1. Breve contextualização do tema
Dentre as inúmeras questões controvertidas na judicialização da saúde e que parecem nunca ser solucionadas pela jurisprudência, mesmo após teses serem firmadas pelas cortes superiores em julgamentos de recursos repetitivos, está aquela relacionada à possibilidade de o Poder Público ser compelido judicialmente a fornecer medicamentos em desacordo com as indicações constantes das respectivas bulas. Tanto o STF como o STJ já buscaram tratar deste ponto de forma pretensamente definitiva, mas a discussão ainda é candente nas varas e tribunais Brasil afora. É sobre isso que este artigo vai tratar.
2. Definição de tratamento off label
De forma bem simplificada, tratamentos ou prescrições off label são aqueles que não estão dentro dos parâmetros indicados na bula do medicamento, tal qual aprovada pela ANVISA. Isso pode se dar por diversas razões, conforme explicado pelo próprio Ministério da Saúde, através da CONITEC:
Ainda sem tradução oficial para o português, usa-se o termo off label para se referir ao uso diferente do aprovado em bula ou ao uso de produto não registrado no órgão regulatório de vigilância sanitária no País, que, no Brasil, é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Engloba variadas situações em que o medicamento é usado em não conformidade com as orientações da bula, incluindo a administração de formulações extemporâneas ou de doses elaboradas a partir de especialidades farmacêuticas registradas; indicações e posologias não usuais; administração do medicamento por via diferente da preconizada; administração em faixas etárias para as quais o medicamento não foi testado; e indicação terapêutica diferente da aprovada para o medicamento.
Por mais que a definição traga uma ideia de algo excepcional ou anormal, tratamentos off label são muito mais comuns do que se imagina. Muitas vezes, fundam-se em práticas já consagradas no meio médico e validadas pela experiência clínica, ainda que não indicadas em bula. Em outros casos, motivam-se pela ausência de terapias alternativas, o que faz com que os médicos busquem nos medicamentos já registrados pela ANVISA – e que contam, portanto, com a pressuposta garantia de segurança para a saúde do paciente – outras possibilidades de tratamentos, seja para doenças distintas ou para grupos de pacientes não contemplados nas indicações da bula.
Prescrições fora das indicações da bula são corriqueiras, por exemplo, no tratamento pediátrico, uma vez que o pequeno número de pesquisas científicas com crianças limita sobremaneira os registros de medicamentos em formulações ou dosagens específicas para elas. Por isso, há estimativas do próprio Ministério da Saúde de que as prescrições off label sejam superiores a 90% na pediatria. Conclusões parecidas foram atingidas no estudo de McIntyre J, Conroy S, Avery A, Corns H, Choonara I (Unlicensed and off label prescribing of drugs in general practice), segundo o qual:
On general paediatric surgical and medical wards, 36% of children receive at least one drug that is either unlicensed or off label during their inpatient stay. In paediatric intensive care this figure is 70% and in neonatal intensive care 90%. A recent study of children's wards in five European countries found almost half of all prescriptions were either unlicensed or off label.
(…)
In conclusion, we found that an appreciable number of GP prescriptions for children are drugs used in an off label way. The reason for this is not hazardous prescribing practices but rather anomalies and inadequacies of product licence information with respect to children. Children deserve the safety, efficacy, and quality of medicines that the regulatory process affords to adults and such anomalies and inadequacies need to be addressed.
Situações semelhantes ocorrem com doenças raras ou em cuidados com idosos, que também não costumam figurar com tanta frequência nas pesquisas científicas destinadas a experimentar tratamentos de doenças de maior prevalência entre pessoas mais jovens.
É preciso deixar claro, portanto, que um tratamento off label não se equipara à utilização de medicamento sem registro na ANVISA. Além disso, é importante observar que muitas vezes tratamentos off label são estudados dentro dos mais rigorosos critérios científicos. Isso é possível porque, como será visto adiante, referidos tratamentos não são proibidos. Além do mais, é possível que indicações não aprovadas em um determinado país o sejam em outro, no qual as pesquisas prévias ou posteriores ao registro podem ser feitas normalmente. Com isso, é viável, em tese, colher evidências científicas de segurança, eficácia e efetividade da utilização de um medicamento mesmo na falta de previsão específica na sua bula.
3. Posicionamento da ANVISA, do CFM e do CFF
Ainda que seja proibida a prescrição, venda e utilização de medicamentos não registrados pela ANVISA, salvo autorização excepcional, a própria agência não veda a utilização de medicamentos registrados de forma distinta daquela indicada nas respectivas bulas. Em sua página na internet constam as seguintes informações:
O uso off label de um medicamento é feito por conta e risco do médico que o prescreve, e pode eventualmente vir a caracterizar um erro médico, mas em grande parte das vezes trata-se de uso essencialmente correto, apenas ainda não aprovado. Há casos mesmo em que esta indicação nunca será aprovada por uma agência reguladora, como em doenças raras cujo tratamento medicamentoso só é respaldado por séries de casos. Tais indicações possivelmente nunca constarão da bula do medicamento porque jamais serão estudadas por ensaios clínicos” (...) O uso off label é, por definição, não autorizado por uma agência reguladora, mas isso não implica que seja incorreto.
Neste ponto, a ANVISA segue os mesmos parâmetros do governo inglês, cujo sistema público de saúde é tido como referência internacional.
Postura semelhante é adotada pelo Conselho Federal de Medicina, que elaborou o Parecer 02/2016, o qual foi assim ementado:
Ementa - Os procedimentos médicos off label são aqueles em que se utilizam materiais ou fármacos fora das indicações em bula ou protocolos, e sua indicação e prescrição são de responsabilidade do médico. Não compete às Comissões de Ética emitir juízo de valor sobre o uso de off label.
No corpo do parecer, o posicionamento do CFM é exposto de forma mais clara:
O uso off label de um medicamento é feito por conta e risco do médico que o prescreve, e pode eventualmente vir a caracterizar um erro médico, mas em grande parte das vezes trata-se de uso essencialmente correto, apenas ainda não aprovado.
(...)
Utilizando linguagem objetiva, as prescrições na área não são proibidas porque se lida com produtos consagrados e de utilização reconhecida, contudo fora dos parâmetros previstos em bula ou em protocolos clínicos. No caso, o médico responde por eventuais insucessos, e, nessa circunstância, o sistema CRM/CFM será chamado a julgar, fazendo-o à luz de cada caso.
(...)
CONCLUSÃO Os procedimentos médicos off label são aqueles em que se utilizam materiais ou fármacos fora das indicações em bula ou protocolos e correm por conta de cada médico que o prescreve ou executa. Ao CRM/CFM compete julgar os insucessos sob a ótica do risco a que o médico submeteu seu paciente.
Já em relação aos farmacêuticos, o seu Código de Ética (Resolução CFF 596/2014) dispõe o seguinte no art. 14, XXIII:
Art. 14 - É proibido ao farmacêutico:
(…)
XXIII - fornecer, dispensar ou permitir que sejam dispensados, sob qualquer forma, substância, medicamento ou fármaco para uso diverso da indicação para a qual foi licenciado, salvo quando baseado em evidência ou mediante entendimento formal com o prescritor.
A ressalva final contida no dispositivo citado demonstra que há um alinhamento em relação ao entendimento do CFM e da ANVISA. Todos eles aceitam, em princípio, a prescrição de tratamentos off label, mas ressalvando de forma bastante clara que os médicos prescritores devem assumir a responsabilidade pela utilização de medicamentos fora das indicações da bula. Portanto, ainda que não seja uma prática vedada, cabe aos médicos arcar com os riscos eventualmente decorrentes da prática, o que impõe que sejam investigadas por esses profissionais, em cada caso, as evidências científicas que sustentam as prescrições e as consequências para os pacientes em decorrência de sua utilização e não utilização.
4. Tratamentos off label no SUS
Por mais que a prescrição de medicamentos fora das indicações da bula seja prática corrente e não vedada pela ANVISA e pelos órgãos de controle e fiscalização médica e farmacêutica, a dispensação off label de fármacos no âmbito do SUS é proibida. De fato, o art. 19-T da Lei nº 8.080/90 (na redação dada pela Lei nº 12.401/2011) estabelece o seguinte:
Art. 19-T. São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS:
I - o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA;
II - a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa.
É importante notar a distinção entre os procedimentos vedados em cada um dos incisos do dispositivo legal para bem compreender a proibição da dispensação off label no SUS. Enquanto o inciso I se refere a tecnologias em saúde “de uso não autorizado” pela ANVISA, o inciso II faz alusão a tecnologias “sem registro” na agência. A norma diferencia claramente, portanto, a situação de ausência de registro daquela em que a tecnologia é registrada, mas o uso se dá em desacordo com o autorizado. Ambas as hipóteses são vedadas.
A proibição não parece ilegítima ou desarrazoada. Como visto anteriormente, os tratamentos off label não contam com evidências científicas que tenham sido previamente submetidas à análise da ANVISA por ocasião do registro do medicamento. É justamente por isso que, ainda que tolerados pela própria agência e pelo CFM, ambos ressalvam expressamente que eventuais danos causados aos pacientes são riscos a serem suportados pelo médico prescritor e pelo paciente que com eles tenha expressamente assentido, tudo a ser apurado em cada caso específico.
A situação é muito diferente, entretanto, quando se trata de incorporação de um tratamento por uma política pública de saúde. Neste caso em que referido tratamento passa a ser institucionalizado mediante protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas estabelecidos por critérios objetivos, não há margem para a assunção de riscos e responsabilidades pelo Estado, para o dispêndio de recursos públicos e para a disponibilização ao público em geral de terapias com prescrições não avalizadas pela ANVISA. Aqui se está muito além de interesses exclusivamente particulares de pacientes específicos e seus médicos de confiança que optam, juntos, pela submissão e prescrição de tratamentos fora das indicações da bula, assumindo os riscos daí decorrentes.
Vale relembrar que a segurança e eficácia do tratamento analisados pela ANVISA quando um medicamento é submetido a registro dizem respeito ao “uso a que se propõe”, nos termos do art. 16, II da Lei nº 6.360/76. É por isso que quando se pretende alterar as indicações do fármaco, sua composição ou dosagem, faz-se necessária a aprovação da agência, sob pena de cancelamento do registro. É o que dispõe o art. 19 da mesma lei:
Art. 19 - Será cancelado o registro de drogas, medicamentos e insumos farmacêuticos, sempre que efetuada modificação não autorizada em sua fórmula, dosagem, condições de fabricação, indicação de aplicações e especificações anunciadas em bulas, rótulos ou publicidade.
Parágrafo único. Havendo necessidade de serem modificadas a composição, posologia ou as indicações terapêuticas de produto farmacêutico tecnicamente elaborado, a empresa solicitará a competente permissão ao Ministério da Saúde, instruindo o pedido conforme o previsto no regulamento desta Lei.
Assim, a vedação à disponibilização de tratamentos off label pelo SUS é uma garantia de que as terapias oferecidas pelo sistema público de saúde são seguras e eficazes. Ainda que na esfera privada, médicos e pacientes possam abrir mão dessa garantia “oficial” em razão de particularidades do caso concreto ou da convicção do profissional da saúde de que a utilização fora das indicações da bula conta com evidências científicas para o tratamento, essa flexibilidade não pode ser assumida genérica e irrestritamente dentro de uma política pública de saúde.
5. Tratamentos off label na jurisprudência do STF e do STJ
Como ocorre com praticamente todas as questões mais relevantes da judicialização da saúde na jurisprudência, a possibilidade de se obter judicialmente tratamentos off label pelo SUS ainda gera discussões, mesmo após o STF e o STJ já terem tratado, em acórdãos submetidos ao regime dos recursos repetitivos, do registro na ANVISA como requisito para que o Poder Público seja condenado a disponibilizar medicamentos não padronizados.
Tudo seria mais tranquilo se a análise se restringisse ao Tema 106/STJ, ocasião em que aquela Corte firmou a tese segundo a qual dentre os requisitos para a concessão de medicamentos não incorporados ao SUS está a “existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência”. A expressão “observados os usos autorizados pela agência” foi incluída na redação da tese por ocasião do julgamento dos embargos de declaração no REsp 1.657.156 justamente para esclarecer que tratamentos off label também não podem ser fornecidos por determinação judicial. O seguinte trecho do voto do Min. Benedito Gonçalves, que conduziu o acórdão, é bastante elucidativo:
Com efeito, o art. 19-T da lei n. 8.080/1990 dispõe que:
“Art. 19-T. São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS: (Incluído pela Lei nº 12.401, de 2011)
I - o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA; (Incluído pela Lei nº 12.401, de 2011)
II - a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na ANVISA.”
Verifica-se, assim, que referido dispositivo de lei impõe duas vedações distintas. A constante do inciso I que veda o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso pelo SUS de medicamento fora do uso autorizado pela ANVISA, ou seja, para tratamento não indicado na bula e aprovado no registro em referido órgão regulatório. Já o inciso II, impede a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso pelo SUS de medicamento que não tenha ainda sido registrado na ANVISA. Assim, nos termos da legislação vigente, no âmbito do SUS somente podem ser utilizados medicamentos que tenham sido previamente registrados ou com uso autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA (uso off label).
(...)
Sendo assim, ainda que não conste no registro na ANVISA, na hipótese de haver autorização, ainda que precária, para determinado uso, é resguardado o direito do usuário do Sistema Único de Saúde de também ter acesso a utilização do medicamento no uso autorizado não presente no registro.
Ante o exposto, acolho parcialmente os embargos de declaração do Estado do Rio de Janeiro, sem efeitos infringentes, para esclarecer que onde se lê: "existência de registro na ANVISA do medicamento", leia-se: "existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência".
Curiosamente, entretanto, o mesmo STJ – mas desta vez por meio das turmas que julgam matérias de direito privado (3ª e 4ª Turmas) – firmou entendimento no sentido de que “considera-se abusiva a negativa de cobertura de plano de saúde quando a doença do paciente não constar na bula do medicamento prescrito pelo médico que ministra o tratamento (off label)” (AgInt no AREsp 1682588/SP, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/12/2020, DJe 18/12/2020, dentre vários outros em idêntico sentido).
Acontece que o STF, no julgamento do Tema 500 de Repercussão Geral, firmou a seguinte tese:
1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido de registro (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); (ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União.
Nem a tese, nem o acórdão que lhe deu origem (RE 657.718), tampouco o voto do Min. Roberto Barroso, nos termos do qual o acórdão foi firmado, fazem qualquer referência ao tratamento off label. Não ficou claro, portanto, se o registro na ANVISA a que a tese se refere é especificamente aquele para uso do medicamento tal como previsto na bula. Se for assim entendido, tratamentos em desacordo com o uso autorizado pela agência devem ser considerados, para todos os fins, como sem registro. Por outro lado, numa interpretação mais restritiva da tese, somente a ausência de qualquer registro atrairia a sua incidência.
Há decisões monocráticas do próprio STF no sentido de que a discussão sobre a possibilidade de concessão judicial de tratamentos off label pelo SUS não se enquadra na tese do Tema 500 (RE 1308073 / RJ – RIO DE JANEIRO – RECURSO EXTRAORDINÁRIO – Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA – Julgamento: 05/03/2021; e RE 1282257 – Min. EDSON FACHIN – Julgamento: 16/10/2020).
No STJ, há acórdão da 1ª Seção que chegou a essa mesma conclusão. Trata-se do AgInt no CC 172.061/PA, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, julgado em 01/09/2020. Na ocasião, o Tribunal julgou conflito negativo de competência entre Juízo Federal e Juízo Estadual em processo objetivando o fornecimento, pelo SUS, de Hidroxicloroquina, Cloroquina e Azitromicina aos pacientes com COVID-19. O Juízo Estadual remeteu o processo ao Federal sob o argumento de que o tratamento postulado é off label, o que tornaria a presença da União no polo passivo obrigatória. O Juízo Federal não aceitou a competência, suscitando o conflito.
O STJ decidiu que “o entendimento exposto no julgamento do RE n. 657.718/MG” – que deu origem ao Tema 500/STF – “diz respeito, apenas, a medicamentos sem registro na ANVISA, para o qual a Corte Suprema estabelece a obrigatoriedade de ajuizamento da ação em face da União”. Concluiu, então, que “tratando-se, in casu, de responsabilidade solidária dos entes federados, e não ajuizada a demanda em face da União, afastada a competência da Justiça Federal, na medida em que, conforme supracitado, ainda que se trate de uso off label dos medicamentos indicados, estes possuem regular registro na ANVISA”, tudo nos termos da ementa do acórdão.
Ainda que o STJ estivesse decidindo sobre competência jurisdicional, o fato é que ficou claro o seu entendimento de que a tese firmada no Tema 500/STF não abrange tratamentos off label.
6. Breves reflexões críticas
Como visto, tanto o STJ como o STF já se manifestaram sobre a possibilidade de dispensação, pelo SUS, de medicamentos sem registro na ANVISA. De acordo com a tese do Tema 106/STJ, ela é vedada, inclusive no que diz respeito aos tratamentos off label. Trata-se, então, de uma vedação absoluta e incondicional que é perfeitamente compreensível, na medida em que baseada apenas na legislação ordinária, que de fato veda a entrega de medicamentos sem registro ou em desacordo com ele pelo SUS (art. 19-T da Lei nº 8.080/90). Já segundo a tese do Tema 500/STF, medicamentos não registrados na ANVISA podem ser fornecidos judicialmente pelo SUS, mas apenas nas hipóteses excepcionais lá previstas e atendidos os requisitos estabelecidos.
Em um primeiro momento, seria o caso de prevalecer o entendimento do STF, a quem compete analisar a questão também sob o prisma constitucional. No entanto, caso se confirme a orientação já adotada por algumas decisões monocráticas do STF e pelo acórdão da 1ª Seção do STJ referidos no item anterior de que os tratamentos off label não estão abrangidos na Tese do Tema 500/STF, duas alternativas seriam possíveis.
A primeira seria enquadrar o tratamento off label apenas no Tema 106/STJ, cuja tese dele tratou expressamente, para concluir que estaria vedado em qualquer hipótese. A situação seria bastante incoerente, porque neste caso o fornecimento de medicamentos sem registro algum na ANVISA seria possível, dentro dos critérios estabelecidos na tese do Tema 500/STF, mas o fornecimento de fármacos registrados, mas prescritos em desacordo com as indicações da bula seria completamente vedado. Em outras palavras, a hipótese mais grave de completa ausência de registro receberia um tratamento mais suave do que a hipótese menos grave.
A segunda alternativa seria aplicar, ainda que analogicamente, os requisitos e condicionantes para a disponibilização de medicamentos sem registro na ANVISA, da forma como previstos na tese do Tema 500/STF, também aos casos de tratamentos off label. O emprego da tese por analogia decorre justamente do fato de o STJ e o STF entenderem que ela não teria sido firmada propriamente para as situações de prescrições off label.
Haveria, entretanto, uma relativização a ser feita.
Como demonstrado acima, a própria ANVISA, o CFM e o Código de Ética dos profissionais farmacêuticos aceitam a prescrição e a utilização de medicamentos off label, ainda que sob responsabilidade do profissional prescritor e com os riscos daí decorrentes sendo assumidos também pelo paciente. É uma situação distinta da ausência de qualquer registro, porque o registro para indicações diversas das pretendidas assegura, no mínimo, que o fármaco não é perigoso para a saúde humana em níveis não aceitáveis.
Por outro lado, conforme consta na própria página eletrônica da ANVISA na internet, citada no item 3, acima, “Há casos mesmo em que esta indicação nunca será aprovada por uma agência reguladora, como em doenças raras cujo tratamento medicamentoso só é respaldado por séries de casos”.
Neste caso, é preciso cautela na exigência contida na tese do Tema 500/STF de que o medicamento não registrado na ANVISA esteja ao menos registrado em renomadas agências estrangeiras. Neste ponto, uma obediência estrita e rigorosa de tal requisito em relação aos tratamentos off label poderia resultar na absoluta impossibilidade prática de dispensação do fármaco para tratamentos importantes de doenças raras, mesmo já tendo ele sua segurança atestada para tratamentos distintos.
Por outro lado, de forma a evitar o fornecimento, pelo SUS, de tratamentos que possam oferecer riscos inaceitáveis aos pacientes ou que não contem com uma garantia efetiva de que os resultados a que se propõe serão atingidos, a exigência de registro em agências estrangeiras para o uso a que se pretende fazer pode ser substituída pela exigência de evidências científicas qualificadas e possíveis de serem produzidas dentro das particularidades do caso concreto. Desta forma, a situação seria um meio termo entre a ampla liberdade de prescrição off label na iniciativa privada (sob risco e responsabilidade das partes envolvidas) e os rigores necessários para o fornecimento de medicamentos não registrados pela ANVISA.
Gente, amei o artigo. Parabéns! Creio que o tema também é abrangente a um conflito interno que temos na química farmacêutica sobre os medicamentos inovadores radicais e incrementais, que parece contribuir para inúmeras controvérsias na judicialização de medicamentos, principalmente nos aspectos materiais do direto à saúde. O uso off label e os medicamentos inovadores incrementais, em uma análise mais conservadora, produzem-me um certo olhar de desconfiança quanto aos benefícios reais e mensuráveis, pois, na maioria, são benefícios em potencial. Por um lado, na produção dos laudos, os objetos, objetivos e fundamentos, podem estar baseados em evidências com desfecho em curso ou até mesmo inconclusivos (fase III), fortemente vinculados à “esperança pelo tratamento” (que pela humanidade e solidariedade é justificável, mas é racionalmente conflitante à análise científica), por outro lado, exige-se uma perícia altamente especializada por parte da justiça, que, além de exercer suas competências jurídico-legais, seja capaz de entender e decidir através inúmeras variáveis a aplicabilidade desses medicamentos em certos tratamentos, isto é, obriga-a conhecimentos extremamente especializados em farmácia, epidemiologia e medicina, digo isso, pois são variados os pedidos que ainda estão em deliberação científica e que são pressionados ao uso, justamente, pela discordância em separar ou equipar as noções de “experimental” e ” em estudo clínico (fase 3 e 4)”. Não sei se estou descrevendo de forma clara o questionamento, todavia, em síntese, a maioria das proposições de tratamento que envolvem medicamentos incrementais, para uso em off label e até mesmo os radicais possuem um elevado grau de incerteza, isso, diante a outro cenário, mais confortável, de estratégias farmacoterapêuticas historicamente confiáveis devido à exaustão, mesmo no caso de doenças raras, a meu ver, ambos os cenários devem ser analisados com cautela. Como apontado no texto, em relação a posição da Anvisa no caso de série de casos, que não é restrita ao uso off label, a pertinência lógica em certos eventos é baseada em evidências muito instáveis. Também, a pressão externa por incorporação de tecnologias ao SUS, tanto do usuário quanto do lobby farmacêutico, tem que ser introduzida na discussão, de forma significativa, pois ela pesa a balança ao lado do “potencial” ao invés da “necessidade real”.
Sensacional, belíssimo trabalho. Irei desenvolver o tcc na faculdade que aborta o tema da responsabilidade com o uso de off label como tratamento precoce para Covid-19. Se for possível me conectar por e-mail, será maravilhoso poder conversar e debater alguns assuntos. Obrigado!
Oi Willys, obrigado pelo comentário. O Bruno avisou que fica a disposição, só mandar um e-mail direto pra ele: brunohssantos@yahoo.com.br.