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Arvore diferente no meio de uma floresta

Ana Carolina Morozowski e Daniel Wang

Soliris: A esperança na corda bamba de sombrinha

O custo dos medicamentos de doenças raras sempre traz desafios para os sistemas de saúde no mundo inteiro. Não há novidade nisso. A cada ano, várias tecnologias que potencialmente proporcionam benefícios aos pacientes são lançadas, trazendo esperança. O preço muito elevado de alguns desses medicamentos, que torna inviável a compra direta pela maioria dos pacientes, faz com que cobranças e expectativas se voltem ao SUS.  

A decisão para o SUS tende a ser apresentada como binária: incorporar ou não um tratamento. Essa é uma grande simplificação da questão. A questão concreta que é colocada ao SUS é incorporar ou não um tratamento dado o preço e as condições ofertadas pela indústria. Em princípio, a escala do SUS faz com que tenha grande poder de negociar preço e condições. Porém, há situações concretas em que essa vantagem do SUS é neutralizada pela judicialização.

Podemos falar, por exemplo, do medicamento Soliris (Eculizumabe). Indicado para o tratamento de Hemoglobinúria Paroxística Noturna (HPN) e para Síndrome Hemolítica Urêmica Atípica (SHUA), é o medicamento judicializado que mais impacta os cofres da União. Em 2018 e em 2019, a União gastou respectivamente R$ 368.522.257,63 e R$ 453.021.785,61 para atender às ordens judiciais de demandas de pacientes com as duas condições para as quais o remédio é indicado. Em agosto deste ano, havia 311 pacientes de HPN e 147 pacientes de SHUA que recebiam o medicamento da União pela via judicial.

Em razão da judicialização deste medicamento, a própria Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde iniciou um processo de análise na CONITEC para verificar se ele deveria ou não ser incorporado ao SUS. No relatório nº 413, de dezembro de 2018, referente à HPN, a CONITEC recomendou a sua incorporação. Já no relatório nº 483, de novembro de 2019, houve a recomendação de não incorporação da tecnologia para o tratamento da SHUA. É importante acrescentar que países mais desenvolvidos do que o Brasil não incorporaram o Soliris para HPN em seus sistemas de saúde. É o caso do Reino Unido e do Canadá, entre outros.

Por causa da recomendação de incorporação para HPN, foi editada a Portaria nº 77, de dezembro de 2018, que incorporou o Soliris, desde que satisfeitas algumas condicionantes. Uma delas seria a negociação com a indústria “para redução significante de preço”.

Em 27/06/2019, na pactuação da Comissão Intergestores Tripartite, ficou definido que o medicamento seria alocado no grupo 1A do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica, o que significa que a União seria a responsável pelo pagamento e pela aquisição da droga.

Assim, em 08/11/2019, o Ministério da Saúde – MS abriu procedimento de contratação direta por inexigibilidade de licitação para a compra de 42.149 frascos do medicamento para ambas as condições, já que haveria a necessidade de se atender às demandas judiciais de SHUA também. Na ocasião, estimou-se que haveria 328 pacientes de HPN para quem a União deveria fornecer a medicação. Este quantitativo foi obtido a partir do número de pacientes com HPN considerado no relatório de recomendação da Conitec para o ano de 2020. Dos 3.647 pacientes mencionados, estimou-se que somente 30% deles (1.094) se enquadrariam na situação clínica na qual o Soliris é recomendado.  Também havia a intenção de que houvesse um market share, e a empresa fabricante fornecesse o remédio para 70% desses pacientes. Com isso, chegou-se ao número de 328 pacientes. Entretanto, não há acurácia nesses números, já que se basearam em um único estudo realizado em 2006 com pacientes de Yorkshire.

Em 18/02/2020, a empresa Alexion (detentora do único registro do medicamento) fez uma proposta de R$ 12.817, 56 por frasco, reduzindo o preço em 0,63% em relação ao Preço Máximo de Venda ao Governo (PMVG de R$ 12.899,25). Em 01/04/2020, nova proposta foi feita de R$ 12.806,33, o que representou uma diminuição de preço de 0,72% do PMVG. Dentre outros motivos, a empresa alegou que não poderia fazer oferta melhor, pois já estava fornecendo o medicamento ao governo há algum tempo por um valor inferior ao devido nas compras feitas em função das demandas judiciais. Também disse que aquele era o preço mais baixo que ela praticava no mundo, sem, contudo, comprovar tal fato. Em 15/04/2020, em reunião do Ministério da Saúde com a empresa, o preço foi mantido, mas a empresa se comprometeu a estudar algum tipo de incentivo ou contraproposta até 24/04, o que não foi feito até 06/08, pelo menos.

Em vista da não implementação da condição para a incorporação, em 06/08/2020, a CONITEC decidiu que ela deveria ser revista para que houvesse a sua exclusão. É interessante notar que, em 2018, o MS pagou em média R$ 13.604,88 por frasco do medicamento. Em 2019, a média dos valores pagos foi de R$ 12.673,46, sendo que o menor preço pago foi de R$ 12.274,83. Ou seja, o preço proposto para incorporação não variou muito em relação ao valor pago para o cumprimento de ordens judiciais.

O que explica a falta de interesse da indústria em negociar? Uma hipótese forte é a de que possivelmente todos ou quase todos os pacientes que necessitam do Soliris o recebam em decorrência de decisões judiciais. Em agosto deste ano, havia 311 pacientes que o recebiam da União.  Há aqueles que são atendidos pelos Estados. O Estado do PR, a título de exemplo, desembolsou para a compra do Soliris R$ 4.280.207,68, em 2017, R$ 2.305.965,89, em 2018, e R$ 4.365.986,82, em 2019. Há, ainda, os que conseguem o tratamento judicialmente das operadoras de planos de saúde.

É provável, então, que a população elegível para o tratamento esteja superestimada. Aliás, para confirmar tal fato, seria interessante fazer um levantamento preciso do número de pacientes que ajuizaram ações para receber o Soliris, seja contra a União, os Estados ou as operadoras. Também deveria ser analisado quantos desses pacientes tiveram seus pedidos deferidos.

O exemplo do Soliris é um caso claro em que a não incorporação não se dá pela omissão do Estado, mas pelo alto preço de um medicamento e pela falta de disposição da indústria de negociar. Também ilustra de forma clara um dos efeitos deletérios da judicialização sem critérios e que ignora a política pública de saúde. Ela tira o poder da administração de barganhar preços e condições com a indústria, lesando, em última análise, o SUS inteiro e o próprio erário.

Juízes têm de estar atentos aos efeitos sistêmicos das suas decisões para que, ao tutelar o direito individual à saúde, não acabem sendo usados pela indústria para prejudicar o sistema responsável por realizar esse direito para toda a população.

Por outro lado, o Ministério da Saúde também poderia deixar mais claro quanto ele estaria disposto a pagar pelos medicamentos ou qual o limiar de custo-efetividade que considera aceitável para um determinado produto. Pode-se cogitar também de eventuais medidas de cooperação internacional com outros órgãos e entidades de saúde internacionais e de outros países, de modo a eliminar a assimetria de informações existente. 

Em meio a tudo isso, estão os pacientes que, evidentemente, não podem ser prejudicados. Mas uma coisa é certa: para que haja negociação, é necessário que TODOS estejam desconfortáveis com a situação existente.

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Como bem colocado na posse do próprio presidente atual querido senhor Jair Messias bolsonao Digna juíza ao fornecimento de medicamentos para pessoas em especial com doenças raras fato é que não são consideradas doenças raras por quê melhor ou pior do que outros simplesmente por serem doenças recentes tal como a covid-19 que anda se multiplicando e causando inclusive o terror a todos inclusive classes sociais por que afeta o também pessoas da alta classe média já baixa já está acostumada com tantas mortes e descasos por parte de várias pessoas que nome de setores desmerecem um simplesmente se omitem com a desculpa na indústria e a indústria devolve a desculpa para o governo inclusive citando países que têm uma realidade econômica totalmente diferente fato esse não diz caracteriza o mínimo existencial referente a pessoas portadoras de síndrome hemolítico urêmica atípica uma doença que vem sendo estudada desde há muitos anos mais de 2010 para cá várias fases do estudo inclusive pessoa da família portadora dessa doença doou seu corpo voluntariamente e graças a Deus deu certo e hoje muitas pessoas são salvas graças a Deus e a existência do soliris. Podem tirar podem não tirar podem tudo porque quem tem o poder sempre vai ter uma desculpa para fazer quando o mia a custas de morte principalmente para quem não tem acesso vascular que não têm acesso peritonial e nem tão pouco para transplante porque já foi mais do que mutilada e hoje vive feliz desde que quando faz o uso do sollys não tem seis dadas suas faculdades mentais e de toda a família que adoece e sofre junto e morre um pouquinho mais a cada pessoa que falece desse país. Sem denegrir os autores dessa matéria mas deixando a maiêutica socrática para que vossas senhorias reflitam e respondam se a si próprias se fosse tua filha ou a si próprio ou a vossa mãe se pensariam assim como se fosse medicamento de guarda-chuva na corda bamba ou melhor uma pessoa com a vida por um fio por conta de simplesmente a ganância humana de um lado inflexível e a desculpa humana de outro sem fundamentos científicos jurídicos inclusive mundialmente falando em todos os tribunais do mundo inteiro até porque o que é mais importante a vida duma doença ou que ela gera com isso miséria dá lucro infelizmente E por que não tentar junto aos tribunais Dos países ou a própria empresa renegociar A exemplo do que já conseguiram até hoje o ser humano ele é capaz de tudo e ao mesmo tempo de nada e o nada já está dizendo se isso aí não for omissão não sei o que é mas para mascarar sem denegrir mas ao mesmo tempo com fatos irrefutáveis razão de ser realista a Acuidade Bioética fato é nenhuma falta que cause A morte Humana o é justificado por nenhum ordenamento jurídico seja ele qual for. Por que uma doença é elegível e outra é descartável (Discriminação) ao SUS visto que nenhum plano ou qualquer instituição suportaria tamanha carga que inclusive constitucionalmente desde os primórdios a sétima e vigente CF 1988 a desmerecer A carta Magna. Juramento de hipocrates e Todos Os Princípios e preceitos das premissas sem em nenhum momento ofender lhes vós nem rotular tão pouco agredir de hipótese algum nem fornecedor tanto quanto o governos menos ainda pacientes ou produtor dessa matéria que salva Digo-vos c fatos Vivenciados. O que acontece aqui existem pessoas que não buscam compreender suas próprias patologias a fim de ajudar os seus próprios médicos diante de uma nova doença até a tal covid (sem generalizar) A exemplo inumeras teorias comprovadas cientificamente no entanto a veracidade é desmerecida por tantos outros ao uso eficaz ex: da máscara álcool e distanciamento social sem fechar a economia na sua totalidade numa certeza de um colapso que já está em curso senão no meio dele. Será que não seria o momento de vossas senhorias repensarem o bom senso de forma conscisa correta ética e com fatos científicos e daestatisticos mais do que suficiente do que as mortes por síndrome hemolítico urêmica atípica em 2017 na gestão do nosso querido Ricardo Barros nada contra fato com todo respeito e atualmente pela segunda vez falta medicação e já está com fé em Deus próximo de chegar se põe nos lugares dessas famílias olhem bem nos olhos e seus filhos e vejam se fosse ele se fosse a Tua. mãe será que Teria coragem e dá uma desculpa que desmerece ao Mínimo existencial extrapolar assim mas tem vários setores da economia que também extrapola com várias regalias do congresso e outros Setores sem os desmerecer que poderiam ser cortadas temporariamente e várias regalias de empresas multinacionais que vem tirar nossas riquezas e são praticamente ovacionados além disso nos deixam doentes A exemplo de mineradoras fora as irregulares. É preciso que seja feita sim uma mudança principalmente no pensamento por parte tanto dos fornecedores do soliris tanto quanto por parte de nossos governantes e quem detém o poder de manter vivas essas pessoas ou então deixar morrer que talvez seja o interesse de tantos outros porque a maioria vence né ou melhor a maioria suprime a minoria diante de uma segunda minoria cheia de poder de ego que não quer perder suas regalias lógico pobre tem que morrer . Mas se fosse alguém que tivesse um jatinho eu tenho certeza que essa medicação já tava mais do que liberada. Inclusive até vimos muito gentilmente agradecer ao nosso querido ex-ministro Da Saúde Digno General pazuello. Ao Presidente e Desejar-lhe saúde e muito entendimento ao novo ministro da saúde e que Deus te dê bastante entendimento nas tomadas de decisões e que isso não custe vidas mais do que já temos Nós também somos brasileiros raros Ultra raros e familiares. Interessante sim que sejam feitas novas opções fidedignas Com tudo o que vem dando certo para quem faz uso na parte de síndrome hemolítico urêmica atípica não foi começado em 2018 foi muito antes de 2012 e passou por vários estágios e comprovações e até hoje é estudada e isso vossa senhorias pode perguntar à própria empresa não é algo feito assim de fundo de quintal ou sobre uma cordar bamba, pouco pra vidas com guarda-chuva na mão “são seres humanos ” ” vão deixar morrer a pergunta que não quer calar? ”

Eu já vi meu rim preto com fratura renal na barriga de uma certa pessoa com 900 ml de sangue por hemorragia na cavidade abdominal que fechou por segunda intenção após seis meses sem costurar porque toda vez que costurava dava hemorragia infecção durou 2 anos o suficiente para o surgimento do soliris. será que isso é bonito ou seja é uma morte digna tá viva e graças a Deus e eu sabe e a vossa senhorias portanto o intuito dessa praticamente esse jornal para vocês 1% de minha história Real dá para fazer um livro ou melhor de minha famíliar eu já não fiz para poupar e evitar assuntos que deixariam desconcertados governo minha família estremecida e várias pacientes diante do meu pouco e minha patologia também , saber da minha pequena ótica e lente turva ao ver tanta desculpa. Congratulações aprendiz. Deixo você bem claro que apenas uma humilde reflexão de uma ótica singular pensando no pluralismo REALISTA me colocar no lugar tanto do governo tanto quanto de todos os demais principalmente da família e da própria vida em si da minha então inclusive e dos senhores e que ninguém está escape de nada e que eu jamais jogo pedra no telhado de ninguém nem a minha família até porque o meu é de vidro sem facetas como ouvir uma vez de um certo rapaz chamado Ricardo Barros. Contudo também temos bastante respeito perdoe-me qualquer tipo de Tom Que possa parecer pejorativo que na verdade não o é.

Não é porque é novo merece ser descartado como se fosse um guarda-chuva na corda bamba Só não gostei do título com todo respeito nós somos pessoas não somos coisas.

O ministério da saúde Deus abençoe vocês inclusive quem trabalha duro para que pessoas viviam inclusive são trocados como se fosse folha de papel. Vocês são a esperança de muita gente que torce inclusive por cada um dos senhores para que consigam melhorar a qualidade de vida de todos sem sem falar também tanto um sistema que todas as pancadas que toma ele tá vivo e salva-vidas o SUS e muitas vezes é cheio de desculpas por parte de alguns mais cheio de verdades por parte da ciência

O levantamento que sugere o sr Wang ja foi feito. O então ministro da Saúde Ricardo Barros fez uma devassa no Soliris. Os achados da tal investigação foram melancólicos. Por alguma razão, talvez até pela ausencia de irregularidades na definição da população atendida, o caso sumiu do noticiario apos investigações espalhafatosas. A montanha pariu um rato. Gostaria que meu comentário não fosse censurado. Obrigado.

Caro Cláudio,

Obrigado pelo seu comentário. O debate é sempre bem-vindo. A área da saúde é muito grande e complexa, então sempre temos o que aprender.

Eu teria alguns comentários.
1) O texto foi escrito em co-autoria com a Dra. Ana Carolina Morozowski, que é, inclusive, a primeira autora. Supondo que sua questão não seja pessoal comigo (e não tenha nenhuma razão para acreditar que seja), peço por favor que seja sempre dado o crédito devido.

2) Você colocou dois comentários que se contradizem. No primeiro você diz que Soliris é um ponto fora da curva e “realmente repleto de irregularidades”. No segundo voce diz que não há nada de errado. Você precisa decidir qual sua linha de argumentação.

Um abraço cordial
Daniel

O dr Daniel Wang aposta na caricatura. O caso Soliris é um ponto fora da curva neste país. Não representa a situação da maioria dos medicamentos órfãos judicializados no Brasil. Não serve de exemplo. Caso rumoroso, realmente repleto de irregularidades. Toma-se o todo pela parte de uma forma um tanto desonesta intelectualmente. Coisas que as redes sociais têm possibilitado, dada a ausencia da revisão por pares. Tudo se resume a uma ação entre amigos. Gostaria que meu comentário não fosse censurado. Obrigado

Parabéns ao dois autores, precisamos falar mais sobre incorporação de tecnologias no SUS, os desafios e as oportunidades!

O post do DeC foi produzido com a coparticipação de um convidado muito especial, Daniel Wang, Pós-Doutor e Doutor em Direito pela London School of Economics and Political Science (LSE). Mestre em Filosofia e Políticas Públicas pela LSE. Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Bacharel em Ciências Sociais pela USP e Professor da FGV.