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Gato na caixa

Fabiano de Moraes

O gato de Schrödinger e o rol de procedimentos em saúde

Erwin Schrödinger (1887 – 1961), filho único de um rica família de Viena, foi uma das mentes brilhantes que no início do século XX conceberam teorias que revolucionaram a ciência e, ele especificamente, ajudou a construir a base para a mecânica quântica. Foi premiado, juntamente com Paul Dirac, com o Prêmio Nobel de Física em 1933 devido à equação de onda que leva seu nome.

Para além do mundo científico se tornou mais conhecido pela elaboração, em 1935, de um experimento mental que se tornou pop: o “gato de Schrödinger”.

Dois exemplos recentes em que foi mencionado ocorreram em séries bastante populares e fizeram a alegria dos aficcionados por ciência: Sheldon Cooper cita o experimento para Penny ao explicar sua teoria se seria bom ou ruim ela sair com Leonard em “The Big Bang Theory” (temporada 1, episódio 17) e H. G. Tannhaus descrevendo a existência de realidades paralelas na cultuada “Dark” (temporada 3, episódio 7).

Esse clássico modelo mental foi criado para se contrapor a interpretação de Copenhagen1a interpretação de Copenhagen diz que, quando observado, um objeto é forçado a assumir um estado ou outro e demonstrar que o que a superposição quântica pressupõe – que um objeto pode ocupar dois lugares ao mesmo tempo – não acontece no mundo físico.

Papel e caneta na mão, vamos à receita.

Precisamos de um gato; uma caixa grande com tampa; material com partículas radioativas; um contador Geiger; um martelo; e um frasco de veneno (cianeto). Colocamos todos os ingredientes dentro da caixa, de forma que o contador, ao identificar uma partícula radioativa, possa acionar o martelo e quebrar o frasco, e deixamos a caixa lacrada por uma hora – tempo suficiente para que o material radioativo possa decair ou que também nada aconteça. O material radioativo permite uma chance exata de 50/50 de que, em uma hora, uma única partícula seja emitida, o mecanismo do contador acione o martelo e libere o veneno, matando o gato.

Gato de Schrödinger

Quem está fora da caixa não sabe o que acontece antes de olhar dentro e até lá, pela mecânica quântica, o gato está morto E vivo. Ao mesmo tempo!

Ainda que você tenha todos os ingredientes em sua casa, devo deixar claro que não deve conduzir o experimento e usar apenas a imaginação uma vez que é impossível de ocorrer fisicamente, sendo válido apenas na mecânica quântica. Eu e seu gato agradecemos.

Mas qual a relação desse experimento com o rol de procedimentos em saúde, elaborado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e de cobertura mínima obrigatória pelas operadoras de planos de saúde?

Na verdade nenhuma, mas pode nos ajudar a solucionar uma das maiores causas de judicialização da saúde suplementar: a negativa de cobertura de procedimentos, pelas operadoras de planos privados de saúde, devido a não previsão no rol. Ou, de forma mais direta, definir se o rol é taxativo ou exemplificativo.

O rol de procedimentos e sua atualização

O rol de procedimentos e eventos em saúde deve ser garantido pelas operadoras de plano de saúde, de acordo com a segmentação do plano contratado, contemplando os procedimentos considerados indispensáveis ao diagnóstico, tratamento e acompanhamento de doenças.

A forma como o rol é construído já foi detalhada em um post da Renata Farah, aqui mesmo no blog, e é estabelecida pela Resolução Normativa nº 439, de 3 de dezembro de 2018, que dispõe sobre o processo de atualização periódica do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, um procedimento longo, que leva geralmente dois anos.

A atual cobertura obrigatória dos beneficiários de planos, prevista na Resolução Normativa nº 428/2017, entrou em vigor em 2 de janeiro de 2018 e, ultrapassando os limites anteriores, completará três anos, antes do término do atual processo de atualização.

Porém, um dos efeitos da pandemia foi demonstrar que o longo procedimento de atualização do rol não é mais compatível com o mundo atual em que tecnologias em saúde surgem, e outras se tornam obsoletas, muito rapidamente. Tanto que a ANS se viu obrigada a realizar atualizações extraordinárias do rol para incorporação dos exames que auxiliam no diagnóstico da Covid-19.

O processo de atualização em curso, provavelmente o último no atual modelo, está perto de sua fase final. A Consulta Pública nº 81, que teve seu término no dia 21 de novembro de 2020, recebeu 26.141 contribuições para o novo rol, um aumento de mais de 400% em relação à revisão de 2017, o que também é um sinal claro da necessidade de termos mecanismos mais ágeis de atualização.

Uma nova metodologia de atualização do Rol

Em reunião técnica realizada pela ANS no final de novembro de 2020, com integrantes da Câmara de Saúde Suplementar2vídeo disponível no canal da ANS no YouTube, foi apresentada pela Agência uma proposta de um novo modelo de atualização, visando a agilizar o processo de incorporação de novas tecnologias.

Pelos termos dessa proposta a atualização do rol será realizada semestralmente, sendo que o processo de submissão de pedidos de incorporação, bem como a análise de elegibilidade e análise técnica, serão de modo contínuo. Por sua vez as atividades relacionadas a tomada de decisão – nota técnica de recomendação preliminar, consulta pública, aprovação da recomendação final e a própria atualização do rol – ocorrerão ao final de cada ciclo de seis meses.

No modelo atual todas as demandas entram em um ciclo – longo – de atualização e são decididas ao final dele; pelo novo formato apresentado algumas demandas poderão ser concluídas até o próximo ciclo – curto – de atualização do rol e outras, cujo processo de análise é mais complexo, poderão demorar um período maior até sua inclusão na fase de tomada de decisão.

Essa desvinculação faz com que cada proposta de incorporação siga seu próprio rumo. Certamente o novo modelo pode agilizar o processo de incorporação ao rol, mas também é preciso que sejam estabelecidos critérios de priorização e um tempo máximo, não muito longo, para o processo de decisão, mesmo para tecnologias mais complexas.

Um “rol de procedimentos reverso”

O que está no rol é de obrigatória cobertura nos contratos de planos de saúde novos (contratados após a vigência da Lei nº 9.656/98) ou adaptados. Isso é inquestionável. Então mais nos interessa o que não está no rol e os motivos que ensejaram a não inclusão.

Assim, para maior efetividade do próprio rol é necessária a transparência dos motivos que ensejaram uma negativa de inclusão a procedimento ou evento em saúde. Quase como um “anti rol” ou um “rol de procedimentos reverso”, onde se possa facilmente consultar – de maneira clara e simples – as razões que a ANS entendeu justificáveis para exclusão de cobertura.

Quem não acompanha de forma mais próxima as atualizações do rol desconhece os motivos de uma exclusão. As causas de não incorporação podem ser de diferentes ordens e o motivo pode não ser único. Existência de tecnologia alternativa melhor incorporada, inexistência de capacidade técnica instalada para cobertura, avaliação econômica negativa, alto impacto orçamentário e ausência de comprovação científica são apenas alguns exemplos que podem ensejar a negativa de incorporação.

Embora atualmente seja relativamente simples verificar a cobertura mínima dos planos de saúde regulados, os motivos para uma não incorporação estão longe de ter a mesma visibilidade. Ter essas informações, de forma facilitada, mais que um direito dos consumidores é de interesse dos demais atores do sistema de saúde suplementar e um dever da ANS.

Ainda que algum esforço tenha sido realizado nesse sentido, como a página de pareceres técnicos sobre cobertura assistencial, com foco no Poder Judiciário, ainda é possível avançar – e muito – na transparência dos motivos de não incorporação de procedimentos em saúde.

Nesse aspecto a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) faz um trabalho que pode servir de exemplo à ANS ao apresentar os relatórios para sociedade, elaborados numa linguagem mais simples, de fácil compreensão, para estimular a participação da sociedade no processo de avaliação de tecnologias em saúde; e os relatórios de recomendações de tecnologia avaliada, sempre de fácil acesso na internet, ainda que a recomendação final tenha sido pela não incorporação ao SUS.

Voltando ao gato de Schrödinger

Agora sim, após essas explicações sobre o rol, suas alterações e atualizações, creio que podemos retornar ao laboratório para verificar como o modelo mental de Schrödinger pode nos ajudar a entender o rol e sua taxatividade (ou não).

Para nosso novo experimento vamos substituir alguns dos elementos e algumas regras.

A caixa é o sistema de saúde suplementar. Nosso gato é o rol de procedimentos, que pode ser visto como taxativo (vivo) ou exemplificativo (morto). A substância radioativa é a própria atuação da ANS para manter o rol atualizado. Diferente do experimento de Schrödinger, em que a substância apresentava uma instabilidade com chance de 50/50 de o frasco de veneno ser quebrado, aqui é a atuação da Autarquia que determina o acionamento do mecanismo, ou melhor dizendo, de como enxergaremos o rol ao abrir a caixa.

Mas, afinal, o rol é taxativo ou exemplificativo? Antes de abrir a caixa ele é taxativo E exemplificativo, ao mesmo tempo.

Não há certeza sem abrir a caixa e observar – mais que o “gato”- o comportamento da “substância radioativa”. O rol deve e precisa ser taxativo3Vide o texto da Carol sobre o tema: Entender que o rol da ANS é exemplificativo gera mais problemas do que soluções, para que o sistema funcione de uma forma adequada e mantenha o seu necessário equilíbrio, mas pode e será exemplificativo se o órgão regulador não cumpriu com seu papel.

Quanto mais ágil, eficiente e transparente for a atuação da ANS nos processos de incorporação e atualização do rol, maior será a chance de o observador enxergar o rol como taxativo.

Assim, mais que a lei – ou eventual decisão judicial em recurso repetitivo – o que definirá o rol como exemplificativo ou taxativo é a atuação da Autarquia. Fundamentação deficiente ou pouco clara ao rejeitar uma incorporação, demora excessiva para analisar uma tecnologia e pouca transparência nessas informações tornam a substância mais instável e com maior chance de, ao abrir a caixa, o observador encontrar um rol exemplificativo.

Por fim, nunca podemos esquecer que ao olhar dentro da caixa o ideal é que a atuação da ANS nos permita, pelo menos na maioria da vezes, encontrar o “gato vivo”, para que seja possível manter a sustentabilidade econômica da própria “caixa”.

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[…] de dois em dois anos, como o Fabiano já apontou, em artigo publicado anteriormente no blog. Assim, muitas tecnologias eficazes e custo-efetivas acabavam demorando para serem incluídas no […]