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Fabiano de Moraes

Androides, testes sorológicos para COVID-19 e os planos de saúde

Los Angeles, novembro de 2019. Uma grande corporação é responsável pelo desenvolvimento de androides – clones denominados replicantes – semelhantes ao ser humano, para trabalhar como escravos em colônias fora do planeta. Alguns deles, da última geração (Nexus 6), conseguem retornar à Terra na busca de respostas para longevidade. A  polícia busca um ex-agente policial, que já trabalhou como Blade Runner, para que os localize e os “aposente”.

Wuhan, dezembro de 2019. Surgem os primeiros relatos da transmissão de um novo vírus em seres humanos, posteriormente identificado como SARS-CoV-2, facilmente transmissível, causador de uma síndrome respiratória aguda grave e com alto de índice de mortalidade para uma significativa parcela dos contaminados. Em poucos meses se espalhou pelo mundo, provocando a morte de milhares e alterando a rotina de vida em todos os países, uma vez que o distanciamento social foi identificado como a melhor forma de prevenção enquanto não há uma vacina disponível.

Em um dos casos, encontramos o enredo básico de Blade Runner, o Caçador de Androides, filme de 1982, baseado na obra Androides sonham com ovelhas elétricas? de Philip K. Dick. O outro caso certamente poderia ser um roteiro de filme catástrofe, sobre epidemias que se espalham rapidamente pelo mundo, mas em que acompanhamos a jornada de um herói (provavelmente um cientista menosprezado por seus superiores e com problemas de relacionamentos com seus colegas), que rapidamente consegue impedir uma tragédia maior. Infelizmente, não temos esse herói e nem se trata de uma ficção.

Mas o que têm em comum o cultuado filme de Ridley Scott e a atual pandemia da COVID-19 (Coronavirus disease 2019), além de uma simples coincidência temporal em relação à história? A importância da realização de testagem.

O teste de empatia Voight-Kampff é utilizado por Blade Runners para identificar possíveis replicantes. Como são cópias perfeitas de um ser humano, o teste serve para identificar a ausência de reações empáticas, monitorando respostas fisiológicas involuntárias, como a dilatação da pupila e o tempo de reação a determinadas perguntas.

Em vários pontos do livro e do filme, a precisão do teste ficcional é colocada sob suspeita. Primeiro, necessita de um aplicador com experiência para reconhecer o padrão de reações às perguntas formuladas (tanto que é aplicado somente por Blade Runners). E, embora considerado um bom teste, há riscos de ocorrerem falsos positivos (determinadas psicopatias poderiam afetar as reações empáticas) ou falsos negativos (replicantes com implantes de memória, que desconhecem sua natureza e necessitam de um tempo muito maior para identificação). Um teste mal aplicado poderia levar à não identificação de um replicante ou a que um ser humano fosse equivocadamente “aposentado”.

Rick Deckard (Harrison Ford) preparado para aplicar o teste de empatia Voight-Kampff

Em relação aos testes para identificação da COVID-19 pairam dúvidas idênticas. Qual a sua confiabilidade? Quando devem ser realizados? E, por fim, devem ser eles objeto de cobertura pelos planos de saúde?

Para tentar chegar à uma conclusão da primeira pegunta, como premissa, temos que ter claros pelo menos três conceitos, que ajudam a definir a confiabilidade de um teste:

  1. sensibilidade: a probabilidade de resultado positivo em relação aos que contraíram a doença (quanto maior a sensibilidade, menor a chance de termos falsos negativos);
  2. especificidade: a probabilidade de resultado negativo nos não contaminados (quanto maior a especificidade, menor a chance de termos falsos positivos); e
  3. acurácia: a probabilidade do teste fornecer resultados corretos para a finalidade a que se destina.

Assim como na ficção, resultados equivocados podem ter consequências indesejadas. Resultados de falsos positivos podem levar à uma quarentena desnecessária e a tratamentos inadequados. Resultados de falsos negativos podem levar à disseminação involuntária do vírus.

Para analisar os tipos de testes para a COVID-19, podemos dividi-los em dois grandes grupos:

  1. através da detecção direta do material genético, sendo o mais conhecido e utilizado o RT-PCR, em que se identifica a presença do vírus SARS-CoV-2 diretamente; e
  2.  pela detecção indireta de anticorpos (os denominados testes sorológicos).

RT – PCR

O RT-PCR, sigla para transcrição reversa seguida de reação em cadeia de polimerase (do inglês reverse transcription polymerase chain reaction), é uma ferramenta antiga1método laboratorial usado desde 1983 em que é utilizada a transcrição reversa para transformar o RNA de um vírus em DNA complementar, que serve para identificar uma doença nova e vem sendo considerado o de melhor acurácia – por isso, é considerado o padrão-ouro na testagem da COVID.

Há virtualmente 100% de certeza na identificação do SARS-CoV-2, devido à sua altíssima especificidade, eliminando assim a chance de falsos positivos.

No que diz respeito à sua sensibilidade, existe uma variabilidade grande, especialmente em considerando o dia da coleta em relação à data de início dos sintomas. Calcula-se que a sensibilidade máxima ocorre entre o terceiro e o quinto dia a partir do início dos sintomas da doença (acima de 90%, chegando a 98% no quarto dia).

Além da janela temporal – que causa resultados inferiores especialmente após o 14º dia – também ocorre uma variação da sensibilidade relacionada à qualidade da coleta da amostra – através de swab (cotonete) de nasofaringe (nariz) ou orofaringe (garganta).

Testes sorológicos

A infecção pelo SARS-CoV-2 desperta uma resposta imunológica no organismo que promove a produção de anticorpos (Imunoglobina – Ig) de diversas classes (A, D, E, M, G), cuja função primária é auxiliar na neutralização e no controle da agressão do patógeno. Sua detecção auxilia no diagnóstico da doença.

Assim, é possível detectar anticorpos do tipo IgA, IgM ou IgG e também antígenos virais, que podem indicar, dependendo das características clínicas do paciente, exposição ao novo coronavírus.

Comparando com o RT-PCR, os testes sorológicos possuem menor acurácia devido a três fatores:

  1. janela sorológica ou imunológica (algumas pessoas mesmo tendo contato com o vírus podem ter uma resposta imunológica pequena);
  2. reações não reagentes em indivíduos infectados (resultando em falso negativo); e
  3. testagem cruzada com outros patógenos ou doenças auto-imunes que produzem anticorpos semelhantes (resultando em falso positivo).

A maioria dos pacientes infectados que efetivamente necessitam de tratamento hospitalar terão alguma manifestação clínica até o 7° dia, período em que o RT-PCR ainda está em sua performance máxima.

Os testes sorológicos, nesse período inicial da doença, apresentam baixa sensibilidade (abaixo de 40%), com altíssima probabilidade de falsos negativos, uma vez que o organismo ainda não produziu anticorpos suficientemente. Entretanto, sua performance melhora com o decorrer dos dias, atingindo índices especialmente melhores após completada a segunda semana.

Aqui, nos testes sorológicos, quase que como para separar o joio do trigo, é preciso fazer um distinção entre os métodos de análise. Devemos fazer a diferenciação dos testes sorológicos clássicos e os chamados testes rápidos (que utilizam uma metodologia de análise chamada imunocromatografia de fluxo lateral).

Os testes rápidos se disseminaram pelo Brasil, com a permissão da Anvisa para que sejam realizados diretamente ao público em farmácias e drogarias. Além de ter uma acurácia menor, a leitura da fita reagente é de relativo grau de complexidade e necessita de profissional de saúde capacitado e eficientemente treinado para que o resultado seja o mais próximo da realidade.

Embora tenham grande relevância para inquéritos epidemiológicos, o que infelizmente vem sendo pouco utilizado no Brasil, muito em razão de uma ausência de coordenação do Ministério da Saúde, acabam sendo de pouca utilidade para o uso individual, apesar do incentivo dado pela Anvisa para que sejam encontrados, mediante um valor considerável, em qualquer esquina.

Soma-se a isso a necessidade de que ocorra uma melhor orientação das pessoas no pré e no pós testagem, especialmente em relação à significativa possibilidade de falsos negativos nesse tipo de teste.

Mais que uma mera curiosidade, muitas vezes se faz o teste rápido na ilusão de que, detectado o anticorpo, se tenha um “passe livre” ou um “passaporte imunológico”. Ainda que o resultado seja correto, não há uma certeza científica de que se estará imune a uma nova infecção, nem por quanto tempo supostamente se estará protegido. Grande parte das questões que envolvem a COVID-19 ainda estão cobertas pelo manto da imprecisão e mudam a cada dia.

Assim, para fins de uma correta análise, deve-se distinguir os testes rápidos dos demais testes sorológicos (sendo que essa confusão existe inclusive em documentos oficiais do Ministério da Saúde, onde se usa o termo indiscriminadamente) realizados por outras metodologias (ELISA, por quimioluminescência – CLIA – e eletroquimioluminescência – ECLIA) com resultados de maior acurácia.

O LFIA corresponde aos testes rápidos.

Para se ter uma ideia do número de testes em uso no Brasil, segundo notícia publicada no site da Anvisa, em 31/07/2020, a agência havia zerado a fila de pedidos de registro para testes e das quase 600 solicitações aprovou 329 pedidos, sendo que 228 são de testes rápidos por imunocromatografia. Em razão da existência de tantos e tão variados tipos de testes, as entidades do setor laboratorial se uniram e criaram um programa de avaliação de kits para COVID-19, para tentar trazer um pouco mais de luz na escolha dos testes.

Quando devem ser realizados os testes?

Antes de serem substitutivos, os testes de RT-PCR e os sorológicos são complementares, devendo apenas se dar o necessário desconto aos testes rápidos como ferramenta de diagnóstico. Eles apenas terão sua aplicação em momentos distintos. Enquanto o primeiro deve ser aplicado logo no início dos sintomas, os sorológicos começam a ter resultados melhores à medida que o RT-PCR passa a ter uma menor acurácia.

A posição da Sociedade Brasileira de Infectologia, por exemplo, é de que os testes sorológicos somente passam a ter uma maior confiabilidade após o 14º dia dos sintomas, quando há uma significativa melhora de sua precisão.

A imagem abaixo mostra em que período cada teste deve ser aplicado para obtenção de melhores resultados:

A linha azul corresponde ao teste RT-PCR e a pontilhada em verde ao IgG

Nota-se na imagem que em cerca de duas semanas após o início dos sintomas a testagem por RT-PCR tem sua acurácia em declínio, enquanto aumenta a possibilidade de detectar o IgG.

Testagem para COVID-19 e os planos de saúde

Agora que temos uma noção dos tipos de testagem existentes, de sua acurácia e o momento em que devem ser utilizados, cabe responder se todos devem ser de cobertura obrigatória pelos planos de saúde.

 A ANS estabelece um rol de procedimentos e eventos em saúde, que deve ser a cobertura mínima obrigatória garantida pela operadora de plano de saúde aos seus consumidores, de acordo com a segmentação do plano contratado.

Encontra fundamento legal na Lei dos Planos de Saúde (art. 10, da Lei nª 9.656/98), que define o chamado plano-referência, cuja cobertura deve abranger todas as doenças.

O Rol atual foi publicado no final de 2017, com vigência a partir de 02 de janeiro de 2018, portanto muito antes do surgimento da COVID-19. Embora haja um processo específico para revisão, realizado periodicamente, e não entrando na discussão de que o rol seja ou não exemplificativo, a emergência em saúde causada pela pandemia exige medidas mais ágeis para sua atualização.

Posteriormente, através da Resolução Normativa nº 457, de 28 de maio de 2020, a agência incorporou ao rol obrigatório novos procedimentos que auxiliam no diagnóstico da COVID-19, ao possibilitar exames que auxiliam na diferenciação de outras doenças que também podem causar síndrome respiratória aguda grave (SARS).

Entretanto, em relação aos testes sorológicos, houve uma inexplicável omissão em realizar os estudos necessários para sua incorporação – ou justificar claramente sua não inclusão. Aparentemente, o entrave principal utilizado pela agência para considerar sua cobertura diz respeito mais à utilidade do teste, do que em relação a qualquer outro aspecto. Como o teste sorológico possui maior acurácia apenas quando realizado tardiamente, poderia se pensar equivocadamente que ele é desnecessário para fins de diagnóstico.

Importante lembrar que a utilidade da incorporação de um procedimento ao rol está ligada diretamente aos custos do planos de saúde. Exigir a cobertura de exame, sem que traga um benefício específico para a saúde dos usuários do sistema, apenas tem impacto no preço final do produto, sem ganhos na qualidade de vida. Ainda que se possa descartar a utilidade dos testes rápidos para fins de diagnóstico, isso não acontece com os demais testes sorológicos.

A paralisia da ANS em definir a utilidade dos testes sorológicos para identificação da COVID-19 acabou sendo interrompida por uma ação proposta na Justiça Federal de Pernambuco2Ação Civil Pública nº 0810140-15.2020.4.05.8300, proposta pela Associação de Defesa dos Usuários de Seguros, Planos e Sistemas de Saúde (Aduseps) em curso perante a  6ª Vara Federal de Recife/PE, em que se obteve uma tutela provisória que obrigou a agência a incluir no rol a cobertura de testes sorológicos para pesquisa de anticorpos IgA, IgG e IgM, através da Resolução Normativa nº 458 de 26/06/20. A Resolução não durou muito, foi suspensa em 17/07/2020, após o Tribunal Regional Federal da 5º Região revogar a liminar deferida em primeiro grau.

A ação, ainda que de desfecho incerto, serviu para alertar a ANS de que não poderia mais ignorar a necessidade de incorporar os testes sorológicos, sob pena de ocorrer uma inclusão no rol de cobertura sem que fossem estabelecidos os critérios mínimos de viabilidade e efetividade. Tanto assim, que mesmo após a revogação da liminar realizou a audiência pública nº 16, em 24 de julho de 2020, com a finalidade de discutir a incorporação dos exames sorológicos ao Rol.

Embora efetivamente os exames sorológicos não sejam utilizados para detecção da doença logo em seu início, possui inegável utilidade para o diagnóstico tardio ou retrospectivo. Por isso, esse exame é a ferramenta correta a ser utilizado a partir do 10º dia da infecção, quando se acentua a queda de acurácia do teste de RT-PCR.

Obviamente sua utilidade ocorre apenas nos casos em que não houve a testagem por RT-PCR ou esse tenha tido um resultado negativo, haja vista que, confirmada a COVID-19, não há necessidade clínica na realização do teste sorológico. E, é bom lembrar, que muitas vezes o teste de RT-PCR deixa de ser realizado no momento mais agudo da doença por não estar disponível ou por eventual atraso da operadora em assegurar a cobertura para sua realização.

Assim, excluídos os testes rápidos, não restam dúvidas que os demais testes sorológicos (ELISA e por luminescência) devem ser incorporados, com diretriz de utilização, especialmente para detecção do IgG, que possui uma certeza melhor que os demais.

Aliás, verificou-se, na audiência pública realizada pela ANS, que a incorporação é um consenso entre os diversos atores da saúde suplementar, inclusive entre os representantes das operadoras, havendo apenas divergências quanto aos critérios de cobertura da testagem a serem incluídos na diretriz de utilização.

Por fim, é preciso destacar que a principal reclamação dos consumidores em relação aos planos de saúde, nos últimos meses, tem sido justamente quanto aos exames da COVID-19, para o qual o tempo é fator preponderante para realização do diagnóstico. Mais que apenas estabelecer a incorporação dos exames sorológicos, com diretriz de utilização, existe a necessidade da ANS estabelecer um prazo excepcionalmente curto para realização do exame RT-PCR, sob pena de perder sua utilidade, devendo de forma célere regular a matéria.

Post Scriptum:
Em 14 de agosto de 2020 foi publicada a Resolução Normativa ANS nº 460, regulamentando a cobertura obrigatória e a utilização de testes sorológicos para infecção pelo coronavírus, acrescentando a pesquisa de anticorpos IgG e anticorpos totais com diretriz de utilização. 
Como critério de inclusão estabelece: pacientes com síndrome gripal ou síndrome respiratória aguda grave a partir do 8º dia do início dos sintomas e crianças ou adolescentes com quadro suspeito de síndrome multissistêmica inflamatória pós-infecção pelo SARS-CoV-2.
Como critério de exclusão estabelece: RT-PCR ou teste sorológico prévio positivo para SARS-CoV-2; realização de teste sorológico negativo há menos de uma semana.
Além disso, exclui do âmbito da cobertura: os testes rápidos; a utilização dos testes sorológicos com finalidade diversa da de diagnóstico; e sua utilização para verificação de imunidade pós vacinal.
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