No dia 28 de agosto de 2020 foi publicada no Diário Oficial da União a parte vetada da Lei nº 14.006/2020, especificamente o dispositivo que acrescenta o § 7º-A ao art. 3º da Lei nº 13.979/2020, cujo veto foi derrubado pelo Congresso Nacional. A norma estabelece um prazo de 72 horas para que a ANVISA autorize a importação e distribuição de quaisquer materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de saúde, desde que registrados e com comercialização permitida por autoridade sanitária estrangeira no respectivo país, e que se destinem ao enfrentamento da pandemia da COVID-19. Passadas essas horas sem manifestação da agência reguladora, a autorização para importar e distribuir a tecnologia de saúde é considerada dada tacitamente. É um dispositivo curto, publicado sem maiores alardes, mas que traz mudanças significativas em termos de vigilância farmacêutica que não podem passar despercebidas.
Vamos analisar o contexto.
A Lei nº 13.979/2020, que trata das medidas para enfrentamento da pandemia no Brasil, previa, no seu art. 3º, VIII, uma “autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa”, desde que obedecidas duas condições:
a) o registro da tecnologia por autoridade sanitária estrangeira; e
b) a previsão em ato do Ministério da Saúde.
Presume-se que tal ato seria aquele no qual o Ministério especificaria os produtos a serem importados, justificaria a sua necessidade e demonstraria as evidências científicas que, a despeito da ausência de registro na ANVISA, são necessárias para a excepcional importação, na forma do parágrafo primeiro do artigo, que dispõe que “as medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública”.
É compreensível que em um cenário de emergência sanitária causada por uma pandemia sem precedentes, medidas sanitárias excepcionais também sejam tomadas, colocando-se em um segundo plano procedimentos que, a despeito de terem o legítimo objetivo de resguardar a saúde pública, podem ser incompatíveis com a urgência que o caso requer. Havia-se tomado o cuidado, ainda assim, de exigir autorização prévia e expressa do Ministério da Saúde para a importação de produtos não registrados na ANVISA, mas que tivessem registros em agências sanitárias estrangeiras. Era o que previa o § 7º, I da Lei nº 13.979/2020.
A Lei nº 14.006/2020 alterou bastante este cenário. Em primeiro lugar, ela modificou o inciso VIII do art. 3º da Lei nº 13.979/2020, condicionando a autorização excepcional de importação e distribuição de produtos (inclusive medicamentos) não registrados na ANVISA ao registro em pelo menos uma das seguintes autoridades sanitárias estrangeiras: Food and Drug Administration (FDA), European Medicines Agency (EMA), Pharmaceuticals and Medical Devices Agency (PMDA) ou National Medical Products Administration (NMPA). Por outro lado, não há mais necessidade de previsão da autorização excepcional em ato do Ministério da Saúde, porque o dispositivo legal que a estabelecia (art. 3º, VIII, “b” da Lei nº 13.979/2020) foi revogado.
Resta saber, então, qual ato administrativo disciplinará essas importações, ou se não há mais necessidade de nenhum, o que seria bastante preocupante.
A mudança mais significativa, por fim, foi justamente com a derrubada do veto e o acréscimo do § 7º-A à Lei nº 13.979/2020, segundo o qual “a autorização de que trata o inciso VIII do caput deste artigo deverá ser concedida pela Anvisa em até 72 (setenta e duas) horas após a submissão do pedido à Agência, dispensada a autorização de qualquer outro órgão da administração pública direta ou indireta para os produtos que especifica, sendo concedida automaticamente caso esgotado o prazo sem manifestação”.
Trata-se, portanto, da possibilidade de aprovação tácita de importação e distribuição de medicamentos e outras tecnologias em saúde não registradas na ANVISA. O exíguo prazo de 72 horas para manifestação da agência leva a crer que a possibilidade de presunção de aprovação sem qualquer manifestação expressa do órgão é real e, talvez, a mais provável. As dúvidas que ficam são as seguintes:
a) quem definirá quais são as tecnologias consideradas essenciais para auxiliar no combate à pandemia (art. 3º, VIII da Lei nº 13.979/2020), já que o controle saiu da esfera do Ministério da Saúde? A ANVISA, que não atua diretamente na política estratégica de controle à COVID-19?
b) é possível analisar evidências científicas e informações estratégicas em saúde, bem como a delimitação de tempo e espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública, como exigido pelo parágrafo primeiro do art. 3º da Lei nº 13.979/2020, no prazo de 72 horas?
c) há tecnologias em saúde existentes em outros países, mas não no Brasil, cuja importação seja urgente a ponto de se impor um prazo de 72 horas para sua análise pela ANVISA?
Vale observar que recentemente o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de medida provisória que previa a aprovação tácita de agrotóxicos pela ANVISA, entendendo que a providência não se coaduna com os princípios da prevenção e da precaução no direito sanitário (ADPF 656 e a ADPF 658, ambas relatadas pelo Ministro Ricardo Levandowski).
É claro que um cenário de pandemia impõe a adoção de medidas não ortodoxas e urgentes. Além disso, a exigência de registro dos produtos em respeitadas agências estrangeiras não deixa de ser uma salvaguarda contra a utilização de tecnologias nocivas à saúde pública. Ainda assim, a atual regulamentação da medida deixa lacunas importantes sobre o controle da importação e distribuição de medicamentos e insumos tecnológicos não registrados pela ANVISA e sem que haja uma clara demonstração da necessidade de previsão de uma aprovação tácita em tão curto intervalo de tempo, ao menos no que diz respeito a medicamentos.