Preços de medicamentos no Brasil: uma tragédia evitável

1 Introdução

Pouco se fala sobre as determinantes comerciais da saúde (Commercial Determinants of Health – CDOH). De uma maneira bastante simples e resumida, elas consistem nos fatores, sistemas ou práticas comerciais que interferem na saúde da população, tanto para o bem (determinantes comerciais positivas) como para o mal (determinantes comerciais negativas).

O que se propõe a discutir neste momento é uma das principais determinantes comerciais negativas da saúde pública, que consiste no preço dos medicamentos.

Segundo estimativa feita na Assembleia Mundial da Saúde da OMS em 2019, as despesas com medicamentos levam aproximadamente cem milhões de pessoas à pobreza por anoWHO guideline on country pharmaceutical pricing policies, second edition. Geneva: World Health Organization; 2020. Licence: CC BY-NC-SA 3.0 IGO..

Conforme bem observado no Health and Human Rights Resource Guide, “agora, mais do que nunca, os elevados preços dos medicamentos essenciais são cada vez mais entendidos como um problema global que afeta todos os países, e não apenas os em desenvolvimento” (livre tradução dos autores).

É usual que os consumidores obtenham, nas farmácias, elevados descontos nas compras de medicamentos. Ainda que, no âmbito individual, uma pessoa saia de uma drogaria muito feliz ao comprar seu remédio com um grande desconto ou com o chamado “convênio com o fabricante”, isso não deveria ser motivo para regozijo, mas uma lástima.

Na verdade, quando se adquire o medicamento com desconto, possivelmente o valor inicial da oferta era muito superior ao devido. Essa tragédia se agrava em relação aos menos favorecidos e nas localidades onde não há concorrência entre os varejistas.

Por outro lado, os tratamentos para doenças raras e ultrarraras – nova tendência da indústria farmacêutica – têm possibilitado a oferta de medicamentos com preços milionários, sem que se possa entender as razões para a fixação dos valores de venda ou mesmo conhecer os preços praticados em outros países, se eventualmente lá disponíveis.

Para ficar em três exemplos, medicamentos com terapia genética para tratar Atrofia Muscular Espinhal – AME (Zolgensma), outro para Hemofilia B (Hemgenix) e o recente remédio para cuidados de Distrofia Muscular de Duchene – DMD (Elevidys), foram precificados por US$ 2,1 milhões, US$ 3,5 milhões e US$ 3,2 milhões, respectivamente.

São muitas as questões que o tema suscita acerca da regulação e dos encaminhamentos possíveis, elencando-se resumidamente alguns tópicos relevantes.

2 Transparência no investimento para pesquisa e desenvolvimento e nos seus resultados

O investimento da indústria em pesquisa e desenvolvimento (P&D) de novas tecnologias em saúde representa menos de 50% de seu custo, segundo dados do Washington Post. Márcia AngellA verdade sobre os laboratórios farmacêuticos: como somos enganados e o que podemos fazer a respeito. Trad. Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Record, 2009. e Peter GotzscheMedicamentos mortais e crime organizado. Como a indústria farmacêutica corrompeu a ciência médica. Trad. Ananyr Porto Fajardo. Porto Alegre: Bookman, 2016. destacam que a maioria das descobertas de novas drogas tem origem em pesquisas oriundas de fontes públicas.

Aliás, a falta de transparência em relação ao investimento em P&D, aos gastos com publicidade dos medicamentos e aos incentivos à sua prescriçãoAinda a respeito, os Estados Unidos da América aprovaram legislação específica (Sunshine Act) obrigando laboratórios e indústrias a informarem os valores pagos para médicos. e utilização, bem como ao lucro que a venda de novos produtos gera para a indústria farmacêutica é um ponto que merece atenção. Sem que esses dados venham a público de forma clara, a própria defesa das fabricantes – que costumeiramente invocam em seu favor o alto custo do desenvolvimento de novas tecnologias para justificar os preços praticados no mercado – fica prejudicada porque carente de demonstração objetiva.

Reportagem publicada no site do jornal “O Globo” noticiou que, de acordo com dados compilados pela Bloomberg, “o faturamento da farmacêutica dinamarquesa Novo Nordisk com o Ozempic e o Wegovy (dois medicamentos cuja eficácia para o tratamento de obesidade e comorbidades a ela relacionadas, como diabetes, riscos cardíacos e pressão alta foi recentemente comprovada) é tão alto que as vendas dos dois medicamentos logo ultrapassarão todo o orçamento de pesquisa da empresa nas últimas três décadas”.

O sigilo muitas vezes atinge inclusive os preços de comercialização dos medicamentos, pactuados em acordos de negociação com países que os adquirem para os respectivos sistemas públicos de saúde. Isso compromete a análise para precificação por parte de agências reguladoras de outros países, que não sabem sequer quais os valores praticados internacionalmente.

3 Critérios de precificação e reajustamento dos medicamentos

Além da necessária transparência, é indispensável que sejam repensados os critérios de precificação, revisão ou atualização das tabelas CMED, que sofrem reajuste anual segundo padrões inflacionários a despeito do preço de vários medicamentos diminuírem ao longo do tempo. A tabela CMED é elaborada tomando como base preços de registro em nove países. No entanto, nem sempre os valores tabelados no estrangeiro são aqueles efetivamente praticados.

A desconexão entre os valores das tabelas da CMED e a realidade do mercado pode ser facilmente aferida, como citado anteriormente, nos inúmeros casos em que as farmácias concedem grandes descontos nas vendas de medicamentos aos consumidores, bastando que, para tanto, o comprador cadastre o seu CPF no estabelecimento. Isso demonstra que para atuarem com uma margem de lucro viável economicamente, as empresas podem vender os medicamentos bem abaixo dos preços máximos estabelecidos.

Há várias situações em que o valor de venda direta ao consumidor efetivamente praticado é inclusive igual ou inferior ao Preço Máximo de Venda ao Governo (PMVG) estabelecido pela CMED, que corresponde ao preço de fábrica sobre o qual ainda incide o redutor do Coeficiente de Adequação de Preço (CAP).

Tome-se como exemplo a rivaroxabana, medicamento utilizado para o tratamento de trombose e embolia pulmonar. Na apresentação de 10mg, uma caixa com 30 comprimidos do laboratório EMS S/A tem o PMVG fixado em R$ 158,22 pela CMED (tabela vigente em setembro de 2024), considerada a alíquota máxima do ICMS (22%).

Em rápida consulta a sites de vendas na internet, pode-se encontrar o mesmo medicamento, na mesma apresentação, com preço ao consumidor de R$ 69,90, em que o vendedor oferece um desconto de 73% sobre o preço original:

Outra farmácia anuncia o mesmo produto pelo valor de R$ 60,99, com desconto de 75%:

O preço final praticado por algumas farmácias quando vendem ao consumidor é inferior à metade do preço máximo de venda do medicamento ao Poder Público, e tudo isso dentro da sistemática permitida pelo tabelamento existente.

A discrepância entre a tabela CMED e a realidade do mercado, ao menos no que diz respeito a medicamentos já difundidos e que contam com alguma concorrência, é de clareza solar, fazendo com que, na prática, a estipulação de preços máximos não produza qualquer efeito mercadológico. No mundo real, só o poder público, os consumidores que adquirem os fármacos em localidades onde não haja concorrência e aqueles hipossuficientes é que acabam, na maioria das vezes, pagando os preços mais elevados.

4 Momento da fixação do preço dos medicamentos 

Outro ponto relevante no tocante à precificação dos medicamentos é o momento da fixação inicial do seu preço. Para que um determinado produto seja vendido no país é necessário o prévio registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), na forma da Lei nº 6.360/76, ocasião em que a empresa indicará o preço que pretende praticar (art. 16, VII), embora a própria lei autorize a dispensa de informações econômicas em casos específicos (art. 16, § 2º).

Todavia, depois de autorizado o registro é que se inicia o efetivo processo de precificação, com a inclusão do valor na Tabela CMED mediante procedimento previsto na Lei nº 10.742/2003, regulado pela Resolução CMED nº 2/2004. A CMED possui prazo que varia entre 60 a 90 dias para estabelecer o preço, após o que será autorizada a comercialização segundo o processo solicitado pelo fabricante.

A autorização do registro sem a prévia precificação representa um vácuo prejudicial ao consumidor, que ficará sujeito ao preço livremente pretendido pelo fabricante pelo menos até que a CMED estabeleça o justo valor. Assim, é indispensável que o registro de um medicamento na ANVISA seja precedido de precificação ou que ambos os atos ocorram concomitantemente.

Esse hiato entre o registro de um medicamento e a fixação de seu preço de tabela pode ser bastante longo. Isso impede que as novas tecnologias registradas pela ANVISA sejam avaliadas para possível disponibilização pelo SUS, já que a CONITEC deve analisar, quando recebe os pedidos de incorporação, também a relação de custo x efetividade do tratamento dentro dos limiares estabelecidos, além do impacto orçamentário que referida incorporação traria (art. 19-Q, §2º, II, e §3º, da Lei nº 8.080/90). Sem que se saiba o preço de um medicamento, é certo que essa verificação – e, consequentemente, eventual incorporação – ficam prejudicadas.

No julgamento do Tema 1234 de Repercussão Geral (RE 1.366.243), em que o Supremo Tribunal Federal tratou de uma série de questões relacionadas à judicialização da saúde no Brasil, foi constituída uma comissão especial composta por representantes dos entes federativos e das mais diversas instituições envolvidas na judicialização com o objetivo de buscar algum consenso em relação às medidas a serem adotadas. Dentre as propostas feitas pela comissão, algumas se relacionam justamente à questão agora abordada.

O ideal seria que a precificação pudesse ser contemporânea ao registro, sendo decorrência lógica do seu pedido, a ser instruído com todos os elementos necessários para que a CMED, no bojo do próprio procedimento assim instaurado, já estabelecesse os preços máximos a serem observados nas vendas.

5 As repercussões da precificação na incorporação dos tratamentos ao SUS

A incorporação de novas tecnologias de saúde ao SUS depende da análise, pela CONITEC, não apenas das evidências científicas de segurança, eficácia e efetividade do tratamento, mas também de questões econômicas ligadas à relação de custo x efetividade e ao impacto orçamentário de eventual disponibilização pelo sistema público de saúde. O mesmo ocorre em relação à avaliação de incorporação feita pela ANS em relação à saúde suplementar.

Especificamente no que diz respeito à relação de custo x efetividade, a CONITEC, em atenção ao comando do art. 19-Q, § 3º, da Lei nº 8.080/90, já emitiu suas recomendações sobreO Uso de Limiares de Custo-Efetividade nas decisões em Saúde”. A comissão fixou limiares dentro dos quais, segundo a sua avaliação técnica, os custos com a incorporação de novas tecnologias de saúde ao SUS são vantajosos quando comparados aos resultados esperados com o tratamento e acima dos quais, consequentemente, os gastos não compensariam o benefício à saúde esperado.

Para possibilitar uma avaliação tecnicamente qualificada de todos esses aspectos de ordem econômica pelas agências responsáveis, é indispensável que o arcabouço regulatório da precificação dos medicamentos seja moderno, confiável e eficiente nos propósitos a que se destina, especialmente o de fazer com que os preços praticados atendam não apenas aos interesses da indústria farmacêutica, mas também dos destinatários de seus produtos.

6 Compartilhamento de riscos com a indústria

Além das questões relacionadas à precificação dos medicamentos, existem outras medidas que podem servir como determinantes comerciais positivas no objetivo de tornar os tratamentos médicos economicamente acessíveis aos cidadãos.

Uma delas é a celebração de acordo de compartilhamento de riscos entre o SUS – ou mesmo entre operadoras de planos de saúde – e os fabricantes de medicamentos.

Muitos dos novos medicamentos que chegam ao mercado com promessas revolucionárias – e, consequentemente, com valores altíssimos – não contam com todas as evidências científicas relacionadas aos desfechos clínicos relevantes para um sistema de saúde satisfatoriamente demonstradas, especialmente quando comparadas a outros tratamentos já disponíveis no mercado.

Em outras situações, os desfechos clínicos já observados ainda não permitem aferir com precisão uma relação de custo x efetividade ou de custo x oportunidade favorável à sua disponibilização pelo SUS ou por operadoras de planos de saúde. Neste cenário de incerteza, é razoável que os riscos de um possível não atendimento das expectativas do Poder Público com a disponibilização do tratamento à população necessitada sejam compartilhados com o fabricante ao invés de assumidos em sua integralidade pelo erário.

Os acordos de compartilhamento de riscos, em que pese já venham sendo utilizados largamente em outros países, ainda são pensados de forma tímida e com contornos não muito claros no nosso país. Na experiência brasileira, pode ser mencionada a Portaria GM nº 1.297/2019, do Ministério da Saúde, que instituiu projeto piloto de acordo de compartilhamento de risco para acesso ao medicamento Spinraza (Nusinersena) para o tratamento da Atrofia Muscular Espinhal (AME 5q) tipos II e III no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS.

Não houve, entretanto, notícias recentes sobre o êxito do procedimento, tampouco a extensão deste tipo de acordos para outras hipóteses de medicamentos ultracaros. Enfim, o regime experimental de compartilhamento de risco teve seu mérito de introduzir esse novo modo de aquisição e fornecimento de tecnologia nova para as pessoas que dela necessitem, mas há críticas ponderáveis ao modelo, como bem apontado por Ramos, Thomazi e Duarte Júnior“No entanto, em relação à fixação do preço, inexiste informação sobre abatimento absoluto ou porcentual do valor do medicamento na ocorrência de determinado evento futuro, e não há informações dispondo quais incertezas devam estar presentes no contrato. Importantes cláusulas de desempenho para a maior eficácia dos acordos, como as obrigações das partes, o valor mínimo e máximo a ser pago pelo medicamento e a manutenção do acordo em caso de judicialização também não foram disciplinados. Diante disso, e por se tratar de um projeto piloto, a regulamentação específica e detalhada dos acordos de compartilhamento de risco ainda é um desafio a ser enfrentado pela Administração Pública brasileira”. Ramos, Thomazi e Duarte Júnior in Acordos de compartilhamento de riscos para aquisição do medicamento Spinraza® no Brasil: novas perspectivas sobre a proteção jurídica dos pacientes.

7 Revisão da estratégia de investimento em pesquisa e desenvolvimento

O modelo atual de pesquisa e desenvolvimento de medicamentos é concentrado fortemente na iniciativa privada.

A busca do lucro, por si, não é algo ruim. Pelo contrário, é ela que incentiva a iniciativa privada a trabalhar para o desenvolvimento científico e para descobrir tratamentos de saúde cada vez mais eficazes e que revertem em proveito da sociedade. A atividade econômica relacionada ao desenvolvimento de novas tecnologias em saúde deve, portanto, ser incentivada.

Novas tecnologias são pensadas e desenvolvidas primordialmente de acordo com o proveito econômico que elas proporcionam para as empresas e não com as necessidades de saúde pública. O resultado disso é a existência de uma vasta gama de doenças negligenciadas e de tratamentos inovadores, mas economicamente inacessíveis à população, além da falta de equidade de acesso entre sociedades de alta e baixa renda.

Por essas razões, é fundamental que o Poder Público atue na pesquisa e desenvolvimento de tecnologias em saúde, seja diretamente, com pesquisas custeadas e promovidas em instituições públicas, seja indiretamente, incentivando a iniciativa privada a operar de acordo com o interesse público.

A Constituição atribuiu expressamente ao SUS a responsabilidade por “participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos” (art. 200, I) e por “incrementar, em sua área de atuação, o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação” (art. 200, V). Além disso, determinou que “a pesquisa científica básica e tecnológica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação” (art. 218, § 1º).

Recentemente foi publicada a Lei nº 14.977, de 18/09/2024, que, acrescentando o art. 19-W à Lei nº 8.080/90, determinou que laboratórios farmacêuticos públicos produzam os princípios ativos destinados ao tratamento das doenças determinadas socialmente e que, para isso, o poder público fica autorizado a financiar, estimular, promover e buscar parcerias com outros laboratórios para transferência de tecnologia.

8 Patentes Farmacêuticas

Os direitos sobre a propriedade intelectual, mais especificamente as patentes de medicamentos novos e inovadores, também devem ser objeto de especial atenção na busca pela acessibilidade dos preços dos fármacos.

Não se discute que uma proteção adequada aos direitos de propriedade intelectual é indispensável para incentivar o investimento privado na pesquisa e desenvolvimento científicos na saúde. Por outro lado, o acesso às novas tecnologias é uma questão de saúde pública e de proteção a direito fundamental que não pode ficar refém de regras de mercado e dos interesses de empresas privadas.

No âmbito internacional, as patentes são objeto de regulamentação pelo Acordo Sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS). Sobre ele, a Organização Mundial do Comércio assim se manifestou por meio da Declaração de Doha, ocasião em que deixou clara a necessidade da conjugação das patentes farmacêuticas com a proteção da saúde pública:

4. Nós concordamos que o Acordo TRIPS não impede e não deveria impedir seus membros de adotar medidas para proteger a saúde pública. Em conseqüência, enquanto reiteramos nosso compromisso com o Acordo TRIPS, nós afirmamos que o acordo pode e deve ser interpretado e implementado de modo a apoiar o direito dos membros da OMC de proteger a saúde pública e, em particular, de promover o acesso aos medicamentos para todos.
Assim sendo, nós reafirmamos o direito dos membros da OMC de utilizarem, em toda sua extensão, as disposições do acordo TRIPS que fornecem a flexibilidade necessária a esse propósito.

A licença compulsória nos casos de interesse público, e desde que o titular da patente não atenda a essa necessidade, também está prevista no art. 71 da Lei nº 9.279/96. Com base nele, inclusive, o TCU, no Processo 009.253/2015-7, recomendou ao Ministério da Saúde que avaliasse a possibilidade e a conveniência de concessão de licenças compulsórias para exploração de patentes de medicamentos a serem eventualmente incorporados ao SUS.

É certo que a licença compulsória é medida extrema que deve ser empregada com cautela e somente como último mecanismo de viabilização de acesso a um tratamento médico necessário aos cuidados adequados da saúde pública. Deve-se priorizar, portanto, a negociação de preços com o titular da patente e a licença voluntária. Ainda assim, a quebra de patente não pode ser descartada ou tomada como tabu. Foi com ela, aliás, que o Brasil serviu de exemplo para o mundo no tratamento do vírus da HIV pelo SUS.

9 Conclusão

Há um claro descompasso – não apenas no Brasil, mas no mundo todo – entre os preços dos medicamentos, em especial das tecnologias novas e inovadoras que chegam ao mercado, e a capacidade econômica dos consumidores, dos sistemas públicos e privados de saúde.

A correlação de forças entre os interesses econômicos da indústria farmacêutica e os interesses dos Estados e dos cidadãos nos cuidados com a saúde pública está claramente pendendo para os primeiros.

Há, no entanto, diversas determinantes comerciais positivas que, se corretamente empregadas, podem reequilibrar essa relação, permitindo que o ganho de uma das partes não se dê às custas da perda da outra. Privilegiar a acessibilidade aos medicamentos não significa desestimular a atividade econômica ou o investimento privado em pesquisa e desenvolvimento. Significa compatibilizar os diversos interesses, sem que um implique a aniquilação do outro.

Para tanto, várias medidas foram sugeridas no decorrer deste estudo, quais sejam:

  1. maior transparência da indústria farmacêutica em relação aos custos com pesquisa e desenvolvimento de tecnologias de saúde, composição e negociação de preços dos medicamentos e margem de lucro na sua comercialização;
  2. aprimoramento dos critérios de precificação dos medicamentos e de reajuste das tabelas da CMED;
  3. incentivo à celebração de acordos de compartilhamento de riscos e de pagamentos baseados em desfecho;
  4. revisão das estratégias de investimento em pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias em saúde; e,
  5. compatibilização entre os direitos de propriedade intelectual – patentes – e a acessibilidade econômica de medicamentos à sociedade, inclusive, quando necessário, mediante licenciamento compulsório.

Nenhuma dessas medidas, isoladamente, será a panaceia para o problema. No entanto, todas juntas, utilizadas de forma coordenada e com critérios técnicos qualificados, certamente contribuirão muito para que os medicamentos sirvam ao principal propósito a que se destinam, que é cuidar da saúde. Para isso, eles precisam chegar aos pacientes.

Imagem foto de Etactics Inc na Unsplash




Competência Judicial sobre Medicamentos e Procedimentos de Saúde: Resumo do Tema 1234

1. Competência:

1.1 Procedimentos, órteses, próteses, cirurgias e exames

1.2 Medicamentos

1.2.1 Incorporados com pactuação na Comissão Intergestores Tripartite (CIT)

  • Relacionados no Grupo 1A do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) → Justiça Federal (União no polo passivo);
  • Relacionados no Grupo 1B do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) → Justiça Estadual (Estado no polo passivo);
  • Relacionados no Grupo 2 do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) → Justiça Estadual (Estado no polo passivo);
  • Relacionados no Grupo 3 do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) → Justiça Estadual (Município no polo passivo);
  • Relacionados no Componente Básico da Assistência Farmacêutica (CBAF) → Justiça Estadual (Município no polo passivo);
  • Relacionados no Componente Estratégico da Assistência Farmacêutica (CESAF) → Justiça Federal (União no polo passivop. 67 do voto do relator;
  • Relacionados com Saúde Indígena → Justiça Federal (União no polo passivo).
1.2.2 Medicamentos não incorporados (não incluídos nas políticas públicas ou não incluídos para a situação específica, inclusive os com uso off label) ou incorporados sem pactuação na CIT

  • Valor da causa maior que 210 salários mínimos (ver item 4, valores superiores a R$ 296.500,00, em 2024) → Justiça Federal (União responsável por 100% do custeio);
  • Valor da causa entre 7 e 210 salários mínimos (valores entre R$ 9,884,00 e R$ 296.500,00, em 2024) → Justiça Estadual (sem a participação da União, Estado custeia e depois é ressarcido em 65% ou em 80% no caso de medicamentos oncológicos);
  • Valor da causa abaixo de 7 salários mínimos (valores inferiores a R$ 9.884,00, em 2024) → Justiça Estadual (Estado custeia totalmente). 
1.1.3 Não registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA)

  • Tema 500 STF – Justiça Federal (União no polo passivo).

2. Inclusão dos outros entes no processo

O Estado e/ou o Município poderão ser incluídos nos processos para facilitar o cumprimento em todos os casos, inclusive de medicamentos incorporados. Eles podem ser compelidos a pagar ou fornecer o medicamento, mas deverá haver a condenação da União a ressarcir o Estado ou o Município via Fundo Nacional de Saúde devendo constar EXPRESSAMENTE NA DECISÃO. Nesses casos não haverá condenação em custas e despesas ao Estado ou ao Município. Eventualmente, a obrigação do Estado pode ser transferida ao Município.

3. Ônus da parte autora

3.1.1 Medicamentos não incorporados:

  • Demonstrar segurança e eficácia com base na Medicina Baseada em Evidências e inexistência de substituto terapêutico;
  • Prova de que existem ensaios clínicos randomizados ou revisão sistemática com ou sem meta-análise que indiquem a segurança e a eficácia do medicamento não incorporado. 

4. Valor da Causa

  • Deve-se considerar o valor anual do tratamento, aferido com base no Preço Máximo de Venda do Governo (PMVG), situado na alíquota zero, do fármaco ou do princípio ativo, com menor valor divulgado pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED);
  • Havendo mais de um medicamento no pedido, necessário somar o valor dos medicamentos não incorporados;
  • Não havendo valor de tabela, deve-se oficiar à CMED para que ela indique um valor. Caso ela demore em indicar, usa-se o valor da proposta inicial da parte autora;
  • Se identificar que o valor da causa não irá ultrapassar 210 salários mínimos, deve-se excluir a União e declinar para a Justiça Estadual, salvo outra hipótese competência da Justiça Federal. 

5. Aquisição do Medicamento

Na aquisição do medicamento o valor do medicamento será limitado ao preço com desconto, proposto no processo de incorporação na Conitec ou ao valor já praticado pelo ente em compra pública, o que for menor. Nunca poderá haver pagamento judicial à parte em valor superior ao teto do PMVG, devendo-se contratar com o fabricante ou distribuidor.

6. Defensoria Pública

Excepcionalmente, até 19 de setembro de 2025, nos casos de declinação da Justiça Estadual para a Justiça Federal, e na hipótese de não atendimento pela Defensoria Pública da União (DPU) – seja pela ausência de atuação institucional na respectiva Subseção Judiciária, seja por ultrapassar o limite de renda para atendimento –, a Defensoria Pública Estadual (DPE), responsável pelo ajuizamento da demanda, permanecerá conduzindo o processo até que a DPU se organize administrativamente e passe a representar os interesses da parte autora. Obs: Esse ponto é objeto de Embargos de Declaração ainda pendentes de julgamento. 

7. Novidades na análise do processo pelo Juiz

Caso o medicamento já tenha sido analisado pela Conitec, o juiz deverá fazer o exame de legalidade do ato do órgão referido, mas sem entrar no mérito. Deverá fazer o exame de acordo com as questões procedimentais e ver a teoria dos motivos determinantes (se os motivos que fundamentaram a decisão são existentes e verdadeiros).

Cumpre a parte autora terá que apontar as causas pelas quais o ato deverá ser desconsiderado (ver item 3).

8. Quadro comparativo

Para facilitar a compreensão, segue quadro comparativo acerca da competência para processamento e julgamento dos processos considerando a publicação da decisão de julgamento do Tema 1234 em 19 de setembro de 2024:

CATEGORIA COMPETÊNCIA
(ações ajuizadas antes da publicação do Tema 1234)
COMPETÊNCIA
(ações ajuizadas após a publicação do Tema 1234)
CUSTEIO DA DECISÃO JUDICIAL
(ações anteriores ou posteriores ao Tema 1234)
Medicamentos
CEAF – 1A
Justiça Federal Justiça Federal União, com posterior ressarcimento caso outro Ente cumpra
Medicamentos
CEAF – 1B
Justiça Estadual Justiça Estadual Estado, com ressarcimento pela União no caso de ausência ou insuficiência de financiamento Portaria de Consolidação nº 2/2017
Medicamentos
CEAF – 2
Justiça Estadual Justiça Estadual Estado, com posterior ressarcimento caso o Município cumpra
Medicamentos
CEAF –
3
Justiça Estadual Justiça Estadual Município, com ressarcimento pela União em caso de ausência ou insuficiência de financiamento
Medicamentos
CESAF
Justiça Federal Justiça Federal União, com posterior ressarcimento, caso outro Ente cumpra
Medicamentos
CBAF
Justiça Estadual Justiça Estadual Municípiosalvo pactuação diversa na Comissão Intergestores Bipartite, com ressarcimento pela União em caso de ausência ou insuficiência de financiamento
Medicamentos
Saúde Indígena
Justiça Federal Justiça Federal UniãoPortaria GM/MS 4/2017
Não incorporados
(Valor da causa superior a 210 SM)
Mantém a competência
(Justiça Estadual ou Federal)
Justiça Federal União, com ressarcimento posterior caso o Estado cumpra
Não incorporados
(Valor da causa entre 7 e 210 SM)
Mantém a competência
(Justiça Estadual ou Federal)
Justiça Estadual Estado, mas a União deve ressarcir 65% nos medicamentos em geral e 80% nos oncológicos, independente do trânsito em julgado p. 69, voto do Relator
Não incorporados
(Valor da causa inferior a 7 SM)
Mantém a competência
(Justiça Estadual ou Federal)
Justiça Estadual Estado, com ressarcimento caso o município pague, ressalvada pactuação diferente na CIB
Medicamentos não registrados na ANVISA Tema 500
(Justiça Federal)
Tema 500
(Justiça Federal)
União, mas sem uma definição específica no Tema 1234
Demais pedidos
(órteses, próteses insumos e regulação)
Tema 793 Tema 793 Tema 793
Nota: A modulação dos efeitos da decisão do Tema 1234 foi exclusiva quanto à competência para o julgamento das ações dos medicamentos não incorporados, motivo pelo qual em relação aos demais critérios e determinações o julgado será aplicado a todos os processos, independente da data do ajuizamento da ação.

(atualizado em 24.09.2024).

Imagem de Suzanne D. Williams em Unsplash




A Nova Lei da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer (Lei nº 14.758/2023) – um Presente de Natal, mas sem Pilhas

Presente de natal

No dia 20 de dezembro de 2023 foi publicada a Lei nº 14.758, do dia anterior, que “Institui a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e o Programa Nacional de Navegação da Pessoa com Diagnóstico de Câncer; e altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990 (Lei Orgânica da Saúde)”.

A lei é um presente de Natal para as pessoas com câncer que precisam do SUS para se tratarem. Aliás, não só para elas, mas também para os familiares e cuidadores dos doentes, gestores públicos, prestadores de serviços e trabalhadores e trabalhadoras da saúde que há tanto tempo anseiam por uma melhor estruturação da política oncológica do nosso sistema público.

No entanto, é um daqueles presentes eletrônicos ou brinquedos que o Papai Noel entrega sem pilhas e por isso demandam uma certa paciência para que a criança saiba exatamente como vai funcionar e se, uma vez ligado, será de seu agrado.

De fato, a Lei nº 14.758/2023 elenca, no seu art. 2º, os principais objetivos da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer – PNPCCI- diminuir a incidência dos diversos tipos de câncer; II – garantir o acesso adequado ao cuidado integral; e III – contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos usuários diagnosticados com câncer, que foram instituídos, como não poderia deixar de ser, de maneira genérica e na forma de escopos que deverão nortear as medidas a serem adotadas daqui para frente pelo Poder Executivo. Essas medidas é que de fato construirão a nova política pública.

Os arts. 3º, 5º, 6º e 7º da lei arrolam os princípios e diretrizes da PNPCC, que também são um farol a guiar os administradores e gestores da saúde na concretização da nova política.

Vários dos objetivos, princípios e diretrizes estabelecidos nos dispositivos legais referidos já constavam, expressa ou implicitamente, no Anexo IX da Portaria de Consolidação nº 02/2017 do Ministério da Saúde, que teve como origem a Portaria MS/GM nº 874/2013.

Ainda que isso possa indicar, em um primeiro momento, que muito do que agora deve ser feito pelos diversos entes federativos que integram o SUS já o poderia ser mesmo antes do advento da Lei nº 14.758/2023, o fato é que a encampação de todas aquelas normas programáticas pela lei lhes confere agora maior força jurídica e vinculação do Administrador aos propósitos que devem conduzir a elaboração e o aperfeiçoamento da PNPCC, uma vez que não está mais a critério do Poder Executivo defini-los ou reduzi-los.

Ainda assim, a verdade é que o efetivo cumprimento de todas as promessas trazidas com a nova lei depende da boa vontade dos gestores, da disponibilidade orçamentária e da adoção de bons critérios técnicos na concretização da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer. São essas as pilhas necessárias para que o brinquedo funcione e faça a criança feliz.

Além do mais, a edição de um marco legal de uma política pública, mesmo quando ela já vem sendo construída antes dele, é sempre um novo incentivo para que a sua regulamentação avance e se aperfeiçoe. É isso o que se espera agora com o tratamento oncológico no SUS.

Como a Lei nº 14.758/2023 acabou de “sair do forno”, é necessário algum tempo e uma reflexão detida sobre suas normas para que seja devidamente interpretada e avaliada. Por isso, opiniões ou críticas mais assertivas neste momento seriam precipitadas e temerárias. Isso não impede, de qualquer modo, que se apontem novidades por elas trazidas que já se pode perceber serem de grande impacto na política de tratamento do câncer pelo SUS.

Neste momento, o foco dos apontamentos é sobre as questões que mais costumam ser tratadas na judicialização do tratamento oncológico do Sistema Único de Saúde.

Em relação a isso, o primeiro ponto que chama a atenção na Lei nº 14.758/2023 é o princípio instituído em seu art. 7º, I, que estabelece o seguinte:

Art. 7º São princípios e diretrizes relacionados ao tratamento do paciente com diagnóstico de câncer no âmbito da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer:

I - incorporação e uso de tecnologias, consideradas as recomendações formuladas por órgãos governamentais a partir do processo de avaliação de tecnologias em saúde e da avaliação econômica;

A novidade, aqui, reside no fato de que até o presente momento, a regra era a de que os medicamentos destinados ao tratamento dos diversos tipos de câncer fossem definidos por cada Centro de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (CACON) ou Unidade de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (UNACON), observadas as Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas (DDT’s) elaboradas pelo Ministério da Saúde.

Como o próprio nome sugere, essas “diretrizes” são apenas orientações não vinculantes para que os CACON’s e UNACON’s definam quais os tratamentos que disponibilizarão a seus pacientes.

Sempre existiu, contudo, uma limitação fática para essa liberdade de definição dos CACON’s e UNACON’s quanto aos tratamentos oncológicos a serem oferecidos, que é o valor da APAC (Autorização de Procedimento Ambulatorial de Alta Complexidade) paga pelo SUS como ressarcimento das despesas com o custo de tais tratamentos.

Como é muito comum que os valores tabelados sejam insuficientes para o custeio dessas despesas e estejam defasados em comparação com o custo atual das terapias, na prática, muito do que há disponível no mercado para os cuidados com os pacientes com câncer – especialmente medicamentos e procedimentos mais modernos -, mesmo quando previsto em Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas, acaba não sendo efetivamente disponibilizado pelo sistema público de saúde.

A título de exemplo, a seguinte tabela elaborada pela Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica – SBOC bem demonstra o descompasso entre o valor da APAC e o custo mensal do tratamento com diversos medicamentos antineoplásicos que já foram incorporados ao SUS (fugindo à regra de que tais medicamentos usualmente são definidos pelos próprios CACON’s e UNACON’s sem necessidade de prévia incorporação):

Essa situação, por outro lado, muitas vezes implica afronta ao princípio da universalidade do SUS, uma vez que os CACON’s ou UNACON’s que contam com fontes complementares de recursos públicos ou privados conseguem adquirir para os seus pacientes medicamentos que outros hospitais cujas fontes adicionais são menores ou mesmo inexistentes não conseguem.

O resultado disso é a tão propalada ideia da existência “do meu SUS é melhor que o seu SUS”, que evidentemente caracteriza uma violação à isonomia no Direito à Saúde garantida pela Constituição.

Por essas razões, veio em boa hora a determinação legal de que a incorporação efetiva das tecnologias de tratamento oncológico pelo SUS é agora um dos princípios da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer.

Com isso, uma vez estando os novos tratamentos formalmente incorporados após avaliação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde – Conitec, a lógica das Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas – que, como visto, servem apenas como recomendações de tratamentos cuja disponibilização ou não pode ser decidida por cada CACON/UNACON – é substituída pela dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT’s), que são documentos elaborados pelo Ministério da Saúde que estabelecem os medicamentos ou produtos a serem obrigatoriamente ofertados pelo SUS para o tratamento das doenças de que tratam.

Esses medicamentos ou produtos são aqueles avaliados pela Conitec quanto à sua eficácia, segurança, efetividade e custo-efetividade no procedimento prévio à incorporação, tudo nos termos dos arts. 19-O e 19-Q da Lei nº 8.080/90.

É justamente isso o que dispõe o art. 10, § 4º, da nova Lei nº 14.758/2023, em outra de suas bem-vindas novidades:

Art. 10. A partir da publicação da decisão de incorporar uma nova tecnologia em oncologia, as áreas técnicas terão o prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias para efetivar sua oferta no SUS.

(...)

§ 4º A utilização dos tratamentos incorporados deverá seguir os protocolos clínicos de diretrizes terapêuticas vigentes do Ministério da Saúde ou, na sua ausência, a recomendação para utilização da tecnologia realizada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS.

Com isso, os tratamentos oncológicos passam a ser formalmente incorporados ao SUS e assim de dispensação obrigatória aos pacientes que se encontrem dentro dos critérios previstos nos PCDT’s, sem depender da decisão de cada CACON ou UNACON.

Para que esta medida funcione da maneira adequada, contudo, é preciso que o Ministério da Saúde, mediante pactuação administrativa com os demais entes federativos na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), assegurem a efetiva disponibilidade dos novos tratamentos oncológicos incorporados ao SUS, seja mediante aquisição centralizada pelo próprio ministério, seja por meio de ressarcimento dos gastos dos prestadores dos serviços de oncologia por meio das APAC’s. Essa é, inclusive, mais uma das novidades trazidas pela Lei nº 14.758/2023, cujo art. 10, §§ 1º, 2º e 3º, estabelecem que:

Art. 10. A partir da publicação da decisão de incorporar uma nova tecnologia em oncologia, as áreas técnicas terão o prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias para efetivar sua oferta no SUS.

§ 1º Na fluência do prazo definido no caput deste artigo, deverão ser discutidas e pactuadas no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite as responsabilidades de cada ente federado no processo de financiamento, de aquisição e de distribuição da tecnologia, respeitadas a manutenção do equilíbrio financeiro entre as esferas de gestão do SUS e a garantia da linha de cuidado da doença, admitidas as seguintes modalidades:

I - aquisição centralizada pelo Ministério da Saúde, prioritariamente nos casos de:

a) neoplasias com tratamento de alta complexidade;

b) incorporações que representem elevado impacto financeiro para o SUS; ou

c) neoplasias com maior incidência, de forma a garantir maior equidade e economicidade para o País;

II - Autorização de Procedimento Ambulatorial de Alta Complexidade (APAC) exclusiva para aquisição do tratamento incorporado no SUS.

§ 2º Os medicamentos e os tratamentos previstos para a modalidade referida no inciso II do § 1º deste artigo serão negociados pelo Ministério da Saúde, e poderá ser estabelecido sistema de registro de preços conforme preceitua a Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos).

§ 3º Caso a incorporação de novo procedimento resulte em incremento do teto financeiro dos gestores municipais, estaduais e do Distrito Federal, estes deverão realizar os devidos ajustes nos contratos dos serviços sob sua gestão.

O maior mérito das normas transcritas é esclarecer e conferir alguma objetividade às responsabilidades dos entes federativos no fornecimento do tratamento oncológico pelo SUS, que tem sido uma das questões mais discutidas na chamada judicialização da saúde.

Como, via de regra, os medicamentos para tratamento de câncer não eram, até o advento da Lei nº 14.758/2023, formalmente incorporados ao SUS – ou, em grande parte dos casos de exceção em que eram incorporados, não tinham as respectivas responsabilidades pactuadas na CIT -, esses fármacos não estão incluídos na RENAME e, com isso, não têm as responsabilidades pela aquisição, custeio e fornecimento objetivamente repartidas entre os entes federativos. É óbvio que, neste cenário, nenhum dos entes reconhece a própria responsabilidade nos processos judiciais que discutem essa questão.

Agora, com a entrada em vigor da Lei nº 14.758/2023, ficou definido que nos casos de tratamentos de alta complexidade, que representem elevado impacto financeiro ao SUS ou sejam relacionados a neoplasias com maior incidência, é o Ministério da Saúde que deve, prioritariamente, adquirir centralizadamente os medicamentos (art. 10, §1º, I).

Nos outros casos, o fornecimento pode ser feito mediante aquisição direta pelos prestadores de serviço e posterior ressarcimento via APAC (inciso II). Neste último caso, entretanto, os medicamentos ou tratamentos deverão ser ainda assim negociados pelo Ministério da Saúde, inclusive com o estabelecimento de sistema de registro de preços, permitindo que as entidades particulares adquirentes possam se beneficiar dos preços mais vantajosos decorrentes da negociação em grande escala (art. 10, § 2º).

É importante observar que mesmo nos casos em que os medicamentos não sejam adquiridos centralizadamente pelo Ministério da Saúde, eles devem agora ser objeto de incorporação formal pelo SUS após o devido procedimento de avaliação de tecnologia em saúde pela Conitec uma vez que, como visto, esse passou a ser um dos princípios da PNPCC (art. 7º, I da Lei nº 14.758/2023). Além disso, os medicamentos incorporados de qualquer forma precisarão estar previstos em PCDT (art. 10, §4º, da mesma lei).

É de se esperar que, nas hipóteses em que o tratamento seja disponibilizado mediante aquisição direta pelos CACON’s/UNACON’s e posterior reembolso via Autorização de Procedimento Ambulatorial de Alta Complexidade, o Ministério da Saúde revise o valor da respectiva APAC de forma que ele seja suficiente para cobrir as despesas com o referido tratamento.

De fato, agora, com a Lei nº 14.758/2023, não cabe mais aos centros de referência em tratamento oncológico definir os medicamentos ou terapias que disponibilizarão a seus pacientes. Eles passam a ser obrigados a oferecer as tecnologias incorporadas ao SUS e previstas nos PCDT’s.

É dever do Ministério da Saúde, portanto, assegurar que os prestadores de serviço sejam devidamente ressarcidos das despesas que tiverem neste mister. Não há mais espaço, com isso, para argumentos normalmente levantados no sentido de que os CACON’s/UNACON’s poderiam ou deveriam se valer de fontes de receitas alternativas para cobrir as despesas com o tratamento.

Como os custos dos novos tratamentos poderão ser objetivamente aferidos de forma mais segura, já que existe a possibilidade de implantação de sistema de registro de preços nacional (art. 10, § 2º, da Lei nº 14.758/2023), é possível apurar com maior acurácia os valores das APAC’s necessários para a cobertura das despesas com as terapias incorporadas e, consequentemente, avaliar a necessidade de seu reajustamento.

É partindo desses pressupostos, inclusive, que o art. 10, § 3º, da Lei nº 14.758/2023 prevê a possibilidade de incremento do teto financeiro dos gestores municipais e estaduais em decorrência da incorporação de novas tecnologias para o tratamento do câncer.

Em uma rápida análise, essas parecem ser as novidades mais relevantes da Lei nº 14.758/2023 em relação às questões que são normalmente discutidas judicialmente nas demandas por tratamentos oncológicos pelo SUS. São medidas que, sem dúvida, aperfeiçoam e tornam mais racional a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer.

Esse é, portanto, um grande presente de Natal aos pacientes com câncer e a todos e todas que lidam de perto com suas angústias e sofrimentos. O que resta a ser feito agora é colocar boas pilhas neste presente para que ele funcione como se espera. Isso significa, dentre outras coisas:

a) efetivamente implantar a substituição do modelo de definição dos tratamentos oncológicos por meio de Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas pelo modelo dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas;

b) pactuar na CIT as responsabilidades pela aquisição, financiamento e entrega de todos os medicamentos oncológicos já incorporados ao SUS, mas até o momento não disponíveis para os pacientes;

c) implementar um fluxo que realmente permita que, após a incorporação de um novo tratamento oncológico ao SUS, a pactuação das responsabilidades na CIT, a resolução das questões orçamentárias e a efetiva disponibilização aos cidadãos sejam feitas dentro do prazo de 180 dias previsto no caput do art. 10 da Lei nº 14.758/2023;

d) revisar e, sempre que necessário, reajustar o valor das APAC’s nos casos em que a disponibilização dos tratamentos ocorrer mediante posterior ressarcimento aos CACON’s e UNACON’s, de maneira que elas sejam de fato suficientes para a cobertura das despesas incorridas pelos prestadores de serviços;

e) o Ministério da Saúde colocar em prática a obrigação de negociar centralizadamente os preços dos medicamentos e tratamentos oncológicos incorporados, viabilizando que as tratativas em grande escala resultem em preços mais acessíveis, inclusive quando a compra dos medicamentos for feita pelos CACON’s e UNACON’s; e

f) tornar claras as responsabilidades – especialmente financeiras – de cada um dos entes federativos nas hipóteses de dispensação dos tratamentos oncológicos mediante ressarcimento via APAC.

Com isso, certamente as expectativas criadas com a nova lei não se transformarão em frustração, mas em efetiva melhoria da vida e da saúde de pessoas tão carentes do auxílio estatal como são aquelas que sofrem com o câncer.

Imagem do postFoto de Kira auf der Heide na Unsplash




Judicialização de medicamentos psiquiátricos no Brasil: a realidade nos estados do Paraná e Santa Catarina.

Mulher e saúde mental

1. Introdução:

Saúde mental é parte integrante do conceito de saúde e é considerada um direito básico para toda a população Mental health and human rights. Report of the United Nations High Commissioner for Human Rights. Um transtorno mental é caracterizado por perturbações na cognição e na regulação das emoções ou nos comportamentos, além de ser associado ao sofrimento e a incapacidades com impacto social, profissional e individualGalderisi S, Heinz A, Kastrup M, Beezhold J, Sartorius N. Toward a new definition of mental health. World Psychiatry. 2015 Jun;14(2):231–3. Geralmente, os transtornos mentais são doenças crônicas e atingem cerca de 15% da população mundial. No Brasil, estima-se que mais de 45 milhões de pessoas tenham diagnóstico de algum transtorno mentalGlobal Burden of Disease Collaborative Network. Global Burden of Disease Study 2019 (GBD 2019).. Além do sofrimento individual, esses transtornos geram impactos econômicos e sociais importantes, como maior afastamento de trabalho, mortalidade precoce e menores ganhos financeirosArias D, Saxena S, Verguet S. Quantifying the global burden of mental disorders and their economic value. eClinicalMedicine. 2022 Dec;54:101675.

Figura 1. Número absoluto de pessoas com transtorno mental no Brasil. ( Gráfico criado com Datawrapper)

Os transtornos mentais podem ser classificados e agrupados de acordo com a apresentação básica de sintomasAmerican Psychiatric Association, American Psychiatric Association, editors. Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-5. 5th ed. Washington, D.C: American Psychiatric Association; 2013. 947 p., por exemplo:

i) os transtornos ansiosos, que incluem o transtorno de pânico, o transtorno de ansiedade generalizada, fobias, entre outros;

ii) os transtornos de humor, nos quais se enquadram o transtorno depressivo maior e o transtorno bipolar;

iii) os transtornos psicóticos, em que a esquizofrenia é o principal diagnóstico; e

iv) os transtornos de uso de substâncias, quando há o uso problemático de drogas lícitas e ilícitas.

No Brasil, assim como em diversos outros países, os transtornos mentais com maior prevalência são os transtornos ansiosos, seguidos pelos transtornos de uso de substâncias e depressãoGlobal Burden of Disease Collaborative Network. Global Burden of Disease Study 2019 (GBD 2019).. O tratamento geralmente é feito por equipe multiprofissional, e diversas terapias são necessárias, inclusive a utilização de medicação.

Figura 2. Porcentagem de pessoas com transtornos mentais no Brasil. ( Gráfico criado com Datawrapper)

No Brasil, a assistência à saúde da população é oferecida de acordo com um modelo misto. Os serviços de saúde são prestados tanto pelo sistema público de saúde, conhecido como Sistema Único de Saúde (SUS), como pelo sistema de saúde privado (suplementar). Cerca de 75% da população brasileira depende do SUS como forma de acesso assistencial à saúde. A gestão do SUS é tripartite, o que significa dizer que a sua organização e suas obrigações são estabelecidas e divididas entre municípios, estados e Distrito Federal e a União. Dentre outras responsabilidades, cabe precipuamente ao governo federal elaborar diretrizes terapêuticas e orientações de diagnóstico e decidir as opções farmacológicas para as mais diversas doenças, incluindo os transtornos mentaisCastro MC, Massuda A, Almeida G, Menezes-Filho NA, Andrade MV, de Souza Noronha KVM, et al. Brazil’s unified health system: the first 30 years and prospects for the future. Lancet. 2019 Jul 27;394(10195):345–56 Souza Júnior PRBD, Szwarcwald CL, Damacena GN, Stopa SR, Vieira MLFP, Almeida WDSD, et al. Cobertura de plano de saúde no Brasil: análise dos dados da Pesquisa Nacional de Saúde 2013 e 2019. Ciênc saúde coletiva. 2021 Jun;26(suppl 1):2529–41.

De acordo com o art. 19-Q, da Lei nº  12.401/2011, que alterou a Lei nº 8.080/90, o Ministério da Saúde do Brasil define os medicamentos que devem ser disponibilizados aos usuários do SUS. Após a decisão de incorporação ao sistema, eles passam a integrar a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), uma lista que traz todas as substâncias que devem ser dispensadas gratuitamente no SUS. Essa lista contempla medicamentos de uso na rede básica (unidades de saúde e médicos de família) e na rede especializada em saúde (centros de especialidades e médicos especialistas). Quando se trata de medicamento utilizado na atenção especializada à saúde, o seu uso é regido pelos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDTs) do Ministério da Saúde do Brasil.

Em uma revisão recente, mostramos que existem hoje no SUS os PCDTs dos seguintes transtornos mentais: esquizofrenia, transtorno esquizoafetivo, transtorno bipolar, transtorno do espectro autista, tabagismo, deficiência intelectual e doença de Alzheimer. Posteriormente ao estudo, houve a publicação do PCDT para transtorno de déficit de atenção com hiperatividade. Não obstante, não existem protocolos especializados nacionais para tratamento das condições mais prevalentes, como os transtornos ansiosos, depressão e transtornos de uso de substâncias. 

Na ausência de medicamentos e de orientações oficiais sobre como tratar essas doenças, os estados e municípios podem definir se realizam uma ampliação da assistência farmacológica com a inclusão de determinada substância nas suas listas próprias de medicamentos (listas estaduais e municipais). Não raro, muitas situações clínicas ainda ficam sem tratamento adequado no SUS. Nesse caso, os usuários do sistema podem adquirir a medicação necessária com seus recursos. Quando eles não são suficientes, uma das formas para a sua obtenção tem sido o acionamento do Poder Judiciário. 

Na última década, ocorreu um aumento percentual importante dos processos judiciais no Brasil com temáticas de saúde. Estima-se que mais de 13% dos processos judiciais solicitam tratamentos (cirurgias, exames, internações, medicamentos etc.) Instituto de Ensino e Pesquisa INSPER. Judicialização da saúde no Brasil: Perfil das demandas, causas e propostas de solução – Relatório analítico propositivo Justiça Pesquisa. 2019. Há, porém, poucos estudos ou estatísticas demonstrando a frequência e as características dos medicamentos solicitados pela via judicial no Brasil. O objetivo deste artigo é demonstrar a porcentagem e a frequência dos diferentes grupos medicamentosos utilizados para tratamento psiquiátrico solicitados judicialmente contra os Estados de Santa Catarina e Paraná. 

2. Metodologia:

Foram solicitadas às Farmácias do Estado do Paraná e do Estado de Santa Catarina, as quantidades de medicações dispensadas por ordem judicial com pacientes ativos e a lista de frequências de medicações consideradas no tratamento de transtornos mentais nos respectivos estados. Eles foram separados em antidepressivos, estabilizadores de humor, antipsicóticos, estimulantes, indutores do sono, ansiolíticos e outros. Algumas das medicações utilizadas em transtornos mentais também são usadas em outras doenças, como valproato de sódio, lamotrigina, carbamazepina, gabapentina, pregabalina e duloxetina. Optamos por manter essas medicações em nossas análises.

3. Resultados:

Foram solicitados todos os medicamentos dispensados por ordens judiciais ativas na data de 27 de agosto 2022.

Ao todo, nessa data, existiam 20.985 solicitações de medicamentos pela via judicial para a Farmácia do Estado do Paraná, vinculada à Secretaria de Saúde do Estado do Paraná. Dessas, 3.176 (15%) eram de medicamentos utilizados em tratamentos psiquiátricos.

No Estado de Santa Catarina, havia 18.855 solicitações judiciais deferidas de medicamentos, e 4.923 (26%) delas eram de uso em tratamentos psiquiátricos. Considerando o total de medicações psiquiátricas fornecidas, os antidepressivos foram os mais deferidos (PR: 48%; SC: 46%). Em seguida, figuravam os antipsicóticos (PR: 24%; SC: 18%), os estabilizadores de humor (PR: 7%; SC: 15%) e os estimulantes ( PR: 12%; SC: 7%).

Em ambos os Estados, a maioria das decisões favoráveis ao usuário do SUS era para a disponibilização de drogas do grupo dos antidepressivos. Dentre os antidepressivos, a droga mais deferida judicialmente era a venlafaxina em ambos os estados. Individualmente, no Estado do Paraná, a droga mais fornecida judicialmente era o estimulante metilfenidato. Já em Santa Catarina era a venlafaxina. 

Grupo de medicamentos psiquiátricos deferidos judicialmente nos Estados do Paraná e Santa Catarina: 

Paraná  Santa Catarina
Antidepressivos 1513 (44,16%) 2285 (39,86%)
Antipsicóticos 822 (23,99%) 1013 (17,67%)
Ansiolítico e Benzodiazepínicos 161 (4,70%) 384 (6,70%)
Canabidiol 24 (0,70%) 88 (1,54%)
Estabilizador de humor 250 (7,30%) 843 (14,71%)
Estimulantes 420 (12,26%) 395 (6,89%)
Hipnóticos 76 (2,22%) 157 (2,74%)
Medicamento para Demências 53 (1,55%) 108 (1,88%)
Outros* 107 (3,12%) 459 (8,01%)
Total  3426  (100%) 5732 (100%)
*Outros: pregabalina, biperideno e naltrexona 

4. Discussão:

Nosso estudo mostra que, de todas as solicitações por via judicial, no Estado do Paraná, 15% de solicitações de medicação estão relacionadas a diagnóstico psiquiátrico  e, no Estado de Santa Catarina, 26%. 

Os antidepressivos proporcionalmente são as drogas mais deferidas judicialmente e apresentam-se como cerca da metade das solicitações. Essas drogas são utilizadas para o tratamento de quadros de depressão e ansiedade, justamente transtornos mentais de maior prevalência na população.

O segundo grupo medicamentoso mais frequentemente concedido por via judicial foram os antipsicóticos. Dentre as medicações desse grupo, no Paraná, a mais deferida foi o aripiprazol, enquanto em Santa Catarina foi a quetiapina. O aripiprazol não está presente na RENAME, o que explica as solicitações judiciais. Já a quetiapina, por outro lado, está listada na RENAME, com PCDT com previsão de dispensação para diagnósticos de transtorno bipolar, transtorno esquizoafetivo e esquizofrenia, se solicitado via componente especializado da assistência farmacêutica. A quetiapina, porém, é uma medicação que pode ser utilizada para outros transtornos, além desses aprovados, como o transtorno depressivo. Todavia, de acordo com as regras da RENAME, a medicação pode ser dispensada apenas nos diagnósticos aprovados pelos PCDTs. Uma hipótese é que a quetiapina esteja sendo solicitada para fins diversos dos previstos nos PCDTs Maan JS, Ershadi M, Khan I, Saadabadi A. Quetiapine. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022.

Existem duas situações relacionadas aos diagnósticos psiquiátricos e ao uso e à dispensação medicamentosa no SUS. A primeira situação ocorre quando um determinado transtorno mental não foi contemplado com protocolo clínico e diretrizes terapêuticas elaborado pelo Ministério da Saúde. Nesse caso, os fármacos disponíveis no SUS para o seu tratamento estarão alocados no componente básico da assistência farmacêutica. A outra se dá quando o transtorno possui protocolo clínico e diretrizes terapêuticas. Com isso, os medicamentos mencionados no PCDT para o manejo da doença integrarão o componente especializado da assistência farmacêuticaRelação Nacional de Medicamentos Essenciais – RENAME. Ministério da Saúde – Brasil; 2022.

Na primeira situação, de transtornos mentais sem PCDTs, estão os diagnósticos de transtornos depressivos e transtornos ansiosos. As drogas disponíveis para o tratamento dessas condições são aquelas listadas no componente básico da RENAME do Ministério da Saúde.

Estão disponibilizados quatro medicamentos: um inibidor seletivo de recaptação de serotonina, a fluoxetina, e três antidepressivos tricíclicos, menos utilizados atualmente pelos efeitos colaterais:  amitriptilina, clomipramina e nortriptilinaRelação Nacional de Medicamentos Essenciais – RENAME. Ministério da Saúde – Brasil; 2022. Mesmo sendo as duas condições mais prevalentes, presente em cerca de 10% da população, não há diretrizes terapêuticas produzidas pelo Ministério da Saúde do Brasil para eles. Essa pode ser a principal explicação para o fato de que quase metade das solicitações judiciais são desse grupo medicamentoso. 

Transtornos mentais que apresentam PCDTs têm medicamentos aprovados e listados na RENAME no componente especializado. Para a prescrição do medicamento, há, em tese, a necessidade da avaliação de um especialista. Como já salientado, existem hoje PCDTs para os seguintes diagnósticos: esquizofrenia, transtorno esquizoafetivo, transtorno bipolar, transtorno do espectro autista, tabagismo, deficiência intelectual, doença de Alzheimer e transtorno de déficit de atenção com hiperatividade. 

Ocorre que, mesmo quando existe um PCDT, nem todas as medicações registradas no país para uma respectiva doença são incluídas nele. Há medicamentos que não passam pela análise do órgão responsável pela avaliação de tecnologias em saúde no SUS (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde-Conitec) e há aqueles cuja incorporação não é recomendada pela comissão. Assim, drogas não contempladas nos PCDTs podem ser objeto de processo judicial. Um outro fator que provoca a judicialização de medicamentos para doenças com PCDTs é a ausência de atualização dessas orientações. O de esquizofrenia, por exemplo, foi publicado há 10 anos, sem uma nova atualização até o momento

Quando observado em número absoluto, no estado do Paraná, a medicação mais deferida foi o metilfenidato, que foi aprovado e indicado para o tratamento do transtorno de hiperatividade e déficit de atenção. O metilfenidato e a lisdexanfetamina fazem parte do grupo de medicamentos denominados de estimulantes. Essas medicações passaram por uma recente revisão da Conitec, que considerou que o custo dessas medicações eram altos e as evidências eram de baixa qualidade para a recomendação de sua incorporação no SUS.

A existência de diferenças entre as frequências de solicitações de medicações psiquiátricas nos estados do Paraná e de Santa Catarina pode ser reflexo das diferenças regionais tanto na distribuição de medicamentos por municípios, como na própria judicialização da saúde em cada ente federativo, com perfis diferentes de solicitações ao poder judiciário, por mais que ambos os estados tenham semelhanças no perfil socioeconômico Instituto de Ensino e Pesquisa INSPER. Judicialização da saúde no Brasil: Perfil das demandas, causas e propostas de solução – Relatório analítico propositivo Justiça Pesquisa. 2019 Sistema de contas regionais : Brasil 2020 / IBGE, Coordenação de Contas Nacionais. Rio de Janeiro: IBGE; 2022.

A promoção de acesso a medicamentos e novas terapias passa por uma decisão técnica, política e econômica e representa uma tarefa complexa dada a evolução na ciência médica e assistência à saúde. O equilíbrio entre a garantia de direitos fundamentais individuais dos cidadãos e a garantia de um Estado eficiente com distribuição de recursos escassos e que garanta universalidade e equidade da política pública em saúde para a população são desafios para o poder judiciárioVieira FS. Judicialização e direito à saúde no Brasil: uma trajetória de encontros e desencontros. Rev saúde pública. 2023 Feb 17;57(1):1..  

Nosso trabalho tem algumas limitações. Ele foi realizado com dados fornecidos pelas Secretarias de Estado da Saúde dos dois estados, Paraná e Santa Catarina. Portanto, não foram consideradas as demandas que tiveram ordem judicial dirigida à União ou aos municípios desses estados. Ainda, ambos os estados pertencem à região sul do Brasil, o que impossibilita a extensão de seus resultados para outras regiões do Brasil. Por ser um corte transversal, não avalia de forma longitudinal como se deu a solicitação das medicações psiquiátricas nesses estados.

Com base nos dados apresentados, podemos concluir que a judicialização para acesso a medicamentos para transtornos mentais é uma realidade. Os números mostram que um número significativo de medicamentos dispensados por ordem judicial são destinados a transtornos mentais, especialmente antidepressivos e antipsicóticos. É importante ressaltar que a RENAME, tanto no seu conteúdo básico como especializado, nem sempre é suficiente para atender às necessidades de tratamento medicamentoso em saúde mental, o que pode levar à busca por alternativas através da via judicial. Esses dados são um indicativo da importância de avaliar e implementar políticas públicas que possam ampliar o acesso a medicamentos e outras terapias em saúde mental, reduzindo assim a necessidade de recorrer à judicialização para obter tratamento.

Imagem criada no Ideogrram.ai




O SUS e a Assistência Farmacêutica na Psiquiatria

mulher com imagens sobreposta do rosto

“O que melhora o atendimento é o contato afetivo de uma pessoa com outra.
O que cura é a alegria, o que cura é a falta de preconceito.”

Nise da Silveira

1. Panorama geral

No livro O Alienista, de Machado de Assis, Simão Bacamarte é um médico que cuida dos doentes da Casa Verde, uma instituição para pessoas “desequilibradas” na cidade de Itaguaí. Em um dado momento da narrativa, o referido alienista envia um ofício à Câmara da cidade ordenando que todas as pessoas do hospital (80% da população) fossem devolvidas ao convívio social. No ofício, explica “que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e, como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto”ASSIS, Machado de. O Alienista. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019, p. 207..

A despeito da ironia do nosso escritor, as doenças psiquiátricas atingem boa parte da população. Cerca de 970 milhões de pessoas sofrem de transtornos mentais no mundo. São 166 milhões de adolescentes. Os números aumentaram ainda mais com a pandemia da COVID-19. Estima-se que a prevalência de ansiedade e de depressão cresceu mais de 25% somente no seu primeiro ano. No Brasil, um dos países mais atingidos pela depressão, existem 7.2 milhões de pessoas acometidas por ela.

O presente texto visa analisar a assistência farmacêutica no SUS, que é um dos pilares da política de promoção da saúde mental. Ainda que outras estratégias assistenciais sejam fundamentais, a prescrição de medicamentos também é essencial para o tratamento de diversos quadros de doença mental.

2. Relações nacional, estaduais e municipais de medicamentos ofertados
pelo SUS

2.1 Lista nacional (RENAME)

Para que um medicamento seja ofertado pelo SUS em todo o território nacional, ele precisa ser analisado por um órgão de composição plural criado pela Lei nº 12.401/2011, chamado Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS). Antes da sua criação, as tecnologias eram analisadas pela Comissão para Incorporação de Tecnologias do Ministério da Saúde (CITEC).

O processo de incorporação é disciplinado pela lei antes referida e pelo Decreto nº 7.646/2011. Nele, é feita a análise das evidências científicas acerca da tecnologia. Também são abordadas questões de farmacoeconomia, para verificar custo-efetividade e o impacto orçamentário causado por sua eventual incorporação (§2º, do art. 19-Q, da Lei nº 8.080/90, acrescentado pela Lei nº 12.401/2011). Após a elaboração do relatório pela Conitec, que poderá recomendar ou não a inclusão do tratamento no SUS, o processo é encaminhado para o Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, vinculado ao Ministério da Saúde (art. 20, do Decreto nº 7.646/2011). É ele quem dá a última palavra no processo de incorporação (art. 23).

Uma vez aprovada a incorporação de um medicamento, ele deverá estar disponível no SUS 180 dias após a publicação da portaria que o incorporou (art. 25, do Decreto) e passará a constar da Relação Nacional de Medicamentos (RENAME), em que são arrolados todos os medicamentos oferecidos nacionalmente pelo SUS. Significa dizer que ela deverá ser entregue em todo o território nacional no prazo previsto.

2,2 Listas estaduais e municipais

Paralelamente à relação nacional, Estados, DF e Municípios podem ter suas próprias listas de medicamentos, com distribuição limitada aos seus territórios, em relações estaduais e municipais, estas últimas denominadas REMUMERelação Municipal de Medicamentos Essenciais. Esses entes federados podem identificar doenças de maior prevalência e adotar as medidas que entenderem necessárias para combatê-las.

Ocorre que, a despeito de deixar margem para a ampliação do elenco de medicamentos, as relações estaduais e municipais podem gerar desigualdades quando se considera o território nacional. Isso se torna especialmente relevante quando as doenças atingem uma parcela importante da população, como é o caso dos transtornos mentais.

Por isso, é relevante que a RENAME possua um elenco satisfatório não só para o tratamento de doenças psiquiátricas, mas para outros agravos à saúde. Com isso, a igualdade prevista constitucionalmente no SUS será obedecida (art. 196, CF)

3. Atuação da Conitec em psiquiatria

3.1 Análises realizadas

Desde a sua criação, em 11 anos, a Conitec realizou quinze análises em psiquiatria, entre relatórios de recomendação de medicamentos e Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDTs). São eles:

  1. palmitato de paliperidona para o tratamento de esquizofrenia, com decisão de não incorporação (2013);
  2. risperidona no transtorno do espectro do autismo (TEA), com decisão de incorporação (2014);
  3. risperidona no tratamento da dependência de cocaína/crack, com decisão de não incorporação (2015);
  4. clozapina, lamotrigina, olanzapina, quetiapina e risperidona para o tratamento do transtorno afetivo bipolar, com decisão de incorporação (2015);
  5. risperidona no comportamento agressivo em adultos com transtornos do espectro do autismo, com decisão de incorporação (2016);
  6. clozapina na psicose associada à doença de Parkinson, com decisão de incorporação (2016);
  7. tartarato de vareniclina para tratamento adjuvante da cessação do tabagismo em pacientes adultos com doença pulmonar obstrutiva crônica ou doenças cardiovasculares, com decisão de não incorporação (2018);
  8. sequenciamento completo do exoma para investigação etiológica de deficiência intelectual de causa indeterminada, com decisão de incorporação (2019);
  9. vareniclina para cessação do tabagismo, com decisão de não incorporação (2019);
  10. PCDT para tabagismo (2020);
  11. PCDT para diagnóstico de etiologia de deficiência intelectual (2020);
  12. metilfenidato e lisdexanfetamina para indivíduos com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade, com decisão de não incorporação (2021);
  13. PCDT para transtorno esquizoafetivo (2021);
  14. dimesilato de lisdexanfetamina para indivíduos adultos com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade, com decisão de não incorporação (2021);
  15. PCDT para autismo (2022)

Além dos PCDTs acima citados, com base na Portaria nº 375, SAS/MS, de 10 de novembro de 2009, a Secretaria de Atenção à Saúde, do Ministério da Saúde elaborou outros três: o da esquizofrenia (2013), do transtorno afetivo bipolar do tipo I (2016) e o da doença de Alzheimer (2017).

3.2 A necessidade de o próprio SUS iniciar o processo administrativo

Dos dez processos que dizem respeito a medicamentos, três foram demandados pela indústria farmacêutica (2, 9 e 15). Os demais tiveram seu início por solicitação da própria SCTIE (4), do INCA/MS (7), da Secretaria de Atenção à Saúde – SAS/MS (10 e 12), da 1ª Vara Federal de Porto Alegre (11 e 14) e do Ministério Público Federal de Porto Alegre (13).

A indústria farmacêutica pediu a incorporação de medicamentos psiquiátricos em apenas três oportunidades nesses últimos 11 anos. Isso se deve possivelmente ao fato de que muitas drogas amplamente utilizadas hoje na Psiquiatria já estão com suas patentes expiradas. Quando uma empresa pede a análise de um princípio ativo pela Conitec que não está mais sob sua patente, ela não tem a garantia de que o seu produto será adquirido pelo SUS, na medida em que haverá concorrência dos demais fabricantes. Isso certamente é um desestímulo para a indústria, pois a instrução do pedido de incorporação demanda tempo e recursos financeiros.

Portanto, é essencial que os próprios entes que compõem o SUS iniciem o processo de análise, especialmente quando houver uma evidência de falha na política ou boas evidências de melhores respostas clínicas de um grupo medicamentoso. A proatividade deve marcar a incorporação de tecnologias psiquiátricas no SUS, a fim de que o usuário seja bem atendido.

3.3 Análise de evidências científicas em Psiquiatria

Ensaio clínico randomizado duplo-cego (em que nem o paciente nem o médico sabem o que está sendo prescrito) é o principal modelo de teste de medicamentos. Para se observar se uma medicação funciona, deve-se estabelecer, antes mesmo de realizar o estudo, quais os objetivos a serem alcançados com aquela medicação, também chamados de desfechos. Quando é realizado mais de um estudo da mesma medicação, para a mesma doença, pode-se agrupar os resultados com técnicas estatísticas e realizar uma análise sistemática das respostas que essa medicação pode ter.

Transtornos mentais, assim como outras doenças, têm métricas específicas avaliadas a partir de intervenções medicamentosas. Diferentemente, porém, de exames de sangue ou de imagem, a maior parte dos desfechos avaliados são comportamentais. A avaliação sintomática pode ocorrer de várias formas. A melhora do humor em um transtorno depressivo, da atenção no transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), a remissão de um quadro ansioso ou mesmo a melhora na qualidade de vida são algumas delas.

Transformar os sentimentos, os comportamentos e os sofrimentos da doença mental em algo mensurável para verificar se a medicação é realmente efetiva e deve ser incorporada ao arsenal terapêutico é a difícil tarefa que os estudos tentam responder. Significa dizer que a análise das evidências em psiquiatria deve tentar mensurar um desfecho abstrato e subjetivo, o que a torna diferente das outras áreas da medicina. Essa avaliação é feita por entrevistas clínicas e escalas validadas que servem justamente para medir a resposta da medicação. Uma medicação é aprovada se houver resposta terapêutica superior ao placebo.

Para uma medicação ser incorporada na RENAME e ser prevista em PCDT, a Conitec realiza uma avaliação da sua efetividade e segurança. Além disso, consideram-se os custos comparativos com medicações já aprovadas para as mesmas doenças. Ou seja, em regra, uma nova medicação, para ser incorporada, deve ser mais efetiva e/ou mais segura do que aquelas já fornecidas pelo SUS.

4. O que existe hoje na RENAME

Atualmente, a RENAME conta com os seguintes medicamentos:

  • os antipsicóticos clozapina, olanzapina, quetiapina, risperidona, decanoato de haloperidol, haloperidol e cloridrato de clorpromazina;
  • os estabilizadores de humor/anticonvulsivantes lamotrigina, ácido valpróico (valproato de sódio), carbamazepina e carbonato de lítio; os benzodiazepínicos/ansiolíticos clonazepam, diazepam e midazolam;
  • os antidepressivos cloridrato de amitriptilina, cloridrato de clomipramina, cloridrato de fluoxetina, cloridrato de nortriptilina;
  • os anticolinérgicos cloridrato de biperideno, lactato de biperideno.

Além desses,

  • o anti-histamínico cloridrato de prometazina;
  • a vitamina cloridrato de tiamina;
  • os anticonvulsivantes fenitoína e fenobarbital;
  • o antagonista de benzodiazepínico flumazenil; e
  • as drogas para parkinson levodopa + carbidopa, levodopa + benserazida.

5. Escassez de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas e falhas em relação ao arsenal farmacêutico

Os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDTs) são manuais que determinam como se deve proceder para realizar o diagnóstico e o tratamento de uma doença, estabelecendo também critérios para acompanhar a sua evolução. Eles são elaborados por uma equipe técnica e de especialistas e, desde a edição da Portaria nº 27, SCTIE/MS, de 12 de junho de 2015, são aprovados pela Conitec. Baseiam-se nas evidências científicas existentes, trazendo segurança para os operadores do SUS e uniformidade na atenção ao paciente.

Devido às especificidades das doenças psiquiátricas, é importante que se estabeleçam procedimentos orientados pela técnica. Um protocolo com diretrizes claras tanto para diagnóstico, quanto para tratamento pode evitar, inclusive, o uso de medicações de forma desnecessária.

Apesar dos diversos avanços realizados no tratamento dos transtornos mentais a partir dos PCDTs já publicados, os transtornos mais prevalentes ainda não foram contemplados. A depressão, o transtorno obsessivo-compulsivo, o transtorno de estresse pós-traumático, os transtornos ansiosos e os transtornos alimentares são apenas alguns exemplos que não têm PCDTs vigentes. Dos transtornos de uso de substância, apenas o tabagismo é contemplado.

A presença dos PCDTs é importante não apenas para mostrar medicações e outras terapias que podem ser disponibilizadas pelo SUS para a população, mas também para guiar a substituição das linhas de tratamento quando há falha terapêutica.

A ausência, porém, de PCDTs para os transtornos mentais mais prevalentes em adultos, como o transtorno depressivo e os transtornos ansiosos, é contrastante. Por mais que existam medicações na RENAME para essas condições, o arsenal terapêutico farmacológico mantém-se limitado. Não há uma diretriz clara em caso de falha terapêutica ou efeitos colaterais que impossibilitem o uso das medicações disponibilizadas.

6. Consequências das falhas da política assistencial

Os problemas da política de atenção à saúde mental geram reflexos significativos para a sociedade, que podem ser sentidos em várias áreas. Uma das consequências da assistência deficiente e da falta de diretrizes claras e suficientes em relação ao tratamento é a conhecida judicialização da saúde. Os remédios psiquiátricos, a depender da relação estadual ou municipal que vigoram para as pessoas residentes em uma determinada localidade, são frequentemente objeto de judicialização.

No Estado do PR, segundo informação obtida junto à Secretaria Estadual de Saúde/PR, na data de 28/06/2022, dos 14.570 pacientes com cadastros ativos recebendo medicamentos por força de decisão judicial, 2.402 eram pacientes psiquiátricos. Além desse número, ainda existiam 117 pacientes recebendo canabidiol, 479 pacientes recebendo duloxetina e 339 pacientes recebendo pregabalina. O levantamento desses últimos medicamentos foi feito em separado, tendo em vista que eles não são utilizados somente para psiquiatria e a discriminação por patologia não pôde ser realizada.

Significa dizer que, em junho de 2022, pelo menos 16,48% dos cadastros ativos eram de pacientes psiquiátricos. A conclusão a que se chega é que, com um maior elenco de tecnologias para o tratamento dessas pessoas, a judicialização da saúde tende a diminuir.

7. Considerações Finais

O paciente com doença psiquiátrica é estigmatizado por terceiros, por si mesmo e pelos próprios agentes do sistema de saúde, em um ciclo que se perpetua.“O estigma opera em círculos viciosos que abrangem o indivíduo que sofre de transtorno psiquiátrico, sua família e os serviços de saúde mental. O diagnóstico de transtorno psiquiátrico ou anormalidade visível, como o efeito colateral de fármacos, deflagra no observador a recuperação de conteúdos negativos como conhecimentos prévios, informação da imprensa e lembrança de filmes que levam à estigmatização. Os pacientes com doença mental que mostram sinais visíveis de suas condições, seja em virtude dos sintomas, seja em decorrência de efeitos colaterais que os fazem parecerem anormais, são vistos como fracos de caráter, preguiçosos ou ameaçadores. O estigma conduz à discriminação negativa do indivíduo com transtorno mental e, consequentemente, a prejuízos e desvantagens como reveses frequentes, serviços de saúde ruins e dificuldade de acesso a cuidados. Pacientes estigmatizados internalizam essas visões estigmatizantes e discriminatórias das pessoas em geral, dando origem ao chamado autoestigma. Há comprometimento da autoestima, mais incapacitação e menos resistência ao estresse. Tudo isso acarreta piora clínica e reinício do círculo vicioso.” ROCHA, F. L., HARA, C. e PAPROCKI, J. Doença mental e estigma. Revista Médica de Minas Gerais, v. 25.4, 2015. Em que pese não estejamos mais diante do quadro traçado por Machado de Assis e das barbáries perpetradas em manicômios, graças à reforma na atenção ao paciente com transtorno mental ocorrida no Brasil no início deste século, ainda há um longo caminho a percorrer.

Em Enfermaria nº 6, de TchekhovTCHEKHOV, Anton. O beijo e outras histórias. 4. ed, São Paulo: Editora 34, 2014, p. 214., Ivan Dmítritch é um dos internados na ala do hospital psiquiátrico que dá nome ao conto. Ele sofre de sintomas paranoides e obsessivos. Em um trecho do conto, Ivan diz: “Eu amo a vida, amo-a, apaixonadamente! Tenho mania de perseguição, um medo contínuo e torturante, mas há momentos em que a sede de viver se apossa de mim, e então tenho medo de perder o juízo. Quero tremendamente viver, tremendamente!”. A sede de viver, ao se “apossar” da personagem, é tratada como mais uma obsessão de Ivan, que lhe causa um novo medo: o de perder o juízo, que talvez ele já tivesse perdido. Essas palavras revelam que a humanidade permanece intacta mesmo naqueles que sofrem de transtornos mentais. O contista quis revelar algo que ainda hoje não se vê com clareza.

Esse é o caminho que se tem pela frente: o de permitir que as pessoas com transtornos psiquiátricos sejam vistas por todos em sua humanidade, a fim de que eles possam viver, talvez não tremendamente, mas o mais dignamente possível. E é dever do SUS oferecer meios para que isso aconteça.

Foto de Liza PolyanskayaUnsplash




Salvem a Conitec!!!

Salvem a conitec

Muitos veículos de informação vêm noticiando a possibilidade de substituição da Diretora do Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias e Inovação em Saúde, que também preside a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec). De acordo com fontes jornalísticas, a sua exoneração foi solicitada por Hélio Angotti,  Secretário de Ciência, Tecnologia, Gestão e Insumos Estratégicos (SCTIE), e está sendo cogitada em razão da Diretora ser contrária ao kit COVID.

O que está em jogo com a troca é a independência da Conitec.

A Conitec, vinculada ao Ministério da Saúde, é responsável pela análise dos tratamentos que serão oferecidos pelo SUS. Seu trabalho consiste basicamente em avaliar as evidências científicas existentes sobre um determinado tratamento, o seu custo-efetividade e o impacto orçamentário que a sua oferta causará aos cofres públicos. Ao final do processo, a Conitec recomenda se a nova tecnologia deve ou não ser ofertada pelo SUS, cabendo ao Secretário da SCTIE decidir se a população terá ou não acesso a ela.

Sua atuação é – e nunca pode deixar de ser – eminentemente técnica. Órgãos cuja conduta deve ser pautada pela técnica precisam agir de acordo com ela.

Na análise das evidências científicas dos tratamentos de saúde que se pretende que sejam oferecidos a toda a população, o único fator limitante de sua atuação deve ser a ciência. Nada mais.

Na situação específica do kit COVID, o relatório da Conitec que não recomendou a sua incorporação seguiu o que os estudos existentes sobre a cloroquina, a hidroxicloroquina e a azitromicina preceituam.

Não há dinheiro sobrando no SUS para se gastar com tratamentos cuja ineficácia já foi comprovada. Aliás, isso é vedado pela própria lei que instituiu a Conitec. Logo, a atuação do órgão e de sua presidente, além de ter seguido a ciência, também se pautou na legalidade. Não há motivos técnicos para a sua substituição.

A eventual troca na coordenação da Conitec acabará por transformar a Comissão em um órgão político, na medida em que se deixa claro, pelo chefe do Ministério da Saúde, que o que importa não é a ciência, nem o interesse do cidadão de ter os recursos do SUS bem aproveitados, mas sim, um interesse político para fazer prevalecer um discurso que já foi amplamente refutado no mundo todo.

A falta de observância estrita da ciência também pode propiciar uma maior interferência da indústria farmacêutica no processo de decisão da Conitec para a aprovação de outros medicamentos ineficazes. Com isso, a já estremecida confiança do cidadão no SUS ficará ainda mais abalada.

É necessário fortalecer a Conitec, não enfraquecê-la.

Outro prejuízo que já se pode antever, caso prevaleça a politização da Conitec, é um aumento da judicialização da saúde.

O poder judiciário recebe há algumas décadas processos em que se pedem tratamentos que não são oferecidos pelo SUS. Muitas vezes, essa judicialização possui um grave efeito adverso: ela desestrutura a organização do SUS, comprometendo as políticas públicas instituídas.

Parte do orçamento do SUS é direcionado para o cumprimento das ordens judiciais. O juiz, quando decide esses processos, analisa (ou pelo menos deveria analisar) o que a Conitec fez, se a tecnologia pleiteada já foi submetida ao órgão e se houve relatório de recomendação final.

Quanto mais técnica for a Conitec e quanto mais fundamentado for o seu relatório, maiores serão as chances de o juiz aceitar o que ela recomendou e manter hígida a política pública.

É fácil perceber que uma Conitec marcada por decisões políticas não será respeitada pelos juízes.

Por tudo isso, fica claro que os cargos da Conitec não podem ser distribuídos com base em favoritismo político. Também já é hora de evoluirmos para criarmos mecanismos legais que assegurem a independência da Comissão, como ocorre com as agências reguladoras.

A sua criação, em 2011, representou um grande avanço para o SUS, mas o momento demonstra que precisamos avançar mais.

O artigo deveria se encerrar por aqui quando veio a ingrata notícia – que não foi propriamente uma grande surpresa – de que o Secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde não aprovou a recomendação da Conitec contrária à adoção do kit covid pelo SUS, ou seja, autorizou o seu uso no sistema público de saúde. Isso aconteceu por meio da Portaria SCTIE/MS nº 4, de 20/01/2022.

Além disso, também não foram aprovadas as recomendações da Conitec sobre o tratamento hospitalar medicamentoso (Portaria SCTIE/MS nº 01/2022), de controle da dor e sedação (Portaria SCTIE/MS nº 02/2022) e da assistência hemodinâmica e medicamentos vasoativos (Portaria SCTIE/MS nº 02/2022), todos para a Covid-19.

Se havia fortes indícios de interferência política na Conitec mediante a possível substituição de sua presidente, agora não há dúvidas.

Ataca-se com um único golpe não apenas a própria comissão, mas também a saúde das pessoas, a ciência, a eficiência da Administração – que deixa de se concentrar nos tratamentos preventivos e de recuperação eficazes para gastar recursos e desgastar os profissionais e gestores do SUS e a população em geral – e o ordenamento jurídico da saúde, que foi estruturado tendo como norte as evidências científicas (art. 19-O e art. 19-P, §2º, I, da Lei nº 8.080/90).

Deveria ser inimaginável – apesar de tudo parecer possível atualmente – que um documento “técnico” formalizado pelo Ministério da Saúde para refutar as conclusões amplamente discutidas e debatidas pela Conitec dissesse, por exemplo, que há evidências científicas de segurança e eficácia na utilização de hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19, mas não há em relação às vacinas.

No entanto, foi exatamente isso que constou na Nota Técnica nº 2/2022-SCTIE/MS, amplamente divulgada pela imprensa: 

Tabela do MS considerando que vacina não tem comprovação

Somente depois de incessantes e duras críticas por parte da imprensa e de respeitadas instituições médicas e científicas é que o Secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde houve por bem retirar a referida tabela da Nota Técnica 02/2022, conforme divulgado pela mídia.

Não há que se perder mais tempo discutindo eficácia de hidroxicloroquina para tratar Covid. No meio científico, essa questão está superada.

É preciso que os esforços sejam concentrados naquilo que vai proteger a população, e o que protege a população é o respeito à verdade, à ciência, ao funcionamento das instituições, que devem atuar pautadas pelo bem comum, sem favoritismos, sem pressões políticas sobre órgãos técnicos, sem desmonte de estruturas e conhecimentos conquistados com muito custo durante anos ou décadas.

A Conitec deve ser a tradução da ciência no processo de incorporação de tecnologias ao SUS. Só que é preciso permitir que ela assim seja. A política possui seu próprio campo de atuação, que definitivamente nem sempre coincide com a verdade científica.

Salvem a Conitec!!!

Post scriptum (27/05/23): O texto publicado foi escrito por mim, Fabiano, pelo Bruno e pela Carol. Em razão de ter sido feito em conjunto por nós três na ocasião da publicação original não constaram os nossos nomes. A falha da ausência de autoria no texto deve ser atribuída exclusivamente a mim como responsável pela editoração do blog,.

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São Tomé e o canabidiol – breves considerações à luz da Medicina Baseada em Evidências

Folha de canabis

Recentemente, foi criada a Rede Parlamentar em Defesa da Cannabis Medicinal, na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Um dos seus objetivos é trabalhar para a aprovação do Projeto de Lei nº 1.180/2019, dessa casa legislativa, que visa à instituição de política pública que garanta o fornecimento de produtos de Cannabis no SUS, em SP.

O plantio domiciliar da Cannabis, bem como a sua comercialização e de seus derivados para fins medicinais são assunto corriqueiro na mídia, nas sociedades médicas, associações de pacientes e nos órgãos reguladores em nosso país. Ocorre que muitas das ideias divulgadas trazem uma análise simplista do assunto, desvinculada da realidade científica a respeito dos tratamentos propostos. Isso se deve, em parte, ao grande investimento em marketing das empresas que comercializam os produtos derivados da Cannabis, cujo faturamento está na ordem de bilhões de dólares ao ano, tendo atingido 21,3 bilhões de dólares em vendas, em 2020. 

É necessário enfatizar que os autores deste texto não possuem vínculo com ordem religiosa, nem perfil conservador, o que poderia levar a uma análise enviesada da questão científica em função de um prejulgamento a respeito do seu uso para fins recreativos. O presente artigo tem por base apenas a análise do propugnado valor terapêutico da planta, sem adentrar na questão da aceitação ou da legalização de seu uso para fins recreativos. Não menos importante é esclarecer que os autores se sensibilizam com os pacientes e familiares que encontram esperança na utilização de produtos à base de Cannabis.

Dentre os cerca de 100 canabinoides existentes na planta, os dois mais utilizados são o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC). O CBD é o mais estudado na medicina e não possui efeito psicoativo, ao contrário do THC, cujo uso não é recomendado para indivíduos com menos de 25 anos. Isso porque, em pessoas com o cérebro em desenvolvimento, ele pode provocar quadros de psicose, transtornos psiquiátricos, crises convulsivas etc.

A primeira coisa que precisa ficar clara é o fato de que a Cannabis, para servir como tratamento médico, deve passar por um processo de separação de seus canabinoides. Se a planta for consumida de maneira tradicional, o paciente receberá todos os seus canabinoides, inclusive os tóxicos. Por isso, autorizar o plantio da Cannabis pode servir a outros fins, mas não é a saída para tratar doenças.

A segunda questão que merece ser pontuada diz respeito à comprovação dos benefícios terapêuticos que os produtos da Cannabis podem trazer. Apesar das notícias e dos relatos de que eles trazem benefícios espetaculares, pelo menos no atual estágio de pesquisa, não há comprovação de eficácia a amparar a prescrição da substância para a maioria dos casos, como doenças do sono, dor e doenças psiquiátricas.

Há, contudo, estudos indicando um benefício clínico no tratamento de epilepsias refratárias, nos quadros das síndromes de Lennox-Gastaut e de Dravet. Para esses dois casos, e somente para eles, foram feitos ensaios clínicos randomizados de qualidade, controlados por placebo, demonstrando um efeito terapêutico com a utilização do canabidiol. Em contrapartida, foram descritos alguns efeitos adversos, tais como sonolência, redução de apetite e alterações hepáticas, que não se demonstraram graves.

Diante disso, com base no conhecimento que se tem hoje, a prescrição do canabidiol deve se dar com cautela, somente para os quadros de epilepsia acima descritos, após o uso de outras substâncias, sem que tenha havido o controle das crises. A sua indicação para todas as outras doenças não tem respaldo científico. Prescrever o canabidiol para outras situações é como prescrever substâncias sem comprovação de eficácia, como infelizmente ocorreu em grande escala no Brasil, no combate à COVID-19.

Se indicar o canabidiol para situações em relação às quais não há comprovação dos benefícios é desaconselhável, pretender que o Sistema Único de Saúde incorpore a substância em suas listas para esses casos é inadmissível. Para que uma determinada tecnologia seja incorporada no SUS, ela deve ser analisada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), conforme estabelecido pela Lei nº 12.401/2011. Nessa análise, a Conitec considera as evidências científicas a respeito da tecnologia, bem como questões econômicas. Esse processo se chama avaliação de tecnologia em saúde (ATS) e ocorre em vários países que possuem sistema público de saúde. Isso já demonstra a inadequação de qualquer iniciativa do poder legislativo que objetive criar para o SUS a obrigação de fornecer determinado medicamento.

Recentemente, a Conitec avaliou o canabidiol para epilepsia refratária a medicamentos antiepilépticos, para os casos das síndromes de Lennox-Gastaut e de Dravet, recomendando a sua não incorporação. A comissão, embora tenha admitido que os estudos demonstraram efeito do tratamento, considerou que eles não foram convincentes no sentido de demonstrar a relevância média do seu impacto, pois não conseguiu apontar melhora na qualidade de vida dos pacientes. A conclusão foi de que o tamanho do efeito “em média” não está provado como relevante. Além disso, a relação de custo-efetividade desfavorável e o alto impacto orçamentário que haveria com a oferta do medicamento pelo SUS também foram considerados para a negativa de recomendação de incorporação.

Ainda que o canabidiol não esteja incluído nas políticas públicas de saúde, o SUS vem sendo compelido a fornecê-lo a vários pacientes com as mais diversas doenças, em razão de decisões judiciais. A título de exemplo, a substância é um dos dez tratamentos mais concedidos em ações judiciais em face do Estado do PR, no ano de 2021.

É necessário estabelecer mecanismos que assegurem e incentivem a pesquisa do uso do canabidiol para outras doenças. Enquanto isso, a sociedade, os órgãos de comunicação e o poder público em geral devem estar cientes das limitações dos estudos hoje existentes a respeito da eficácia dos produtos da Cannabis, porque, na medicina, não basta crer em um medicamento, tem que haver prova de que ele funciona.

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Deferência judicial e controlabilidade das decisões da Conitec: o caso do nusinersena

legos em deferência

1. Introdução

Este artigo traz uma avaliação crítica dos diversos posicionamentos expressados pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) nas vezes em que se manifestou sobre a incorporação do medicamento nusinersena para o tratamento de Atrofia da Medula Espinhal – AME. O tratamento é de custo elevadíssimo e a doença é rara e muito grave. Daí decorre a relevância das análises feitas pelo órgão, tanto em relação à própria política de assistência farmacêutica como em relação à judicialização da saúde.

Antes de mais nada, é preciso enaltecer a existência e o trabalho desenvolvido pela Conitec para a qualificação do SUS. A comissão, sem dúvida, foi uma das maiores conquistas do sistema público de saúde. Sua atuação é fundamental para a existência de uma política de assistência terapêutica qualificada, para a sustentabilidade do SUS e para a incorporação real da ciência como padrão de conduta no trato da saúde dos cidadãos. O trabalho por ela desempenhado é digno de elogios.

As considerações feitas neste texto têm como propósito apenas contribuir para o contínuo aprimoramento das atividades da Conitec e para uma aproximação harmoniosa entre ela e o Poder Judiciário, que cada vez mais é chamado a se manifestar sobre as questões avaliadas pela comissão de avaliação de tecnologias em saúde.

2. Deferência judicial e controlabilidade das decisões da Conitec

A importância da deferência judicial às análises e decisões técnicas da Administração Pública na fixação da política de assistência farmacêutica é inquestionável. De fato, o Poder Executivo – especialmente por meio da Conitec – é a instância com competência, legitimidade e capacidade técnica para avaliar as novas tecnologias em saúde passíveis de incorporação ao SUS, devendo as suas decisões ser respeitadas pelo Poder Judiciário, que normalmente atua em caráter pontual nas demandas de saúde, sem uma perspectiva global e necessária para o aperfeiçoamento e a sustentabilidade do SUS.

Por essas razões, havendo decisão expressa do Ministério da Saúde, após a devida avaliação da Conitec, pela não incorporação de um determinado medicamento ao SUS, não cabe, via de regra, ao Poder Judiciário imiscuir-se em nova análise e desconsiderar a decisão do gestor e do órgão técnico capacitado para avaliação de tecnologias em saúde.

Isso não significa, entretanto, que as avaliações técnicas e as decisões sobre incorporação de medicamentos ao SUS estejam imunes a qualquer apreciação judicial. Na medida em que tais atos impactam diretamente no direito fundamental à saúde (seja ele analisado sob a perspectiva individual ou coletiva), é atribuição do Poder Judiciário verificar se a Administração atua segundo o dever constitucional a ela imposto de proteção aos direitos fundamentais e dentro da margem de discricionariedade atribuída.

Neste cenário, ainda que o Poder Judiciário não seja o órgão tecnicamente preparado para a avaliação da necessidade e da conveniência de incorporação de novos tratamentos ao SUS, ele deve atuar no controle da Administração ao menos em relação a critérios de legalidade, razoabilidade e motivação das decisões administrativas, de forma a assegurar que o Poder Executivo exerça suas competências de forma satisfatória e legítima. Para tanto, é de suma importância que a motivação dos atos administrativos, especialmente daqueles que interferem no delineamento dos direitos fundamentais, seja adequada para justificar as razões pelas quais o Estado nega uma proteção pretendida pelo cidadão, ainda que por meio da instituição de uma política pública que não atenda ao caso concreto por fatos compreensíveis.

Especificamente na tutela do direito à saúde, é preciso que as decisões que recusam a incorporação de novos tratamentos ao SUS demonstrem de forma objetiva e consistente as razões que as fundamentam. É assim que se legitima a política pública, mesmo que ela não seja capaz de atender a todos os anseios dos cidadãos.

Como bem ensina CASS SUNSTEIN (The Cost-Benefit Revolution, p. 153, aqui em livre tradução):

“A desconfiança nas decisões de uma agência pode produzir considerações compensatórias. Se as agências são sistematicamente enviesadas ou se erros graves de análise são prováveis, a revisão da arbitrariedade pode ser intensificada.”

É justamente a clara motivação das decisões que afasta a desconfiança do órgão controlador e, consequentemente, reduz as chances de sua revisão.

Enfim, o dever de deferência do Judiciário às decisões técnicas da Administração pressupõe, no mínimo, que elas sejam satisfatoriamente justificadas. Com isso, os juízes podem ao menos compreender as razões de decidir e visualizar a sua razoabilidade, ainda que com elas não concordem.

Por esses motivos é que tanto a doutrina como a jurisprudência admitem, ao lado da deferência, um controle judicial mínimo sobre a competência e a motivação das decisões técnicas proferidas pelo Poder Executivo, inclusive para afastá-las quando for o caso.

 No voto condutor do acórdão que resultou na tese do Tema 500/STF (RE 657.718/MG) – relativo à obrigação do Estado de fornecer medicamentos não registrados na ANVISA – o ministro Roberto Barroso, após salientar a importância do respeito, pelo Poder Judiciário, às decisões técnicas da agência reguladora, ponderou que “isso, é claro, não impede a propositura de demandas judiciais que questionem a própria decisão da agência, comprovando-se técnica e cientificamente que foi equivocada”.

O voto do ministro Edson Fachin no mesmo julgamento tratou de forma substanciosa dos limites do controle judicial sobre as decisões das agências reguladoras. O seguinte trecho é digno de nota:

Em termos práticos, isso impõe ao Estado o dever de dar transparência às decisões tomadas pelas agências reguladoras. A transparência deve, ainda, atingir a todos os que forem afetados pela decisão. Ademais, deve a decisão também ter fundamentos verificáveis, isto é, ainda que se discorde das razões adotadas, todos devem reconhecer como suficiente para se chegar às conclusões as razões apresentadas. Finalmente, devem as agências garantir o direito de recurso ou revisão por parte daqueles que direta ou indiretamente possam ser afetados pela decisão

Com efeito, ainda que se discorde da decisão tomada em uma avaliação de tecnologia em saúde, é primordial que se compreenda ao menos as razões que a justificam para que, então, se exija deferência judicial. O dever de motivação (art. 2º da Lei nº 9.784/99) ganha especial relevo.

Lecionando sobre a correlação entre a deferência judicial e o dever de motivação na experiência estrangeira, EDUARDO JORDÃOControle Judicial de Uma Administração Pública Complexa – A Experiência Estrangeira na Adaptação da Intensidade do Controle – Melheiros Editores, p. 114 assim escreve:

A integração do dever de motivação no controle substancial deferente - Os tribunais de Estados Unidos e Canadá ampliaram a relevância do dever de motivação ao basear fortemente sobre ele o controle judicial substantivo, para o qual já haviam consagrado uma orientação deferente. Em suma, passou-se a considerar uma decisão juridicamente válida quando bem motivada. Neste contexto, a "razoabilidade" de uma decisão, por exemplo, deixa de ser examinada em relação a padrões substantivos próprios dos tribunais, e ganha conteúdo procedimental. A decisão razoável não é aquela que não se afaste consideravelmente de uma opção substancial de predileção dos tribunais, mas aquela que tenha sido adotada de forma transparente e bem justificada pela administração pública.

Novamente tratando da questão, mas desta vez no julgamento do Tema 6/STF (RE 566.471), relacionado ao dever do Estado de fornecer medicamentos de alto custo não incorporados ao SUS, o ministro Roberto Barroso assim se manifestou em seu voto:

Por isso, nos casos em que a CONITEC chegou a avaliar pedido de incorporação de medicamento, mas concluiu de modo desfavorável ao fornecimento gratuito do fármaco pelo Poder Público, deve-se privilegiar a decisão técnica do órgão responsável. Nessa situação, o que se deve poder questionar na via judicial é tão somente a fundamentação técnica e científica da decisão do SUS de não incluir a tecnologia nas listas de dispensação existentes.

Uma questão complexa que se coloca na hipótese de o Poder Judiciário concluir que a decisão do órgão gestor ou técnico do Poder Executivo possui vício de fundamentação ou falha técnica evidente é definir quais as consequências disso para o caso concreto.

Poderia o juiz determinar que o órgão ou autoridade responsável pela decisão suprisse a falha constatada, fazendo com que a interferência judicial no ato administrativo fosse mínima. Essa seria, em tese, a solução mais adequada para a preservação da competência do Poder Executivo. Por outro lado, poderia trazer consequências negativas para o processo que trate da situação individual de um paciente, que deveria aguardar a convalidação do ato administrativo que possivelmente demandaria tempo considerável.

Uma outra alternativa seria o juiz prestar a devida deferência à decisão administrativa ainda que considere a mácula na motivação ou a falha técnica, mas paralelamente a isso adotar medidas destinadas a regularizá-la para situações futuras, como a comunicação do fato ao órgão ou autoridade prolator ou a órgãos de fiscalização e controle de seus atos.

Uma terceira hipótese seria o juiz, reputando o ato nulo pela falha ou ausência de motivação ou mesmo por equívocos técnicos flagrantes, desconsiderá-lo no julgamento da ação individual, valendo-se de outras provas e informações técnicas para decidi-la.

Este é um tema realmente complexo que merece ser discutido separadamente.

Feitos esses esclarecimentos, é importante verificar como a Conitec se manifestou sobre a incorporação do nusinersena ao SUS para o tratamento da AME.

3. A avaliação da Conitec sobre a incorporação do nusinsersena para o tratamento da AME  

Em um primeiro momento, a Conitec avaliou a viabilidade de incorporação do nusinersena para o tratamento da AME Tipo I.

ROSÂNGELA CAETANO, RENATA CURI HAUEGEN E CLAUDIA GARCIA SERPA OSORIO-DE-CASTRO, em valioso artigo acerca da incorporação do fármaco ao SUS, assim relataram as sucessivas provocações e manifestações da Conitec:

Ocorreram duas solicitações de apreciação de incorporação do medicamento, separadas por um ano. A primeira demanda foi submetida pela SCTIE/MS em janeiro de 2018. Recomendação preliminar de não incorporação foi feita na 69ª reunião ordinária de agosto de 2018 e submetida à consulta pública por 20 dias, tendo recebido 36.972 contribuições. Na 72ª reunião ordinária, em novembro de 2018, as contribuições foram apreciadas. Conforme ata pública dessa reunião, estudos publicados após a busca feita para o relatório da CONITEC foram revisados e seus resultados corroboravam a recomendação de não incorporação. O Plenário entendeu que não houve evidência suficiente para alterar sua recomendação inicial e deliberou, por unanimidade, manter a não incorporação. O Relatório nº 400 correspondente à deliberação final não está disponível nas páginas eletrônicas da CONITEC; a demanda consta apenas como “processo encerrado a pedido do demandante”.
Em dezembro de 2018, a Advocacia Geral da União (AGU) emitiu o Parecer nº 01377/2018/CONJUR-MS/CGU/AGU17 em atendimento à consulta do então Secretário da SCTIE/MS, que versava sobre a possibilidade de sua decisão em sentido diverso da recomendação do Plenário da CONITEC. Segundo o Parecer, o Despacho SCTIE s/n (documento SEI “7088380”) traz como “principal motivação do não acatamento do relatório da CONITEC a existência de uma nova proposta de preço por parte da empresa Biogen, proposta essa ocorrida após a avaliação já realizada pela CONITEC” (argumento 38). Afirma que, ao entender como “pertinente a incorporação do medicamento nusinersena para todos os com AME 5q, independentemente de fenótipo...” (p. 3-4), o Despacho realiza “ampliação objetiva do escopo técnico da matéria”, uma vez que a apreciação da CONITEC se limitou à indicação para AME 5q tipo I. A AGU discute também que a nova proposta de preço não resolve a “fragilidade das evidências clínicas referidas na recomendação da CONITEC” (argumento 31).
O Parecer transcreve o resumo executivo do Relatório nº 400 da CONITEC, destacando os critérios que subsidiaram a recomendação de não incorporação (argumento 36). Diante das atribuições legais de competência, ressalta que, apesar do caráter de assessoramento das atividades da CONITEC, “não se pode concluir pela existência de um poder amplo e ilimitado de revisão, pelo SecretaÌrio da SCTIE, do entendimento exarado pela CONITEC” (argumento 23). Finaliza, considerando que “não obstante haver, de fato, a possibilidade do Secretário da SCTIE/MS, a priori, decidir”, pode “haver grave insegurança jurídica na opção pela decisão de não acatamento da recomendação da CONITEC”. Orienta que a SCTIE/MS, caso opte por não acatar a recomendação da CONITEC, promova nova submissão.
Em janeiro de 2019, nova submissão foi realizada, com indicação sem restrição por tipo de AME, tendo por demandante o fabricante. No relatório preliminar da CONITEC de março de 2019 consta, contudo, recomendação favorável de incorporação apenas para o tratamento da AME 5q tipo I, por considerar que os estudos avaliando a doença de início tardio eram escassos.
(...)
A nova recomendação foi submetida à consulta pública por 10 dias, recebendo 41.787 contribuições. Dos 172 relatórios com recomendação final favorável de incorporação pela CONITEC entre janeiro de 2012 e abril de 2019, 123 foram submetidos à consulta pública. As contribuições do nusinersena correspondem a 55,8% do total de 74.900 contribuições Tabela 3. O número máximo de contribuições até então tinha ocorrido na avaliação das insulinas análogas de ação prolongada para o tratamento de diabetes mellitus tipo I (2.574).
(...)
Em 4 de abril, apenas uma semana após o término da consulta, o Plenário da Comissão deliberou, também por unanimidade, pela incorporação do fármaco para o tratamento da AME 5q tipo I.
No relatório final da CONITEC, as condições estabelecidas diferem da recomendação preliminar. Continua exigido o diagnóstico confirmatório e que os pacientes não estejam em ventilação mecânica invasiva permanente contínua, mas não existem menções à idade ou ao intervalo de tempo para o início do tratamento. Também não há mais referência à doação de frascos e sim à negociação de preço com o fabricante. Consta ainda que, caso sejam apresentadas evidências adicionais sobre eficácia, efetividade e segurança do nusinersena para o tratamento dos tipos II e III de AME 5q, o tema poderá ser reavaliado pela CONITEC.
(...)
A Portaria SCTIE nº 24 foi assinada em 24 de abril de 2019. A sessão ocorreu no Senado, com o Ministro da Saúde informando que a aquisição do nusinersena seria realizada sob nova modalidade de compras, a partilha de risco.

Como se vê, em novembro/2018 a CONITEC emitiu relatório final (não disponível em sua página na internet) ratificando relatório inicial que recomendava a não incorporação do nusinersena para a AME ao SUS. Na ocasião, reputou-se não existirem evidências científicas seguras de sua efetividade.

Em janeiro/2019, nova consulta à agência foi feita, sendo pouco provável que em intervalo de tempo tão curto novas evidências científicas tenham surgido. Ainda assim, em março/2019 a CONITEC emitiu novo relatório, desta vez recomendando a incorporação do medicamento para o Tipo I da doença, o que foi confirmado no relatório final emitido logo na sequência, em abril/2019.

Esse mesmo relatório de abril de 2019 concluiu pela ausência de evidências científicas seguras a respeito da eficácia e efetividade do Nusinersena para o tratamento da AME tipos II e III, ou do tipo I com diagnóstico tardio.

Por essa razão é que foi feita a seguinte ressalva na Recomendação Final:

(...) A CONITEC informa que caso sejam apresentadas evidências adicionais sobre eficácia, efetividade e segurança do nusinersena para tratamento dos tipos II e III de AME 5q, o tema poderá ser reavaliado.

Em síntese, mesmo diante da ausência de evidências científicas robustas a respeito dos benefícios do Nusinersena no tratamento da AME Tipos II e III, os estudos ao menos sugeriam que o medicamento poderia ser eficaz também nestes casos, o que precisaria ser confirmado.

Justamente em razão dessa possibilidade é que o Ministério da Saúde, de forma inovadora, chegou a editar a Portaria GM nº 1.297, de 11 de junho de 2019, que “institui projeto piloto de acordo de compartilhamento de risco para incorporação de tecnologias em saúde, para oferecer acesso ao medicamento Spinraza (Nusinersena) para o tratamento da Atrofia Muscular Espinhal (AME 5q) tipos II e III no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS”.

É importante sublinhar que a Portaria GM nº 1.297/2019 não incorporou incondicionalmente o Nusinersena ao SUS para o tratamento da AME Tipos II e III. Ela apenas autorizou que fosse firmado um acordo de compartilhamento de riscos com a fabricante do medicamento, de maneira que, até que coletadas maiores evidências da eficácia do fármaco nestes casos, os custos financeiros do tratamento fossem repartidos entre o Ministério da Saúde e a indústria farmacêutica, na forma e nas condições que viessem a ser pactuadas.

Acontece que, nada obstante essa intenção inicial do Ministério da Saúde, no final do ano de 2020 tomou-se conhecimento de que a opção pelo acordo de compartilhamento de riscos não chegou a bom termo, tendo sido encerrada antes mesmo de sua implementação.

Ainda que não se disponha de informações oficiais a respeito, já que o Ministério da Saúde não se manifestou de forma clara e objetiva perante os cidadãos, a empresa fabricante do produto veio a público comunicar a ausência de êxito na formalização do acordo, noticiando o seguinte:

Orientada pelo princípio da transparência e comprometimento, a Biogen Brasil Produtos Farmacêuticos Ltda. (“Biogen”) vem, por meio desta, trazer esclarecimentos sobre o andamento do acordo de compartilhamento de risco por desfecho. Em audiência com representantes da Biogen Brasil na última semana, o Ministério da Saúde colocou que, após explorar diversas alternativas, não foi encontrada solução que viabilizasse a aquisição e dispensação do nursinersena para atender aos pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) tipos II e III, tal como originalmente planejado. A orientação é que a Biogen faça uma nova submissão à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec).

Na sequência, frustrada a iniciativa do acordo de compartilhamento de riscos, a Conitec avaliou o pedido de incorporação do nusinersena para o tratamento da AME Tipos II e III, o que se deu pelo Relatório de Recomendação nº 595 de 2021. A agência emitiu deliberação preliminar não recomendando a incorporação do tratamento. Eis a síntese das razões de que se valeu, segundo o próprio relatório:

Recomendação preliminar: Pelo exposto, os membros do plenário da Conitec, em sua 92ª reunião ordinária, no dia 05 de novembro de 2020, deliberaram por maioria simples dos presentes, que a matéria fosse disponibilizada em consulta pública com recomendação preliminar não favorável à ampliação de uso no SUS, do medicamento nusinersena para AME tipos II e III. Foi discutido sobre a possível influência de outras intervenções (por exemplo, cuidados fisioterapêuticos e OPME) no desfecho dos pacientes, comparado ao que seria oferecido pelo medicamento nusinersena e a importância da administração precoce para a obtenção dos desfechos esperados. Alguns membros do plenário apontaram também que o benefício dessa tecnologia isolada, apesar de existente, não é capaz de modificar o curso da doença e, do ponto de vista do custo-benefício, não justifica o montante de recursos necessários para sua implementação.

O processo foi, então, submetido a consulta pública, cujas contribuições a Conitec entendeu terem sido insuficientes para a modificação da recomendação preliminar, que foi, portanto, ratificada na recomendação final. Vejamos:

14. RECOMENDAÇÃO FINAL
Os membros da Conitec presentes na 94ª reunião ordinária, no dia 04 de fevereiro de 2021, deliberaram, por maioria simples dos votos, recomendar a não incorporação do nusinersena para o tratamento de AME 5q tipos II e III (início tardio). Os membros presentes entenderam que não houve argumentação suficiente para alterar a recomendação preliminar. Foi assinado o Registro de Deliberação nº 590/2021.
Ainda assim, sucedeu-se a realização de audiência pública que teve como finalidade "ouvir a sociedade sobre a proposta de incorporação do nusinersena para o tratamento da Atrofia Muscular Espinhal (AME) 5q dos tipos 2 e 3 e recepcionar contribuições, de modo a levantar mais subsídios, além dos já compilados no relatório técnico final da Comissão, para a tomada de decisão, após a demanda de diversos segmentos da sociedade".

A audiência contou com a participação de representantes das mais diversas instituições envolvidas na discussão (fabricante, gestores do SUS, profissionais da saúde, pesquisadores, membros da sociedade civil etc.), que expuseram os respectivos e variados pontos de vista a respeito da conveniência ou necessidade de incorporação do nusinersena ao SUS para o tratamento da AME Tipos II e III.

Ocorre que o relatório de recomendação, após compilar todas as opiniões e informações colhidas na audiência pública – as quais, frise-se, foram das mais diversas naturezas e nos mais diferentes sentidos – ateve-se a emitir uma “nova” recomendação final (após a audiência pública) no seguinte sentido, in verbis:

 16. RECOMENDAÇÃO FINAL APÓS A AUDIÊNCIA PÚBLICA 
Os membros da Conitec presentes na 5ª Reunião Extraordinária da Conitec, no dia 12 de maio de 2021, deliberaram, por maioria simples, modificar parcialmente a recomendação final da 94ª reunião ordinária. Tendo em vista o exposto na Audiência Pública nº 1/2021, os membros da Conitec recomendaram a incorporação do nusinersena para o tratamento da atrofia muscular espinhal 5q tipo II, com diagnóstico até os 18 meses de idade, conforme Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Ministério da Saúde; e pela não incorporação do nusinersena para tratamento da atrofia muscular espinhal 5q tipo III. Foi assinado o Registro de Deliberação nº 619/2021.

Com isso, o nusinersena foi efetivamente incorporado ao SUS também para o tratamento da AME Tipo II (Portaria SCTIE/MS Nº 26, DE 1º/06/2021), mas não para o Tipo III.

Da leitura do relatório não é possível inferir quais foram, exatamente, as informações colhidas na audiência pública que levaram a Conitec a alterar as recomendações inicial e final (antes da audiência pública, mas após a consulta pública) para, desta vez, sugerir a incorporação do medicamento para o tratamento da AME Tipo II. Da mesma maneira, não constam no relatório os fundamentos para que a incorporação do tratamento do Tipo III da doença permanecesse não recomendada. A agência ateve-se a explicar a mudança de posicionamento apenas “Tendo em vista o exposto na Audiência Pública nº 1/2021”

Como já dito, entretanto, inúmeras informações e opiniões foram expostas na audiência pública. Basta que se verifique o quadro 23 do relatório de recomendação para que se perceba quão variadas e até mesmo dissonantes elas são. Não há, portanto, forma de se extrair quais foram, de fato, os dados mais consistentes considerados pela Conitec para que revisse a recomendação contrária à incorporação do medicamento para a AME Tipo II, tampouco para que mantivesse a recomendação de não incorporação para a AME Tipo III.

Não houve, enfim, fundamentação clara e objetiva para a tão relevante mudança de postura. Grosso modo, seria algo como o juiz julgar procedente ou improcedente uma pretensão apenas “tendo em vista as provas dos autos”, o que evidentemente não atende ao dever de motivação.

Aliando este fato às bruscas e pouco compreensíveis mudanças de posicionamento da Conitec também na análise da incorporação do nusinersena para a AME Tipo I, conforme relatado acima, torna-se difícil prestar a aconselhável deferência judicial.

A deferência judicial é o acolhimento de decisões alheias que sejam bem fundamentadas e, portanto, compreensíveis. Não é um ato de fé, mas de respeito aos motivos demonstrados por aquele que tem competência e preparo para tratar da questão. Para se prestar deferência, não é necessário concordar com a decisão, mas é preciso bem entendê-la, tanto em relação aos fatos que a embasaram como em relação à avaliação sobre eles feita.

4. Conclusão

Para que a deferência judicial às decisões da Conitec seja satisfatoriamente atingida, é necessário que se trabalhe em duas frentes:

a) a conscientização dos juízes de que a Conitec é o órgão competente e qualificado para a avaliação de tecnologias em saúde a serem incorporadas ao SUS, de forma que suas análises e recomendações devem ser respeitadas porque feitas após rigoroso procedimento de levantamento das evidências científicas e de custo-efetividade; e

b) a conscientização da Conitec de que, quanto mais claros e objetivos forem seus relatórios e quanto mais fácil a identificação dos motivos que conduziram às recomendações firmadas, maior é a chance de serem acolhidos pelo Poder Judiciário.

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Incorporação de medicamentos oncológicos pelo SUS: decifra-me ou te devoro – Parte III

Monalisa de máscara

Quanto mais se estuda a forma de padronização e de disponibilização da assistência terapêutica do SUS, mais se percebe a complexidade do regramento jurídico a elas relacionado e de sua operacionalização. Não por outro motivo, aliás, este é o terceiro capítulo da série “Decifra-me ou te devoro”, que já tratou, anteriormente, da pactuação da assistência farmacêutica e da divisão de competências nas ações e serviços públicos em saúde.

Agora, o que se pretende entender é como e por que medicamentos oncológicos são incorporados ao SUS. Essa compreensão é de suma importância para o operador do Direito à Saúde saber lidar com algumas das causas da judicialização relacionada ao tratamento do câncer.

Diante do que se tem visto ultimamente na prática, a missão não será fácil.

Antes de tudo, é preciso deixar bem assentada a forma como a assistência oncológica, especialmente a medicamentosa, é prestada pelo SUS.

O fornecimento dos fármacos para o tratamento do câncer deverá ocorrer, preferencialmente, por intermédio da Unidade de Assistência de Alta Complexidade (UNACON) ou do Centro de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (CACON) no qual o paciente já vem sendo tratado, conforme diretriz traçada pela Portaria nº 874/2013 do Ministério da Saúde. O art. 25, III, da Portaria dispõe que os hospitais especializados habilitados para a assistência oncológica são responsáveis pelos serviços relacionados ao tratamento do câncer e à atenção às urgências referentes às intercorrências e agudização da doença.

Via de regra, não há uma lista de medicamentos oncológicos disponíveis no SUS. Cabe aos CACON’s ou UNACON’s definirem, dentro das Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas estabelecidas pelo Ministério da Saúde, aqueles que serão fornecidos aos seus pacientes com o posterior reembolso, pela União, por meio das respectivas Autorizações de Procedimentos de Alta Complexidade – APAC. Assim, os hospitais são responsáveis pela aquisição e fornecimento dos medicamentos por eles mesmos padronizados, cabendo-lhes codificar e cobrar conforme as normas expressas nas portarias e manuais do SUS.

A liberdade de definição e prescrição dos medicamentos pelos CACON’s/UNACON’s, portanto, é limitada pelo valor da APAC. Se o tratamento disponibilizado pela instituição de saúde tiver um custo maior, ela precisará arcar com as despesas excedentes por sua conta. Sendo assim, dentro do atual modelo de assistência oncológica, não haveria, em um primeiro momento, necessidade de incorporação de fármacos à Relação Nacional de Medicamentos (RENAME), como ocorre com as demais doenças. O que se torna necessária é a estipulação de valores de APAC’s que sejam condizentes com os tratamentos adequados a serem disponibilizados pelo SUS dentro da margem de liberdade conferida às instituições de saúde credenciadas.

Nada impede, entretanto, que o Ministério da Saúde opte por padronizar determinados medicamentos oncológicos para facilitar a logística de sua dispensação ou por razões de ordem financeira, quando a aquisição centralizada se mostrar mais vantajosa. Foi o que ocorreu com as seguintes drogas: mesilato de imatinibe, dasatinibe, nilotinibe, trastuzumabe, l-asparaginase, rituximabe e dactinomicina. Todas elas são adquiridas diretamente pelo Ministério da Saúde, enviadas às Secretarias Estaduais de Saúde e então distribuídas aos CACON´s/UNACON’s.

Desta forma, não há, ordinariamente, necessidade de avaliação de medicamentos oncológicos pela CONITEC para que eles possam ser dispensados pelo SUS.

A despeito disso, têm sido bastante comuns as submissões de remédios para o tratamento de câncer à análise da CONITEC com a consequente emissão de relatórios de recomendação. Sendo positivo o parecer da agência, tais medicamentos acabam sendo efetivamente padronizados pelo Ministério da Saúde, a despeito da regra geral de se conferir ampla liberdade aos CACON’s/UNACON’s para a definição das drogas a serem ministradas aos pacientes, com posterior ressarcimento das despesas nos limites das APAC’s. 

O problema é que grande parcela dos medicamentos oncológicos incorporados não está sendo efetivamente disponibilizada, mesmo vários anos após a incorporação.

A seguinte relação – gentilmente disponibilizada pela Secretaria de Saúde do Paraná – elenca uma série de medicamentos para o tratamento de câncer que já foram incorporados pelo Ministério da Saúde, mas não estão sendo adquiridos e fornecidos até o momento, mesmo ultrapassado o prazo máximo para disponibilização de cento e oitenta dias após a incorporação (art. 25 do Decreto 7.646/2011):

medicamentos oncologicos

Considerando o grande número de fármacos presentes na lista e também que alguns desses medicamentos já foram incorporados ao SUS há mais de sete anos, é difícil crer que a não disponibilização aos pacientes decorra de trâmites burocráticos ou de dificuldades na aquisição. De qualquer forma, se realmente há empecilhos insuperáveis para o fornecimento (a falta de aquisição vários anos após a incorporação não deve decorrer de problemas provisórios e contornáveis), é preciso que sejam claramente expostos. Neste caso, cabe ao Ministério da Saúde revogar a incorporação de maneira fundamentada. Se os empecilhos não existem, então as respectivas portarias de incorporação devem ser cumpridas com a efetiva aquisição e entrega dos medicamentos.

Argumentos de ordem financeira não seriam justificativas válidas para a não disponibilização de medicamentos oncológicos já incorporados ao SUS. Ocorre que a CONITEC analisa a relação custo-efetividade dos medicamentos submetidos ao seu crivo, além de estimar o impacto orçamentário aos cofres públicos para os anos seguintes. Como a incorporação ocorre necessariamente após o relatório da CONITEC, é de se pressupor que o gestor tem conhecimento e garante a existência dos recursos necessários para a aquisição e disponibilização dos fármacos. Caso contrário, a incorporação não teria ocorrido – ou, ao menos, não deveria tê-lo.

De qualquer forma, ainda que se considere que a incorporação foi irregular, impossível de ser bancada ou inconveniente ao interesse público por não haver recursos financeiros suficientes para arcar com as despesas dela decorrentes, a portaria que a determinou deve ser anulada ou revogada. O que não se pode admitir é um ato administrativo válido e em plena vigência que simplesmente não é cumprido pela própria Administração.

Outro problema que tem sido recorrente nas incorporações de medicamentos oncológicos é o condicionamento da efetiva disponibilização à negociação de preço com o fabricante. O que acontece é que, em regra, tanto os relatórios da CONITEC como as subsequentes portarias de incorporação simplesmente estabelecem tal requisito, mas sem prever as consequências para a sua não implementação no prazo legal. Além disso, não se levam a público os resultados da negociação de preço ou mesmo o início e a finalização das tratativas.

A negociação de preço de um medicamento incorporado ao SUS não é apenas uma condição para a sua disponibilização, quando assim prevista na respectiva portaria. Ela é também uma obrigação do Ministério da Saúde. Se não existe intenção de negociar, e sendo esse um requisito constante no relatório de recomendação da CONITEC, ou a portaria de incorporação deve afastá-lo para que a padronização seja incondicional, ou não deve haver incorporação. No entanto, se a opção discricionária do gestor foi a de incorporar o medicamento mediante negociação de preço, então as tratativas devem ser feitas, mesmo que não sejam ao final exitosas.

O art. 25 do Decreto nº 7.646/2011 dispõe que “a partir da publicação da decisão de incorporar tecnologia em saúde, ou protocolo clínico e diretriz terapêutica, as áreas técnicas terão prazo máximo de cento e oitenta dias para efetivar a oferta ao SUS”.

Desta forma, se o Ministério da Saúde não demonstrar ao menos que deu início à negociação de preços dentro do prazo de cento e oitenta dias, mas também não revogar a portaria de incorporação, o medicamento incorporado deve ser imediatamente concedido, inclusive por determinação judicial, se for o caso.

Situação mais complexa ocorre quando as tratativas entre a Administração e o fabricante, apesar de iniciadas, não foram finalizadas dentro do prazo de cento e oitenta dias. Neste caso, a rigor, seria necessário analisar se a delonga foi indevidamente causada por uma das partes, o que é bastante difícil. Ainda assim, é de se exigir ao menos que o Ministério da Saúde explique que não foi possível a finalização da negociação e prorrogue o prazo para a disponibilização do medicamento por meio de Decreto do Poder Executivo (diploma de igual hierarquia ao que estabeleceu o prazo de cento e oitenta dias), ou então que revogue a portaria de incorporação. O importante, acima de tudo, é que se saiba a quantas anda a negociação.

Para não desanimar aqueles que pretendem compreender de forma clara as nuances da política de assistência oncológica medicamentosa no SUS, trago um último problema.

Como visto anteriormente, a regra é a da inexistência de padronização dos medicamentos oncológicos disponíveis no SUS, já que as instituições de saúde que oferecem tratamento do câncer possuem liberdade para definirem os respectivos esquemas terapêuticos, mediante posterior reembolso das despesas pelo Ministério da Saúde via APAC. Sendo assim, a disponibilização de medicamentos novos pode dispensar qualquer providência do gestor público, desde que a oferta seja compatível com o valor da APAC. Se não for, ela deve ser feita mediante o aumento da APAC ou pela aquisição centralizada do próprio fármaco.

Neste cenário, seria bastante interessante que a CONITEC, ao fazer a análise da relação custo-efetividade do medicamento oncológico submetido à sua apreciação e do impacto orçamentário decorrente de sua incorporação, também examinasse a necessidade ou conveniência de sua oferta mediante inserção na RENAME, por meio de incremento do valor da APAC ou mesmo sem que seja necessária qualquer providência adicional, caso os recursos da APAC já sejam suficientes para a dispensação. 

Foi isso o que a CONITEC fez no relatório de recomendação do sorafenibe para tratamento do carcinoma hepatocelular, ocasião em que concluiu não haver necessidade de incorporação pelo fato de o medicamento ser suportado pela APAC (não vamos, neste momento, entrar no mérito do acerto desta conclusão). Vejamos:

“O plenário da CONITEC esclareceu a dinâmica do tratamento oncológico, onde o procedimento APAC de tratamento do carcinoma hepatocelular não inviabiliza o uso do medicamento sorafenibe por pacientes no âmbito do SUS. O esquema de tratamento deve ser definido pelo médico em conjunto com o paciente, conforme protocolo do serviço de saúde assistencial. O valor de reembolso será o valor proposto para as APACs disponíveis para o tratamento do CHC avançado irressecável. Não há a necessidade de criação de um novo procedimento APAC específico para a incorporação do sorafenibe nos esquemas quimioterápicos utilizados no SUS para o tratamento do CHC avançado irressecável em monoterapia na quimioterapia paliativa”.

Com base nisso, a recomendação foi de sua não incorporação ao SUS.

Infelizmente, entretanto, nem sempre as coisas são tão claras.

Em vários relatórios de avaliação de medicamentos oncológicos, a CONITEC não fez qualquer consideração específica acerca da necessidade ou conveniência de efetiva incorporação do medicamento para aquisição centralizada ao invés de sua dispensação direta pelos CACON’s/UNACON’s e posterior reembolso via APAC, ou vice-versa. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o trastuzumabe, o nivolumabe e a abiraterona, todos com recomendação favorável à incorporação para inclusão na RENAME.

No caso do pazopanibe e do sunitinibe para tratamento do carcinoma de células renais metastático, a situação ficou obscura. Apesar de concluir que o valor da APAC é insuficiente para o custeio dos medicamentos, a CONITEC recomendou a sua incorporação “conforme o modelo da assistência oncológica no SUS”:

“Nesse contexto a CONITEC reconheceu que o valor ressarcido pelo procedimento APAC é insuficiente para a utilização de medicamentos como sunitinibe e pazopanibe, para o tratamento do carcinoma de células renais metastático pelos hospitais credenciados no SUS e habilitados em oncologia”. (...) “Os membros da CONITEC presentes na 72ª reunião ordinária, nos dias 07 e 08 de novembro de 2018, deliberaram, por unanimidade, por recomendar a incorporação do cloridrato de pazopanibe e do malato de sunitinibe para carcinoma renal de células claras metastático, mediante negociação de preço e conforme o modelo da Assistência Oncológica no SUS”.

Ocorre que o modelo da assistência oncológica do SUS é justamente o de livre aquisição pelos hospitais com posterior ressarcimento por APAC, cujo valor, no caso concreto, a CONITEC reputou insuficiente para as despesas com os fármacos. Presume-se que a incorporação seja feita mediante padronização e inclusão dos remédios na RENAME, mas neste caso não se estará seguindo o “modelo de assistência oncológica”. Se for para seguir o modelo, haverá necessidade de aumento do valor da APAC. O fato é que, até o momento, nem uma coisa nem outra foi feita.

A incorporação do gefitinibe para câncer de pulmão de células não pequenas em primeira linha também foi um tanto confusa. Acontece que, ao avaliar o impacto orçamentário da incorporação, a CONITEC fez constar o seguinte em seu relatório de recomendação:

“Impacto orçamentário de R$ 8,3 milhões no primeiro ano e R$ 42,2 milhões em 5 anos. Considerando, porém, a incorporação sem modificação do modelo de financiamento, no mesmo valor da APAC para tratamento quimioterápico do câncer de pulmão células não pequenas avançado atual, não haveria impacto orçamentário para o sistema”.

Se o valor do medicamento já “cabe” na APAC, não haveria, em um primeiro momento, necessidade de sua incorporação. Se houve razões que serviram para justificá-la, não foram expostas de forma clara no relatório.

Como se pode perceber, não há um alinhamento visível entre o modelo da assistência oncológica no SUS e a forma pela qual a incorporação dos medicamentos para o tratamento do câncer vem sendo conduzida pela CONITEC. O próprio órgão, aliás, parece já ter se dado conta da necessidade de examinar de maneira mais detida esses tipos de drogas. É o que se constata na leitura da Ata de sua 72ª Reunião, que tratou da incorporação do pazopanibe e do sunitinibe. Após diversas manifestações na consulta pública sobre as dificuldades encontradas no modelo de assistência oncológica e sobre a corriqueira insuficiência dos valores das APAC’s para a adequada cobertura dos tratamentos necessários, a ata registra que:

“(...) o plenário concordou que algumas informações deveriam ser melhor apresentadas no relatório e alguns membros retomaram a questão de como a CONITEC deve avaliar e incorporar medicamentos antineoplásicos, visto o modelo de assistência oncológica do SUS. Porém, foi orientado que a CONITEC deve manifestar sua recomendação de incorporação ou não, e como o medicamento será disponibilizado será definido posteriormente, de acordo com o financiamento adequado”.

O ideal é que a CONITEC avalie expressamente se no caso concreto é necessário ou conveniente que o fornecimento de medicamento oncológico submetido à sua análise se dê mediante aquisição centralizada pelo Ministério da Saúde ou pelo modelo de assistência oncológica do SUS (via APAC). Isso seria feito no contexto do estudo do impacto orçamentário. Na segunda hipótese, é preciso avaliar também se o valor da APAC para o tratamento do tipo de câncer investigado é suficiente para cobrir as despesas com o novo fármaco. Se a conclusão for positiva e não houver vantagens claras na aquisição centralizada, não há necessidade de incorporação. Por outro lado, se o valor da APAC for insuficiente, seria de suma relevância que a CONITEC fizesse constar essa informação em seu relatório, caso não se opte pela padronização do medicamento.

Esse panorama tão confuso tem dado causa a grande parte da judicialização da saúde relacionada aos medicamentos oncológicos, que poderia, entretanto, ser evitada. Para isso, é preciso que:

a) o Ministério da Saúde dê efetivo cumprimento às portarias de incorporação dessas drogas, adquirindo-as e as disponibilizando segundo os critérios de incorporação;

b) o Ministério da Saúde haja de forma clara e transparente na negociação de preços com o fabricante após a incorporação sempre que ela for uma condição para a disponibilização do medicamento; bem como que decida objetivamente pela manutenção ou revogação das incorporações em que o acordo não for obtido;

c) a CONITEC aprofunde a análise do impacto orçamentário das incorporações de medicamentos oncológicos considerando dois cenários: i) a padronização do medicamento com sua inclusão na RENAME; e ii) o seu custeio segundo o modelo de assistência oncológica, ou seja, mediante livre aquisição pelos CACON’s/UNACON’s e posterior ressarcimento via APAC. Nesta segunda hipótese, é preciso que se deixe claro se o valor da APAC é realmente suficiente para arcar com os gastos do remédio.

Imagem do Post: Paul Hanaoka on Unsplash




Duelo de gigantes: CONITEC versus ANVISA e o uso off label no SUS

Batman e Superman

Os bons acabam bem e os maus acabam mal. É este o sentido da ficção. 

Oscar Wilde

Na ficção todos sabem quem são os vilões e os heróis, e cada qual recebe os castigos e recompensas devidas. Já na realidade os papéis e os desfechos não são tão definidos. A visão maniqueísta da realidade pode ser reconfortante ao traçar a clara linha entre o certo e o errado, mas a epígrafe do autor inglês é um alerta: na vida real os vilões, não raro, escapam e vivem felizes para sempre, e os heróis vão mais cedo para o cemitério.

Distinguir o certo e o errado é trabalho diário de juristas e filósofos morais, e às vezes surgem casos fascinantes em que não há uma solução clara extraída da lei ou da jurisprudência. Esses chamados “hard cases” fazem sucesso entre bons roteiristas de Hollywood e dão um frio na barriga tanto de juízes, que se debruçarão muitos dias sobre a sentença, como na de advogados, que labutarão também arduamente sem saber o que brotará da cabeça do julgador: quaisquer das posições são razoáveis, do réu e do autor, e é natural que pessoas racionais divirjam em certas questões morais.

O caso que se apresentará aqui, porém, não está aberto a dissenso, a matizes e semitons. Aqui há um lado certo e um errado. Um lado razoável e outro desarrazoado. Não é um “hard case”, estando muito mais para um “easy case”.

Pois bem. Dentre as  milhares de ações que são ajuizadas mensalmente pleiteando prestações de saúde em nosso país, uma pleiteava o medicamento micofenolato de mofetila para a doença lúpus eritematoso sistêmico.

Era o típico processo para não existir. Isto porque a CONITEC tem parecer pela incorporação no SUS do micofenolato de mofetila para essa doença desde 2017. Tudo corresse como devia, e 180 dias depois da decisão de incorporação os doentes de lúpus teriam uma política pública de fornecimento do medicamento, bastando ir à farmácia municipal e ter dispensado o medicamento salvador. A história porém tem um plot twist ingrato para pacientes e para o SUS: segundo o registro do mofetila na ANVISA, ele somente pode ser usado para evitar rejeição a órgãos transplantados, e o SUS – segundo sua lei orgânica, a Lei nº 8.080/90 – somente fornece medicamentos com usos aprovados pela ANVISA.

Por isso, a CONITEC – órgão que decide quais tecnologias serão fornecidas no SUS – fez pedido de autorização de uso fora de bula para a ANVISA, nos termos do art. 21 do Decreto nº 8.077/2013, porque demonstradas as evidências científicas sobre a eficácia, efetividade e a segurança do medicamento no tratamento do lúpus. Assim o art. 21 do Decreto nº 8.077/2013:

Art. 21. Mediante solicitação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS - Conitec, a Anvisa poderá emitir autorização de uso para fornecimento, pelo SUS, de medicamentos ou de produtos registrados nos casos em que a indicação de uso pretendida seja distinta daquela aprovada no registro, desde que demonstradas pela Conitec as evidências científicas sobre a eficácia, acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento ou do produto para o uso pretendido na solicitação.

Trata-se de regra bem pensada, que objetiva evitar lacunas na assistência farmacêutica do SUS. Ou, de outra forma, buscou-se nela assegurar a integralidade da assistência e a igualdade: quem fosse atendido por médico particular e pudesse adquirir o medicamento teria acesso ao tratamento off label; já a regra do decreto pretende não deixar desassistido o usuário do SUS na mesmíssima situação. Trata-se de mecanismo criado por quem conhecia bem o SUS e suas necessidades e que harmoniza à perfeição as competências institucionais da CONITEC e da ANVISA. A CONITEC, se decidir pelo uso off label de tecnologia no SUS, deve antes da incorporação requerer esse uso e se submeter à ANVISA, que tem a última palavra sobre registro de medicamentos no Brasil. Uma regra que propicia um diálogo harmônico entre dois órgãos fundamentais do SUS e que poderia concretizar relevantes políticas de assistência farmacológica.

Mas aí vieram os juristas.

A procuradoria da ANVISA entendeu que o tal art. 21 do Decreto nº 8.077/2013 teria uma aplicabilidade muito restrita: incidiria tão apenas em casos de uso experimental (uso em pesquisa). O argumento vai resumido: decreto só tem validade se tiver alguma base em lei, e, segundo a procuradoria da ANVISA, a única norma legal que autoriza uso fora das hipóteses de registro seria o art. 24 da Lei nº 6.360/1976:

Art. 24. Estão isentos de registro os medicamentos novos, destinados exclusivamente a uso experimental, sob controle médico, podendo, inclusive, ser importados mediante expressa autorização do Ministério da Saúde.

Em síntese, o corpo jurídico da ANVISA excluiu do referido decreto qualquer utilidade para fins de política pública de assistência farmacêutica. O que teria restado seria um uso incompatível com finalidade institucional da CONITEC, ela que não promove ensaios clínicos ou experimentos; antes, ela avalia a qualidade metodológica desses ensaios clínicos para decidir se certa tecnologia em saúde será incorporada ao SUS.

Mas há salvação. Há outra lei, anterior mesmo ao Decreto nº 8.077/13, que lhe dá base de validade e legalidade, e é justamente a Lei nº 12.401/11, que alterou a lei orgânica do SUS e criou a CONITEC. O fundamental é que ela distinguiu entre registro, de um lado, e autorização de uso, de outro, em seu art. 19-T:

Art. 19-T. São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS:
I - o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA;
II - a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa.

Ou seja, já em 2011 o legislador distinguiu dois institutos de competência da ANVISA, ambos requisitos para que o SUS adquirisse medicamentos: o registro, que é o caminho normal de introdução do medicamento no mercado, e a autorização de uso, que é o caminho excepcional. Com base nessa distinção legal, em 2013 a Presidência da República publicou o Decreto nº 8.077/2013 e, em seu art. 21, conferiu à CONITEC a competência de requerer à ANVISA a autorização de uso off label.

A interpretação da procuradoria da ANVISA, que somente conecta esse decreto à Lei nº 6.360/76 (uso experimental), torna inexistente ou sem efeito a expressão “uso não autorizado” do inc. I do art. 19-T, e aí incide em má hermenêutica, porque “verba cum effectu sunt accipienda“, ou seja, não se presumem palavras inúteis na lei. O que o decreto em análise fez, ao contrário do que defendeu a procuradoria da ANVISA, foi dar utilidade às palavras da Lei nº 12.401/11.

Mas essa censura da “verba cum effectu…”, como que feitiço, pode se voltar contra a nossa tese (e para os que não são do direito agora se acautelem: parece bizantinismo do que se tratará, mas não é recomendável deixar um flanco aberto em argumento jurídico). A própria procuradoria da ANVISA identificou um verbo a mais, que distingue os dois incisos citados do art. 19-T, e um verbo nada menos que fundamental na assistência farmacêutica: dispensar, o ato pelo qual o farmacêutico entrega a medicação mediante apresentação da receita médica. E concluiu então que, por isso, não se pode dispensar medicamentos sem registro na ANVISA.

Onde falharam os advogados da ANVISA? É que máximas de interpretação não são monolíticas e inescapáveis e exigem manejo cuidadoso, quase tailor made. Então pergunto: faz sentido o SUS pagar por medicamento de uso não autorizado pela ANVISA (inc. I do art. 19-t), porém depois não dispensá-lo? O SUS compra medicamentos para regulação de mercado, como uma CONAB compra arroz e feijão para estocar em armazéns? Ou para formar reservas monetárias como o BACEN compra dólares? Não. Se o SUS compra medicamentos, é para dispensá-los ao seu usuário, e não para o deleite pessoal do ministro ou de um secretário da saúde. Em síntese, a procuradoria da ANVISA caiu numa pegadinha do legislador, que, no inciso II, incorreu na má técnica legislativa que Scalia chamava de cinto e suspensórios (belt and suspenders approach)Scalia, Antonin; Garner, Bryan A.. Scalia and Garner’s Reading Law: The Interpretation of Legal Texts (p. 150). Thomson West. Edição do Kindle.. Então, excepcionalmente, há sim palavras inúteis na lei, mas identificar essas redundâncias pede aquela interpretação inteligente sugerida por Carlos Maximiliano.

Mas indo além do aparente bizantinismo da interpretação textual – e é o labor do jurista lidar com normas escritas que exigem compreensão e interpretação – trago agora um tanto de pragmatismo.

Hoje há mais de vinte terapias com eficácia e segurança atestadas pelo corpo técnico qualificado da CONITEC e que poderiam representar significativo ganho em saúde populacional, seja diretamente, porque não há alternativa terapêutica, seja indiretamente, por meio de economia de recursos escassos do SUSEstes os medicamentos e seus respectivos usos off label que a CONITEC espera aprovação da ANVISA: – risperidona: transtorno do espectro do autismo; – micofenolato de mofetila: lúpus eritematoso sistêmico; – everolimo: imunossupressão no transplante pulmonar; – tacrolimo: imunossupressão no transplante pulmonar; – sirolimo: imunossupressão no transplante pulmonar; – micofenolato de mofetila: imunossupressão no transplante pulmonar; – micofenolato de sódio: imunossupressão no transplante pulmonar; – tacrolimo: imunossupressão no transplante cardíaco; – sirolimo: imunossupressão no transplante cardíaco; – everolimo: imunossupressão no transplante de pâncreas; – tacrolimo: imunossupressão no transplante de pâncreas; – sirolimo: imunossupressão no transplante de pâncreas; – micofenolato de mofetila: imunossupressão no transplante de pâncreas; – micofenolato de sódio: imunossupressão no transplante de pâncreas; – everolimo: imunossupressão no transplante de medula óssea; – tacrolimo: imunossupressão no transplante de medula óssea; – sirolimo: imunossupressão no transplante de medula óssea; – micofenolato de mofetila: imunossupressão no transplante de medula óssea; – micofenolato de sódio: imunossupressão no transplante de medula óssea;  – micofenolato de mofetila: nefrite lúpica; – bevacizumabe: edema macular diabético; e – danazol: síndrome de Evans..

E não adianta aguardar o laboratório, porque não virá dele o pedido de registro para um novo uso, à míngua de suficientes incentivos econômicos ou, em casos limites, em virtude inclusive de acertos entre fabricantes, a fim de que um não peça registro de novo uso que concorra com o produto do outro laboratório. Aliás as únicas duas RDCs da ANVISA de que se tem notícia e que autorizaram usos off label, a RDC nº 53 de 2009 e a RDC nº 111 de 2016, coincidiram com hipóteses em que teria havido acordos entre laboratórios para reserva de mercado. Esta última RDC inclusive tem por pano de fundo um caso rumoroso que já gerou multas milionárias a laboratórios na Itália (182,5 milhões de euros) e na França (444 milhões de euros).

A RDC 111 de 2016 aliás merece um parágrafo só dela. É que naquela época a procuradoria da ANVISA já levantara suas objeções ao uso off label no SUS. Sua aprovação se deve muito provavelmente a uma feliz sincronia, porque à época era presidente da ANVISA o médico Jarbas Barbosa da Silva Júnior, sanitarista profundo conhecedor do SUS e alguém que por certo sabia da importância do uso off label de medicamentos como política pública (atualmente o médico ocupa a vice-direção da Organização Panamericana da Saúde em Washington). Sua aprovação, mesmo em face de parecer jurídico contrário, é em boa parte atribuível à coragem cívica e lucidez de seu então diretor-presidente.

Retomando. Até hoje, vinte tecnologias de saúde poderiam ter sido incorporadas ao SUS para uso off label a partir de pareceres da CONITEC, mas se enfrenta o desastroso entendimento da procuradoria da ANVISA. Entendimento este que, pelo menos desde as alterações à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) de 2018 já deveria ter sido revisto, porque ali o legislador comandou não apenas ao juiz, mas também ao administrador (aí incluído o parecerista), contemplar as consequências práticas da decisão:

Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Porque enquanto a procuradoria da ANVISA não revisar seu parecer: 1) laboratórios em alguns casos continuarão a fazer entre si acordos ruinosos para o SUS;  2) o SUS despenderá fábulas de dinheiro em tecnologias quando há outras off label mais custo-efetivas; 3) usuários do SUS ficarão ao desamparo, distantes de medicamentos cuja eficácia e segurança foram já atestadas pela CONITEC; 4) caso se insurjam contra esse desamparo e vão – com razão! – a  juízo,  aumentarão as estatísticas da judicialização da saúde, com processos que também custam uma fortuna em horas-juiz, horas-defensor-público, horas-servidor, horas-procurador… Processos, repito, que não deveriam sequer existir, não fosse aquele infeliz parecer jurídico.

Importante que se diga que a ANVISA tem preservada sua competência de glosar o ato da CONITEC e entender que o uso off label é inseguro ou ineficaz. É a ANVISA quem terá a última palavra após instrução e encerramento do procedimento de autorização de uso. E também é atribuição da ANVISA debruçar-se sobre as delicadas repercussões regulatórias da autorização de uso off label como política pública, por meio de análise de impacto regulatório.

Tampouco colabora para a superação do imbróglio o entendimento da Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde, que discorda daquele da ANVISA, porém reluta em submeter a controvérsia à AGU a fim de que se dirima a disputa, ao argumento de que, caso a AGU acolha o parecer jurídico da ANVISA, haveria “prejuízo à saúde pública brasileira”. Ora, o prejuízo ao SUS já existe, e as mais de vinte indicações off label elencadas pela CONITEC estão à espera de uma solução jurídica que não vem, seja por conta da procuradoria da ANVISA, seja por conta da postura do consultor jurídico do MS. Ou seja, pior do que está não fica! Acionar-se a AGU para dirimir a disputa entre MS e ANVISA, na pior das hipóteses, manteria as indicações off label da CONITEC sem eficácia, como sem eficácia já são hoje.

No melhor cenário, a AGU já teria imposto à procuradoria da ANVISA entendimento pela legalidade ampla do art. 21 do Decreto nº  8.077/13, e toda esta postagem sequer teria existido. Saliente-se que das duas RDCs da ANVISA que autorizaram uso off label (RDC 53/09 e RDC 111/16) uma perdeu a utilidade, porque o Tenofovir para hepatite é hoje on label, e a outra, do Avastin para DMRI, caducou por transcurso de prazo, não tendo sido renovada. E pediatras e farmacêuticos do SUS continuarão a receitar e dispensar medicamentos off label para curar as criancinhas, não importa o que digam o consultor jurídico da ANVISA, o juiz ou o bispo, porque é o que sempre se fez.

Se me permitem, aqui vai uma sugestão final aos juízes aos quais se distribuam pleitos de medicamentos off label aprovados pela CONITEC. Defiram sem tardar a liminar para o início do tratamento, mas, ao mesmo tempo, determinem que seja requerida a citação da ANVISA para que ela venha aos autos em litisconsórcio, porque é ela que está em mora, e não município, estado ou União. O autor terá seu pleito atendido imediatamente pelos demais réus e não será prejudicado pela lide paralela. Como a ANVISA será também ré, poderá o juiz ordenar-lhe, com os argumentos aqui desenvolvidos, que expeça autorização de uso off label nos termos requeridos pela CONITEC. Trata-se de uma solução inabitual esta de se resolver coletivamente um pleito individual, mas que já foi acolhida em precedente do TRF4 relatado pelo Desembargador Fernando Quadros da Silva (AC 5002552-84.2013.404.7100/RS):

ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE TRATAMENTO MÉDICO. EXISTÊNCIA DE POLÍTICA PÚBLICA. INSTITUÍDA. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. MULTA.
1. A existência de política pública para implante de estimulador cerebral profundo impede sua realização na rede privada, nos termos em que pleiteados pela parte autora.
2. No entanto, quando entraves burocráticos impedem a concretização de serviços de saúde instituídos, cabíveis, sim, medidas que conduzam à efetividade do tratamento buscado, tais como os definidos na sentença objurgada, que determinou seja ultimado o convênio firmado entre a secretaria de saúde do Estado do Rio Grande do Sul e o Hospital de Clínicas de Porto Alegre. (...)

Aliás, o próprio STJ, no tema 106, insinuou a necessidade de coletivização das demandas de saúde ao exigir que o juiz oficie à CONITEC, informando o deferimento judicial de tecnologia não padronizada no SUS para que ela desencadeie processo de análise para fins de incorporação. E por fim, o Código de Processo Civil parece confortar essa sugestão em seu art. 139, porque ali autoriza o juiz a “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial”.

Ordenar-se a ANVISA a instruir e despachar o pedido de autorização off label de uso, numa só decisão do juiz, satisfaz o pedido da parte no processo, e ao mesmo tempo resolve coletivamente um importante vácuo de assistência no SUS.

Se vingar essa sugestão e os juízes federais corrigirem o procedimento da ANVISA nos processos individuais de medicamentos, teremos um final feliz: o SUS economizará fortunas e atenderá melhor seus usuários, e alguns milhares de processos judiciais se extinguirão como que por encanto.

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Judicialização da saúde, deferência aos atos administrativos e LINDB: um encontro necessário

cumprimento de cotovelos

A pandemia causada pela COVID-19 colocou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) em posição de destaque. A agência reguladora foi citada na discussão sobre o possível uso da Hidroxicloroquina para o tratamento dos pacientes com COVID-19 e atualmente é uma das protagonistas no debate sobre as vacinas testadas para a imunização dos brasileiros.

Para os que atuam na judicialização da saúde, a ANVISA é uma figura sempre presente ou, pelo menos, deveria ser.

No julgamento da Suspensão de Tutela Antecipada 175 pelo Supremo Tribunal Federal, o Ministro Gilmar Mendes destacou a importância do registro do medicamento na agência para a determinação de fornecimento pela via judicial:

"Por tudo isso, o registro na ANVISA configura-se como condição necessária para atestar a segurança e o benefício do produto, sendo o primeiro requisito para que o Sistema Único de Saúde possa considerar sua incorporação. ”

Entretanto, esse julgamento não encerrou a discussão.

Na verdade, foi só o início da formação de precedentes sobre a judicialização da saúde pelos Tribunais Superiores. Em 2011, o STF reconheceu a repercussão geral da seguinte questão constitucional: Tema 500 – Dever do Estado de fornecer medicamento não registrado pela ANVISA.

Enquanto o STF o analisava, o Superior Tribunal de Justiça definiu que a existência de registro do medicamento, observados os usos autorizados pela agência, é um dos requisitos para a concessão de medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS (tese do tema 106).

Em maio de 2019, o STF fixou a tese do tema 500, a qual traz, como regra, que a ausência de registro na ANVISA impede o fornecimento de medicamento por decisão judicial.

Ocorre que essas teses parecem ter ficado restritas ao plano ideal da judicialização da saúde.

Nas ações individuais ajuizadas diariamente, as decisões da ANVISA e da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC) são reiteradamente ignoradas.

O estudo “Judicialização da Saúde no Brasil: Perfil das demandas, causas e propostas de soluções” elaborado pelo Insper para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao analisar as sentenças proferidas no Tribunal de Justiça de São Paulo, encontrou o seguinte:

“Dentre as ações procedentes, a Anvisa é citada em apenas 1,20% dos casos, número que cresce para 7,52% no caso das decisões parcialmente procedentes, 3,02% das improcedentes e em 26,22% das extintas.
Esse dado indica que juízes utilizam mais em suas fundamentações referências a normas da ANVISA quando decidem conceder parcialmente, não conceder e, especialmente, extinguir as ações em primeira instância.”

Num primeiro momento, poderíamos atribuir esses números ao fato dos dados utilizados na pesquisa serem anteriores à publicação da tese do tema 500, mas, novamente, a realidade nos mostra outra situação.

No dia 23 deste mês, o STF encerrou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5501, na qual foi analisada a constitucionalidade da Lei nº 13.269/2016, que autorizava o uso da fosfoetanolamina sintética, conhecida como “pílula do câncer”, por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna. A lei foi declarada inconstitucional, mas o resultado surpreendeu.

Estávamos diante do debate sobre um tratamento sem qualquer evidência cientifica apta a comprovar a sua eficácia. Apesar disso, no julgamento que considerou a lei inconstitucional, houve três votos divergentes:

Divergência
Os ministros Edson Fachin, Dias Toffoli e Gilmar Mendes votaram no sentido de restringir o uso do remédio a pacientes terminais. Para o ministro Edson Fachin, o uso privado de substâncias, ainda que apresentem eventuais efeitos nocivos à saúde humana, insere-se no âmbito da autonomia privada e está imune à interferência estatal em matéria penal. “A rigor, o uso da fosfoetanolamina é permitido se não há lei que o proíba”, ponderou. “A Anvisa não detém competência privativa para autorizar a comercialização de toda e qualquer substância”.

Outro exemplo ocorreu no Superior Tribunal de Justiça. No início deste mês, o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho determinou que a União depositasse, no prazo máximo de 15 dias, R$ 6,7 milhões para a aquisição de Zolgensma, o medicamento mais caro do mundo. Embora possua registro na ANVISA, ele é para um tipo de atrofia muscular espinhal diferente daquele diagnosticado na paciente beneficiada pela decisão.

Nesse processo, o Ministério da Saúde esclareceu não ser possível o fornecimento administrativo pela ausência do registro e por não ter sido analisada pela CONITEC a incorporação ao SUS. Entretanto, a decisão em sede de mandado de segurança, que não permite a dilação probatória, ou seja, não houve sequer perícia judicial, determinou a realização do depósito pela União.

Além da Anvisa, o estudo divulgado pelo CNJ, acima destacado, também mostra que a CONITEC, a quem compete assessorar o Ministério da Saúde nas atribuições relativas à incorporação, exclusão ou alteração de tecnologias em saúde pelo SUS, é citada em apenas 0,51% das decisões, enquanto seus protocolos aparecem em 5,83%:

gráfico que demonstra o pouco uso dos protocolos

Nesse contexto, é que surge a proposta deste texto.

É necessário que a judicialização da saúde encontre a deferência aos atos administrativos, ou seja, não é possível que aquela funcione bem sem a presença desta, cabendo destacar as palavras do Professor Egon Bockmann Moreira:

A toda evidência, não existe solução única para tais excessos no controle das decisões discricionárias. Mas há alguns caminhos que permitem atenuar tais usurpações de competência. Dentre eles, está o denominado princípio da deferência, ao estabelecer que decisões proferidas por autoridades detentoras de competência específica – sobretudo de ordem técnica – precisam ser respeitadas pelos demais órgãos e entidades estatais (em especial o Poder Judiciário, o Ministério Público e as Cortes de Contas).
Lastreado nos princípios da separação dos poderes e da legalidade, o princípio da deferência não significa nem tolerância nem condescendência para com a ilegalidade. Mas impõe o devido respeito às decisões discricionárias proferidas por agentes administrativos aos quais foi atribuída essa competência privativa. Os órgãos de controle externo podem controlar o devido processo legal e a consistência da motivação nas decisões discricionárias, mas não podem se imiscuir no núcleo duro daquela competência. Precisam respeitá-la e garantir aos administradores públicos a segurança jurídica de suas decisões. 
Assim, a necessária retomada do crescimento econômico passa também pelo prestígio ao princípio da deferência. Caso se persista na busca incessante da decisão excelente – com a sucessão de controles extraordinários – haverá imensa dificuldade em se implementar as soluções cabíveis para atos e contratos administrativos, tal como definidas pelos administradores a quem a lei atribuiu a o dever de decidir. Haverá incremento significativo nos custos de transação e imenso desestímulo aos administradores que pretendem trabalhar com perseverança. Muito há a ser feito, mas a aplicação do princípio da deferência e o respeito à discricionariedade já seriam grandes passos.

Não se trata de tema novo.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4874, o STF afirmou a deferência às escolhas técnicas feitas pela Administração Pública. Veja-se o seguinte trecho do referido julgado:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO DE INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO. ART. 7º, III E XV, IN FINE, DA LEI Nº 9.782/1999. RESOLUÇÃO DA DIRETORIA COLEGIADA (RDC) DA ANVISA Nº 14/2002. PROIBIÇÃO DA IMPORTAÇÃO E DA COMERCIALIZAÇÃO DE PRODUTOS FUMÍGENOS DERIVADOS DO TABACO CONTENDO ADITIVOS. AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. REGULAÇÃO SETORIAL. FUNÇÃO NORMATIVA DAS AGÊNCIA REGULADORAS. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. CLÁUSULAS CONSTITUCIONAIS DA LIBERDADE DE INICIATIVA E DO DIREITO À SAÚDE. PRODUTOS QUE ENVOLVEM RISCO À SAÚDE. COMPETÊNCIA ESPECÍFICA E QUALIFICADA DA ANVISA. ART. 8º, § 1º, X, DA Lei nº 9.782/1999. JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL. DEFERÊNCIA ADMINISTRATIVA. RAZOABILIDADE. CONVENÇÃO-QUADRO SOBRE CONTROLE DO USO DO TABACO – CQCT. IMPROCEDÊNCIA. 1. (...) 9. Definidos na legislação de regência as políticas a serem perseguidas, os objetivos a serem implementados e os objetos de tutela, ainda que ausente pronunciamento direto, preciso e não ambíguo do legislador sobre as medidas específicas a adotar, não cabe ao Poder Judiciário, no exercício do controle jurisdicional da exegese conferida por uma Agência ao seu próprio estatuto legal, simplesmente substituí-la pela sua própria interpretação da lei. Deferência da jurisdição constitucional à interpretação empreendida pelo ente administrativo acerca do diploma definidor das suas próprias competências e atribuições, desde que a solução a que chegou a agência seja devidamente fundamentada e tenha lastro em uma interpretação da lei razoável e compatível com a Constituição. Aplicação da doutrina da deferência administrativa (Chevron U.S.A. v. Natural Res. Def. Council). 10. (...) 13. Ação direta de inconstitucionalidade conhecida, e, no mérito julgados improcedentes os pedidos principais e o pedido sucessivo. Julgamento destituído de efeito vinculante apenas quanto ao pedido sucessivo, porquanto não atingido o quórum para a declaração da constitucionalidade da Resolução da Diretoria Colegiada nº 14/2012 da ANVISA. (ADI nº 4874, Relatora: Ministra ROSA WEBER, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 01/02/2018, Publicação em 01/02/2019; grifou-se).

Também precisa, nesse sentido, é a argumentação exposta pelo Ministro Luiz Fux no voto proferido no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5062:

Em uma democracia, a Constituição é o documento fundante, mas não exauriente do Estado. Isso significa que a resposta para a maioria dos dilemas sociais, embora balizada, não está predefinida na Lei Maior. Cabe a cada geração, através de seus representantes eleitos, disciplinar, com significativa margem de conformação, os conflitos intersubjetivos. Nesse cenário, toda inflação semântica dos enunciados constitucionais implica supressão de espaço de escolha das maiorias eleitas. Bem por isso já advertia o Chief Justice Marshall, da Suprema Corte Norte-americana, que "We must never forget that it is a constitution we are expounding" (McCulloch v. Maryland - 1819).
Reservo ainda dúvidas quanto à real capacidade de juízes, com formação intelectual, via de regra, estritamente legalista, procederem a um exame profundo sobre a correção técnica de marcos regulatórios específicos. À pouca expertise se somam as limitações de tempo e de informação típicas do processo judicial, o que tende a gerar uma perspectiva, senão equivocada, ao menos parcial do problema regulatório (“visão de túnel”). Tais contingências justificam cautela e prudência, rechaçando qualquer visão messiânica do Poder Judiciário como instância redentora da sociedade. (ADI nº 5062, Relator: Ministro LUIZ FUX, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 27/10/2016, Publicação em 21/06/2017; grifou-se).

O Ministro Luis Roberto Barroso discorreu sobre a expansão da intervenção judicial no Brasil, destacando a “capacidade institucional”, que nada mais é que a necessidade de se entender qual dos poderes da República está mais habilitado a produzir a melhor decisão sobre determinada matéria, bem como destacando os “efeitos sistêmicos”, ou seja, o impacto das decisões judiciais na política pública:

Cabe aos três Poderes interpretar a Constituição e pautar sua atuação com base nela. Mas, em caso de divergência, a palavra final é do Judiciário. Essa primazia não significa, porém, que toda e qualquer matéria deva ser decidida em um tribunal. Para evitar que o Judiciário se transforme em uma indesejável instância hegemônica, a doutrina constitucional tem explorado duas ideias destinadas a limitar a ingerência judicial: a de capacidade institucional e a de efeitos sistêmicos. Capacidade institucional envolve a determinação de qual Poder está mais habilitado a produzir a melhor decisão em determinada matéria. Temas envolvendo aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade podem não ter no juiz de direito o árbitro mais qualificado, por falta de informação ou de conhecimento específico. Também o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis podem recomendar uma posição de cautela e de deferência por parte do Judiciário. O juiz, por vocação e treinamento, normalmente estará preparado para realizar a justiça do caso concreto, a microjustiça, sem condições, muitas vezes, de avaliar o impacto de suas decisões sobre um segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público.

Não se ignoram, por outro lado, os questionamentos existentes sobre as atividades realizadas pela ANVISA e pela CONITEC.

O impasse sobre os medicamentos off label, objeto de debate na 80ª reunião da CONITEC, bem a possibilidade de registro tácito de medicamentos prevista na RDC 416/2020, já objeto de análise por aqui, são dois exemplos relacionados à ANVISA. 

Na CONITEC, o descumprimento do prazo legalmente estabelecido para a disponibilização das novas tecnologias incorporadas ao Sistema Único de Saúde e a incorporação de medicamentos oncológicos em um sistema que, como regra, não prevê a aquisição destes pelo Estado são dois dos maiores desafios a serem superados neste momento.

Finalmente, não pode ser afastada desse debate a redação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro após a Lei nº 13.655/2018, que positivou a necessidade de se considerar as consequências práticas das decisões judiciais. Se a decisão decide afastar as conclusões da ANVISA e/ou da CONITEC, há determinadas balizas a serem observadas. Não basta, por exemplo, invocar o direito à saúde e a dignidade da pessoa humana em seus conceitos abstratos para tornar sem efeito o ato administrativo ou obrigar a Administração a realizar algo, que ainda está pendente de análise pelos órgãos competentes. 

A respeito das questões deste texto, cabe destacar as conclusões do Professor Daniel Wang, quando se propôs a apresentar os elementos para a elaboração de uma jurisprudência construtiva na judicialização da saúde:

Ademais, o direito à saúde é um princípio, um mandado de otimização cuja realização depende das circunstâncias fáticas. O direito à saúde precisa ser entendido dentro do contexto de um sistema de saúde com mais necessidades que recursos e do qual dependem vários titulares do mesmo direito. A restrição à satisfação do direito, porém, precisa ser justificada e, dada a complexidade e multiplicidade de sujeitos envolvidos, é importante que haja regras para a alocação de recursos. O Judiciário protege melhor o direito à saúde examinando estas regras e exigindo sua observância do que fazendo alocações individuais que as violam.
Em conclusão, é juridicamente consistente e salutar para o SUS uma jurisprudência que impeça indivíduos (e indústria) de contornem as regras de alocação de recursos, mas que controle as escolhas alocativas do sistema, avaliando a regra aplicada para negar um tratamento, se ela é razoável ou arbitrária, e se foi adequadamente aplicada no caso concreto.

Não se trata o encontro proposto de um desafio fácil, porém seu enfrentamento será cada vez mais necessário num cenário em que novas tecnologias de saúde com custo milionário estão se tornando comuns e há crescente aumento da judicialização da saúde.

Como sempre defende o amigo Paulo Gabriel Vilas Bôas, colega de Advocacia Pública e de Comitê de Saúde do Estado do Paraná, é necessário que consigamos superar as nossas diferenças para debatermos de forma democrática e encontrarmos as melhores soluções para todos os interessados.

Foto do post: Noah on unsplash




Soliris: A esperança na corda bamba de sombrinha

Arvore diferente no meio de uma floresta

O custo dos medicamentos de doenças raras sempre traz desafios para os sistemas de saúde no mundo inteiro. Não há novidade nisso. A cada ano, várias tecnologias que potencialmente proporcionam benefícios aos pacientes são lançadas, trazendo esperança. O preço muito elevado de alguns desses medicamentos, que torna inviável a compra direta pela maioria dos pacientes, faz com que cobranças e expectativas se voltem ao SUS.  

A decisão para o SUS tende a ser apresentada como binária: incorporar ou não um tratamento. Essa é uma grande simplificação da questão. A questão concreta que é colocada ao SUS é incorporar ou não um tratamento dado o preço e as condições ofertadas pela indústria. Em princípio, a escala do SUS faz com que tenha grande poder de negociar preço e condições. Porém, há situações concretas em que essa vantagem do SUS é neutralizada pela judicialização.

Podemos falar, por exemplo, do medicamento Soliris (Eculizumabe). Indicado para o tratamento de Hemoglobinúria Paroxística Noturna (HPN) e para Síndrome Hemolítica Urêmica Atípica (SHUA), é o medicamento judicializado que mais impacta os cofres da União. Em 2018 e em 2019, a União gastou respectivamente R$ 368.522.257,63 e R$ 453.021.785,61 para atender às ordens judiciais de demandas de pacientes com as duas condições para as quais o remédio é indicado. Em agosto deste ano, havia 311 pacientes de HPN e 147 pacientes de SHUA que recebiam o medicamento da União pela via judicial.

Em razão da judicialização deste medicamento, a própria Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde iniciou um processo de análise na CONITEC para verificar se ele deveria ou não ser incorporado ao SUS. No relatório nº 413, de dezembro de 2018, referente à HPN, a CONITEC recomendou a sua incorporação. Já no relatório nº 483, de novembro de 2019, houve a recomendação de não incorporação da tecnologia para o tratamento da SHUA. É importante acrescentar que países mais desenvolvidos do que o Brasil não incorporaram o Soliris para HPN em seus sistemas de saúde. É o caso do Reino Unido e do Canadá, entre outros.

Por causa da recomendação de incorporação para HPN, foi editada a Portaria nº 77, de dezembro de 2018, que incorporou o Soliris, desde que satisfeitas algumas condicionantes. Uma delas seria a negociação com a indústria “para redução significante de preço”.

Em 27/06/2019, na pactuação da Comissão Intergestores Tripartite, ficou definido que o medicamento seria alocado no grupo 1A do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica, o que significa que a União seria a responsável pelo pagamento e pela aquisição da droga.

Assim, em 08/11/2019, o Ministério da Saúde – MS abriu procedimento de contratação direta por inexigibilidade de licitação para a compra de 42.149 frascos do medicamento para ambas as condições, já que haveria a necessidade de se atender às demandas judiciais de SHUA também. Na ocasião, estimou-se que haveria 328 pacientes de HPN para quem a União deveria fornecer a medicação. Este quantitativo foi obtido a partir do número de pacientes com HPN considerado no relatório de recomendação da Conitec para o ano de 2020. Dos 3.647 pacientes mencionados, estimou-se que somente 30% deles (1.094) se enquadrariam na situação clínica na qual o Soliris é recomendado.  Também havia a intenção de que houvesse um market share, e a empresa fabricante fornecesse o remédio para 70% desses pacientes. Com isso, chegou-se ao número de 328 pacientes. Entretanto, não há acurácia nesses números, já que se basearam em um único estudo realizado em 2006 com pacientes de Yorkshire.

Em 18/02/2020, a empresa Alexion (detentora do único registro do medicamento) fez uma proposta de R$ 12.817, 56 por frasco, reduzindo o preço em 0,63% em relação ao Preço Máximo de Venda ao Governo (PMVG de R$ 12.899,25). Em 01/04/2020, nova proposta foi feita de R$ 12.806,33, o que representou uma diminuição de preço de 0,72% do PMVG. Dentre outros motivos, a empresa alegou que não poderia fazer oferta melhor, pois já estava fornecendo o medicamento ao governo há algum tempo por um valor inferior ao devido nas compras feitas em função das demandas judiciais. Também disse que aquele era o preço mais baixo que ela praticava no mundo, sem, contudo, comprovar tal fato. Em 15/04/2020, em reunião do Ministério da Saúde com a empresa, o preço foi mantido, mas a empresa se comprometeu a estudar algum tipo de incentivo ou contraproposta até 24/04, o que não foi feito até 06/08, pelo menos.

Em vista da não implementação da condição para a incorporação, em 06/08/2020, a CONITEC decidiu que ela deveria ser revista para que houvesse a sua exclusão. É interessante notar que, em 2018, o MS pagou em média R$ 13.604,88 por frasco do medicamento. Em 2019, a média dos valores pagos foi de R$ 12.673,46, sendo que o menor preço pago foi de R$ 12.274,83. Ou seja, o preço proposto para incorporação não variou muito em relação ao valor pago para o cumprimento de ordens judiciais.

O que explica a falta de interesse da indústria em negociar? Uma hipótese forte é a de que possivelmente todos ou quase todos os pacientes que necessitam do Soliris o recebam em decorrência de decisões judiciais. Em agosto deste ano, havia 311 pacientes que o recebiam da União.  Há aqueles que são atendidos pelos Estados. O Estado do PR, a título de exemplo, desembolsou para a compra do Soliris R$ 4.280.207,68, em 2017, R$ 2.305.965,89, em 2018, e R$ 4.365.986,82, em 2019. Há, ainda, os que conseguem o tratamento judicialmente das operadoras de planos de saúde.

É provável, então, que a população elegível para o tratamento esteja superestimada. Aliás, para confirmar tal fato, seria interessante fazer um levantamento preciso do número de pacientes que ajuizaram ações para receber o Soliris, seja contra a União, os Estados ou as operadoras. Também deveria ser analisado quantos desses pacientes tiveram seus pedidos deferidos.

O exemplo do Soliris é um caso claro em que a não incorporação não se dá pela omissão do Estado, mas pelo alto preço de um medicamento e pela falta de disposição da indústria de negociar. Também ilustra de forma clara um dos efeitos deletérios da judicialização sem critérios e que ignora a política pública de saúde. Ela tira o poder da administração de barganhar preços e condições com a indústria, lesando, em última análise, o SUS inteiro e o próprio erário.

Juízes têm de estar atentos aos efeitos sistêmicos das suas decisões para que, ao tutelar o direito individual à saúde, não acabem sendo usados pela indústria para prejudicar o sistema responsável por realizar esse direito para toda a população.

Por outro lado, o Ministério da Saúde também poderia deixar mais claro quanto ele estaria disposto a pagar pelos medicamentos ou qual o limiar de custo-efetividade que considera aceitável para um determinado produto. Pode-se cogitar também de eventuais medidas de cooperação internacional com outros órgãos e entidades de saúde internacionais e de outros países, de modo a eliminar a assimetria de informações existente. 

Em meio a tudo isso, estão os pacientes que, evidentemente, não podem ser prejudicados. Mas uma coisa é certa: para que haja negociação, é necessário que TODOS estejam desconfortáveis com a situação existente.




All I want for christmas is… Papai Noel, Fux e uma boa tese 6 do STF

I.

Em 2005, a corte constitucional alemã deferiu uma terapia para doença de Duchene que não havia sido autorizada administrativamente ao paciente. A corte não ingressou no aspecto do custo do tratamento. A decisão foi então alcunhada de “acórdão Nicolau” (“Nikolaus-Entscheidung”), porque proferida em 6 de dezembro, dia onomástico do santo de mesmo nome, quando alemãezinhos acordam para encontrar meias cheias de doces e guloseimas.

No Brasil, não raro, a doutrina e a jurisprudência, antes de concluir que há um direito subjetivo a qualquer medicamento, citam com gosto a decisão alemã. É a confirmação do fascínio do brasileiro pela Kultur germânica, fascínio que Alfredo Augusto Becker referia em obra seminal:

Se aquilo que ele está lendo foi escrito por um alemão e está impresso no idioma teutônico, então, é algo tanto mais admirável quanto mais complicado. E recebido respeitosamente como a verdade científica que não admite prova em contrário, salvo se escrita por outro alemão, de preferência em letras góticas(Carnaval Tributário. 2ª ed. São Paulo: LEJUS, 2004, p.111-2).

Mas como aos alemães também não faltam humor acadêmico e ironia e, tendo em vista que o autor da alcunha foi um crítico da decisão, não é de duvidar que a referência a São Nicolau tinha a ver com o outro nome pelo qual o santo se tornou famoso: Papai Noel. Afinal, essa linha de entendimento, que não considera os custos da saúde, parece fundada num pensamento mágico, que levaria a caneta do juiz a produzir expansão orçamentária da pasta da saúde.

Na Alemanha, até julho de 2019, o acórdão Nicolau deu ensejo a quase oitocentas ações em que se pleiteavam as mais diversas tecnologias em saúde. Todavia, em decisões de 2015 e 2017, a corte constitucional alemã entendeu que as cortes ordinárias não deveriam usar a Nikolaus como precedente, já que ela deveria ser tratada como caso excepcional. Ou seja, passaram-se mais de dez anos desde a decisão Nicolau até que sobreviesse esse esclarecimento da corte constitucional. Durante esse tempo, o próprio legislador alemão e a jurisprudência dos tribunais previdenciários alemães já haviam se adequado àquele precedente… que se descobriu que não era precedente!

Já a versão tropical da Nicolau tomou dimensões epidêmicas. Temos em tramitação (excluídos portanto os processos já extintos) perto de um milhão e trezentos processos que de alguma forma envolvem o SUS.

Então meu primeiro desejo: quero no Natal um Papai Noel/São Nicolau bem generoso, gordo e bonachão. Mas só no Natal. Não quero antes, nem em decisões judiciais, e muito menos… em alemão!

Mas quero mais de Natal. Então, meu Bom Velhinho, presta bem atenção.

II.

Se os americanos se deleitam com a lembrança de uma “Warren Court” e sua construção dos direitos civis, eu quero uma “Fux Court” na judicialização da saúde.

No dia 10 de setembro, o ministro Luiz Fux, que é reconhecido estudioso de “law and economics”, assume a presidência do STF. No ano passado, ele relatou um precedente importantíssimo do STF sobre controle da administração pública perante questões tecnicamente complexas (AG REG REX 1.083.955). A ementa, mesmo longa, é primorosa em sua síntese e merece ser transcrita:

1. A capacidade institucional na seara regulatória, a qual atrai controvérsias de natureza acentuadamente complexa, que demandam tratamento especializado e qualificado, revela a reduzida expertise do Judiciário para o controle jurisdicional das escolhas políticas e técnicas subjacentes à regulação econômica, bem como de seus efeitos sistêmicos.
2. O dever de deferência do Judiciário às decisões técnicas adotadas por entidades reguladoras repousa na (i) falta de expertise e capacidade institucional de tribunais para decidir sobre intervenções regulatórias, que envolvem questões policêntricas e prognósticos especializados e (ii) possibilidade de a revisão judicial ensejar efeitos sistêmicos nocivos à coerência e dinâmica regulatória administrativa.
3. A natureza prospectiva e multipolar das questões regulatórias se diferencia das demandas comumente enfrentadas pelo Judiciário, mercê da própria lógica inerente ao processo judicial.
4. A Administração Pública ostenta maior capacidade para avaliar elementos fáticos e econômicos ínsitos à regulação.
5. A intervenção judicial desproporcional no âmbito regulatório pode ensejar consequências negativas às iniciativas da Administração Pública. Em perspectiva pragmática, a invasão judicial ao mérito administrativo pode comprometer a unidade e coerência da política regulatória, desaguando em uma paralisia de efeitos sistêmicos acentuadamente negativos.
6. A expertise técnica e a capacidade institucional do CADE em questões de regulação econômica demanda uma postura deferente do Poder Judiciário ao mérito das decisões proferidas pela Autarquia. O controle jurisdicional deve cingir-se ao exame da legalidade ou abusividade dos atos administrativos, consoante a firme jurisprudência desta Suprema Corte.
9. In casu, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, após ampla análise do conjunto fático e probatório dos autos do processo administrativo, examinou circunstâncias fáticas e econômicas complexas, incluindo a materialidade das condutas, a definição do mercado relevante e o exame das consequências das condutas das agravantes no mercado analisado. No processo, a Autarquia concluiu que a conduta perpetrada pelas agravantes se enquadrava nas infrações à ordem econômica previstas nos artigos 20, I, II e IV, e 21, II, IV, V e X, da Lei 8.884/1994 (Lei Antitruste).
10. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE detém competência legalmente outorgada para verificar se a conduta de agentes econômicos gera efetivo prejuízo à livre concorrência, em materialização das infrações previstas na Lei 8.884/1994 (Lei Antitruste).

Resumidamente, o STF nesse precedente entendeu que: a) questões complexas exigem trato por especialistas; b) que falta expertise ao juiz; c) que o juiz tem dever de deferência à decisão administrativa técnica; d) que o  processo judicial individual é impróprio para questões multipolares; e) que a administração é mais capacitada para avaliar o quadro global; f) que a intervenção judicial mais perturba do que ajuda; g) que o controle judicial deve ser apenas de legalidade ou abusividade do ato administrativo; e h) que a administração tem competência legal para a decisões técnicas.

Tudo aquilo que o STF disse em relação ao CADE pode ser transposto para um órgão fundamental do SUS, a CONITEC (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS).  Esse órgão foi criado pela Lei nº 12.401/11 e tem por finalidade a “avaliação de tecnologias em saúde” (ATS), examinando a eficácia clínica de novas tecnologias e aspectos de economia da saúde, para ao final opinar sobre se devem ou não ser incorporadas ao SUS. Se o direito da concorrência manejado pelo CADE já é complexo, a  avaliação de tecnologia em saúde exige um conhecimento ainda mais interdisciplinar, que envolve Medicina, metodologia científica para leitura crítica da literatura médica e, por fim, economia da saúde.

O STF, no precedente Fux citado, adotou uma postura deferente perante o administrador. Porém, na judicialização da saúde, após aparente metaformose do julgador, longe de deferência, tem-se verdadeira indiferença em relação ao órgão competente para o processo de incorporação de tecnologias. Aliás, o juiz, muitas vezes, sequer sabe da existência da CONITEC, um órgão que, mesmo jovem, é fundamental ao SUS.

Segundo pesquisa do INSPER contratada pelo CNJ, a CONITEC foi citada em apenas 0,51% (!) das decisões judiciais envolvendo a judicialização da saúde. E quando o juiz desconsidera o trâmite administrativo para que uma tecnologia seja incorporada, é possível cogitar-se de ranhura à própria separação de poderes. Afinal uma coisa é o juiz controlar a administração – isto é, reconhecer a existência de um ato administrativo, controlar sua legalidade e eventualmente anulá-lo por conta de algum vício. Outra, já agora com aparência de inconstitucionalidade, é o juiz desconsiderar que essa mesma administração existe.

Afora a evidência estatística apresentada pelo INSPER, a jurisprudência do STJ confirma essa postura de indiferença perante a CONITEC. Com efeito, em 2018, quando do julgamento do tema 106, o STJ fixou as balizas entendidas por indispensáveis para deferimento de tecnologias em saúde, somente o autorizando para medicamentos registrados na ANVISA e on label. Ou seja, até mesmo o STJ desconsiderou a CONITEC, ao definir que o que importa é exclusivamente o registro pela ANVISA.

Antes que alguém acuse o legislador brasileiro de mesquinho e desalmado, é bom esclarecer que não é só no Brasil que existe um órgão técnico que promove esse tipo de avaliação antes de incorporar uma nova tecnologia ao sistema de saúde. A “avaliação de tecnologia em saúde” (ATS) é metodologia consagrada internacionalmente. Confira-se tabela produzida pela Alta Autoridade em Saúde (a CONITEC francesa), contemplando os múltiplos itens que compõem os métodos de diversas agências responsáveis pela ATS mundo afora:

Quadro comparativo da incorporação

A tabela revela que a atividade promovida pela CONITEC também é repetida, a título meramente exemplificativo, na Austrália, no Canadá, na Dinamarca, na Finlândia, na França, em Israel, na Noruega, na Nova Zelândia, no estado norte-americano do Oregon, na Holanda, no Reino Unido e na Suécia. Ou seja, mesmo em países com orçamentos da saúde bem mais generosos, a economia da saúde também é elemento chave do processo de incorporação de medicamentos.

Então, Papai Noel, não se esqueça da minha “Corte Fux”, porque o pensamento de direito e economia é imprescindível à judicialização da saúde e à sua racionalização. Quiçá o fato da presidência do STF vir a ser ocupada por um especialista na matéria gere inflexão no pensamento do STF.

III.

E, Papai Noel, porque fomos todos merecedores neste annus horribilis, um último pedido: que a “Corte Fux” produza uma tese do tema 6 que reorganize a judicialização da saúde e, especialmente, não esqueça da economia da saúde. É no tema 6 que o STF decidirá se o estado deve entregar tecnologias não previamente incorporadas (fora de lista). O processo já está praticamente concluído, havendo sinalização de que apenas excepcionalmente o juiz poderá conceder medicamentos fora de lista. É na elaboração da tese que o tribunal fixará essas excepcionalidades que autorizam o deferimento do pedido.

Meu Bom Velhinho, é nas exceções e detalhes que as coisas se complicam, então é aí que precisamos da sua ajuda. E tomo como exemplo o voto do ministro Alexandre de Morais, no julgamento do tema 6.

O ministro Alexandre, em voto profundo e minucioso, explicou os fundamentos da economia da saúde e seus dilemas alocativos. Ensinou sobre direito orçamentário e financeiro e sobre como a judicialização tira de vários para dar para um. Fez alusão à CONITEC e a noções de custo-efetividade. Porém, após essa sua manifestação ex cathedra,  ele concluiu (em 1:12:00 do canal youtube do STF) que em ações individuais não se deveria tratar de custo da tecnologia, ao argumento de que ali não havia incorporação universal, mas só para o autor da demanda.

O voto do ministro parece contemplar duas racionalidades diversas: uma do juiz generoso, em que custos e economia na saúde são tabu; e outra da administração, muito mais mesquinha, pois é ela que fará a análise de custo-efetividade e impacto orçamentário.

Sobre o tema, note-se que a análise do custo-efetividade e de impacto orçamentário são duas etapas necessárias no processo de incorporação de tecnologia em saúde, previstas na Lei nº 8.080/90. Diante disso, o espectador fica com uma certa perplexidade, porque a lei que rege o SUS é uma só e ela exige expressamente essas análises. Seria de se esperar que essa norma regesse todas as determinações de fornecimento de tecnologia em saúde, tanto pelo administrador quanto pelo juiz.

A análise do impacto orçamentário, que visa justamente a contemplar as consequências sistêmicas e orçamentárias da incorporação de uma nova tecnologia ao SUS, tem por objetivo avaliar se o estado tem condições de dar aquela tecnologia para todos que padecem daquela condição (incidência/prevalência da doença). É de certa forma o economista da saúde a ensinar ao juiz constitucional que a igualdade pede isso: ou se dá para todos ou, se o estado não tem condições, não dá para ninguém. E me pergunto cá: como o juiz terá condições técnicas de fazer uma análise de impacto orçamentário num processo individual? Aí a lição do ministro Fux no caso do CADE adquire mais relevância, quando ele escreveu faltar ao juiz “expertise”, que “há natureza prospectiva e multipolar das questões” e que “a administração ostenta maior capacidade para avaliar elementos fáticos e econômicos”.

É essa a grande missão que os sistemas de saúde têm de enfrentar atualmente: os custos (tratamos do tema em outro post aqui no Direito em Comprimidos), a ponto de a OCDE estimar que pela metade deste século eles serão insuportáveis se nada for feito para regulá-los de forma eficiente. Por isso, a própria OMS vem capitaneando um movimento internacional objetivando preços justos nos medicamentos e exigindo dos laboratórios mais transparência sobre os custos de desenvolvimento das tecnologias e nas negociações com os sistemas de saúde.

Aliás, a OMS, há bem pouco tempo, foi erigida pelo STF a paradigma de racionalidade do administrador, a ponto de estabelecer que descumprimento de “standards, normas e critérios científicos e técnicos, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente conhecidas” indiciam improbidade administrativa (ADI 6421 MC/DF, rel. Min. Roberto Barroso, julgamento em 20 e 21.5.2020).

Por um lado, a OMS vem postulando políticas públicas de racionalização dos preços em saúde e, por outro, o STF reputa potencialmente incurso em improbidade o gestor que desconhecer as recomendações da OMS. Ergo, Papai Noel, a tese a ser votada no tema 6 não pode esquecer a recomendação da OMS, de que o custo-efetividade é um requisito indispensável para a sustentabilidade do SUS e de qualquer sistema de saúde (aliás, repito: custo-efetividade é requisito de incorporação previsto em lei, lei que até hoje não foi declarada  inconstitucional pelo STF).

A inflação de preços na área da saúde pode ser explicada por meio do critério mais consagrado da economia da saúde para avaliar o custo-efetividade, o ano de vida ajustado pela qualidade (AVAC, ou QALY em inglês). Cada QALY custa em torno de quinze mil libras ao SUS da Inglaterra (NHS). Porém, quando novas tecnologias são incorporadas via NICE (a CONITEC inglesa), elas já custam o dobro para obter o mesmo “ano de vida ajustado pela qualidade“.

Conclui-se que, a cada novo medicamento incorporado, há uma perda coletiva de saúde: se a nova tecnologia gera por exemplo 2 “anos de vida com qualidade” (AVACs) a mais, ela acarreta a perda de 4 AVACs no sistema como um todo, porque o que se gasta na nova tecnologia faz falta em tratamentos mais baratos e mais eficazes. Isso demonstra que a tecnologia na área médica, diferentemente de em outras áreas, não diminui custos; ela só os faz aumentar! Na oncologia, o fenômeno inflacionário é ainda mais extraordinário: houve inflação de 800% entre o tratamento médio mensal para novas tecnologias oncológicas comparando-se o quinquênio que encerrou em 1999 e o que encerrou em 2019.

Saliente-se que o SUS inglês adota limiares de disposição a pagar explícitos de custo-efetividade para incorporação de tecnologias, a depender do tipo de agravo à saúde de que se trata. Limiares de disposição a pagar (ou limiares de custo-efetividade) são o limite que o sistema de saúde está disposto a pagar para obter um ganho em saúde. Pois bem, como se vinha de demonstrar, no NHS, cada nova tecnologia representa uma perda em saúde dentro do sistema. E isso só se agrava à medida que os limiares aumentam – o limiar geral do NHS é de trinta mil libras; o limiar de medicamentos de fim de vida (oncológicos) é de cinquenta mil libras; o para doenças raras vai até trezentas mil libras.  Se um juiz inglês deferisse uma tecnologia para doença rara (e ele não o faz, diga-se), ele daria dois anos de vida com qualidade ao autor da ação e comprometeria 40 anos de vida com qualidade de outros usuários do SUS inglês. O quadro abaixo  demonstra-o visualmente:

QALY na Grã Bretanha

Essa referência ao SUS britânico é um chamado à responsabilidade judicial. Se a jurisprudência brasileira continuar insistindo que o judiciário é uma via de incorporação de tecnologias paralela à via da CONITEC, que ao menos tenha os olhos voltados não apenas à eficácia/efetividade da tecnologia; por comando legal – e porque qualquer país sério o faz – deverá o juiz examinar também aos custos e o real valor terapêutico da tecnologia, ou seja, a sua relação de custo/efetividade. Do contrário, longe de produzir saúde, ou produzindo-a em medida restrita, muito possivelmente a sentença judicial estará privando de ganhos de saúde dezenas ou centenas de usuários do SUS sequer ouvidos no processo.

E o precedente Fux (sobre o CADE) fez outro alerta, ao dizer que “A intervenção judicial desproporcional no âmbito regulatório pode ensejar consequências negativas às iniciativas da Administração Pública”. E, de fato, a judicialização da saúde compromete significativamente a capacidade dos sistemas públicos de negociarem preços centralizadamente, ao criar um  mecanismo paralelo e pulverizado de acesso, em que o juiz ordena a disponibilização do medicamento em prazo curto (e não raro a realização do direito se concretiza pelo bloqueio de valores ao preço orçado em farmácias). Nesse cenário os gestores de saúde perdem poder de barganha perante os laboratórios. Afinal, o fornecedor da tecnologia em saúde, quando em mesa de negociação, sempre poderá rebater eventuais contrapropostas de preço do gestor público, com a sinalização de que há juiz disposto a deferir o pedido desimportante o preço. A não incorporação, enquanto não houver custo-efetividade, é a única arma do sistema de saúde para forçar o laboratório a precificar seu produto de acordo com seu real valor terapêutico. Essa é  a solução também do SUS inglês, que desde 2016 recusava a incorporação de remédio para fibrose cística. Foram necessários nada menos que quatro anos de negociação até que as partes chegassem a um consenso sobre o preço, e a tecnologia fosse disponibilizada no SUS da Inglaterra.

Então aí vai meu sonho de Natal, e utilizo como inspiração outra recente tese fixada pelo STF para a judicialização da saúde, a do tema 500 (ANVISA), que veio assim redigida:

A ausência de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.
É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos:
a) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);
b) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e
c) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.
STF. Plenário. RE 657718/MG, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgado em 22/5/2019 (repercussão geral) (Info 941).

Ali no tema 500 o STF respaldou atuação da ANVISA. Espero que o mesmo STF, agora no tema 6, não se esqueça da existência da CONITEC. Então lá vai a tese 500  convertida para a tese 6 e para uma realidade em que o juiz reconhece e dialoga com a CONITEC:

A ausência de incorporação na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (CONITEC) impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.
É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem incorporação, em caso de mora irrazoável da CONITEC em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto no art. 19-R da Lei 12401/2011), quando preenchidos três requisitos:
a) a existência de pedido de incorporação do medicamento no Brasil junto à CONITEC;
b) a incorporação do medicamento por renomadas agências de avaliação de tecnologias no exterior (NICE, CADTH, HAS), e obtenção por esses sistemas de saúde de preço  conforme o valor terapêutico, caso a incorporação fique condicionada à negociação de preços;
c) a inexistência de substituto terapêutico mais custo-efetivo, com registro no Brasil, atestada por NATJUS ou por perito versado em Medicina Baseada em Evidências (MBE).

Todos esses desejos não pretendem deixar nenhum brasileiro ao desamparo, não importa a raridade ou gravidade das doenças de que padeça. A tragédia pessoal e familiar de cada doente deve sim ser contemplada e mitigada pelo SUS. Este é o comando de universalidade consagrado pelo constituinte de 1988: que ninguém seja deixado para trás. Isso porém se obtém com um processo institucionalmente organizado e centralizado de incorporação de tecnologias, sujeito ao controle social – e naturalmente judicial, quando vícios nele houver. Assim, bem aplicado o orçamento da saúde, poder-se-á contemplar e tratar um universo muito maior de doentes e de doenças, mesmo as mais raras.

Tampouco aqui se afirma que o processo de ATS é um instrumento perfeito e acabado, e que uma conta matemática resolve todas as questões delicadíssimas de alocações de recursos em saúde. A Alta Autoridade em Saúde (a CONITEC francesa) admite que ao pensamento econômico se devem agregar considerações éticas e políticas. Uma vez conhecida e prestigiada a CONITEC, e se poderão discutir com mais transparência os limiares que ela adota, e se são social ou juridicamente aceitáveis, e se  suas decisões são formal e materialmente legítimas. Isso pressupõe, repito, reconhecer que a CONITEC existe e contemplá-la na judicialização da saúde. E prestigiá-la, em especial, na redação do tema 6 do STF.