Imagine que um grupo terrorista tenha sequestrado um empresário influente no país e feito a seguinte exigência ao governo: “ou vocês libertam os nossos líderes que estão presos ou executamos o refém. Vocês têm 48 horas para decidir”!
Esse cenário dramático poderia ser o roteiro de qualquer série eletrizante da Netflix, mas foi o pano de fundo de um caso real que ocorreu na Alemanha no final dos anos 1970. O grupo terrorista era a Fração do Exército Vermelho (RAF), e o empresário era o presidente da Federação Alemã dos Empregadores, Hanns-Martin Schleyer.
O governo alemão, liderado pelo chanceler Helmut Schmidt, estava empenhado em encontrar o cativeiro de Schleyer e libertar o refém, mas sinalizava para a imprensa que não iria ceder à pressão dos sequestradores.
Inconformado com a atitude do governo, o filho do empresário sequestrado interpôs uma queixa constitucional ao Tribunal Constitucional Federal (TCF), alegando que, ao não atender às exigências dos sequestradores, o Estado estava praticamente condenando seu pai à morte. Como o estado teria o dever de proteger a vida, o governo estaria obrigado a cumprir as exigências dos sequestradores, não podendo escolher uma linha de ação que, na prática, representaria o sacrifício da vida humana (ALEMANHA, 46 BVerfGE 16).
Esse caso levou o TCF a refinar a teoria do dever de tutela estatal, que estabelece que o estado é obrigado a adotar medidas adequadas e necessárias para garantir que os direitos fundamentais sejam devidamente protegidos e respeitados contra agressões de agentes públicos e privados.
A teoria do dever de tutela havia sido desenvolvida originalmente no caso Aborto I (ALEMANHA, 39 BVergGE 1), onde foi estabelecido que o estado tem um dever abrangente de adotar medidas para proteger a vida humana, seja proibindo a violação da vida pelo próprio estado, seja se posicionando de forma protetora e fomentadora contra a ameaças de terceiros (SCHWAB & MARTINS, 2006, p. 269).
Mesmo reconhecendo a existência de um dever abrangente de proteger a vida humana, o TCF confere uma margem de liberdade para a definição de que medidas devem ser adotadas pelo poder público, apenas exigindo que sejam suficientes, adequadas, eficientes e racionais. Assim, no caso Aborto II (ALEMANHA, 203 BVergGE 88), ficou decidido que o Estado deve adotar medidas normativas e fáticas suficientes para cumprir seu dever de tutela, sendo tarefa do legislador determinar o tipo e a extensão da proteção, vez que a Constituição apenas estabelece a proteção como meta, não detalhando a sua configuração. O legislador, contudo, deve respeitar a proibição de insuficiência, considerar os bens jurídicos contrapostos, adotar medidas suficientes para uma proteção adequada e eficiente e se basear em cuidadosas averiguações de fatos e avaliações racionalmente sustentáveis (SCHWAB & MARTINS, 2006, p. 269).
A teoria do dever de tutela pode funcionar como um parâmetro metanormativo para justificar o controle judicial das omissões estatais. Isso pode ser especialmente útil para definir o papel da judicialização em contexto pandêmico. Para as juízas e juízes brasileiros é importante ter uma bússola para orientar a análise das ações judiciais que questionam as medidas estatais tomadas no combate à pandemia, inclusive a decretação (ou não) do lockdown, entre outras.
Em princípio, o estado tem um dever abrangente de adotar medidas de tutela para combater a pandemia e proteger a vida humana. A inação do Estado pode ser controlada pelos tribunais tanto em caso de total omissão quanto em caso de proteção insuficiente, ou seja, quando a atuação estatal for inadequada, e ficar aquém do necessário para proteger eficientemente o direito à vida. Porém, os órgãos estatais competentes possuem uma ampla margem discricionária para avaliarem, valorarem e conformarem as medidas a serem adotadas, que somente podem ser revistas judicialmente em condições muito restritas.
Uma das condições exigidas para justificar a intervenção judicial consiste em demonstrar que o Poder Público não adotou quaisquer medidas de proteção, deixando as vidas completamente desprotegidas. Essas situações são bem raras, pois, em geral, quando a saúde pública está em risco, o Estado tende a adotar algumas medidas mínimas de proteção. Nesse caso, surge uma segunda possibilidade: demonstrar, de maneira conclusiva e fundamentada, que as medidas adotadas são totalmente inadequadas ou completamente insuficientes para proteger as vidas humanas ameaçadas.
Essa segunda condição ocorre com mais frequência, mas contém uma dificuldade argumentativa e probatória, uma vez que nem sempre é possível formar um juízo suficientemente seguro capaz de garantir que as medidas adotadas foram totalmente inapropriadas, sobretudo em um contexto marcado pela incerteza, ausência de consenso e alta complexidade.
Justamente por ser difícil formar um juízo suficientemente seguro em questões com um alto nível de complexidade, como são as medidas sanitárias de combate à pandemia, a margem de conformação dos órgãos públicos deve ser ampliada, inclusive para realizar testes, obter dados e construir modelos para orientar as ações futuras. Qualquer prognóstico, por enquanto, é incerto, pois as variáveis envolvidas ainda estão além dos limites da razão prática.
Na medida em que a curva de aprendizagem no combate à pandemia for evoluindo, será possível ter um juízo mais preciso sobre quais medidas são mais efetivas e quais não são. Também será possível verificar com mais segurança os excessos e as insuficiências das medidas adotadas. Contudo, no atual momento (início de 2021), ainda estamos tateando no escuro, não sendo possível estabelecer, com uma elevada margem de certeza, o que deve ser feito, nem em que medida e quando deve ser feito.
Outro aspecto relevante é que as medidas de combate à pandemia tendem a produzir efeitos colaterais indesejados, gerando impactos graves, profundos e duradouros em diversas áreas, tanto psicossociais quanto econômicas. Isso torna ainda mais relevante levar a sério o ônus político na tomada desse tipo de decisão, pois não se trata apenas de ponderar vida versus dinheiro. A equação é muito mais complexa, havendo muito mais em jogo do que simplesmente salvar empregos ou reduzir a curva de contaminação para evitar o colapso no sistema de saúde.
Mesmo reconhecendo que o poder público deve ter uma ampla margem de liberdade para definir que medidas serão tomadas, é preciso que as ações estatais sejam devidamente justificadas. A justificativa que se exige é apenas um juízo de plausibilidade quanto à adequação, suficiência, necessidade e efetividade das medidas. Ou seja, o que se exige é apenas um mínimo de racionalidade capaz de demonstrar que as medidas foram baseadas em uma averiguação cuidadosa dos fatos e avaliações racionalmente sustentáveis.
A justificativa nos moldes acima propostos também está conectada com os aspectos processuais e organizacionais de construção da solução adotada. As decisões estatais precisam ser tomadas dentro de um processo plural e participativo, em que o maior número de pessoas e setores afetados possa contribuir e ter os seus interesses levados em conta. Por isso, o método de tomada de decisão administrativa também pode servir de parâmetro para justificar o aumento ou a redução da intensidade do controle judicial.
Quando o poder público demonstra um esforço considerável para elaborar uma solução que proteja da melhor forma possível os interesses em jogo, pode-se inferir que há uma pretensão (e presunção) de atuação satisfatória e responsável. Esse esforço pode ser comprovado com a demonstração de que foram realizados estudos de campo, análises de dados, manifestação de experts, reuniões temáticas e pluriparticipativas, formação de comissões técnicas, audiências públicas para ouvir as pessoas e setores afetados, transparência e assim por diante.
Além disso, no caso específico do combate à COVID-19, os órgãos públicos podem demonstrar o esforço na superação do problema por meio da comprovação de que estão sendo canalizados recursos orçamentários para a contratação de pessoal, compra de insumos, ampliação da rede de serviço público, campanhas de conscientização etc. Quando tudo isso é acompanhado por um sistema eficiente de accountability, programas de integridade (compliance) e de boa governança, a atuação judicial deve ser ainda mais autocontida.
A lógica, portanto, é bem simples: em contexto de pandemia, com alto grau de incerteza e de complexidade, o Poder Judiciário deveria intervir o mínimo possível e apenas nos casos em que a resposta estatal foi comprovadamente equivocada. Não sendo possível constatar, de modo conclusivo, a falha ou a omissão administrativa, a intervenção judicial tende mais a prejudicar o bom planejamento e a execução dos programas de gestão do que a contribuir para a superação do problema.
Não há como estabelecer um rol exaustivo de falhas que poderiam justificar a judicialização. Contudo, é possível conjecturar alguns fatores que indicam uma proteção deficitária. Por exemplo, tomar decisões com base em opiniões claramente dissociadas do conhecimento científico consolidado ou com base exclusivamente em critérios políticos sem lastro sanitário; deixar propositadamente de seguir as orientações baseadas em evidências para se guiar por ideias fantasiosas ou que sequer passam no teste da plausibilidade extrema; reduzir injustificadamente o orçamento em saúde ou mais especificamente os recursos destinados ao combate à pandemia; curvar-se a pressões de categorias específicas sem justificação; adotar medidas que firam a isonomia (por exemplo, fechar lojas de roupas e não fechar de calçados ou proibir a circulação de Uber, mas não proibir de táxi); proibir o funcionamento de atividades absolutamente necessárias e assim por diante.
Como se vê, o ponto central é perceber que a atuação judicial deveria ser apenas a ultima ratio e, ainda assim, em situações absolutamente fora da curva. Em um contexto pandêmico, o princípio da deferência deve ser ainda mais prestigiado, conferindo uma maior margem de manobra aos gestores que demonstrem estar verdadeiramente empenhados em superar o problema da melhor forma possível. Expressões como subsidiariedade, atuação excepcional, em último caso, que sempre estão presentes nos precedentes do Supremo Tribunal Federal quando analisa o papel do Judiciário em demandas de saúde não devem ser tratadas como palavras ao vento.
Voltando ao caso Schleyer, que comentamos no início deste texto, o Tribunal Constitucional Federal indeferiu o pedido do filho do empresário, sob o fundamento de que, em situações trágicas como aquela, marcada pela incerteza, caberia às autoridades da “linha de frente”, com base em suas respectivas competências e ponderando adequadamente os valores em conflito, tomar as medidas adequadas e necessárias, dentro de uma margem de discricionariedade e conveniência. Se o governo fosse sempre obrigado a ceder aos apelos dos terroristas toda vez que alguém fosse ameaçado, o número de ataques aumentaria consideravelmente, gerando uma violação ainda maior do direito à vida. Assim, os juízes constitucionais não estariam em condições de ordenar às autoridades estatais competentes que adotem qualquer medida especial. A responsabilidade para decidir que passos devem ser dados para o desempenho da obrigação estatal de proteger a vida é, em primeira linha, do governo.
Trazendo essa mesma ideia para o controle judicial das medidas de combate à pandemia, pode-se dizer que o Poder Judiciário brasileiro não está em posição de ordenar às autoridades sanitárias competentes o que fazer, nem o que deixar de fazer. São os órgãos estatais, dentro de sua esfera de competência e seguindo a sua responsabilidade técnica e política, que devem assumir o ônus de suas decisões. Ressalvando-se situações excepcionais, em que os órgãos competentes claramente se omitem ou adotam medidas irracionais e notoriamente insuficientes, recomenda-se a autocontenção judicial e a deferência às soluções tomadas, de modo justificado, pelos órgãos competentes.
PS. A título de curiosidade, o caso Schleyer teve um desfechado dramático. Durante as negociações, outros terroristas palestinos sequestraram um avião da Lufthansa, declarando apoio à RAF e exigindo a libertação imediatamente dos prisioneiros. Apesar de toda a pressão, o governo alemão não cedeu. No dia 18 de outubro de 1977, a polícia alemã conseguiu neutralizar os sequestradores do avião e libertaram os 91 reféns com vida. Na mesma noite, três líderes da RAF que estavam presos se suicidaram na Alemanha. Um dia depois, o corpo de Hanns-Martin Schleyer foi encontrado no porta-malas de um carro abandonado na fronteira da Alemanha com a França. O empresário fora executado com um tiro na nuca.
Referências:
MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2018
MICHEL, Lothar & MORLOK, Martin. Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2016
SCHWAB, Jürgen & MARTINS, Leonardo (org.). Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006
SARMENTO, Daniel. Os Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006
Imagem do post: reprodução de Banksy
Pelo post scriptum podemos concluir que o indeferimento do pedido do filho do empresário pelo Tribunal Constitucional Alemão, em que pese a construção teórica do dever de tutela e controle judicial, ao fim e ao cabo, não foi correta tendo em vista o desfecho desastroso de tudo. Isso é claro hoje, anos depois do ocorrido. Neste atual cenário de pandemia, alguma eventual inação do Judiciário frente às faltas do Executivo será tida por errônea no futuro.