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Nem mocinhos, nem bandidos. Quem é quem na saúde suplementar?

Dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) informam que aproximadamente 25% da população brasileira possui algum tipo de plano de saúde.

Grande parte dos usuários são vinculados aos planos coletivos ou empresariais e possuem o benefício em decorrência de vínculo empregatício, o que os torna extremamente vulneráveis às crises econômicas com aumento nos índices de desemprego. Como a ANS não obriga as operadoras de saúde a oferecerem contratos individuais/familiares, muitas optaram por comercializar somente opções coletivas empresariais ou por adesão.

Trata-se de uma decisão estratégica. Isso porque a ANS impõe e limita os índices de reajuste anual dos contratos individuais/familiares (cuja média, desde o ano 2000, é de 9%) e não permite a rescisão imotivada do plano, a não ser em caso de inadimplência ou fraude. Logo, esse produto se tornou menos interessante – financeiramente – para as operadoras.

Os contratos coletivos, de outro lado, podem ser reajustados de acordo com a sinistralidade, neles há paridade entre o uso e o pagamento e podem ser rescindidos imotivadamente após os primeiros 12 (doze) meses de vigência.

Outro formato de produto oferecido pelas operadoras são os planos com coparticipação que podem chegar a 50% do total de planos vendidos no país. É uma opção de contrato com mensalidade mais acessível, e, em contrapartida, torna-se economicamente vantajosa à operadora pois há o financiamento parcial pelo usuário.

Esse cenário, de planos em sua maioria coletivos, de modo que o usuário não consegue mantê-lo permanentemente após o término de vínculo trabalhista, somado aos demais aspectos de uma crise financeira e social, reflete diretamente no aumento da demanda no SUS. Além das limitações em relação a cada tipo de plano escolhido, contratar um plano de saúde não significa direito a todo e qualquer tratamento.

Ao contratarmos um plano/seguro de saúde somos apresentados a um senhor chamado ROL e à sua amiga DUT. São eles que ditam as regras de cobertura do que pode, para quem, quanto e quando. 

O Rol é a referência básica, a lista das coberturas mínimas obrigatórias e excepcionalidades de assistência que deve ser oferecida pelos planos privados contratados a partir de 02 de janeiro de 1999 ou regulamentados de acordo com a Lei dos planos de saúde nº 9.656/1998.

O ciclo de atualização do Rol deveria acontecer a cada dois anos. Todavia, a última atualização feita pela Agência reguladora foi a RN 428/2017, com início de vigência em 02 de janeiro de 2018. Depois disso, nada mais!

O procedimento do ciclo da atualização se inicia com um cronograma e a apresentação das propostas de mudanças através de formulário eletrônico. A proposta deve conter um Parecer Técnico Científico (PTC) ou Revisão Sistemática sobre a eficácia, efetividade, acurácia e segurança da tecnologia, estudo de Avaliação Econômica em Saúde (AES) e Análise de Impacto Orçamentário (AIO). Pessoas físicas e jurídicas podem enviar propostas de atualização. Haverá a análise das propostas elegíveis nos termos da RN 439/2018 e então serão submetidas à consulta pública.

Fluxo de atualização do Rol da ANS
Fonte ANS

O ciclo de atualização é semelhante ao que temos nas avaliações e recomendações de incorporação pela CONITEC na saúde pública.

Os critérios de analise são técnicos e econômicos. A existência do Rol como ponto de partida é fundamental para regulação do sistema. Porém, a demora na atualização do Rol, especialmente a mais recente – 3 anos – tem impactos negativos apenas para um lado, o do consumidor, que se vê privado do acesso a novas tecnologias e oportunidades de tratamentos mais eficazes na busca da cura.

À operadora de saúde cabe apenas seguir, de forma literal, as determinações do Rol e das DUTs. Já o usuário não tem poder de negociação ou voz ativa na relação.

Os produtos oferecidos pelas operadoras que permitem uma opção/escolha pelo consumidor se restringem à área de abrangência, atendimento ambulatorial, hospitalar, enfermaria, apartamento, remoção aérea, livre escolha e reembolso.

O rol não permite negociação.

Nesse contexto, será que não deveriam ser revistas algumas condutas da ANS, especialmente quanto à forma e ao prazo de atualização do Rol?

A limitação deve existir, mas as regras devem ser claras e as atualizações mais dinâmicas, para se adequarem às demandas em saúde sem, contudo, deixar de observar os critérios de segurança, eficácia e impacto econômico.

Durante os três anos de espera pelo novo Rol, muitas tecnologias em saúde foram aprovadas pela Anvisa e estão disponíveis como tratamento aos pacientes.

Respeito ao usuário e transparência na relação contratual são medidas imperiosas. A transparência é necessária para que, de forma clara, o impacto orçamentário da incorporação de novas tecnologias na cobertura mínima obrigatória esteja dentro da previsibilidade financeira das operadoras.

Mas como são feitos os cálculos atuariais e de previsibilidade? Lembramos que 80% dos contratos de saúde privados são empresariais ou coletivos, aqueles em que o reajuste não é limitado por lei e é aplicado anualmente de acordo com a sinistralidade. Quanto maior a utilização, maior o reajuste. Ainda, temos os planos coparticipativos, que auxiliam também o planejamento e a manutenção financeira das operadoras.

Outros fatores que devem ser considerados pela Agência e principalmente pelas operadoras são as alternativas terapêuticas de uma forma global e a longo prazo. Por exemplo, o custo financeiro de uma cirurgia a céu aberto x cirurgia por vídeo. Esta tecnologia pode ser mais cara se analisada individualmente, mas ao ampliarmos o cenário e considerarmos não apenas o valor do ato cirúrgico, mas também os fatores como a diminuição dos riscos de infecção, menor tempo de recuperação e menos dias de internação hospitalar, a relação de custo se altera. Muitas vezes temos um custo total reduzido para a operadora e maior segurança para o paciente.

Há diversas situações que envolvem pedidos médicos justificados para utilização de tratamentos ou tecnologias que são constantemente negados pelas operadoras sob a alegação de “ausência de previsão no Rol da ANS”.

Quanto tempo mais será necessário esperar até que se repensem os conceitos, os números, os reajustes, os benefícios e a segurança de novos tratamentos de saúde?

A análise da ANS não pode ser engessada e morosa. Deve haver mais diálogo, transparência dos números, maior reflexão e dinamismo para a atualização do Rol. Principalmente por termos um pequeno leque de opções de planos a serem contratados, sem possibilidade de aquisição de opcionais de cobertura fora do Rol, por exemplo, mesmo que com a incidência de coparticipação se fosse o caso.

Quantas tecnologias foram aprovadas e registradas pela ANVISA desde 2017, quando o último Rol foi aprovado? Quantos tratamentos de saúde poderiam ter sido oferecidos aos usuários se não fosse a forma de atualização aplicada pela agência e o excesso de prazo, considerando que em janeiro de 2020 deveria ter sido publicado o novo Rol?

Além da incorporação no Rol, a limitação de tratamentos autorizados é algo a ser pensado também. Qual a razão técnica para limite quantitativo de tratamento?

Explico. No início da regulamentação dos planos de saúde, havia uma polêmica limitação de dias de internamento hospitalar e em UTI. Quem acabou por decidir a controvérsia não foi a ANS e nem os planos de saúde, mas sim o STJ com a edição da Súmula 302: “É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado”.

Havia também limite para os Procedimentos de Alta Complexidade (PAC). Imaginem um paciente em tratamento de câncer que deve fazer exames de imagem para controle da evolução do tumor, mas seu plano de saúde autorizava apenas uma tomografia por ano para cada CID. Hoje, para os planos novos ou regulamentados, isso mudou. Permanece a limitação apenas para os antigos.

E as doenças raras, um tema atual, sensível, polêmico e caro? Se o tratamento não está no Rol ou na DUT e não há outra opção terapêutica para a doença, o que se faz? O paciente com doença rara, beneficiário do plano de saúde, só poderá ser atendido pelo SUS, mesmo que no contrato com o plano não tenha exclusão para tratamento de doenças raras?

Outra regra da ANS que requer maiores explicações refere-se às terapias de reabilitação. As sessões de fisioterapia têm cobertura ilimitada. Contudo, o mesmo não vale para os tratamentos de psicologia, fonoaudiologia e terapia ocupacional que têm limitação anual do número de sessões.

Qual a lógica aplicada ao permitir o acesso amplo ao tratamento da função motora e não da saúde mental? Casos de crianças e idosos com necessidade de atendimento e reabilitação ficam de fora ou recebem um tratamento parcial? Recuperação do joelho pode sempre, mas as habilidades manuais para cuidados da vida diária perdidas por um idoso após AVC, que dependeria de terapia ocupacional, pode só um pouco?

Lembramos novamente a questão econômica que deve ser considerada, como já foi dito, mas autorizar um tratamento e parar no meio pois o número de sessões anuais foi excedido faz sentido? Qual a razoabilidade e a justificativa dessa regra?

Em relação ao Rol, o cabo de guerra entre os beneficiários e as operadoras logo terá um norte a ser seguido. A recente afetação do REsp 1.867.027/RJ vai decidir sobre a divergência entre as 3° e 4° Turmas do STJ com relação ao eterno dilema: O Rol da ANS é exemplificativo ou taxativo? Caberá ao judiciário definir algo técnico, de que a própria agência deveria ter se incumbido.

Certamente essa decisão, como também a demora na atualização do Rol da ANS impactarão no aumento da demanda do SUS.

E por falar em SUS, muitas ideias do modelo público podem ser utilizadas na saúde privada. Cuidado e investimento em atenção básica, prevenção e médico da família deveriam ser objeto de interesse das operadoras de saúde. Mas o que vemos na conduta dos beneficiários é a busca pelas especialidades. Não basta ser ortopedista, tem que ser o expert em menisco do joelho esquerdo. 

Mais uma vez o diálogo e muita troca de informações entre as partes para implementar a ideia da atenção básica seria fundamental e benéfica para os dois lados, tanto para a saúde do usuário, quanto para as finanças da operadora.

Um pulinho no direito comparado para auxiliar a reflexão. Muitos países com sistemas de saúde universal como o nosso permitem que empresas privadas ofereçam serviços de saúde suplementares. Diferentemente do Brasil, na Espanha, no Reino Unido, na França, em Portugal e no Canada, é permitida a comercialização da saúde privada apenas para o que não é comtemplado na política pública.

Alemanha, Austrália, Chile e Colômbia se utilizam de um Seguro do Estado, custeado por impostos e contribuições sociais, com abrangência de quase toda a população. Aqui se oferece a cobertura mínima e há opções de aquisição de atendimento adicionais.

E aqui, os sistemas público e privado caminham de forma paralela ou transversal? Não podemos pensar a saúde de forma tão isolada.

Nem mocinho, nem bandido. Apenas partes opostas em uma relação que pode se tornar mais pacífica e benéfica para os dois lados. A atualização do Rol com novas tecnologias não pode ser vista apenas como custo para as operadoras, mas principalmente como forma de acesso do paciente ao tratamento mais seguro, eficaz e com maiores chances de cura. Isso, a longo prazo, pode refletir em diminuição de despesas para os planos de saúde. Tratamentos mais eficazes, maiores chances de cura e menor utilização pelos beneficiários.

É o momento de recalcularmos a rota, com harmonia no diálogo, repensando as condutas, primando pela eficácia da prestação dos tratamentos, respeitando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro sem esquecer do principal: a atenção e o cuidado com a saúde!

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O post do comprimido de hoje nos enche de alegria e de orgulho. A autora, dona de um coração e de um bom humor incomparáveis, cuida de tudo e de todos e possui conhecimento e experiência admiráveis na área do direito à saúde, Renata Farah, advogada e presidente da Comissão de Direito à Saúde da OAB/PR.