficiente para se chegar às conclusões as razões apresentadas. Finalmente, devem as agências garantir o direito de recurso ou revisão por parte daqueles que direta ou indiretamente possam ser afetados pela decisão

Com efeito, ainda que se discorde da decisão tomada em uma avaliação de tecnologia em saúde, é primordial que se compreenda ao menos as razões que a justificam para que, então, se exija deferência judicial. O dever de motivação (art. 2º da Lei nº 9.784/99) ganha especial relevo.

Lecionando sobre a correlação entre a deferência judicial e o dever de motivação na experiência estrangeira, EDUARDO JORDÃOControle Judicial de Uma Administração Pública Complexa – A Experiência Estrangeira na Adaptação da Intensidade do Controle – Melheiros Editores, p. 114 assim escreve:

A integração do dever de motivação no controle substancial deferente - Os tribunais de Estados Unidos e Canadá ampliaram a relevância do dever de motivação ao basear fortemente sobre ele o controle judicial substantivo, para o qual já haviam consagrado uma orientação deferente. Em suma, passou-se a considerar uma decisão juridicamente válida quando bem motivada. Neste contexto, a "razoabilidade" de uma decisão, por exemplo, deixa de ser examinada em relação a padrões substantivos próprios dos tribunais, e ganha conteúdo procedimental. A decisão razoável não é aquela que não se afaste consideravelmente de uma opção substancial de predileção dos tribunais, mas aquela que tenha sido adotada de forma transparente e bem justificada pela administração pública.

Novamente tratando da questão, mas desta vez no julgamento do Tema 6/STF (RE 566.471), relacionado ao dever do Estado de fornecer medicamentos de alto custo não incorporados ao SUS, o ministro Roberto Barroso assim se manifestou em seu voto:

Por isso, nos casos em que a CONITEC chegou a avaliar pedido de incorporação de medicamento, mas concluiu de modo desfavorável ao fornecimento gratuito do fármaco pelo Poder Público, deve-se privilegiar a decisão técnica do órgão responsável. Nessa situação, o que se deve poder questionar na via judicial é tão somente a fundamentação técnica e científica da decisão do SUS de não incluir a tecnologia nas listas de dispensação existentes.

Uma questão complexa que se coloca na hipótese de o Poder Judiciário concluir que a decisão do órgão gestor ou técnico do Poder Executivo possui vício de fundamentação ou falha técnica evidente é definir quais as consequências disso para o caso concreto.

Poderia o juiz determinar que o órgão ou autoridade responsável pela decisão suprisse a falha constatada, fazendo com que a interferência judicial no ato administrativo fosse mínima. Essa seria, em tese, a solução mais adequada para a preservação da competência do Poder Executivo. Por outro lado, poderia trazer consequências negativas para o processo que trate da situação individual de um paciente, que deveria aguardar a convalidação do ato administrativo que possivelmente demandaria tempo considerável.

Uma outra alternativa seria o juiz prestar a devida deferência à decisão administrativa ainda que considere a mácula na motivação ou a falha técnica, mas paralelamente a isso adotar medidas destinadas a regularizá-la para situações futuras, como a comunicação do fato ao órgão ou autoridade prolator ou a órgãos de fiscalização e controle de seus atos.

Uma terceira hipótese seria o juiz, reputando o ato nulo pela falha ou ausência de motivação ou mesmo por equívocos técnicos flagrantes, desconsiderá-lo no julgamento da ação individual, valendo-se de outras provas e informações técnicas para decidi-la.

Este é um tema realmente complexo que merece ser discutido separadamente.

Feitos esses esclarecimentos, é importante verificar como a Conitec se manifestou sobre a incorporação do nusinersena ao SUS para o tratamento da AME.

3. A avaliação da Conitec sobre a incorporação do nusinsersena para o tratamento da AME  

Em um primeiro momento, a Conitec avaliou a viabilidade de incorporação do nusinersena para o tratamento da AME Tipo I.

ROSÂNGELA CAETANO, RENATA CURI HAUEGEN E CLAUDIA GARCIA SERPA OSORIO-DE-CASTRO, em valioso artigo acerca da incorporação do fármaco ao SUS, assim relataram as sucessivas provocações e manifestações da Conitec:

Ocorreram duas solicitações de apreciação de incorporação do medicamento, separadas por um ano. A primeira demanda foi submetida pela SCTIE/MS em janeiro de 2018. Recomendação preliminar de não incorporação foi feita na 69ª reunião ordinária de agosto de 2018 e submetida à consulta pública por 20 dias, tendo recebido 36.972 contribuições. Na 72ª reunião ordinária, em novembro de 2018, as contribuições foram apreciadas. Conforme ata pública dessa reunião, estudos publicados após a busca feita para o relatório da CONITEC foram revisados e seus resultados corroboravam a recomendação de não incorporação. O Plenário entendeu que não houve evidência suficiente para alterar sua recomendação inicial e deliberou, por unanimidade, manter a não incorporação. O Relatório nº 400 correspondente à deliberação final não está disponível nas páginas eletrônicas da CONITEC; a demanda consta apenas como “processo encerrado a pedido do demandante”.
Em dezembro de 2018, a Advocacia Geral da União (AGU) emitiu o Parecer nº 01377/2018/CONJUR-MS/CGU/AGU17 em atendimento à consulta do então Secretário da SCTIE/MS, que versava sobre a possibilidade de sua decisão em sentido diverso da recomendação do Plenário da CONITEC. Segundo o Parecer, o Despacho SCTIE s/n (documento SEI “7088380”) traz como “principal motivação do não acatamento do relatório da CONITEC a existência de uma nova proposta de preço por parte da empresa Biogen, proposta essa ocorrida após a avaliação já realizada pela CONITEC” (argumento 38). Afirma que, ao entender como “pertinente a incorporação do medicamento nusinersena para todos os com AME 5q, independentemente de fenótipo...” (p. 3-4), o Despacho realiza “ampliação objetiva do escopo técnico da matéria”, uma vez que a apreciação da CONITEC se limitou à indicação para AME 5q tipo I. A AGU discute também que a nova proposta de preço não resolve a “fragilidade das evidências clínicas referidas na recomendação da CONITEC” (argumento 31).
O Parecer transcreve o resumo executivo do Relatório nº 400 da CONITEC, destacando os critérios que subsidiaram a recomendação de não incorporação (argumento 36). Diante das atribuições legais de competência, ressalta que, apesar do caráter de assessoramento das atividades da CONITEC, “não se pode concluir pela existência de um poder amplo e ilimitado de revisão, pelo SecretaÌrio da SCTIE, do entendimento exarado pela CONITEC” (argumento 23). Finaliza, considerando que “não obstante haver, de fato, a possibilidade do Secretário da SCTIE/MS, a priori, decidir”, pode “haver grave insegurança jurídica na opção pela decisão de não acatamento da recomendação da CONITEC”. Orienta que a SCTIE/MS, caso opte por não acatar a recomendação da CONITEC, promova nova submissão.
Em janeiro de 2019, nova submissão foi realizada, com indicação sem restrição por tipo de AME, tendo por demandante o fabricante. No relatório preliminar da CONITEC de março de 2019 consta, contudo, recomendação favorável de incorporação apenas para o tratamento da AME 5q tipo I, por considerar que os estudos avaliando a doença de início tardio eram escassos.
(...)
A nova recomendação foi submetida à consulta pública por 10 dias, recebendo 41.787 contribuições. Dos 172 relatórios com recomendação final favorável de incorporação pela CONITEC entre janeiro de 2012 e abril de 2019, 123 foram submetidos à consulta pública. As contribuições do nusinersena correspondem a 55,8% do total de 74.900 contribuições Tabela 3. O número máximo de contribuições até então tinha ocorrido na avaliação das insulinas análogas de ação prolongada para o tratamento de diabetes mellitus tipo I (2.574).
(...)
Em 4 de abril, apenas uma semana após o término da consulta, o Plenário da Comissão deliberou, também por unanimidade, pela incorporação do fármaco para o tratamento da AME 5q tipo I.
No relatório final da CONITEC, as condições estabelecidas diferem da recomendação preliminar. Continua exigido o diagnóstico confirmatório e que os pacientes não estejam em ventilação mecânica invasiva permanente contínua, mas não existem menções à idade ou ao intervalo de tempo para o início do tratamento. Também não há mais referência à doação de frascos e sim à negociação de preço com o fabricante. Consta ainda que, caso sejam apresentadas evidências adicionais sobre eficácia, efetividade e segurança do nusinersena para o tratamento dos tipos II e III de AME 5q, o tema poderá ser reavaliado pela CONITEC.
(...)
A Portaria SCTIE nº 24 foi assinada em 24 de abril de 2019. A sessão ocorreu no Senado, com o Ministro da Saúde informando que a aquisição do nusinersena seria realizada sob nova modalidade de compras, a partilha de risco.

Como se vê, em novembro/2018 a CONITEC emitiu relatório final (não disponível em sua página na internet) ratificando relatório inicial que recomendava a não incorporação do nusinersena para a AME ao SUS. Na ocasião, reputou-se não existirem evidências científicas seguras de sua efetividade.

Em janeiro/2019, nova consulta à agência foi feita, sendo pouco provável que em intervalo de tempo tão curto novas evidências científicas tenham surgido. Ainda assim, em março/2019 a CONITEC emitiu novo relatório, desta vez recomendando a incorporação do medicamento para o Tipo I da doença, o que foi confirmado no relatório final emitido logo na sequência, em abril/2019.

Esse mesmo relatório de abril de 2019 concluiu pela ausência de evidências científicas seguras a respeito da eficácia e efetividade do Nusinersena para o tratamento da AME tipos II e III, ou do tipo I com diagnóstico tardio.

Por essa razão é que foi feita a seguinte ressalva na Recomendação Final:

(...) A CONITEC informa que caso sejam apresentadas evidências adicionais sobre eficácia, efetividade e segurança do nusinersena para tratamento dos tipos II e III de AME 5q, o tema poderá ser reavaliado.

Em síntese, mesmo diante da ausência de evidências científicas robustas a respeito dos benefícios do Nusinersena no tratamento da AME Tipos II e III, os estudos ao menos sugeriam que o medicamento poderia ser eficaz também nestes casos, o que precisaria ser confirmado.

Justamente em razão dessa possibilidade é que o Ministério da Saúde, de forma inovadora, chegou a editar a Portaria GM nº 1.297, de 11 de junho de 2019, que “institui projeto piloto de acordo de compartilhamento de risco para incorporação de tecnologias em saúde, para oferecer acesso ao medicamento Spinraza (Nusinersena) para o tratamento da Atrofia Muscular Espinhal (AME 5q) tipos II e III no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS”.

É importante sublinhar que a Portaria GM nº 1.297/2019 não incorporou incondicionalmente o Nusinersena ao SUS para o tratamento da AME Tipos II e III. Ela apenas autorizou que fosse firmado um acordo de compartilhamento de riscos com a fabricante do medicamento, de maneira que, até que coletadas maiores evidências da eficácia do fármaco nestes casos, os custos financeiros do tratamento fossem repartidos entre o Ministério da Saúde e a indústria farmacêutica, na forma e nas condições que viessem a ser pactuadas.

Acontece que, nada obstante essa intenção inicial do Ministério da Saúde, no final do ano de 2020 tomou-se conhecimento de que a opção pelo acordo de compartilhamento de riscos não chegou a bom termo, tendo sido encerrada antes mesmo de sua implementação.

Ainda que não se disponha de informações oficiais a respeito, já que o Ministério da Saúde não se manifestou de forma clara e objetiva perante os cidadãos, a empresa fabricante do produto veio a público comunicar a ausência de êxito na formalização do acordo, noticiando o seguinte:

Orientada pelo princípio da transparência e comprometimento, a Biogen Brasil Produtos Farmacêuticos Ltda. (“Biogen”) vem, por meio desta, trazer esclarecimentos sobre o andamento do acordo de compartilhamento de risco por desfecho. Em audiência com representantes da Biogen Brasil na última semana, o Ministério da Saúde colocou que, após explorar diversas alternativas, não foi encontrada solução que viabilizasse a aquisição e dispensação do nursinersena para atender aos pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) tipos II e III, tal como originalmente planejado. A orientação é que a Biogen faça uma nova submissão à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec).

Na sequência, frustrada a iniciativa do acordo de compartilhamento de riscos, a Conitec avaliou o pedido de incorporação do nusinersena para o tratamento da AME Tipos II e III, o que se deu pelo Relatório de Recomendação nº 595 de 2021. A agência emitiu deliberação preliminar não recomendando a incorporação do tratamento. Eis a síntese das razões de que se valeu, segundo o próprio relatório:

Recomendação preliminar: Pelo exposto, os membros do plenário da Conitec, em sua 92ª reunião ordinária, no dia 05 de novembro de 2020, deliberaram por maioria simples dos presentes, que a matéria fosse disponibilizada em consulta pública com recomendação preliminar não favorável à ampliação de uso no SUS, do medicamento nusinersena para AME tipos II e III. Foi discutido sobre a possível influência de outras intervenções (por exemplo, cuidados fisioterapêuticos e OPME) no desfecho dos pacientes, comparado ao que seria oferecido pelo medicamento nusinersena e a importância da administração precoce para a obtenção dos desfechos esperados. Alguns membros do plenário apontaram também que o benefício dessa tecnologia isolada, apesar de existente, não é capaz de modificar o curso da doença e, do ponto de vista do custo-benefício, não justifica o montante de recursos necessários para sua implementação.

O processo foi, então, submetido a consulta pública, cujas contribuições a Conitec entendeu terem sido insuficientes para a modificação da recomendação preliminar, que foi, portanto, ratificada na recomendação final. Vejamos:

14. RECOMENDAÇÃO FINAL
Os membros da Conitec presentes na 94ª reunião ordinária, no dia 04 de fevereiro de 2021, deliberaram, por maioria simples dos votos, recomendar a não incorporação do nusinersena para o tratamento de AME 5q tipos II e III (início tardio). Os membros presentes entenderam que não houve argumentação suficiente para alterar a recomendação preliminar. Foi assinado o Registro de Deliberação nº 590/2021.
Ainda assim, sucedeu-se a realização de audiência pública que teve como finalidade "ouvir a sociedade sobre a proposta de incorporação do nusinersena para o tratamento da Atrofia Muscular Espinhal (AME) 5q dos tipos 2 e 3 e recepcionar contribuições, de modo a levantar mais subsídios, além dos já compilados no relatório técnico final da Comissão, para a tomada de decisão, após a demanda de diversos segmentos da sociedade".

A audiência contou com a participação de representantes das mais diversas instituições envolvidas na discussão (fabricante, gestores do SUS, profissionais da saúde, pesquisadores, membros da sociedade civil etc.), que expuseram os respectivos e variados pontos de vista a respeito da conveniência ou necessidade de incorporação do nusinersena ao SUS para o tratamento da AME Tipos II e III.

Ocorre que o relatório de recomendação, após compilar todas as opiniões e informações colhidas na audiência pública – as quais, frise-se, foram das mais diversas naturezas e nos mais diferentes sentidos – ateve-se a emitir uma “nova” recomendação final (após a audiência pública) no seguinte sentido, in verbis:

 16. RECOMENDAÇÃO FINAL APÓS A AUDIÊNCIA PÚBLICA 
Os membros da Conitec presentes na 5ª Reunião Extraordinária da Conitec, no dia 12 de maio de 2021, deliberaram, por maioria simples, modificar parcialmente a recomendação final da 94ª reunião ordinária. Tendo em vista o exposto na Audiência Pública nº 1/2021, os membros da Conitec recomendaram a incorporação do nusinersena para o tratamento da atrofia muscular espinhal 5q tipo II, com diagnóstico até os 18 meses de idade, conforme Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Ministério da Saúde; e pela não incorporação do nusinersena para tratamento da atrofia muscular espinhal 5q tipo III. Foi assinado o Registro de Deliberação nº 619/2021.

Com isso, o nusinersena foi efetivamente incorporado ao SUS também para o tratamento da AME Tipo II (Portaria SCTIE/MS Nº 26, DE 1º/06/2021), mas não para o Tipo III.

Da leitura do relatório não é possível inferir quais foram, exatamente, as informações colhidas na audiência pública que levaram a Conitec a alterar as recomendações inicial e final (antes da audiência pública, mas após a consulta pública) para, desta vez, sugerir a incorporação do medicamento para o tratamento da AME Tipo II. Da mesma maneira, não constam no relatório os fundamentos para que a incorporação do tratamento do Tipo III da doença permanecesse não recomendada. A agência ateve-se a explicar a mudança de posicionamento apenas “Tendo em vista o exposto na Audiência Pública nº 1/2021”

Como já dito, entretanto, inúmeras informações e opiniões foram expostas na audiência pública. Basta que se verifique o quadro 23 do relatório de recomendação para que se perceba quão variadas e até mesmo dissonantes elas são. Não há, portanto, forma de se extrair quais foram, de fato, os dados mais consistentes considerados pela Conitec para que revisse a recomendação contrária à incorporação do medicamento para a AME Tipo II, tampouco para que mantivesse a recomendação de não incorporação para a AME Tipo III.

Não houve, enfim, fundamentação clara e objetiva para a tão relevante mudança de postura. Grosso modo, seria algo como o juiz julgar procedente ou improcedente uma pretensão apenas “tendo em vista as provas dos autos”, o que evidentemente não atende ao dever de motivação.

Aliando este fato às bruscas e pouco compreensíveis mudanças de posicionamento da Conitec também na análise da incorporação do nusinersena para a AME Tipo I, conforme relatado acima, torna-se difícil prestar a aconselhável deferência judicial.

A deferência judicial é o acolhimento de decisões alheias que sejam bem fundamentadas e, portanto, compreensíveis. Não é um ato de fé, mas de respeito aos motivos demonstrados por aquele que tem competência e preparo para tratar da questão. Para se prestar deferência, não é necessário concordar com a decisão, mas é preciso bem entendê-la, tanto em relação aos fatos que a embasaram como em relação à avaliação sobre eles feita.

4. Conclusão

Para que a deferência judicial às decisões da Conitec seja satisfatoriamente atingida, é necessário que se trabalhe em duas frentes:

a) a conscientização dos juízes de que a Conitec é o órgão competente e qualificado para a avaliação de tecnologias em saúde a serem incorporadas ao SUS, de forma que suas análises e recomendações devem ser respeitadas porque feitas após rigoroso procedimento de levantamento das evidências científicas e de custo-efetividade; e

b) a conscientização da Conitec de que, quanto mais claros e objetivos forem seus relatórios e quanto mais fácil a identificação dos motivos que conduziram às recomendações firmadas, maior é a chance de serem acolhidos pelo Poder Judiciário.

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Tratamentos off label na judicialização da saúde

Quadra de tênis

1. Breve contextualização do tema

Dentre as inúmeras questões controvertidas na judicialização da saúde e que parecem nunca ser solucionadas pela jurisprudência, mesmo após teses serem firmadas pelas cortes superiores em julgamentos de recursos repetitivos, está aquela relacionada à possibilidade de o Poder Público ser compelido judicialmente a fornecer medicamentos em desacordo com as indicações constantes das respectivas bulas. Tanto o STF como o STJ já buscaram tratar deste ponto de forma pretensamente definitiva, mas a discussão ainda é candente nas varas e tribunais Brasil afora. É sobre isso que este artigo vai tratar.

2. Definição de tratamento off label

De forma bem simplificada, tratamentos ou prescrições off label são aqueles que não estão dentro dos parâmetros indicados na bula do medicamento, tal qual aprovada pela ANVISA. Isso pode se dar por diversas razões, conforme explicado pelo próprio Ministério da Saúde, através da CONITEC:

Ainda sem tradução oficial para o português, usa-se o termo off label para se referir ao uso diferente do aprovado em bula ou ao uso de produto não registrado no órgão regulatório de vigilância sanitária no País, que, no Brasil, é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Engloba variadas situações em que o medicamento é usado em não conformidade com as orientações da bula, incluindo a administração de formulações extemporâneas ou de doses elaboradas a partir de especialidades farmacêuticas registradas; indicações e posologias não usuais; administração do medicamento por via diferente da preconizada; administração em faixas etárias para as quais o medicamento não foi testado; e indicação terapêutica diferente da aprovada para o medicamento.

Por mais que a definição traga uma ideia de algo excepcional ou anormal, tratamentos off label são muito mais comuns do que se imagina. Muitas vezes, fundam-se em práticas já consagradas no meio médico e validadas pela experiência clínica, ainda que não indicadas em bula. Em outros casos, motivam-se pela ausência de terapias alternativas, o que faz com que os médicos busquem nos medicamentos já registrados pela ANVISA – e que contam, portanto, com a pressuposta garantia de segurança para a saúde do paciente – outras possibilidades de tratamentos, seja para doenças distintas ou para grupos de pacientes não contemplados nas indicações da bula.

Prescrições fora das indicações da bula são corriqueiras, por exemplo, no tratamento pediátrico, uma vez que o pequeno número de pesquisas científicas com crianças limita sobremaneira os registros de medicamentos em formulações ou dosagens específicas para elas. Por isso, há estimativas do próprio Ministério da Saúde de que as prescrições off label sejam superiores a 90% na pediatria. Conclusões parecidas foram atingidas no estudo de McIntyre J, Conroy S, Avery A, Corns H, Choonara I (Unlicensed and off label prescribing of drugs in general practice), segundo o qual:

On general paediatric surgical and medical wards, 36% of children receive at least one drug that is either unlicensed or off label during their inpatient stay. In paediatric intensive care this figure is 70% and in neonatal intensive care 90%.  A recent study of children's wards in five European countries found almost half of all prescriptions were either unlicensed or off label.
(…)
In conclusion, we found that an appreciable number of GP prescriptions for children are drugs used in an off label way. The reason for this is not hazardous prescribing practices but rather anomalies and inadequacies of product licence information with respect to children. Children deserve the safety, efficacy, and quality of medicines that the regulatory process affords to adults and such anomalies and inadequacies need to be addressed.

Situações semelhantes ocorrem com doenças raras ou em cuidados com idosos, que também não costumam figurar com tanta frequência nas pesquisas científicas destinadas a experimentar tratamentos de doenças de maior prevalência entre pessoas mais jovens.

É preciso deixar claro, portanto, que um tratamento off label não se equipara à utilização de medicamento sem registro na ANVISA. Além disso, é importante observar que muitas vezes tratamentos off label são estudados dentro dos mais rigorosos critérios científicos. Isso é possível porque, como será visto adiante, referidos tratamentos não são proibidos. Além do mais, é possível que indicações não aprovadas em um determinado país o sejam em outro, no qual as pesquisas prévias ou posteriores ao registro podem ser feitas normalmente. Com isso, é viável, em tese, colher evidências científicas de segurança, eficácia e efetividade da utilização de um medicamento mesmo na falta de previsão específica na sua bula.

3. Posicionamento da ANVISA, do CFM e do CFF

Ainda que seja proibida a prescrição, venda e utilização de medicamentos não registrados pela ANVISA, salvo autorização excepcional, a própria agência não veda a utilização de medicamentos registrados de forma distinta daquela indicada nas respectivas bulas. Em sua página na internet constam as seguintes informações:

O uso off label de um medicamento é feito por conta e risco do médico que o prescreve, e pode eventualmente vir a caracterizar um erro médico, mas em grande parte das vezes trata-se de uso essencialmente correto, apenas ainda não aprovado. Há casos mesmo em que esta indicação nunca será aprovada por uma agência reguladora, como em doenças raras cujo tratamento medicamentoso só é respaldado por séries de casos. Tais indicações possivelmente nunca constarão da bula do medicamento porque jamais serão estudadas por ensaios clínicos” (...) O uso off label é, por definição, não autorizado por uma agência reguladora, mas isso não implica que seja incorreto.

Neste ponto, a ANVISA segue os mesmos parâmetros do governo inglês, cujo sistema público de saúde é tido como referência internacional.

Postura semelhante é adotada pelo Conselho Federal de Medicina, que elaborou o Parecer 02/2016, o qual foi assim ementado:

Ementa - Os procedimentos médicos off label são aqueles em que se utilizam materiais ou fármacos fora das indicações em bula ou protocolos, e sua indicação e prescrição são de responsabilidade do médico. Não compete às Comissões de Ética emitir juízo de valor sobre o uso de off label.

No corpo do parecer, o posicionamento do CFM é exposto de forma mais clara:

O uso off label de um medicamento é feito por conta e risco do médico que o prescreve, e pode eventualmente vir a caracterizar um erro médico, mas em grande parte das vezes trata-se de uso essencialmente correto, apenas ainda não aprovado.
(...)
Utilizando linguagem objetiva, as prescrições na área não são proibidas porque se lida com produtos consagrados e de utilização reconhecida, contudo fora dos parâmetros previstos em bula ou em protocolos clínicos. No caso, o médico responde por eventuais insucessos, e, nessa circunstância, o sistema CRM/CFM será chamado a julgar, fazendo-o à luz de cada caso.
(...)
CONCLUSÃO Os procedimentos médicos off label são aqueles em que se utilizam materiais ou fármacos fora das indicações em bula ou protocolos e correm por conta de cada médico que o prescreve ou executa. Ao CRM/CFM compete julgar os insucessos sob a ótica do risco a que o médico submeteu seu paciente.

Já em relação aos farmacêuticos, o seu Código de Ética (Resolução CFF 596/2014) dispõe o seguinte no art. 14, XXIII:

Art. 14 - É proibido ao farmacêutico:
(…) 
XXIII - fornecer, dispensar ou permitir que sejam dispensados, sob qualquer forma, substância, medicamento ou fármaco para uso diverso da indicação para a qual foi licenciado, salvo quando baseado em evidência ou mediante entendimento formal com o prescritor.

A ressalva final contida no dispositivo citado demonstra que há um alinhamento em relação ao entendimento do CFM e da ANVISA. Todos eles aceitam, em princípio, a prescrição de tratamentos off label, mas ressalvando de forma bastante clara que os médicos prescritores devem assumir a responsabilidade pela utilização de medicamentos fora das indicações da bula. Portanto, ainda que não seja uma prática vedada, cabe aos médicos arcar com os riscos eventualmente decorrentes da prática, o que impõe que sejam investigadas por esses profissionais, em cada caso, as evidências científicas que sustentam as prescrições e as consequências para os pacientes em decorrência de sua utilização e não utilização.

4. Tratamentos off label no SUS

Por mais que a prescrição de medicamentos fora das indicações da bula seja prática corrente e não vedada pela ANVISA e pelos órgãos de controle e fiscalização médica e farmacêutica, a dispensação off label de fármacos no âmbito do SUS é proibida. De fato, o art. 19-T da Lei nº 8.080/90 (na redação dada pela Lei nº 12.401/2011) estabelece o seguinte:

Art. 19-T.  São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS:  
I - o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA;
  II - a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa.

É importante notar a distinção entre os procedimentos vedados em cada um dos incisos do dispositivo legal para bem compreender a proibição da dispensação off label no SUS. Enquanto o inciso I se refere a tecnologias em saúde “de uso não autorizado” pela ANVISA, o inciso II faz alusão a tecnologias “sem registro” na agência. A norma diferencia claramente, portanto, a situação de ausência de registro daquela em que a tecnologia é registrada, mas o uso se dá em desacordo com o autorizado. Ambas as hipóteses são vedadas.

A proibição não parece ilegítima ou desarrazoada. Como visto anteriormente, os tratamentos off label não contam com evidências científicas que tenham sido previamente submetidas à análise da ANVISA por ocasião do registro do medicamento. É justamente por isso que, ainda que tolerados pela própria agência e pelo CFM, ambos ressalvam expressamente que eventuais danos causados aos pacientes são riscos a serem suportados pelo médico prescritor e pelo paciente que com eles tenha expressamente assentido, tudo a ser apurado em cada caso específico.

A situação é muito diferente, entretanto, quando se trata de incorporação de um tratamento por uma política pública de saúde. Neste caso em que referido tratamento passa a ser institucionalizado mediante protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas estabelecidos por critérios objetivos, não há margem para a assunção de riscos e responsabilidades pelo Estado, para o dispêndio de recursos públicos e para a disponibilização ao público em geral de terapias  com prescrições não avalizadas pela ANVISA. Aqui se está muito além de interesses exclusivamente particulares de pacientes específicos e seus médicos de confiança que optam, juntos, pela submissão e prescrição de tratamentos fora das indicações da bula, assumindo os riscos daí decorrentes.

Vale relembrar que a segurança e eficácia do tratamento analisados pela ANVISA quando um medicamento é submetido a registro dizem respeito ao “uso a que se propõe”, nos termos do art. 16, II da Lei nº 6.360/76. É por isso que quando se pretende alterar as indicações do fármaco, sua composição ou dosagem, faz-se necessária a aprovação da agência, sob pena de cancelamento do registro. É o que dispõe o art. 19 da mesma lei:

Art. 19 - Será cancelado o registro de drogas, medicamentos e insumos farmacêuticos, sempre que efetuada modificação não autorizada em sua fórmula, dosagem, condições de fabricação, indicação de aplicações e especificações anunciadas em bulas, rótulos ou publicidade. 
Parágrafo único. Havendo necessidade de serem modificadas a composição, posologia ou as indicações terapêuticas de produto farmacêutico tecnicamente elaborado, a empresa solicitará a competente permissão ao Ministério da Saúde, instruindo o pedido conforme o previsto no regulamento desta Lei.

Assim, a vedação à disponibilização de tratamentos off label pelo SUS é uma garantia de que as terapias oferecidas pelo sistema público de saúde são seguras e eficazes. Ainda que na esfera privada, médicos e pacientes possam abrir mão dessa garantia “oficial” em razão de particularidades do caso concreto ou da convicção do profissional da saúde de que a utilização fora das indicações da bula conta com evidências científicas para o tratamento, essa flexibilidade não pode ser assumida genérica e irrestritamente dentro de uma política pública de saúde.

5. Tratamentos off label na jurisprudência do STF e do STJ

Como ocorre com praticamente todas as questões mais relevantes da judicialização da saúde na jurisprudência, a possibilidade de se obter judicialmente tratamentos off label pelo SUS ainda gera discussões, mesmo após o STF e o STJ já terem tratado, em acórdãos submetidos ao regime dos recursos repetitivos, do registro na ANVISA como requisito para que o Poder Público seja condenado a disponibilizar medicamentos não padronizados.

Tudo seria mais tranquilo se a análise se restringisse ao Tema 106/STJ, ocasião em que aquela Corte firmou a tese segundo a qual dentre os requisitos para a concessão de medicamentos não incorporados ao SUS está a “existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência”. A expressão “observados os usos autorizados pela agência” foi incluída na redação da tese por ocasião do julgamento dos embargos de declaração no REsp 1.657.156 justamente para esclarecer que tratamentos off label também não podem ser fornecidos por determinação judicial. O seguinte trecho do voto do Min. Benedito Gonçalves, que conduziu o acórdão, é bastante elucidativo:

Com efeito, o art. 19-T da lei n. 8.080/1990 dispõe que:
Art. 19-T. São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS: (Incluído pela Lei nº 12.401, de 2011)
I - o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA; (Incluído pela Lei nº 12.401, de 2011)
II - a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na ANVISA.”
Verifica-se, assim, que referido dispositivo de lei impõe duas vedações distintas. A constante do inciso I que veda o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso pelo SUS de medicamento fora do uso autorizado pela ANVISA, ou seja, para tratamento não indicado na bula e aprovado no registro em referido órgão regulatório. Já o inciso II, impede a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso pelo SUS de medicamento que não tenha ainda sido registrado na ANVISA. Assim, nos termos da legislação vigente, no âmbito do SUS somente podem ser utilizados medicamentos que tenham sido previamente registrados ou com uso autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA (uso off label).
(...)
Sendo assim, ainda que não conste no registro na ANVISA, na hipótese de haver autorização, ainda que precária, para determinado uso, é resguardado o direito do usuário do Sistema Único de Saúde de também ter acesso a utilização do medicamento no uso autorizado não presente no registro. 
Ante o exposto, acolho parcialmente os embargos de declaração do Estado do Rio de Janeiro, sem efeitos infringentes, para esclarecer que onde se lê: "existência de registro na ANVISA do medicamento", leia-se: "existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência".

Curiosamente, entretanto, o mesmo STJ – mas desta vez por meio das turmas que julgam matérias de direito privado (3ª e 4ª Turmas) – firmou entendimento no sentido de que “considera-se abusiva a negativa de cobertura de plano de saúde quando a doença do paciente não constar na bula do medicamento prescrito pelo médico que ministra o tratamento (off label)” (AgInt no AREsp 1682588/SP, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/12/2020, DJe 18/12/2020, dentre vários outros em idêntico sentido).

Acontece que o STF, no julgamento do Tema 500 de Repercussão Geral, firmou a seguinte tese:

1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido de registro (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); (ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União.

Nem a tese, nem o acórdão que lhe deu origem (RE 657.718), tampouco o voto do Min. Roberto Barroso, nos termos do qual o acórdão foi firmado, fazem qualquer referência ao tratamento off label.  Não ficou claro, portanto, se o registro na ANVISA a que a tese se refere é especificamente aquele para uso do medicamento tal como previsto na bula. Se for assim entendido, tratamentos em desacordo com o uso autorizado pela agência devem ser considerados, para todos os fins, como sem registro. Por outro lado, numa interpretação mais restritiva da tese, somente a ausência de qualquer registro atrairia a sua incidência.

Há decisões monocráticas do próprio STF no sentido de que a discussão sobre a possibilidade de concessão judicial de tratamentos off label pelo SUS não se enquadra na tese do Tema 500 (RE 1308073 / RJ – RIO DE JANEIRO – RECURSO EXTRAORDINÁRIO – Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA – Julgamento: 05/03/2021; e RE 1282257 – Min. EDSON FACHIN – Julgamento: 16/10/2020).

No STJ, há acórdão da 1ª Seção que chegou a essa mesma conclusão. Trata-se do AgInt no CC 172.061/PA, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, julgado em 01/09/2020. Na ocasião, o Tribunal julgou conflito negativo de competência entre Juízo Federal e Juízo Estadual em processo objetivando o fornecimento, pelo SUS, de Hidroxicloroquina, Cloroquina e Azitromicina aos pacientes com COVID-19. O Juízo Estadual remeteu o processo ao Federal sob o argumento de que o tratamento postulado é off label, o que tornaria a presença da União no polo passivo obrigatória. O Juízo Federal não aceitou a competência, suscitando o conflito.

O STJ decidiu que “o entendimento exposto no julgamento do RE n. 657.718/MG” – que deu origem ao Tema 500/STF – “diz respeito, apenas, a medicamentos sem registro na ANVISA, para o qual a Corte Suprema estabelece a obrigatoriedade de ajuizamento da ação em face da União”. Concluiu, então, que “tratando-se, in casu, de responsabilidade solidária dos entes federados, e não ajuizada a demanda em face da União, afastada a competência da Justiça Federal, na medida em que, conforme supracitado, ainda que se trate de uso off label dos medicamentos indicados, estes possuem regular registro na ANVISA”, tudo nos termos da ementa do acórdão.

Ainda que o STJ estivesse decidindo sobre competência jurisdicional, o fato é que ficou claro o seu entendimento de que a tese firmada no Tema 500/STF não abrange tratamentos off label.

6. Breves reflexões críticas

Como visto, tanto o STJ como o STF já se manifestaram sobre a possibilidade de dispensação, pelo SUS, de medicamentos sem registro na ANVISA. De acordo com a tese do Tema 106/STJ, ela é vedada, inclusive no que diz respeito aos tratamentos off label. Trata-se, então, de uma vedação absoluta e incondicional que é perfeitamente compreensível, na medida em que baseada apenas na legislação ordinária, que de fato veda a entrega de medicamentos sem registro ou em desacordo com ele pelo SUS (art. 19-T da Lei nº 8.080/90). Já segundo a tese do Tema 500/STF, medicamentos não registrados na ANVISA podem ser fornecidos judicialmente pelo SUS, mas apenas nas hipóteses excepcionais lá previstas e atendidos os requisitos estabelecidos.

Em um primeiro momento, seria o caso de prevalecer o entendimento do STF, a quem compete analisar a questão também sob o prisma constitucional. No entanto, caso se confirme a orientação já adotada por algumas decisões monocráticas do STF e pelo acórdão da 1ª Seção do STJ referidos no item anterior de que os tratamentos off label não estão abrangidos na Tese do Tema 500/STF, duas alternativas seriam possíveis.

A primeira seria enquadrar o tratamento off label apenas no Tema 106/STJ, cuja tese dele tratou expressamente, para concluir que estaria vedado em qualquer hipótese. A situação seria bastante incoerente, porque neste caso o fornecimento de medicamentos sem registro algum na ANVISA seria possível, dentro dos critérios estabelecidos na tese do Tema 500/STF, mas o fornecimento de fármacos registrados, mas prescritos em desacordo com as indicações da bula seria completamente vedado. Em outras palavras, a hipótese mais grave de completa ausência de registro receberia um tratamento mais suave do que a hipótese menos grave.

A segunda alternativa seria aplicar, ainda que analogicamente, os requisitos e condicionantes para a disponibilização de medicamentos sem registro na ANVISA, da forma como previstos na tese do Tema 500/STF, também aos casos de tratamentos off label. O emprego da tese por analogia decorre justamente do fato de o STJ e o STF entenderem que ela não teria sido firmada propriamente para as situações de prescrições off label

Haveria, entretanto, uma relativização a ser feita.

Como demonstrado acima, a própria ANVISA, o CFM e o Código de Ética dos profissionais farmacêuticos aceitam a prescrição e a utilização de medicamentos off label, ainda que sob responsabilidade do profissional prescritor e com os riscos daí decorrentes sendo assumidos também pelo paciente. É uma situação distinta da ausência de qualquer registro, porque o registro para indicações diversas das pretendidas assegura, no mínimo, que o fármaco não é perigoso para a saúde humana em níveis não aceitáveis.

Por outro lado, conforme consta na própria página eletrônica da ANVISA na internet, citada no item 3, acima, “Há casos mesmo em que esta indicação nunca será aprovada por uma agência reguladora, como em doenças raras cujo tratamento medicamentoso só é respaldado por séries de casos.

Neste caso, é preciso cautela na exigência contida na tese do Tema 500/STF de que o medicamento não registrado na ANVISA esteja ao menos registrado em renomadas agências estrangeiras. Neste ponto, uma obediência estrita e rigorosa de tal requisito em relação aos tratamentos off label poderia resultar na absoluta impossibilidade prática de dispensação do fármaco para tratamentos importantes de doenças raras, mesmo já tendo ele sua segurança atestada para tratamentos distintos.

Por outro lado, de forma a evitar o fornecimento, pelo SUS, de tratamentos que possam oferecer riscos inaceitáveis aos pacientes ou que não contem com uma garantia efetiva de que os resultados a que se propõe serão atingidos, a exigência de registro em agências estrangeiras para o uso a que se pretende fazer pode ser substituída pela exigência de evidências científicas qualificadas e possíveis de serem produzidas dentro das particularidades do caso concreto. Desta forma, a situação seria um meio termo entre a ampla liberdade de prescrição off label na iniciativa privada (sob risco e responsabilidade das partes envolvidas) e os rigores necessários para o fornecimento de medicamentos não registrados pela ANVISA.




Na Linha de Frente: o dever de tutela e o controle judicial das medidas de combate à pandemia

Bansky detalhe obra

Imagine que um grupo terrorista tenha sequestrado um empresário influente no país e feito a seguinte exigência ao governo: “ou vocês libertam os nossos líderes que estão presos ou executamos o refém. Vocês têm 48 horas para decidir”!

Esse cenário dramático poderia ser o roteiro de qualquer série eletrizante da Netflix, mas foi o pano de fundo de um caso real que ocorreu na Alemanha no final dos anos 1970. O grupo terrorista era a Fração do Exército Vermelho (RAF), e o empresário era o presidente da Federação Alemã dos Empregadores, Hanns-Martin Schleyer.

O governo alemão, liderado pelo chanceler Helmut Schmidt, estava empenhado em encontrar o cativeiro de Schleyer e libertar o refém, mas sinalizava para a imprensa que não iria ceder à pressão dos sequestradores.

Inconformado com a atitude do governo, o filho do empresário sequestrado interpôs uma queixa constitucional ao Tribunal Constitucional Federal (TCF), alegando que, ao não atender às exigências dos sequestradores, o Estado estava praticamente condenando seu pai à morte. Como o estado teria o dever de proteger a vida, o governo estaria obrigado a cumprir as exigências dos sequestradores, não podendo escolher uma linha de ação que, na prática, representaria o sacrifício da vida humana (ALEMANHA, 46 BVerfGE 16).

Esse caso levou o TCF a refinar a teoria do dever de tutela estatal, que estabelece que o estado é obrigado a adotar medidas adequadas e necessárias para garantir que os direitos fundamentais sejam devidamente protegidos e respeitados contra agressões de agentes públicos e privados.

A teoria do dever de tutela havia sido desenvolvida originalmente no caso Aborto I (ALEMANHA, 39 BVergGE 1), onde foi estabelecido que o estado tem um dever abrangente de adotar medidas para proteger a vida humana, seja proibindo a violação da vida pelo próprio estado, seja se posicionando de forma protetora e fomentadora contra a ameaças de terceiros (SCHWAB & MARTINS, 2006, p. 269).

Mesmo reconhecendo a existência de um dever abrangente de proteger a vida humana, o TCF confere uma margem de liberdade para a definição de que medidas devem ser adotadas pelo poder público, apenas exigindo que sejam suficientes, adequadas, eficientes e racionais. Assim, no caso Aborto II (ALEMANHA, 203 BVergGE 88), ficou decidido que o Estado deve adotar medidas normativas e fáticas suficientes para cumprir seu dever de tutela, sendo tarefa do legislador determinar o tipo e a extensão da proteção, vez que a Constituição apenas estabelece a proteção como meta, não detalhando a sua configuração. O legislador, contudo, deve respeitar a proibição de insuficiência, considerar os bens jurídicos contrapostos, adotar medidas suficientes para uma proteção adequada e eficiente e se basear em cuidadosas averiguações de fatos e avaliações racionalmente sustentáveis (SCHWAB & MARTINS, 2006, p. 269).

A teoria do dever de tutela pode funcionar como um parâmetro metanormativo para justificar o controle judicial das omissões estatais. Isso pode ser especialmente útil para definir o papel da judicialização em contexto pandêmico. Para as juízas e juízes brasileiros é importante ter uma bússola para orientar a análise das ações judiciais que questionam as medidas estatais tomadas no combate à pandemia, inclusive a decretação (ou não) do lockdown, entre outras.

Em princípio, o estado tem um dever abrangente de adotar medidas de tutela para combater a pandemia e proteger a vida humana. A inação do Estado pode ser controlada pelos tribunais tanto em caso de total omissão quanto em caso de proteção insuficiente, ou seja, quando a atuação estatal for inadequada, e ficar aquém do necessário para proteger eficientemente o direito à vida. Porém, os órgãos estatais competentes possuem uma ampla margem discricionária para avaliarem, valorarem e conformarem as medidas a serem adotadas, que somente podem ser revistas judicialmente em condições muito restritas.

Uma das condições exigidas para justificar a intervenção judicial consiste em demonstrar que o Poder Público não adotou quaisquer medidas de proteção, deixando as vidas completamente desprotegidas. Essas situações são bem raras, pois, em geral, quando a saúde pública está em risco, o Estado tende a adotar algumas medidas mínimas de proteção. Nesse caso, surge uma segunda possibilidade: demonstrar, de maneira conclusiva e fundamentada, que as medidas adotadas são totalmente inadequadas ou completamente insuficientes para proteger as vidas humanas ameaçadas.

Essa segunda condição ocorre com mais frequência, mas contém uma dificuldade argumentativa e probatória, uma vez que nem sempre é possível formar um juízo suficientemente seguro capaz de garantir que as medidas adotadas foram totalmente inapropriadas, sobretudo em um contexto marcado pela incerteza, ausência de consenso e alta complexidade.

Justamente por ser difícil formar um juízo suficientemente seguro em questões com um alto nível de complexidade, como são as medidas sanitárias de combate à pandemia, a margem de conformação dos órgãos públicos deve ser ampliada, inclusive para realizar testes, obter dados e construir modelos para orientar as ações futuras. Qualquer prognóstico, por enquanto, é incerto, pois as variáveis envolvidas ainda estão além dos limites da razão prática.

Na medida em que a curva de aprendizagem no combate à pandemia for evoluindo, será possível ter um juízo mais preciso sobre quais medidas são mais efetivas e quais não são. Também será possível verificar com mais segurança os excessos e as insuficiências das medidas adotadas. Contudo, no atual momento (início de 2021), ainda estamos tateando no escuro, não sendo possível estabelecer, com uma elevada margem de certeza, o que deve ser feito, nem em que medida e quando deve ser feito.

Outro aspecto relevante é que as medidas de combate à pandemia tendem a produzir efeitos colaterais indesejados, gerando impactos graves, profundos e duradouros em diversas áreas, tanto psicossociais quanto econômicas. Isso torna ainda mais relevante levar a sério o ônus político na tomada desse tipo de decisão, pois não se trata apenas de ponderar vida versus dinheiro. A equação é muito mais complexa, havendo muito mais em jogo do que simplesmente salvar empregos ou reduzir a curva de contaminação para evitar o colapso no sistema de saúde.

Mesmo reconhecendo que o poder público deve ter uma ampla margem de liberdade para definir que medidas serão tomadas, é preciso que as ações estatais sejam devidamente justificadas. A justificativa que se exige é apenas um juízo de plausibilidade quanto à adequação, suficiência, necessidade e efetividade das medidas. Ou seja, o que se exige é apenas um mínimo de racionalidade capaz de demonstrar que as medidas foram baseadas em uma averiguação cuidadosa dos fatos e avaliações racionalmente sustentáveis.

A justificativa nos moldes acima propostos também está conectada com os aspectos processuais e organizacionais de construção da solução adotada. As decisões estatais precisam ser tomadas dentro de um processo plural e participativo, em que o maior número de pessoas e setores afetados possa contribuir e ter os seus interesses levados em conta. Por isso, o método de tomada de decisão administrativa também pode servir de parâmetro para justificar o aumento ou a redução da intensidade do controle judicial.

Quando o poder público demonstra um esforço considerável para elaborar uma solução que proteja da melhor forma possível os interesses em jogo, pode-se inferir que há uma pretensão (e presunção) de atuação satisfatória e responsável. Esse esforço pode ser comprovado com a demonstração de que foram realizados estudos de campo, análises de dados, manifestação de experts, reuniões temáticas e pluriparticipativas, formação de comissões técnicas, audiências públicas para ouvir as pessoas e setores afetados, transparência e assim por diante.

Além disso, no caso específico do combate à COVID-19, os órgãos públicos podem demonstrar o esforço na superação do problema por meio da comprovação de que estão sendo canalizados recursos orçamentários para a contratação de pessoal, compra de insumos, ampliação da rede de serviço público, campanhas de conscientização etc. Quando tudo isso é acompanhado por um sistema eficiente de accountability, programas de integridade (compliance) e de boa governança, a atuação judicial deve ser ainda mais autocontida.

A lógica, portanto, é bem simples: em contexto de pandemia, com alto grau de incerteza e de complexidade, o Poder Judiciário deveria intervir o mínimo possível e apenas nos casos em que a resposta estatal foi comprovadamente equivocada. Não sendo possível constatar, de modo conclusivo, a falha ou a omissão administrativa, a intervenção judicial tende mais a prejudicar o bom planejamento e a execução dos programas de gestão do que a contribuir para a superação do problema.

Não há como estabelecer um rol exaustivo de falhas que poderiam justificar a judicialização. Contudo, é possível conjecturar alguns fatores que indicam uma proteção deficitária. Por exemplo, tomar decisões com base em opiniões claramente dissociadas do conhecimento científico consolidado ou com base exclusivamente em critérios políticos sem lastro sanitário; deixar propositadamente de seguir as orientações baseadas em evidências para se guiar por ideias fantasiosas ou que sequer passam no teste da plausibilidade extrema; reduzir injustificadamente o orçamento em saúde ou mais especificamente os recursos destinados ao combate à pandemia; curvar-se a pressões de categorias específicas sem justificação; adotar medidas que firam a isonomia (por exemplo, fechar lojas de roupas e não fechar de calçados ou proibir a circulação de Uber, mas não proibir de táxi); proibir o funcionamento de atividades absolutamente necessárias e assim por diante.

Como se vê, o ponto central é perceber que a atuação judicial deveria ser apenas a ultima ratio e, ainda assim, em situações absolutamente fora da curva. Em um contexto pandêmico, o princípio da deferência deve ser ainda mais prestigiado, conferindo uma maior margem de manobra aos gestores que demonstrem estar verdadeiramente empenhados em superar o problema da melhor forma possível. Expressões como subsidiariedade, atuação excepcional, em último caso, que sempre estão presentes nos precedentes do Supremo Tribunal Federal quando analisa o papel do Judiciário em demandas de saúde não devem ser tratadas como palavras ao vento.

Voltando ao caso Schleyer, que comentamos no início deste texto, o Tribunal Constitucional Federal indeferiu o pedido do filho do empresário, sob o fundamento de que, em situações trágicas como aquela, marcada pela incerteza, caberia às autoridades da “linha de frente”, com base em suas respectivas competências e ponderando adequadamente os valores em conflito, tomar as medidas adequadas e necessárias, dentro de uma margem de discricionariedade e conveniência. Se o governo fosse sempre obrigado a ceder aos apelos dos terroristas toda vez que alguém fosse ameaçado, o número de ataques aumentaria consideravelmente, gerando uma violação ainda maior do direito à vida. Assim, os juízes constitucionais não estariam em condições de ordenar às autoridades estatais competentes que adotem qualquer medida especial. A responsabilidade para decidir que passos devem ser dados para o desempenho da obrigação estatal de proteger a vida é, em primeira linha, do governo.

Trazendo essa mesma ideia para o controle judicial das medidas de combate à pandemia, pode-se dizer que o Poder Judiciário brasileiro não está em posição de ordenar às autoridades sanitárias competentes o que fazer, nem o que deixar de fazer. São os órgãos estatais, dentro de sua esfera de competência e seguindo a sua responsabilidade técnica e política, que devem assumir o ônus de suas decisões. Ressalvando-se situações excepcionais, em que os órgãos competentes claramente se omitem ou adotam medidas irracionais e notoriamente insuficientes, recomenda-se a autocontenção judicial e a deferência às soluções tomadas, de modo justificado, pelos órgãos competentes.

PS. A título de curiosidade, o caso Schleyer teve um desfechado dramático. Durante as negociações, outros terroristas palestinos sequestraram um avião da Lufthansa, declarando apoio à RAF e exigindo a libertação imediatamente dos prisioneiros. Apesar de toda a pressão, o governo alemão não cedeu. No dia 18 de outubro de 1977, a polícia alemã conseguiu neutralizar os sequestradores do avião e libertaram os 91 reféns com vida. Na mesma noite, três líderes da RAF que estavam presos se suicidaram na Alemanha. Um dia depois, o corpo de Hanns-Martin Schleyer foi encontrado no porta-malas de um carro abandonado na fronteira da Alemanha com a França. O empresário fora executado com um tiro na nuca.


Referências:

MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2018

MICHEL, Lothar & MORLOK, Martin. Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2016

SCHWAB, Jürgen & MARTINS, Leonardo (org.). Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão.  Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006

SARMENTO, Daniel. Os Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006

Imagem do post: reprodução de Banksy




De médico e de louco…

Chapeleiro louco

Início dos anos 2000, Comarca de Curiúva-PR, juíza com atuação em todas as competências: cível, criminal, família, infância e juventude, juizados especiais, eleitoral e por aí vai.

Uma tarde entro no cartório e encontro uma funcionária com os pés em carne viva, pele toda descascada, de chinelos.

O que aconteceu com o teu pé fulana? – pergunto.

Não sei doutora, passei algumas pomadas, mas nada resolveu.

Como alguém que adora dar palpite arrisquei: será que não é fungo? Fiz recentemente um tratamento para micose nas unhas e tomei um remédio chamado fluconazol.

Como é o nome do remédio doutora? Vou anotar.

Ai falei demais.

Fulana, remédio precisa de prescrição, vá ao médico e confira com ele.

Cidade pequena, a moça comprou o remédio e na semana seguinte estava com a pele dos pés normal novamente, muito agradecida pela indicação.

Passados mais alguns dias, uma conselheira tutelar me procura no fórum.

Apreensiva, imaginando alguma criança em situação de vulnerabilidade, a recebi e perguntei: tudo bem? Alguma tarefa difícil para o Conselho?

Então doutora, queria perguntar uma coisa para a senhora, por isso vim até aqui – fala a conselheira meio sem jeito. Meu menino está com uma mancha no braço…o que a senhora acha que pode ser? Será que a senhora pode dar uma olhada nele? Passar algum remédio?

Livrei-me da saia justa prometendo para mim mesma nunca mais “receitar” nada para ninguém e a orientando a procurar o pediatra.

Ela ainda insistiu dizendo que eu havia “curado” a funcionária do cartório

Nos despedimos e minha “carreira” de médica (ou de curandeira?), para o bem da humanidade, terminou por ali.

A história, no entanto, permaneceu na memória e mais recentemente me trouxe a reflexão que agora compartilho de forma despretensiosa.

A proximidade do juiz estadual com a comunidade, seja em grandes ou pequenos Municípios, o torna mais suscetível na análise de demandas por medicamentos ou tratamentos médicos? É mais difícil para ele tomar decisões nas demandas por saúde?

A filosofia, com o conceito de justiça, e a psicologia, com o conceito de empatia, auxiliam nessa resposta. Daniel Wang em seu artigo “Judicialização da Saúde: da crítica à busca de uma jurisprudência construtiva” (2019), explicita que:

“Nossos julgamentos morais são moldados pela aprovação daquilo que faz os outros felizes e a rejeição ao que causa dor, mesmo se não somos diretamente afetados. Hume chamou a capacidade de sentir sympathy de “humanidade”. Humanidade para Hume, porém, é diferente de justiça. A humanidade é inescapavelmente parcial e escassa. Nossa sympathy é maior quanto mais próximos somos de uma pessoa ou quanto melhor a conhecemos. O drama de alguém cujo nome, rosto e história conhecemos e com quem nos identificamos nos afeta muito mais do que a de um estranho ou um número em uma estatística”. (WANG, 2019, p.2)

Um estudo que analisou a percepção de magistrados no Estado do Maranhão sobre as demandas envolvendo saúde pública (NEVES e PACHECO, 2017) confirma essa constatação. A maioria dos entrevistados referiu alguma dificuldade na apreciação de causas que envolvem a vida e a saúde das pessoas. Um deles, ao falar de tal dificuldade, chegou a se utilizar da expressão “a escolha de Sofia”, fazendo
analogia com a história da mãe polonesa, presa num campo de concentração durante a Segunda Guerra e que é forçada a escolher um de seus dois filhos para ser morto (p. 757-760).

O mesmo estudo ainda aponta as impressões da constitucionalista Ana Paula de BarcellosBARCELLOS, Ana Paula de. O direito a prestações de saúde: complexidade, mínimo existencial e o valor das abordagens coletivas e abstratas. In: Revista da Defensoria Pública, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 133-160, jul./dez. 2008. (2008) sobre o dilema:

“É certamente penoso para um magistrado negar […]. Um doente com rosto, identidade, presença física e história pessoal, solicitando ao Juízo uma prestação de saúde, é percebido de forma inteiramente diversa da abstração etérea do orçamento e das necessidades do restante da população, que não são visíveis naquele momento e têm sua percepção distorcida pela incredulidade do magistrado, ou ao menos pela fundada dúvida de que os recursos públicos estejam sendo efetivamente utilizados na promoção da saúde básica” (BARCELLOS, 2008, p. 136, apud NEVES e PACHECO, 2017, p. 759-760).

Transportando os conceitos da filosofia e da psicologia para o direito e encaminhando a questão para o enfoque processual, todavia, abre-se uma nova reflexão, em especial no que diz respeito às demandas relativas à saúde pública.

Note-se, primeiramente, que muitas vezes uma demanda com base no direito fundamental à saúde tem como pano de fundo a necessidade de incorporação de determinado medicamento ou insumo ao SUS ou a necessidade de revisão de determinado protocolo clínico ou de revisão de critérios administrativos de gestão de acesso a alguns serviços, como consultas especializadas, cirurgias ou leitos hospitalares.

O juiz se depara, deste modo, com questões como definição de políticas públicas, alocação de recursos orçamentários e análise de evidências científicas cuja amplitude e complexidade extrapolam os limites da lide individual e o colocam, antidemocraticamente, na condição de substituto do administrador.

Daí já se pode inferir que não é propriamente a natureza da demanda que dificulta ou dramatiza sua análise, mas sim seu tratamento sob o prisma da tutela individual encaminhada pelas vias processuais tradicionais.

Vale dizer, a causa ajuizada sob este formato, embora ingresse no sistema judiciário com a roupagem individual, encerra verdadeiro litígio de interesse público e sua abordagem convencional se revela ainda mais imprópria quando se repetem ações com o mesmo pedido.

A doutrina, aliás, já identificou os inúmeros problemas que o tratamento das demandas repetitivas nos mesmos moldes das individuais pode acarretar:

“I) abarrotamento dos juízos de demandas idênticas ou similares, com possível contraste de decisões (superficialmente produzidas) e eventual tratamento diferenciado das partes em presença da mesma lesão; II) diversidade de defesa técnica entre os litigantes habituais e eventuais; III) em decorrência da ausência de mecanismos legítimos e que proporcionem coerência e estabilidade decisória uma completa anarquia interpretativa e IV) déficits de representação (subrepresentação) no julgamento da causa piloto pelo fato de somente parcela dos argumentos e interesses são levados em consideração. E, em países como o Brasil, em que não são asseguradas políticas públicas adequadas de obtenção de direitos fundamentais, a já aludida litigância de interesse público (Publicinterestlitigation), que consiste num dos fatores determinantes da geração de demandas repetitivas, não constitui uma exceção, mas, sim, uma regra, de modo a conduzir inúmeras pessoas à propositura de demandas envolvendo pretensões isomórficas (v.g., contra o poder público), que merecem um tratamento diferenciado e legítimo" (THEODORO JÚNIOR, et al, 2016, p. 381, apud BAHIA, NUNES e COTA, 2019, p. 19)THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC – Fundamentos e sistematização. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016..

Para solucionar tais problemas e a inadequação dos instrumentos processuais habituais na tutela das ações por direitos fundamentais e de interesse público, apresenta-se o conceito de processo estrutural.

Neste a principal preocupação do julgador é a de decidir mediante observação do contexto social, político e econômico em que se insere a demanda, com a consciência de que sua decisão pode provocar mudanças institucionais complexas.

Conforme explica Fernando Alcântara Castelo (2017):

“a garantia da efetividade do provimento é uma das maiores, senão a maior, preocupação dessas decisões, que buscam privilegiar a solução mais ampla, que alcance resultados que possam beneficiar toda a coletividade, atendendo as suas necessidades” (ibidem, p. 5)

Desse panorama exsurge, por consequência, outra constatação, a de que é no âmbito das ações coletivas que o juiz pode, mais facilmente e com mais segurança, proferir decisões “estruturais”, uma vez que:

“ao contrário do processo individual, o conflito estrutural não diz respeito tão somente a dois polos de interesses contrapostos. A racionalidade destes conflitos é diversa: trata-se de um processo multipolar, nos quais, superando a lógica bipolarizada, são formados diversos núcleos de interesses, muitas vezes antagônicos, acerca do objeto do litígio” (FACHIN e SCHINEMANN, 2018, p. 237).

Ainda que se admita a prolação de decisões estruturais em demandas individuais por medicamentos, as vantagens da adoção do processo estrutural nas ações coletivas são evidentes, com destaque para:

“a maior capacidade de diálogo com os gestores públicos e com a sociedade organizada, bem como a potencialidade de ser um mecanismo capaz de levar a um efetivo aprimoramento da política pública de medicamentos pela via judicial” (CHAGAS et al, 2020, p. 108)

A par disso, o ajuizamento de uma ação coletiva relativa à macro-lide geradora de processos multitudinários enseja, por relação de prejudicialidade, a suspensão das ações individuais, consoante entendimento já reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de recurso repetitivoRecurso Especial No 1.110.549 – RS (2009/0007009-2), Relator Min. Sidnei Benetti, DJE 14/12/2009, fazendo estancar novos ajuizamentos com idêntica pretensão e evitando que sejam proferidas decisões conflitantes e desiguais.

Há de se ponderar, contudo, que as ações coletivas encontram pouco incentivo na cultura processual brasileira. Recente pesquisa promovida pelo CNJ (MELO e HERCULANO, 2019), embora tenha apresentado dados que “contrariam a crença que aponta que tribunais e juízes estariam mais dispostos a decidir casos individuais de forma favorável do que realizar reformas estruturais na política pública de saúde via ações coletivas” ainda verificou que “é baixo o número de ações coletivas se comparadas às individuais. Isso revela que a judicialização da saúde se dá muito mais pela via individual do que pela coletiva” (p. 4).

Como forma de iniciar uma mudança desse paradigma, algumas sugestões se mostram oportunas para incentivar o ajuizamento de ações coletivas, particularmente a utilização de dados estatísticos das próprias demandas individuais, tais como número de ações que se repetem em micro e macrorregiões e número de pareceres e notas técnicas solicitadas aos NATs em relação a determinado medicamento ou tratamento.

Os dados poderiam ainda ser confrontados com os pareceres e estudos em andamento pela CONITEC com identidade de objeto e informados aos órgãos competentes de modo a contribuir na definição de atualização ou estabelecimento de novos protocolos clínicos.

Igualmente no campo estatístico, em plena “era dos dados”, também a melhoria na pesquisa de informações disponíveis nos sistemas processuais poderia auxiliar na valorização da tutela coletiva.

Hermes Zaneti Jr. e Daniela Bermudes Lino, no artigo “Os painéis do CNJ e os dados da efetividade das ações coletivas no Brasil” (2019), trazem opiniões relevantes para tanto:

  • “a taxonomia das tabelas unificadas CNJ/CNMP é fundamental. Uma boa alimentação dessas informações pelo Judiciário e pelos MPs poderá representar um ganho quantitativo, mas também qualitativo. Com dados poderemos evitar ajuizamento de ações desnecessárias e demonstrar a efetividade das ações ajuizadas;
  • a taxonomia pode ser melhorada. Por exemplo, marcar as ações coletivas dentro de uma classe específica, evitando que ações com nome de ação civil pública, mas que são individuais, fossem consideradas para fins de coleta de dados. Embora isso já tenha sido resolvido em parte pelo Ministério Público com a disciplina dos procedimentos administrativos, o problema não foi eliminado e a questão do erro humano acaba sendo potencializada pela confusão terminológica;
  • devemos evoluir nas ferramentas de pesquisa a partir do cruzamento de informações. Os painéis do CNJ apresentam algumas dificuldades de leitura, por exemplo, não foi possível, pelo menos até agora, obter um cruzamento dos dados de assunto e classe (ações coletivas por matéria). No MP-ES, esse cruzamento é possível, como foi demonstrado — assunto, movimento e classe podem ser combinados;
  • para os novos rumos da pesquisa sobre a efetividade das ações coletivas, agora é importante, para além dos números, buscar dados sobre os resultados das ações coletivas, tempo de tramitação, eventualmente, número de membros do grupo. Claro que algumas dessas questões exigiria mudanças das ferramentas de alimentação de dados e de pesquisa, mas isso seria uma segunda etapa;
  • no painel do CNJ, não conseguimos relacionar o movimento da classe (ação civil pública, por exemplo) com o movimento (procedência, improcedência etc.). No painel do MP-ES, esse cruzamento de dados é possível e permite-se a identificação, por assunto, das sentenças favoráveis, desfavoráveis ou parcialmente favoráveis ao MP do Espírito Santo”. (ibidem, p. 8)

A Resolução nº 339 de 08/09/2020 do CNJ, a propósito, dá um grande passo nesse sentido na medida em que estabelece a criação dos Núcleos de Ações Coletivas e as regras para implantação dos cadastros de ações coletivas dos Tribunais.

A Resolução, aliás, apresenta diretrizes bastante inovadoras para disponibilização de tais cadastros:

Art. 8º Cabe aos tribunais abrangidos por esta Resolução a criação ou aprimoramento, conforme o caso, de cadastros próprios de processos coletivos, que deverão ser disponibilizados em seus portais na internet, com
informações atualizadas e de interesse público, observadas as seguintes diretrizes:
I – as informações deverão ser de fácil localização, em formato de consulta e linguagem acessível ao jurisdicionado;
II – destaque dos temas de repercussão social, econômico e ambiental; e
III – apresentação de esclarecimentos sobre o funcionamento das ações coletivas e a possibilidade de direcionamento para cadastros de soluções administrativas, inquéritos ou soluções consensuais dos legitimados para as ações coletivas, como o Ministério Público e a Defensoria Pública.

O emprego de dados estatísticos consistentes, portanto, aliado ao diálogo institucional com os legitimados para as ações coletivas e com a própria Administração, poderia servir de termômetro para a análise de legítimas necessidades sociais e fazer emergir uma judicialização da saúde mais propositiva e eficaz no auxílio à construção de políticas públicas nesta área.

Voltando à história que serviu de ponto de partida para a presente reflexão, finalizo com a confiança de que, ao sair de um “modelo de atuação judicial meramente responsivo e repressivo” para assumir um “modelo resolutivo e participativo” (DIDIER JUNIOR e ZANETI JUNIOR, 2017DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes. Curso de direito processual civil – v. 4:processo coletivo. 11. ed. Salvador: JusPODIVM; 2017., apud CHAGAS et al., 2020, p. 106) na apreciação das demandas de saúde, o Judiciário deixa a posição de “curandeiro” para ocupar a de agente transformador da sociedade.

Imagem do post: Paolo Nicolello on Unsplash




Divisão de competências nas Ações e Serviços Públicos em Saúde no SUS: decifra-me ou te devoro – Parte II

gato em pose de esfinge

Há um tempo atrás, publicamos neste blog o artigo Pactuação da assistência farmacêutica no SUS: decifra-me ou te devoro. Para quem acha que a divisão de responsabilidades entre os entes federativos em relação à aquisição e ao fornecimento de medicamentos pelo sistema público de saúde já é complexa, tenho a dizer que seus problemas aumentaram. Mas é preciso enfrentá-los, porque o conhecimento da repartição das atribuições administrativas entre União, estados e municípios nas ações e serviços públicos em saúde em geral dentro do SUS é fundamental para a definição de questões processuais e materiais na judicialização da saúde, especialmente a competência jurisdicional e a legitimidade das partes, na esteira do que decidido pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 793 em sede de repercussão geral, cuja análise também foi objeto de estudo aqui no blog.

A maior parte das discussões voltadas à judicialização da saúde no âmbito do SUS costuma versar sobre a entrega de medicamentos, que tem uma sistemática específica de repartição de competências administrativas regulamentada pela Política de Assistência Farmacêutica. Não se pode desconsiderar, entretanto, as não menos importantes demandas pelas demais tecnologias em saúde, tais como próteses, órteses, exames laboratoriais e de diagnósticos, procedimentos cirúrgicos e toda a gama de demais procedimentos inseridos dentro das ações e dos serviços públicos de saúde do SUS.

Tanto os medicamentos como as demais ações e serviços públicos de saúde estão inseridos na assistência terapêutica integral do SUS referida pelo art. 6º, I, “d” da Lei nº 8.080/90, a qual consiste, nos termos do art. 19-M da mesma lei, na “dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde” (inciso I) e na “oferta de procedimentos terapêuticos, em regime domiciliar, ambulatorial e hospitalar, constantes de tabelas elaboradas pelo gestor federal do Sistema Único de Saúde – SUS” (inciso II). Os produtos a que se refere o inciso I são as órteses, próteses, bolsas coletoras e equipamentos médicos (art. 19-N, I da Lei nº 8.080/90). 

Todos esses produtos e procedimentos devem estar inseridos em Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas e são incorporados ao SUS, excluídos ou alterados pelo Ministério da Saúde, após a necessária avaliação técnica pela CONITEC em relação à sua eficácia, segurança, efetividade e ao custo-efetividade (art. 19-O, parágrafo único e art. 19-Q da Lei nº 8.080/90).

Especificamente em relação aos medicamentos, o art. 19-P da Lei nº 8.080/90 estabelece que sejam instituídas pelos respectivos gestores do SUS listas de todos os fármacos incorporados nas respectivas esferas. São as conhecidas Relações nacional (RENAME), estaduais e municipais (REMUME’s) de medicamentos, atualizadas periodicamente conforme novas drogas são nelas incluídas, atualizadas ou delas excluídas.

Além dessas relações específicas para os medicamentos previstas na Lei nº 8.080/90, o Decreto nº 7.508/2011 previu a criação da RENASES (Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde), a qual, como o próprio nome diz, “compreende todas as ações e serviços que o SUS oferece ao usuário para atendimento da integralidade da assistência à saúde” (art. 21). É nesta lista, portanto, que constam todos os produtos (órteses, próteses, bolsas coletoras e equipamentos médicos) e demais procedimentos (exames, procedimentos cirúrgicos, tratamentos ambulatoriais e hospitalares, etc) disponíveis no sistema público de saúde. De forma bastante didática, o art. 14 da Portaria de Consolidação nº 01/2017 do Ministério da Saúde dispõe o seguinte:

Art. 14. Fica publicada a Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (RENASES), que compreende todas as ações e serviços que o SUS oferece ao usuário, para atendimento da integralidade da assistência à saúde, em atendimento ao disposto no art. 22 do Decreto nº 7.508 de 28 de junho de 2011 e no art. 7º, inciso II da Lei nº 8.080/90, disponível no endereço eletrônico do Ministério da Saúde: http://portalsaude.saude.gov.br.
§ 1º Esta versão contém as ações e serviços ofertados pelo SUS na data de publicação do Decreto nº 7508, de 28 de junho de 2011, com acréscimo dos novos serviços e ações instituídos posteriormente.
§ 2º As ações e serviços descritos na RENASES contemplam, de forma agregada, toda a Tabela de Procedimentos, Órteses, Próteses e Medicamentos do SUS.

A elaboração da RENASES é atribuição do Ministério da Saúde, que deve, entretanto, observar as diretrizes gerais pactuadas pela Comissão Intergestores Tripartite – CIT, tudo nos termos do art. 22 e do art. 32, parágrafo único, I do Decreto nº 7.508/2011. Essa comissão reúne representantes das três esferas de gestão do SUS, harmonizando as respectivas competências comuns e operacionalizando as deliberações conjuntas dentro da estrutura estabelecida pelo pacto federativo. Atualmente, é a Resolução 02/2012 da CIT que dispõe sobre as diretrizes para a elaboração da RENASES no âmbito do SUS.

Assim como ocorre em relação às listas de medicamentos, além da Relação Nacional de Ações e Serviços em Saúde, “os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão adotar relações específicas e complementares de ações e serviços de saúde, em consonância com a RENASES, respeitadas as responsabilidades dos entes pelo seu financiamento, de acordo com o pactuado nas Comissões Intergestores” (art. 24 do Decreto nº 7.508/2011). No entanto, mesmo as tecnologias em saúde a serem incorporadas às relações estaduais ou municipais, em complemento à relação nacional, deverão ser previamente submetidas à análise da CONITEC (art. 18, §3º da Portaria de Consolidação nº 01/2017 do Ministério da Saúde).

Obedecendo ao comando do art. 16 da Portaria de Consolidação/MS 01/2017, a RENASES é dividida em cinco partes, a saber: I – Ações e Serviços da Atenção Primária; II – Ações e Serviços da Urgência e Emergência; III – Ações e Serviços da Atenção Psicossocial; IV – Ações e Serviços de Atenção Especializada, esta subdividida em Atenção Ambulatorial Especializada, Odontologia Especializada e Atenção Hospitalar; e V – Ações e Serviços da Vigilância em Saúde.

Ao contrário da RENAME, que é dividida em diversos componentes (grupos de medicamentos), cada qual com atribuições específicas de financiamento, aquisição e distribuição pelos diversos entes federativos, os componentes da RENASES não guardam relação necessária com as competências administrativas ou responsabilidades financeiras da União, estados e municípios. A divisão, como visto acima, dá-se de acordo com o tipo de atendimento à saúde prestado (atenção primária, urgência e emergência, atenção psicossocial, atenção especializada e vigilância sanitária). Dentro destes grupos, os deveres assumidos por cada ente federativo deverão ser necessariamente pactuados na Comissão Intergestores Tripartite – CIT. É o que estabelece o art. 23 do Decreto nº 7.508/2011:

Art. 23. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios pactuarão nas respectivas Comissões Intergestores as suas responsabilidades em relação ao rol de ações e serviços constantes da RENASES.

Importante pontuar que as responsabilidades a serem pactuadas na CIT não são apenas as financeiras, mas também aquelas relativas à efetiva prestação dos serviços, tudo de acordo com as particularidades administrativas e sociais de cada região. Sobre isso, o art. 15 da Portaria de Consolidação/MS 01/2017 traz diretrizes importantes a serem observadas:

Art. 15. O financiamento das ações e serviços da RENASES será tripartite, conforme pactuação, e a oferta das ações e serviços pelos entes federados deverá considerar as especificidades regionais, os padrões de acessibilidade, o referenciamento de usuários entre municípios e regiões, e a escala econômica adequada.

A RENASES também categoriza as diversas formas de acesso às ações e serviços de saúde nela constantes, que deverão estar de acordo com critérios de referenciamento fundamentados nas normas e Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do SUS, conforme dispõe o art. 19 da Portaria de Consolidação/MS 01/2017. De acordo com o art. 20 da mesma portaria, as formas de acesso são as seguintes:

I - mediante procura direta pelos usuários, sem exigência de qualquer tipo de encaminhamento ou mecanismo de regulação de acesso. São as denominadas “portas de entrada do SUS” (unidades básicas de saúde, urgência e emergência, centros de atenção psicossocial, dentre outras); 
II - mediante encaminhamento de serviço realizado por um serviço próprio do SUS;
III - mediante autorização prévia de dispositivo de regulação de acesso (central de regulação, complexo regulador ou outro dispositivo incumbido de regulação, coordenação de cuidado ou controle de fluxo de pacientes entre serviços de saúde);
IV - com exigência de habilitação, ou seja, autorização pelo gestor municipal, estadual ou federal para que um estabelecimento de saúde já credenciado ao SUS passe a realizar o procedimento necessário; 
V - com indicação e autorização prevista em Protocolos Clínicos ou Diretrizes Terapêuticas específicos; e
VI – tratando-se de ação ou serviço voltado para a saúde coletiva, com intervenções individuais, em grupo e na regulação e controle de produtos e serviços, no campo da vigilância.

Para cada uma dessas formas de acesso, a RENASES estabeleceu um código numérico (1 a 6, respectivamente), que foi marcado ao lado de cada tratamento nela constante. Para se ter uma ideia de como a lista foi elaborada, tomemos como exemplo o procedimento de elaboração de plano terapêutico individual para o tratamento de doenças crônicas:

tabela renases

Explicada como se dá a repartição de competências entre os entes federativos e a forma de acesso às ações e serviços listados na RENASES, e nos termos da tese firmada pelo STF no Tema 793 de repercussão geral“Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”, cabe aos autores de demandas judiciais que pleiteiam algum dos tratamentos não medicamentosos constantes na referida relaçãoA repartição de competências administrativas específica para a assistência farmacêutica possui regulamentação própria, explicada em outro post do blog., bem como ao Juízo, apontar qual é, no caso concreto, o ente competente para seu o custeio ou fornecimento.

Como visto anteriormente, para isso será necessário verificar como a prestação do serviço ou o fornecimento da tecnologia em saúde foi pactuado na Comissão Intergestores Tripartite, o que, há que se reconhecer, não será nada fácil em grande parte dos casos, já que as pactuações individuais da CIT, caso estejam disponibilizadas ao público, são de pesquisa e acesso complexos. Sendo assim, a medida que parece mais célere e produtiva é a consulta pelo Juízo diretamente aos gestores do SUS, no bojo do processo e preferencialmente antes da decisão de eventual pedido de tutela de urgência, para que indiquem como foram pactuados a prestação e o custeio da ação ou serviço público de saúde requerido na ação.

Essa consulta prévia aos gestores do SUS pode ser antecipada por outros atores da judicialização da saúde que tenham prerrogativas de obtenção de informações para o desempenho de suas funções institucionais, tal como ocorre com o Ministério Público e a Defensoria Pública. Assim procedendo, o direcionamento da ação judicial contra os réus legítimos será mais seguro e a análise de tutelas de urgência pelo Poder Judiciário poderá ser mais ágil. Também os particulares podem requerer esse tipo de informação, de acordo com a Lei nº 12.527/2011. Todavia, exigir que eles a apresentem no processo seria um ônus demasiado diante da dificuldade que podem encontrar nos casos concretos.

A definição dos entes federativos competentes para o fornecimento e custeio da tecnologia em saúde, previamente à eventual determinação judicial de sua entrega, é fundamental para a qualificação da judicialização da saúde e para a mínima interferência jurisdicional na gestão do SUS. De fato, o que se tem observado na prática é que condenações solidárias resultam, via de regra, na assunção de responsabilidade do ônus não necessariamente pelo ente administrativamente competente, mas por aquele que atua com mais eficiência e boa vontade no processo. Isso sem contar a afronta expressa à tese do Tema 793/STF, segundo a qual “diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”.

A questão se torna bem mais complexa quando a ação ou serviço de saúde postulado judicialmente não consta na RENASES. Como não houve incorporação ao SUS, também não houve pactuação de responsabilidades pela CIT. Desta forma, não há, a rigor, um ente federativo ao qual foi atribuída competência para o seu custeio ou fornecimento. Para piorar, não existem no ordenamento jurídico sequer diretrizes gerais a serem observadas pelos gestores para a fixação das competências por ocasião da pactuação e que pudessem ser perquiridas judicialmente, ao contrário do que ocorre em relação aos medicamentos, cuja divisão de responsabilidades e enquadramento nos diversos componentes da assistência farmacêutica são norteados pelos artigos 50 a 53 do Anexo XXVIII da Portaria de Consolidação/MS 02/2017.

Haveria, em tese, três saídas dessa encruzilhada.

A primeira seria atribuir à União a responsabilidade pelo custeio e fornecimento da ação ou serviço de saúde não incluído na RENASES, já que cabe ao Ministério da Saúde elaborar e atualizar a lista, padronizando as tecnologias a serem oferecidas pelo SUS. Esta alternativa não parece a mais adequada, basicamente por duas razões:

a) via de regra, o custeio das ações e serviços das tecnologias incluídas na RENASES será repartido entre os entes federativos, respeitando-se (ao menos assim deveria ser) a capacidade financeira de cada um. Se, de um lado, estados e municípios não possuem condições de arcar com tratamentos, procedimentos e serviços em geral de alto custo, é preciso que eles ao menos participem do financiamento das ações realizadas nos respectivos territórios, que atendem à população local em relação às necessidades mais corriqueiras ou mesmo às mais complexas, mas dentro de suas possibilidades no cofinanciamento;

b) o Ministério da Saúde teria grandes dificuldades (ou mesmo impossibilidade) operacionais para disponibilizar judicialmente tratamentos de saúde que devam ser ministrados em estabelecimentos administrados ou contratados pelos estados e municípios. Basta considerar, a título de exemplo, pedidos de procedimentos cirúrgicos não constantes na RENASES que demandem leitos, internações ou consultas médicas cuja regulação não é feita normalmente pela União, com poucas exceções relacionadas aos hospitais federais. Na realidade, o cumprimento das ordens judiciais pelo gestor federal em tais hipóteses pode inclusive desorganizar a regulação feita pelos municípios, estados ou instituições de saúde por eles contratadas.

A segunda saída seria, na falta de pactuação das competências dos entes federativos pela CIT, atribuir responsabilidade solidária entre todos eles. Neste caso, corre-se o mesmo risco apontado na alternativa anterior ao se exigir o cumprimento da ordem judicial inclusive de ente que pode não ter ingerência nenhuma na ação ou serviço de saúde postulado. A situação é mais delicada sobretudo nos casos em que a prestação a ser cumprida não pode ser convertida em pagamento em pecúnia, como ocorre na liberação de consultas médicas e disponibilização de leitos hospitalares, por exemplo. Isso sem falar no risco de se sobrecarregar financeiramente os entes federativos menores com eventuais altos custos do tratamento a ser providenciado, incompatível com os respectivos orçamentos.

A terceira alternativa – que parece ser a mais adequada, apesar de também trazer algumas dificuldades – é definir a responsabilidade pelo cumprimento de ordens judiciais para prestação de ações ou serviços de saúde não incluídos na RENASES mediante uma interpretação analógica das tecnologias já incorporadas e com competências pactuadas. A proposta consiste, basicamente, em verificar como foram pactuados o custeio e o fornecimento da tecnologia mais próxima possível daquela que se pretende obter judicialmente, aplicando-se as mesmas regras em relação à tecnologia não padronizada.

Há duas principais vantagens na adoção desta solução.

A primeira é preservar, na medida do possível, as competências dos entes administrativos já previstas para casos semelhantes, evitando-se a imposição de obrigações de difícil ou impossível cumprimento e preservando ao máximo a capacidade financeira de arcar com o ônus da determinação judicial.

A segunda é facilitar o cumprimento da ordem judicial, já que ela será direcionada contra o ente já preparado para disponibilizar a ação ou serviço de saúde buscado, supondo-se que outros congêneres ou próximos já estão sendo oferecidos.

Um exemplo real ajudará a esclarecer o raciocínio.

Um indivíduo com suspeita de ter uma doença rara denominada Xantomatose Cerebrotendínea necessitava de um exame genético (teste genético para xantomatose cerebrotendínea com pesquisa de mutação no gene da enzima esterol 27-hidroxilase) para confirmar a existência da doença e com isso iniciar o tratamento adequado. Foi informado pela Regional de Saúde do estado onde reside que referido teste não está contemplado na tabela de procedimentos do SUS. No entanto, consta no item 4.1 da RENASES (Atenção Ambulatorial Especializada) o procedimento “Exames complementares do diagnóstico: exames de genética”, com a descrição “exames de análise cromossômica para diagnóstico de malformações congênitas e aconselhamento genético”.

Na hipótese de a realização do referido exame ser postulada judicialmente e o pedido ser acolhido, o Juízo poderia verificar junto aos gestores do SUS qual a forma de pactuação do procedimento constante na RENASES (Exames complementares do diagnóstico: exames de genética) e aplicá-la analogicamente ao caso concreto para definir o ente responsável pelo cumprimento da ordem judicial, já que a tecnologia buscada também é um exame genético, ainda que não padronizado.

Uma excelente ferramenta para a busca por procedimentos congêneres ao pretendido judicialmente e que estejam incorporados ao SUS é o SIGTAP (Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS), disponível para consulta na internet. O sistema, de manuseio intuitivo, traz informações muito importantes a respeito da modalidade de cada atendimento, financiamento, correlações com a RENASES, CID, CBO, além de outras. Como exemplo, veja o resultado para a consulta ao procedimento de mastectomia radical com linfadenectomia:

mastectomia consulta

Como já adiantado, entretanto, algumas dificuldades podem se apresentar nos casos concretos. É o que aconteceria, por exemplo, se o procedimento solicitado e não padronizado, apesar de ter natureza semelhante a um outro já incorporado ao SUS, tiver um custo acentuadamente maior, o que poderia levar a uma pactuação distinta na CIT no caso de incorporação. Outra hipótese seria a de uma complexidade elevada na própria identificação de procedimento padronizado semelhante. Pode-se citar, ainda, a simples inexistência de qualquer ação ou serviço de saúde oferecido pelo SUS e parecido com aquele que se busca judicialmente, impossibilitando a aplicação analógica da divisão de competências.

Em quaisquer dessas situações, a melhor solução a ser adotada é determinar que a ação ou serviço público de saúde objeto de demanda judicial seja viabilizada pelo ente federativo que possui ingerência sobre a instituição de saúde em que o tratamento deve ser realizado (via de regra, o município, quando o tratamento for feito em unidades básicas de saúde ou ambulatórios; e município ou estado, conforme a gestão local, quando for feito em hospitais ou clínicas especializadas), seja por via direta ou pela contratualização firmada com entidades privadas que prestam serviços ao SUS.

Além disso, é necessário que ao menos se enquadre a ação ou serviço de saúde objeto do processo em um dos componentes da RENASES (I – Ações e Serviços da Atenção Primária; II – Ações e Serviços da Urgência e Emergência; III – Ações e Serviços da Atenção Psicossocial; IV – Ações e Serviços de Atenção Especializada; e V – Ações e Serviços da Vigilância em Saúde) para então se determinar que o seu custeio seja suportado pelos entes federativos de acordo com as regras de financiamento previstas para cada um dos referidos componentes.

Acerca deste ponto, a Portaria de Consolidação/MS 06/2017 traz, de forma sistematizada, as normas sobre o financiamento e a transferência dos recursos federais para as ações e os serviços de saúde do SUS para cada uma das partes (componentes) da RENASES. Vejamos:

Componente da RENASES Regras de financiamento (Portaria de Consolidação/MS 06/2017)
I- Ações e Serviços da Atenção Primária Título II – Do custeio da Atenção Básica
II – Ações e Serviços da Urgência e Emergência Título VIII, Capítulo II – Do financiamento da Rede de Atenção às Urgências e Emergências
III – Ações e Serviços da Atenção Psicossocial Título VIII, Capítulo III – Do financiamento da Rede de Atenção Psicossocial
IV – Ações e Serviços de Atenção Especializada Título III – Do custeio da Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar
V – Ações e Serviços da Vigilância em Saúde Título IV – Do custeio da Vigilância em Saúde

As normas sobre o financiamento de cada um dos componentes da RENASES são complexas e envolvem questões técnicas que dificilmente serão assimiladas de forma segura pelos atores de uma ação judicial. Ainda assim, é importante que o Juízo, ao determinar a disponibilização de um tratamento não medicamentoso que não esteja padronizado no SUS e não possa ser equiparado a outro já oferecido pelo sistema público para a definição das responsabilidades pelo fornecimento e custeio, assegure ao menos que, após a prestação da ação ou serviço de saúde objeto do processo, o seu ônus financeiro seja suportado ou ressarcido de acordo com as regras da Portaria de Consolidação/MS 06/2017, conforme dispõe a tese do Tema 793/STF. Este acerto de contas pode ser feito diretamente entre os gestores dos entes federativos envolvidos, mas para isso é fundamental que a decisão judicial assegure o direito do ente federativo que a cumpriu de ser eventualmente ressarcido, caso o custeio (parcial ou integral) não lhe coubesse.

Por mais que a apuração e definição das responsabilidades dos entes federativos pela prestação de ações e serviços de saúde que não consistem na simples entrega de medicamentos seja trabalhosa, sobretudo no caso de procedimentos e terapias não padronizados, ela deve ser feita tanto pela determinação contida na tese do Tema 793/STF como para se preservar ao máximo o bom funcionamento administrativo e a higidez orçamentária do SUS, que já são inevitavelmente afetados pela simples judicialização da saúde.

De todo modo, há medidas que poderiam ser implementadas para facilitar a resolução de controvérsias que chegam ao Poder Judiciário, qualificando a judicialização da saúde e, consequentemente, mitigando os efeitos maléficos que ela causa ao SUS em termos de gestão. Dentre elas, podem ser citadas as seguintes:

a) maior transparência e acessibilidade às formas de pactuação das ações e serviços públicos de saúde pelos gestores do SUS na CIT, permitindo uma melhor compreensão ao público em geral;

b) maior objetividade no regramento aplicável à pactuação das competências dos entes federativos das ações e serviços públicos de saúde; e

c) aprimoramento da interlocução entre os órgãos do Poder Judiciário e os gestores do SUS, para que estes tenham conhecimento das demandas que costumeiramente são levadas à apreciação judicial e assim possam, eventualmente, definir as responsabilidades administrativas como forma de organizar o cumprimento das determinações judiciais ou mesmo padronizar os tratamentos mais demandados, de acordo com os critérios técnicos e orçamentários adequados.

Imagem do Post: Paul Hanaoka on Unsplash




Judicialização da saúde, deferência aos atos administrativos e LINDB: um encontro necessário

cumprimento de cotovelos

A pandemia causada pela COVID-19 colocou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) em posição de destaque. A agência reguladora foi citada na discussão sobre o possível uso da Hidroxicloroquina para o tratamento dos pacientes com COVID-19 e atualmente é uma das protagonistas no debate sobre as vacinas testadas para a imunização dos brasileiros.

Para os que atuam na judicialização da saúde, a ANVISA é uma figura sempre presente ou, pelo menos, deveria ser.

No julgamento da Suspensão de Tutela Antecipada 175 pelo Supremo Tribunal Federal, o Ministro Gilmar Mendes destacou a importância do registro do medicamento na agência para a determinação de fornecimento pela via judicial:

"Por tudo isso, o registro na ANVISA configura-se como condição necessária para atestar a segurança e o benefício do produto, sendo o primeiro requisito para que o Sistema Único de Saúde possa considerar sua incorporação. ”

Entretanto, esse julgamento não encerrou a discussão.

Na verdade, foi só o início da formação de precedentes sobre a judicialização da saúde pelos Tribunais Superiores. Em 2011, o STF reconheceu a repercussão geral da seguinte questão constitucional: Tema 500 – Dever do Estado de fornecer medicamento não registrado pela ANVISA.

Enquanto o STF o analisava, o Superior Tribunal de Justiça definiu que a existência de registro do medicamento, observados os usos autorizados pela agência, é um dos requisitos para a concessão de medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS (tese do tema 106).

Em maio de 2019, o STF fixou a tese do tema 500, a qual traz, como regra, que a ausência de registro na ANVISA impede o fornecimento de medicamento por decisão judicial.

Ocorre que essas teses parecem ter ficado restritas ao plano ideal da judicialização da saúde.

Nas ações individuais ajuizadas diariamente, as decisões da ANVISA e da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC) são reiteradamente ignoradas.

O estudo “Judicialização da Saúde no Brasil: Perfil das demandas, causas e propostas de soluções” elaborado pelo Insper para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao analisar as sentenças proferidas no Tribunal de Justiça de São Paulo, encontrou o seguinte:

“Dentre as ações procedentes, a Anvisa é citada em apenas 1,20% dos casos, número que cresce para 7,52% no caso das decisões parcialmente procedentes, 3,02% das improcedentes e em 26,22% das extintas.
Esse dado indica que juízes utilizam mais em suas fundamentações referências a normas da ANVISA quando decidem conceder parcialmente, não conceder e, especialmente, extinguir as ações em primeira instância.”

Num primeiro momento, poderíamos atribuir esses números ao fato dos dados utilizados na pesquisa serem anteriores à publicação da tese do tema 500, mas, novamente, a realidade nos mostra outra situação.

No dia 23 deste mês, o STF encerrou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5501, na qual foi analisada a constitucionalidade da Lei nº 13.269/2016, que autorizava o uso da fosfoetanolamina sintética, conhecida como “pílula do câncer”, por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna. A lei foi declarada inconstitucional, mas o resultado surpreendeu.

Estávamos diante do debate sobre um tratamento sem qualquer evidência cientifica apta a comprovar a sua eficácia. Apesar disso, no julgamento que considerou a lei inconstitucional, houve três votos divergentes:

Divergência
Os ministros Edson Fachin, Dias Toffoli e Gilmar Mendes votaram no sentido de restringir o uso do remédio a pacientes terminais. Para o ministro Edson Fachin, o uso privado de substâncias, ainda que apresentem eventuais efeitos nocivos à saúde humana, insere-se no âmbito da autonomia privada e está imune à interferência estatal em matéria penal. “A rigor, o uso da fosfoetanolamina é permitido se não há lei que o proíba”, ponderou. “A Anvisa não detém competência privativa para autorizar a comercialização de toda e qualquer substância”.

Outro exemplo ocorreu no Superior Tribunal de Justiça. No início deste mês, o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho determinou que a União depositasse, no prazo máximo de 15 dias, R$ 6,7 milhões para a aquisição de Zolgensma, o medicamento mais caro do mundo. Embora possua registro na ANVISA, ele é para um tipo de atrofia muscular espinhal diferente daquele diagnosticado na paciente beneficiada pela decisão.

Nesse processo, o Ministério da Saúde esclareceu não ser possível o fornecimento administrativo pela ausência do registro e por não ter sido analisada pela CONITEC a incorporação ao SUS. Entretanto, a decisão em sede de mandado de segurança, que não permite a dilação probatória, ou seja, não houve sequer perícia judicial, determinou a realização do depósito pela União.

Além da Anvisa, o estudo divulgado pelo CNJ, acima destacado, também mostra que a CONITEC, a quem compete assessorar o Ministério da Saúde nas atribuições relativas à incorporação, exclusão ou alteração de tecnologias em saúde pelo SUS, é citada em apenas 0,51% das decisões, enquanto seus protocolos aparecem em 5,83%:

gráfico que demonstra o pouco uso dos protocolos

Nesse contexto, é que surge a proposta deste texto.

É necessário que a judicialização da saúde encontre a deferência aos atos administrativos, ou seja, não é possível que aquela funcione bem sem a presença desta, cabendo destacar as palavras do Professor Egon Bockmann Moreira:

A toda evidência, não existe solução única para tais excessos no controle das decisões discricionárias. Mas há alguns caminhos que permitem atenuar tais usurpações de competência. Dentre eles, está o denominado princípio da deferência, ao estabelecer que decisões proferidas por autoridades detentoras de competência específica – sobretudo de ordem técnica – precisam ser respeitadas pelos demais órgãos e entidades estatais (em especial o Poder Judiciário, o Ministério Público e as Cortes de Contas).
Lastreado nos princípios da separação dos poderes e da legalidade, o princípio da deferência não significa nem tolerância nem condescendência para com a ilegalidade. Mas impõe o devido respeito às decisões discricionárias proferidas por agentes administrativos aos quais foi atribuída essa competência privativa. Os órgãos de controle externo podem controlar o devido processo legal e a consistência da motivação nas decisões discricionárias, mas não podem se imiscuir no núcleo duro daquela competência. Precisam respeitá-la e garantir aos administradores públicos a segurança jurídica de suas decisões. 
Assim, a necessária retomada do crescimento econômico passa também pelo prestígio ao princípio da deferência. Caso se persista na busca incessante da decisão excelente – com a sucessão de controles extraordinários – haverá imensa dificuldade em se implementar as soluções cabíveis para atos e contratos administrativos, tal como definidas pelos administradores a quem a lei atribuiu a o dever de decidir. Haverá incremento significativo nos custos de transação e imenso desestímulo aos administradores que pretendem trabalhar com perseverança. Muito há a ser feito, mas a aplicação do princípio da deferência e o respeito à discricionariedade já seriam grandes passos.

Não se trata de tema novo.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4874, o STF afirmou a deferência às escolhas técnicas feitas pela Administração Pública. Veja-se o seguinte trecho do referido julgado:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO DE INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO. ART. 7º, III E XV, IN FINE, DA LEI Nº 9.782/1999. RESOLUÇÃO DA DIRETORIA COLEGIADA (RDC) DA ANVISA Nº 14/2002. PROIBIÇÃO DA IMPORTAÇÃO E DA COMERCIALIZAÇÃO DE PRODUTOS FUMÍGENOS DERIVADOS DO TABACO CONTENDO ADITIVOS. AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. REGULAÇÃO SETORIAL. FUNÇÃO NORMATIVA DAS AGÊNCIA REGULADORAS. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. CLÁUSULAS CONSTITUCIONAIS DA LIBERDADE DE INICIATIVA E DO DIREITO À SAÚDE. PRODUTOS QUE ENVOLVEM RISCO À SAÚDE. COMPETÊNCIA ESPECÍFICA E QUALIFICADA DA ANVISA. ART. 8º, § 1º, X, DA Lei nº 9.782/1999. JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL. DEFERÊNCIA ADMINISTRATIVA. RAZOABILIDADE. CONVENÇÃO-QUADRO SOBRE CONTROLE DO USO DO TABACO – CQCT. IMPROCEDÊNCIA. 1. (...) 9. Definidos na legislação de regência as políticas a serem perseguidas, os objetivos a serem implementados e os objetos de tutela, ainda que ausente pronunciamento direto, preciso e não ambíguo do legislador sobre as medidas específicas a adotar, não cabe ao Poder Judiciário, no exercício do controle jurisdicional da exegese conferida por uma Agência ao seu próprio estatuto legal, simplesmente substituí-la pela sua própria interpretação da lei. Deferência da jurisdição constitucional à interpretação empreendida pelo ente administrativo acerca do diploma definidor das suas próprias competências e atribuições, desde que a solução a que chegou a agência seja devidamente fundamentada e tenha lastro em uma interpretação da lei razoável e compatível com a Constituição. Aplicação da doutrina da deferência administrativa (Chevron U.S.A. v. Natural Res. Def. Council). 10. (...) 13. Ação direta de inconstitucionalidade conhecida, e, no mérito julgados improcedentes os pedidos principais e o pedido sucessivo. Julgamento destituído de efeito vinculante apenas quanto ao pedido sucessivo, porquanto não atingido o quórum para a declaração da constitucionalidade da Resolução da Diretoria Colegiada nº 14/2012 da ANVISA. (ADI nº 4874, Relatora: Ministra ROSA WEBER, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 01/02/2018, Publicação em 01/02/2019; grifou-se).

Também precisa, nesse sentido, é a argumentação exposta pelo Ministro Luiz Fux no voto proferido no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5062:

Em uma democracia, a Constituição é o documento fundante, mas não exauriente do Estado. Isso significa que a resposta para a maioria dos dilemas sociais, embora balizada, não está predefinida na Lei Maior. Cabe a cada geração, através de seus representantes eleitos, disciplinar, com significativa margem de conformação, os conflitos intersubjetivos. Nesse cenário, toda inflação semântica dos enunciados constitucionais implica supressão de espaço de escolha das maiorias eleitas. Bem por isso já advertia o Chief Justice Marshall, da Suprema Corte Norte-americana, que "We must never forget that it is a constitution we are expounding" (McCulloch v. Maryland - 1819).
Reservo ainda dúvidas quanto à real capacidade de juízes, com formação intelectual, via de regra, estritamente legalista, procederem a um exame profundo sobre a correção técnica de marcos regulatórios específicos. À pouca expertise se somam as limitações de tempo e de informação típicas do processo judicial, o que tende a gerar uma perspectiva, senão equivocada, ao menos parcial do problema regulatório (“visão de túnel”). Tais contingências justificam cautela e prudência, rechaçando qualquer visão messiânica do Poder Judiciário como instância redentora da sociedade. (ADI nº 5062, Relator: Ministro LUIZ FUX, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 27/10/2016, Publicação em 21/06/2017; grifou-se).

O Ministro Luis Roberto Barroso discorreu sobre a expansão da intervenção judicial no Brasil, destacando a “capacidade institucional”, que nada mais é que a necessidade de se entender qual dos poderes da República está mais habilitado a produzir a melhor decisão sobre determinada matéria, bem como destacando os “efeitos sistêmicos”, ou seja, o impacto das decisões judiciais na política pública:

Cabe aos três Poderes interpretar a Constituição e pautar sua atuação com base nela. Mas, em caso de divergência, a palavra final é do Judiciário. Essa primazia não significa, porém, que toda e qualquer matéria deva ser decidida em um tribunal. Para evitar que o Judiciário se transforme em uma indesejável instância hegemônica, a doutrina constitucional tem explorado duas ideias destinadas a limitar a ingerência judicial: a de capacidade institucional e a de efeitos sistêmicos. Capacidade institucional envolve a determinação de qual Poder está mais habilitado a produzir a melhor decisão em determinada matéria. Temas envolvendo aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade podem não ter no juiz de direito o árbitro mais qualificado, por falta de informação ou de conhecimento específico. Também o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis podem recomendar uma posição de cautela e de deferência por parte do Judiciário. O juiz, por vocação e treinamento, normalmente estará preparado para realizar a justiça do caso concreto, a microjustiça, sem condições, muitas vezes, de avaliar o impacto de suas decisões sobre um segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público.

Não se ignoram, por outro lado, os questionamentos existentes sobre as atividades realizadas pela ANVISA e pela CONITEC.

O impasse sobre os medicamentos off label, objeto de debate na 80ª reunião da CONITEC, bem a possibilidade de registro tácito de medicamentos prevista na RDC 416/2020, já objeto de análise por aqui, são dois exemplos relacionados à ANVISA. 

Na CONITEC, o descumprimento do prazo legalmente estabelecido para a disponibilização das novas tecnologias incorporadas ao Sistema Único de Saúde e a incorporação de medicamentos oncológicos em um sistema que, como regra, não prevê a aquisição destes pelo Estado são dois dos maiores desafios a serem superados neste momento.

Finalmente, não pode ser afastada desse debate a redação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro após a Lei nº 13.655/2018, que positivou a necessidade de se considerar as consequências práticas das decisões judiciais. Se a decisão decide afastar as conclusões da ANVISA e/ou da CONITEC, há determinadas balizas a serem observadas. Não basta, por exemplo, invocar o direito à saúde e a dignidade da pessoa humana em seus conceitos abstratos para tornar sem efeito o ato administrativo ou obrigar a Administração a realizar algo, que ainda está pendente de análise pelos órgãos competentes. 

A respeito das questões deste texto, cabe destacar as conclusões do Professor Daniel Wang, quando se propôs a apresentar os elementos para a elaboração de uma jurisprudência construtiva na judicialização da saúde:

Ademais, o direito à saúde é um princípio, um mandado de otimização cuja realização depende das circunstâncias fáticas. O direito à saúde precisa ser entendido dentro do contexto de um sistema de saúde com mais necessidades que recursos e do qual dependem vários titulares do mesmo direito. A restrição à satisfação do direito, porém, precisa ser justificada e, dada a complexidade e multiplicidade de sujeitos envolvidos, é importante que haja regras para a alocação de recursos. O Judiciário protege melhor o direito à saúde examinando estas regras e exigindo sua observância do que fazendo alocações individuais que as violam.
Em conclusão, é juridicamente consistente e salutar para o SUS uma jurisprudência que impeça indivíduos (e indústria) de contornem as regras de alocação de recursos, mas que controle as escolhas alocativas do sistema, avaliando a regra aplicada para negar um tratamento, se ela é razoável ou arbitrária, e se foi adequadamente aplicada no caso concreto.

Não se trata o encontro proposto de um desafio fácil, porém seu enfrentamento será cada vez mais necessário num cenário em que novas tecnologias de saúde com custo milionário estão se tornando comuns e há crescente aumento da judicialização da saúde.

Como sempre defende o amigo Paulo Gabriel Vilas Bôas, colega de Advocacia Pública e de Comitê de Saúde do Estado do Paraná, é necessário que consigamos superar as nossas diferenças para debatermos de forma democrática e encontrarmos as melhores soluções para todos os interessados.

Foto do post: Noah on unsplash




Pactuação da assistência farmacêutica no SUS: decifra-me ou te devoro

Esfinge do Louvre

Uma das questões mais candentes na judicialização do Direito à Saúde diz respeito à responsabilidade dos entes federativos pelo cumprimento das decisões judiciais que impõem a entrega de medicamentos ou o fornecimento de tratamentos médicos pelo SUS. O STF buscou solucionar este debate por meio da tese fixada na apreciação do Tema 793 de sua Repercussão Geral, segundo a qual “Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”.

A par das discussões relacionadas à interpretação do sentido da tese, que foram muito bem abordadas por Ana Carolina Morozowski em artigo publicado neste blog, o enunciado não resolve a maior parcela das demandas que se apresentam ao Poder Judiciário, que estão relacionadas a medicamentos ou tratamentos ainda não incorporados ao SUS. Como será demonstrado, em relação a eles não há uma competência administrativa objetivamente pré-estabelecida.

De fato, conforme prevê o art. 19-U da Lei nº 8.080/90, “a responsabilidade financeira pelo fornecimento de medicamentos, produtos de interesse para a saúde ou procedimentos de que trata este Capítulo será pactuada na Comissão Intergestores Tripartite”. Essa regra é reforçada no art. 19-P, I, da mesma lei, pelo qual, na ausência de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, a dispensação do medicamento será feita com base na RENAME “e a responsabilidade pelo fornecimento será pactuada na Comissão Intergestores Tripartite”.

Como definir a responsabilidade processual nas demandas por medicamentos, então, quando não há essa pactuação, já que o medicamento não foi incorporado? Para buscar uma resposta, convém investigar a questão mais a fundo.

A Relação Nacional de Medicamentos Essenciais disponibilizados pelo SUS (RENAME) divide os fármacos em três componentes da assistência farmacêutica: o básico, o estratégico e o especializado, este último subdividido em quatro outros grupos (1A, 1B, 2 e 3), todos eles disciplinados no anexo XXVIII da Portaria de Consolidação GM/MS nº 02/2017.

O componente básico “destina-se à aquisição de medicamentos e insumos, incluindo-se aqueles relacionados a agravos e programas de saúde específicos, no âmbito da Atenção Básica à Saúde” (art. 34 do Anexo XXVIII da Portaria de Consolidação GM/MS nº 02/2017). Já o componente estratégico “destina-se à garantia do acesso equitativo a medicamentos e insumos, para prevenção, diagnóstico, tratamento e controle de doenças e agravos de perfil endêmico, com importância epidemiológica, impacto socioeconômico ou que acometem populações vulneráveis, contemplados em programas estratégicos de saúde do SUS” (http://www.saude.gov.br/assistencia-farmaceutica/medicamentos-rename/cesaf). Por fim, o componente especializado “é uma estratégia de acesso a medicamentos no âmbito do SUS, caracterizado pela busca da garantia da integralidade do tratamento medicamentoso, em nível ambulatorial, cujas linhas de cuidado estão definidas em Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas publicados pelo Ministério da Saúde” (art. 48 do Anexo XXVIII da Portaria de Consolidação GM/MS nº 02/2017). Trata-se, via de regra, dos medicamentos de custo mais elevado e destinados a tratamentos mais complexos.

Dentro do componente especializado, o art. 49 do Anexo XXVIII da Portaria de Consolidação GM/MS nº 02/2017 define quais os medicamentos que deverão ser inseridos nos respectivos subgrupos, fazendo-o da seguinte maneira:

I - Grupo 1: medicamentos sob responsabilidade de financiamento pelo Ministério da Saúde, sendo dividido em:
a) Grupo 1A: medicamentos com aquisição centralizada pelo Ministério da Saúde e fornecidos às Secretarias de Saúde dos Estados e Distrito Federal, sendo delas a responsabilidade pela programação, armazenamento, distribuição e dispensação para tratamento das doenças contempladas no âmbito do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica; e
b) Grupo 1B: medicamentos financiados pelo Ministério da Saúde mediante transferência de recursos financeiros para aquisição pelas Secretarias de Saúde dos Estados e Distrito Federal sendo delas a responsabilidade pela programação, armazenamento, distribuição e dispensação para tratamento das doenças contempladas no âmbito do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica;
II - Grupo 2: medicamentos sob responsabilidade das Secretarias de Saúde dos Estados e do Distrito Federal pelo financiamento, aquisição, programação, armazenamento, distribuição e dispensação para tratamento das doenças contempladas no âmbito do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica; e III - Grupo 3: medicamentos sob responsabilidade das Secretarias de Saúde do Distrito Federal e dos Municípios para aquisição, programação, armazenamento, distribuição e dispensação e que está estabelecida em ato normativo específico que regulamenta o Componente Básico da Assistência Farmacêutica.

Já os arts. 50 a 53 do mesmo anexo da referida portaria fornecem os critérios norteadores para a inclusão dos medicamentos do componente especializado, após incorporados ao SUS, em cada um de seus subgrupos. Vejamos:

Art. 50. Os grupos de que trata o art. 49 são definidos de acordo com os seguintes critérios gerais:
I - complexidade do tratamento da doença;
II - garantia da integralidade do tratamento da doença no âmbito da linha de cuidado; e
III - manutenção do equilíbrio financeiro entre as esferas de gestão do SUS.
Art. 51. O Grupo 1 é definido de acordo com os seguintes critérios específicos:
I - maior complexidade do tratamento da doença;
II - refratariedade ou intolerância a primeira e/ou a segunda linha de tratamento;
III - medicamentos que representam elevado impacto financeiro para o Componente Especializado da Assistência Farmacêutica; e
IV - medicamentos incluídos em ações de desenvolvimento produtivo no complexo industrial da saúde.
Art. 52. O Grupo 2 é definido de acordo com os seguintes critérios específicos:
I - menor complexidade do tratamento da doença em relação ao Grupo 1; e
II - refratariedade ou intolerância a primeira linha de tratamento. Art. 53. O Grupo 3 é definido de acordo com os medicamentos constantes no Componente Básico da Assistência Farmacêutica e indicados pelos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas, publicados na versão final pelo Ministério da Saúde como a primeira linha de cuidado para o tratamento das doenças contempladas pelo Componente Especializado da Assistência Farmacêutica.

De acordo com o art. 48, parágrafo único, do mesmo diploma, a pactuação entre os entes federativos para o acesso da população aos medicamentos do componente especializado deve se dar conforme as responsabilidades lá definidas.

Além disso, há regulamentação específica da assistência oncológica, cujos tratamentos são financiados com recursos federais e ministrados diretamente por centros de referência na área, nos termos da Portaria do Ministério da Saúde 874/2013. Neste caso, salvo alguns poucos medicamentos adquiridos centralizadamente pela União, cabe aos aludidos centros de referência definir quais fármacos serão ministrados aos seus pacientes, observados os limites dos recursos repassados pelo governo federal por meio de Autorizações de Procedimentos de Alta Complexidade – APAC específicas para cada espécie de câncer.

Em rápida síntese, a repartição das competências administrativas relacionadas ao Programa de Assistência Farmacêutica do SUS é feita da seguinte forma:

União: a) aquisição e distribuição de insulinas humanas; b) aquisição e distribuição de medicamentos contraceptivos e insumos do Programa Saúde da Mulher; c) aquisição e distribuição dos medicamentos do componente estratégico; d) aquisição e distribuição dos medicamentos incluídos no grupo 1A do componente especializado; e) financiamento dos medicamentos incluídos no grupo 1B do componente especializado; e f) financiamento dos medicamentos oncológicos.

Estados: a) aquisição e distribuição dos medicamentos do componente básico, juntamente com os Municípios e da forma como pactuado nas Comissões Intergestores Bipartites; b) aquisição e entrega dos medicamentos do grupo 1B do componente especializado, mediante transferência de recursos federais; c) aquisição com recursos próprios e entrega dos medicamentos do grupo 2 do componente especializado; e d) aquisição e entrega dos medicamentos do grupo 3 do componente especializado, juntamente com os Municípios e da forma como pactuado nas Comissões Intergestores Bipartites.

– Municípios: aquisição e distribuição dos medicamentos do componente básico, bem como daqueles constantes no grupo 3 do componente especializado, juntamente com os Estados e da forma como pactuado nas Comissões Intergestores Bipartites.

Ainda que os critérios de enquadramento dos medicamentos constantes na RENAME nos respectivos componentes da assistência farmacêutica não sejam tão objetivos, eles ao menos servem como farol para a compreensão da repartição de competências entre os entes federativos. Deve-se relembrar, de todo modo, que a efetiva definição das atribuições de cada ente somente se dá após a pactuação pela CIT.

Em um primeiro momento, poderiam surgir dúvidas acerca da legalidade das disposições da Portaria de Consolidação GM/MS 02/2017 que traçam os parâmetros para o enquadramento dos medicamentos a serem incorporados nos respectivos componentes da assistência farmacêutica do SUS e, consequentemente, para a definição das responsabilidades de cada ente federativo. É que, como visto, os arts. 19-P, I e 19-U da Lei nº 8.080/90 atribuem à CIT a competência para pactuar a responsabilidade financeira e pelo fornecimento das novas drogas.

A CIT é um foro deliberativo composto por gestores das três esferas governamentais, a quem incumbe a negociação e pactuação quanto aos aspectos operacionais, financeiros e administrativos da gestão compartilhada do SUS, nos precisos termos do art. 14-A da Lei nº 8.080/90. Dadas a autonomia dos entes federativos e a ausência de hierarquia entre eles, é preciso que se verifique se a regulamentação sobre as suas competências na política de assistência farmacêutica, tal qual estabelecida pelo Ministério da Saúde, pode de fato vincular os Estados e os Municípios ao participarem da CIT, subtraindo-lhes, de certa forma, a plena liberdade para a pactuação.

A despeito da previsão legal de que cabe à CIT pactuar as responsabilidades dos entes federativos em relação aos medicamentos, cabe ao Ministério da Saúde incorporar novos fármacos ao SUS, bem como constituir ou alterar protocolos clínicos ou diretrizes terapêuticas (art. 19-Q da Lei nº 8.080/90). Da mesma maneira, é dele a atribuição de instituir e organizar a RENAME (art. 19-P, I da Lei nº 8.080/90).

É natural, portanto, que algumas prerrogativas sejam atribuídas ao governo federal para bem exercer essas funções. Dentre elas, parece razoável a de traçar alguns critérios de organização e enquadramento dos medicamentos dentro dos componentes da RENAME. Além disso, a lógica de repartição das competências prevista no anexo XXVIII da Portaria de Consolidação GM/MS nº 02/2017 segue, em linhas gerais, aquela presente na própria estrutura do SUS, em que cabe preponderantemente aos Municípios os cuidados com a atenção básica (na qual se inserem, grosso modo, os medicamentos do componente básico e do grupo 3 do componente especializado da RENAME), aos Estados precipuamente a responsabilidade por tratamentos de média e alta complexidade (e aí estão os medicamentos do grupo 2 do componente especializado) e à União sobretudo o financiamento de medidas mais onerosas e a organização de outras que são de interesse de todo o país (no caso da assistência farmacêutica, os medicamentos do componente estratégico, do grupo 1 do componente especializado, a participação no custeio do componente básico e a política oncológica, por exemplo). 

Para compreender melhor a sistemática da repartição de competências dos entes federativos na assistência farmacêutica do SUS, é importante a leitura do item 3.3 do anexo 1 do anexo XXVII (não há, aqui, nenhuma repetição. A regulamentação é que de fato é complexa) da Portaria de Consolidação GM/MS 02/2017, que trata da “Reorientação da assistência farmacêutica”. Lá é explicado que, não obstante o impacto financeiro dos medicamentos seja um dos principais critérios para a definição das atribuições de cada ente, existem outros bastante relevantes que devem ser levados em consideração. Dentre eles, chama a atenção a operacionalidade das aquisições e entrega dos fármacos à população necessitada. Alguns trechos do referido “anexo do anexo” merecem ser transcritos:

(...)
A reorientação do modelo de assistência farmacêutica, coordenada e disciplinada em âmbito nacional pelos três gestores do Sistema, deverá estar fundamentada:
a) na descentralização da gestão;
(...)
c) na otimização e na eficácia do sistema de distribuição no setor público;
(...)
Assim, o processo de descentralização em curso contemplará a padronização dos produtos, o planejamento adequado e oportuno e a redefinição das atribuições das três instâncias de gestão. Essas responsabilidades ficam, dessa forma, inseridas na ação governamental, o que deverá assegurar o acesso da população a esses produtos. Para o Ministério da Saúde, a premissa básica será a descentralização da aquisição e distribuição de medicamentos essenciais.O processo de descentralização, no entanto, não exime os gestores federal e estadual da responsabilidade relativa à aquisição e distribuição de medicamentos em situações especiais. Essa decisão, adotada por ocasião das programações anuais, deverá ser precedida da análise de critérios técnicos e administrativos.

Na sequência, a portaria traz alguns critérios epidemiológicos para a definição dos produtos a serem adquiridos e distribuídos de forma centralizada. Em seguida, orienta ainda que se considerem, na definição das competências, critérios técnicos e administrativos mais específicos, dentre eles “o financiamento da aquisição e da distribuição dos produtos, sobretudo no tocante à disponibilidade de recursos financeiros”. Ressalta a importância da cooperação técnica e financeira intergestores, que deverá envolver também a aquisição direta e a transferência de recursos entre eles.

Tudo isso serve para demonstrar que, além dos critérios de enquadramento dos medicamentos nos diferentes componentes da assistência farmacêutica, conforme previsto no anexo XXVIII da Portaria de Consolidação GM 02/2017, existem outras diretrizes traçadas pela própria portaria, em seu anexo XXVII, para a definição das atribuições dos entes federativos. Tais diretrizes são abertas e permitem uma grande margem de negociação entre União, Estados e Municípios.

Neste cenário, é possível concluir que os critérios trazidos pela Portaria de Consolidação são apenas indicativos, não afastando a possibilidade de os entes federativos, por intermédio da Comissão Intergestores Tripartite, pactuarem suas responsabilidades na política de assistência farmacêutica de forma distinta quando assim for conveniente à Administração e ao interesse público, o que encontra respaldo nos já referidos arts. 19-P, I e 19-U da Lei nº 8.080/90. É neste sentido, inclusive, que a CIT vem pautando suas pactuações.

Com efeito, na reunião realizada em dezembro de 2018, a CIT optou por enquadrar no grupo 1A do componente especializado – cujos medicamentos são adquiridos centralizadamente pela União – diversos fármacos que, em princípio, pertenceriam ao grupo 1B, no qual a aquisição seria feita pelos Estados. A decisão se deu “devido ao lapso temporal de incorporação, e a necessidade de fornecimento aos usuários do SUS”. Procedimento semelhante foi discutido na reunião de fevereiro de 2018. Na reunião de outubro de 2018, tratou-se da possibilidade de transferência de medicamentos do grupo 2 do CEAF (cujo financiamento cabe aos Estados) para o grupo 1A, custeado pela União.

Na reunião ocorrida em junho de 2019, a CIT pactuou a alocação de diversos fármacos no grupo 1A do CEAF e de outros no grupo 1B, fazendo expressa menção aos critérios previstos no anexo XXVIII da Portaria de Consolidação GM/MS 02/2017. O mesmo ocorreu na reunião de dezembro de 2019, quando o Vedolizumabe, o Aflibercepte e a a Alfa-alglicosidase foram inseridos no grupo 1A do componente especializado por terem as características previstas na mencionada portaria para este grupo. Por outro lado, em julho de 2019, a comissão transferiu medicamentos para a Hepatite C do componente especializado para o estratégico com o objetivo de facilitar o tratamento dos doentes e a distribuição dos remédios.

A reunião de novembro de 2019 da CIT foi especialmente interessante porque, além de tratar da dificuldade do ressarcimento pela União aos Estados das despesas que estes tiveram com a aquisição judicial de medicamentos que não estavam na sua esfera de responsabilidade, abordou também os impactos da judicialização da saúde no custeio de medicamentos não incorporados ao SUS. A comissão aventou a possibilidade de que a própria CIT definisse os critérios de custeio dos fármacos não padronizados e adquiridos por força judicial. Neste sentido, o Presidente do CONASS “Indicou acrescentar um tema na CIT, que diz respeito a adoção da conduta de divisão de custos de medicamentos quando não houver a incorporação pela Conitec, pois a referida temática não está consolidada e carece de entendimento”.

Como se pode perceber, a divisão de responsabilidades na política de assistência farmacêutica do SUS é realmente complexa. Certamente, essa deve ter sido uma das principais razões que levaram a jurisprudência, com justificada dificuldade de compreender a questão, a firmar o entendimento pela responsabilidade solidária dos entes federativos nas ações de medicamentos. Ainda que este entendimento tenha sido de certa forma superado com o julgamento do Tema 793 pelo STF, a dificuldade permanece em relação aos fármacos não padronizados, que constituem a maioria dos demandados judicialmente.

A solução que ora se propõe é que, ao se deparar com a necessidade de decidir a quem será atribuído o cumprimento de uma ordem judicial de aquisição e entrega de medicamento não padronizado, o Poder Judiciário se valha dos critérios previstos no anexo XXVIII da Portaria de Consolidação GM/MS 02/2017 para o enquadramento dos medicamentos nos diferentes componentes da assistência farmacêutica, ou daqueles previstos para políticas específicas, como a oncológica (Portaria do Ministério da Saúde 874/2013). Atenção especial deve ser dada ao custo do tratamento, de maneira a não imputar aos Estados e Municípios a responsabilidade pelo pagamento de drogas de alto valor que, segundo as regras da referida portaria de consolidação, devem se enquadrar no grupo 1 do CEAF, cujo custeio cabe à União.

Mais do que isso, seria de excepcional importância que a CIT, conforme já aventado em uma de suas reuniões, definisse ela própria os critérios para custeio de medicamentos não padronizados a serem adquiridos por determinação judicial. A medida traria segurança jurídica, efetividade na tutela jurisdicional, harmonia entre os entes federativos e menor ingerência do Poder Judiciário na política pública de saúde. Para isso, entretanto, é preciso que cada um dos entes envolvidos assuma efetivamente as suas responsabilidades e se proponha a colaborar de maneira concreta para a resolução do problema.

O Comitê Executivo Nacional do CNJ para o monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde, bem como os Comitês Executivos Estaduais a ele vinculados, podem colaborar fortemente no esclarecimento e no convencimento dos gestores que compõem a CIT acerca da importância da pactuação aqui sugerida.




Soliris: A esperança na corda bamba de sombrinha

Arvore diferente no meio de uma floresta

O custo dos medicamentos de doenças raras sempre traz desafios para os sistemas de saúde no mundo inteiro. Não há novidade nisso. A cada ano, várias tecnologias que potencialmente proporcionam benefícios aos pacientes são lançadas, trazendo esperança. O preço muito elevado de alguns desses medicamentos, que torna inviável a compra direta pela maioria dos pacientes, faz com que cobranças e expectativas se voltem ao SUS.  

A decisão para o SUS tende a ser apresentada como binária: incorporar ou não um tratamento. Essa é uma grande simplificação da questão. A questão concreta que é colocada ao SUS é incorporar ou não um tratamento dado o preço e as condições ofertadas pela indústria. Em princípio, a escala do SUS faz com que tenha grande poder de negociar preço e condições. Porém, há situações concretas em que essa vantagem do SUS é neutralizada pela judicialização.

Podemos falar, por exemplo, do medicamento Soliris (Eculizumabe). Indicado para o tratamento de Hemoglobinúria Paroxística Noturna (HPN) e para Síndrome Hemolítica Urêmica Atípica (SHUA), é o medicamento judicializado que mais impacta os cofres da União. Em 2018 e em 2019, a União gastou respectivamente R$ 368.522.257,63 e R$ 453.021.785,61 para atender às ordens judiciais de demandas de pacientes com as duas condições para as quais o remédio é indicado. Em agosto deste ano, havia 311 pacientes de HPN e 147 pacientes de SHUA que recebiam o medicamento da União pela via judicial.

Em razão da judicialização deste medicamento, a própria Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde iniciou um processo de análise na CONITEC para verificar se ele deveria ou não ser incorporado ao SUS. No relatório nº 413, de dezembro de 2018, referente à HPN, a CONITEC recomendou a sua incorporação. Já no relatório nº 483, de novembro de 2019, houve a recomendação de não incorporação da tecnologia para o tratamento da SHUA. É importante acrescentar que países mais desenvolvidos do que o Brasil não incorporaram o Soliris para HPN em seus sistemas de saúde. É o caso do Reino Unido e do Canadá, entre outros.

Por causa da recomendação de incorporação para HPN, foi editada a Portaria nº 77, de dezembro de 2018, que incorporou o Soliris, desde que satisfeitas algumas condicionantes. Uma delas seria a negociação com a indústria “para redução significante de preço”.

Em 27/06/2019, na pactuação da Comissão Intergestores Tripartite, ficou definido que o medicamento seria alocado no grupo 1A do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica, o que significa que a União seria a responsável pelo pagamento e pela aquisição da droga.

Assim, em 08/11/2019, o Ministério da Saúde – MS abriu procedimento de contratação direta por inexigibilidade de licitação para a compra de 42.149 frascos do medicamento para ambas as condições, já que haveria a necessidade de se atender às demandas judiciais de SHUA também. Na ocasião, estimou-se que haveria 328 pacientes de HPN para quem a União deveria fornecer a medicação. Este quantitativo foi obtido a partir do número de pacientes com HPN considerado no relatório de recomendação da Conitec para o ano de 2020. Dos 3.647 pacientes mencionados, estimou-se que somente 30% deles (1.094) se enquadrariam na situação clínica na qual o Soliris é recomendado.  Também havia a intenção de que houvesse um market share, e a empresa fabricante fornecesse o remédio para 70% desses pacientes. Com isso, chegou-se ao número de 328 pacientes. Entretanto, não há acurácia nesses números, já que se basearam em um único estudo realizado em 2006 com pacientes de Yorkshire.

Em 18/02/2020, a empresa Alexion (detentora do único registro do medicamento) fez uma proposta de R$ 12.817, 56 por frasco, reduzindo o preço em 0,63% em relação ao Preço Máximo de Venda ao Governo (PMVG de R$ 12.899,25). Em 01/04/2020, nova proposta foi feita de R$ 12.806,33, o que representou uma diminuição de preço de 0,72% do PMVG. Dentre outros motivos, a empresa alegou que não poderia fazer oferta melhor, pois já estava fornecendo o medicamento ao governo há algum tempo por um valor inferior ao devido nas compras feitas em função das demandas judiciais. Também disse que aquele era o preço mais baixo que ela praticava no mundo, sem, contudo, comprovar tal fato. Em 15/04/2020, em reunião do Ministério da Saúde com a empresa, o preço foi mantido, mas a empresa se comprometeu a estudar algum tipo de incentivo ou contraproposta até 24/04, o que não foi feito até 06/08, pelo menos.

Em vista da não implementação da condição para a incorporação, em 06/08/2020, a CONITEC decidiu que ela deveria ser revista para que houvesse a sua exclusão. É interessante notar que, em 2018, o MS pagou em média R$ 13.604,88 por frasco do medicamento. Em 2019, a média dos valores pagos foi de R$ 12.673,46, sendo que o menor preço pago foi de R$ 12.274,83. Ou seja, o preço proposto para incorporação não variou muito em relação ao valor pago para o cumprimento de ordens judiciais.

O que explica a falta de interesse da indústria em negociar? Uma hipótese forte é a de que possivelmente todos ou quase todos os pacientes que necessitam do Soliris o recebam em decorrência de decisões judiciais. Em agosto deste ano, havia 311 pacientes que o recebiam da União.  Há aqueles que são atendidos pelos Estados. O Estado do PR, a título de exemplo, desembolsou para a compra do Soliris R$ 4.280.207,68, em 2017, R$ 2.305.965,89, em 2018, e R$ 4.365.986,82, em 2019. Há, ainda, os que conseguem o tratamento judicialmente das operadoras de planos de saúde.

É provável, então, que a população elegível para o tratamento esteja superestimada. Aliás, para confirmar tal fato, seria interessante fazer um levantamento preciso do número de pacientes que ajuizaram ações para receber o Soliris, seja contra a União, os Estados ou as operadoras. Também deveria ser analisado quantos desses pacientes tiveram seus pedidos deferidos.

O exemplo do Soliris é um caso claro em que a não incorporação não se dá pela omissão do Estado, mas pelo alto preço de um medicamento e pela falta de disposição da indústria de negociar. Também ilustra de forma clara um dos efeitos deletérios da judicialização sem critérios e que ignora a política pública de saúde. Ela tira o poder da administração de barganhar preços e condições com a indústria, lesando, em última análise, o SUS inteiro e o próprio erário.

Juízes têm de estar atentos aos efeitos sistêmicos das suas decisões para que, ao tutelar o direito individual à saúde, não acabem sendo usados pela indústria para prejudicar o sistema responsável por realizar esse direito para toda a população.

Por outro lado, o Ministério da Saúde também poderia deixar mais claro quanto ele estaria disposto a pagar pelos medicamentos ou qual o limiar de custo-efetividade que considera aceitável para um determinado produto. Pode-se cogitar também de eventuais medidas de cooperação internacional com outros órgãos e entidades de saúde internacionais e de outros países, de modo a eliminar a assimetria de informações existente. 

Em meio a tudo isso, estão os pacientes que, evidentemente, não podem ser prejudicados. Mas uma coisa é certa: para que haja negociação, é necessário que TODOS estejam desconfortáveis com a situação existente.




Falência intestinal no contexto da judicialização na área da saúde

A falência intestinal nas crianças e nos adultos se caracteriza pela incapacidade de o paciente absorver nutrientes e fluidos (água, por exemplo) pela via enteral, ou seja, ingerindo os alimentos. A principal causa de falência intestinal é a síndrome do intestino curto (SIC), que, na maioria das vezes, ocorre por perda da massa funcional intestinal após grandes ressecções cirúrgicas. O tratamento para esses pacientes é extremamente complexo e requer equipes multidisciplinares e centros especializados para o cuidado. O tratamento dos grandes ressecados intestinais tem 3 desfechos possíveis:

1- Ocorre reabilitação intestinal e o paciente recupera a autonomia enteral;

2- O paciente poderá ficar dependente de nutrição parenteral total (NPT) através de um cateter que administra nutrientes na corrente sanguínea para sempre, com certo grau de autonomia enteral; e

3- Devido às complicações do uso da NPT, poderá haver a necessidade de transplante visceral. O transplante visceral é reservado para poucos pacientes (10 a 15%) e é a última parte do tratamento, quando todas as possibilidades terapêuticas se esgotaramRisto J. Rintala, Mikko Pakarinen,Tomas Wester, Current Concepts of Intestinal Failure, ISBN 978-3-319-42549-8, © Springer International Publishing Switzerland 2016..

Nos Estados Unidos da América, na Europa e em alguns países da Ásia, o tratamento desses pacientes existe há mais de 30 anos. Existem algumas diferenças de abordagem entre as escolas americanas e europeias em relação ao momento ideal para indicação do transplante visceral no curso da doença e o único consenso é que devem ser listados para transplante pacientes que perdem os acessos venosos centrais para nutrição parenteral, pacientes que evoluem com falência hepática com o uso da NPT e aqueles que apresentam infecções recorrentes dos cateteres para NPT. Outra informação importante refere-se à comparação dos resultados do tratamento conservador versus o transplante. A sobrevida de pacientes em 10 anos de seguimento é maior no grupo do tratamento conservador (85% vs 50%). 

O cuidado com essa população de pacientes foi negligenciado pelo Estado brasileiro por muito tempo, em parte porque a maioria dos pacientes que sofriam grandes ressecções intestinais faleciam antes mesmo de ter alta hospitalar. Porém, com a melhora do cuidado com a saúde e do acesso ocorrido após a implantação do SUS, uma parcela desses pacientes sobrevive em regime de internação hospitalar. A busca por soluções para esses problemas cruzou o caminho da judicialização em saúde, tema tão atual, produto da Constituição Federal de 1988 (art. 196). Ela determina o acesso gratuito à saúde como direito fundamental de todo cidadão, sem qualquer pré-condição (direito de todos e um dever do estado). As judicializações nesta área começaram há sete anos. Cinco pacientes judicializados custaram ao Estado R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de reais), segundo dados do Ministério da Saúde de 2018 (comunicação pessoal feita pelo Sistema Nacional de Transplantes).

No Brasil, existem dois centros multiprofissionais encarregados desse tipo de tratamento em crianças no SUS: Hospital de Clínicas de Porto Alegre (2014), pioneiro nesse tipo de tratamento pelo SUS, e o Hospital Municipal Infantil Menino Jesus/Hospital Sírio-Libanês (OSS), em São Paulo (2016), financiado com verba do PROADI-SUS. Coletivamente, esses dois centros já atenderam mais de 100 pacientes do SUS, sendo que 40% das crianças recebem hoje nutrição parenteral domiciliar. Existe uma mobilização do Ministério da Saúde para a realização de treinamento e capacitação de novas equipes para que mais pacientes possam ser atendidos nos estados e regiões de origem.

Em fevereiro de 2019, realizamos o primeiro transplante intestinal em uma paciente com síndrome do intestino curto no Hospital Sírio-Libanês. Tratava-se de uma criança de 3 anos de idade do sexo feminino. Dois meses após o procedimento a paciente passou a se alimentar exclusivamente por via enteral (via oral).  O principal argumento nos processos ajuizados contra a União, em que se requer a transferência dos pacientes para centros de transplante nos Estados Unidos, caiu por terra, já que se baseava no fato de o transplante visceral nunca ter sido feito em pacientes abaixo de 12 anos em nosso país. O que torna esses casos ainda mais peculiares é que nem todos os pacientes, mesmo aqueles judicializados, têm indicação formal de transplante visceral. Todavia, diferenças de prática médica e cuidado entre os centros geram controvérsias em relação à melhor abordagem. 

Todos os recursos utilizados para o transplante visceral estão disponíveis em nosso país, desde a estrutura hospitalar, logística, regulamentação, até drogas imunossupressoras e anticorpos utilizados no tratamento de rejeição. Entretanto, essa realidade é desconhecida não somente pela população do Brasil, como também pelos operadores do DIREITO. O que muda de um transplante para outro (fígado, rim, intestino) são as estratégias de imunossupressão e o tipo de seguimento e monitoramento do órgão transplantado. No campo da prática médica do dia-a-dia, não existe limitação ou defasagem de recursos em relação aos países desenvolvidos.

Por outro lado, a opção dos familiares de acionar a União para requerer o que a própria Constituição Federal assegura em seu artigo 196 é legítima e é difícil não sentirmos empatia pelo pleito. Todavia, o subfinanciamento do SUS requer racionalização das decisões. A “reserva do possível”Ricardo Lobo Torres, O mínimo existencial, os direitos sociais e a reserva do possível. In: António José Avelãs Nunes e Jacinto Nelson Miranda Coutinho (Org.), 2004, p. 455-6. é um tema presente e atual na administração pública. Os recursos públicos são insuficientes para atender às necessidades sociais, impondo ao Estado sempre a tomada de decisões difíceis. Investir recursos em determinado setor sempre implica deixar de investi-los em outros. De fato, o orçamento apresenta-se, em regra, aquém da demanda social por efetivação de direitos, sejam individuais, sejam sociaisGustavo Amaral, Direito, escassez & escolha: Em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas, p. 71-3: “Todos os direitos têm custos porque todos pressupõem o custeio de uma estrutura de fiscalização para implementá-los”.. A boa notícia no campo é o esforço que vem sendo feito pelo Ministério da Saúde para dar acesso ao tratamento aos pacientes que dependem exclusivamente do SUS. Hoje, a requisição por vagas hospitalares é centralizada pelo MS/Coordenação Geral do Sistema Nacional de Transplantes. 

Os papéis nesse contexto de escassez de recursos, doenças graves, judicializações e interesses outros estão claros e bem definidos. Aos médicos, o estudo, a atualização, o preparo e o seguimento dos preceitos ditados no juramento de Hipócrates. Ao Estado, o desenvolvimento de centros de reabilitação intestinal multidisciplinares para crianças e adultos, o financiamento da NPT domiciliar, o fomento às doações de órgãos. Aos familiares, a luta pelos direitos constitucionais. Mais do que isso, luta pela qualidade no atendimento e na assistência dentro do nosso país. Aos juízes e desembargadores, a tomada de decisões complexas embasadas na ciência e jurisprudência.