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Darlan de Carvalho Junior

Advogado da União - integrante da equipe de alto desempenho em saúde

Judicialização da saúde, deferência aos atos administrativos e LINDB: um encontro necessário

A pandemia causada pela COVID-19 colocou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) em posição de destaque. A agência reguladora foi citada na discussão sobre o possível uso da Hidroxicloroquina para o tratamento dos pacientes com COVID-19 e atualmente é uma das protagonistas no debate sobre as vacinas testadas para a imunização dos brasileiros.

Para os que atuam na judicialização da saúde, a ANVISA é uma figura sempre presente ou, pelo menos, deveria ser.

No julgamento da Suspensão de Tutela Antecipada 175 pelo Supremo Tribunal Federal, o Ministro Gilmar Mendes destacou a importância do registro do medicamento na agência para a determinação de fornecimento pela via judicial:

"Por tudo isso, o registro na ANVISA configura-se como condição necessária para atestar a segurança e o benefício do produto, sendo o primeiro requisito para que o Sistema Único de Saúde possa considerar sua incorporação. ”

Entretanto, esse julgamento não encerrou a discussão.

Na verdade, foi só o início da formação de precedentes sobre a judicialização da saúde pelos Tribunais Superiores. Em 2011, o STF reconheceu a repercussão geral da seguinte questão constitucional: Tema 500 – Dever do Estado de fornecer medicamento não registrado pela ANVISA.

Enquanto o STF o analisava, o Superior Tribunal de Justiça definiu que a existência de registro do medicamento, observados os usos autorizados pela agência, é um dos requisitos para a concessão de medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS (tese do tema 106).

Em maio de 2019, o STF fixou a tese do tema 500, a qual traz, como regra, que a ausência de registro na ANVISA impede o fornecimento de medicamento por decisão judicial.

Ocorre que essas teses parecem ter ficado restritas ao plano ideal da judicialização da saúde.

Nas ações individuais ajuizadas diariamente, as decisões da ANVISA e da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC) são reiteradamente ignoradas.

O estudo “Judicialização da Saúde no Brasil: Perfil das demandas, causas e propostas de soluções” elaborado pelo Insper para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao analisar as sentenças proferidas no Tribunal de Justiça de São Paulo, encontrou o seguinte:

“Dentre as ações procedentes, a Anvisa é citada em apenas 1,20% dos casos, número que cresce para 7,52% no caso das decisões parcialmente procedentes, 3,02% das improcedentes e em 26,22% das extintas.
Esse dado indica que juízes utilizam mais em suas fundamentações referências a normas da ANVISA quando decidem conceder parcialmente, não conceder e, especialmente, extinguir as ações em primeira instância.”

Num primeiro momento, poderíamos atribuir esses números ao fato dos dados utilizados na pesquisa serem anteriores à publicação da tese do tema 500, mas, novamente, a realidade nos mostra outra situação.

No dia 23 deste mês, o STF encerrou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5501, na qual foi analisada a constitucionalidade da Lei nº 13.269/2016, que autorizava o uso da fosfoetanolamina sintética, conhecida como “pílula do câncer”, por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna. A lei foi declarada inconstitucional, mas o resultado surpreendeu.

Estávamos diante do debate sobre um tratamento sem qualquer evidência cientifica apta a comprovar a sua eficácia. Apesar disso, no julgamento que considerou a lei inconstitucional, houve três votos divergentes:

Divergência
Os ministros Edson Fachin, Dias Toffoli e Gilmar Mendes votaram no sentido de restringir o uso do remédio a pacientes terminais. Para o ministro Edson Fachin, o uso privado de substâncias, ainda que apresentem eventuais efeitos nocivos à saúde humana, insere-se no âmbito da autonomia privada e está imune à interferência estatal em matéria penal. “A rigor, o uso da fosfoetanolamina é permitido se não há lei que o proíba”, ponderou. “A Anvisa não detém competência privativa para autorizar a comercialização de toda e qualquer substância”.

Outro exemplo ocorreu no Superior Tribunal de Justiça. No início deste mês, o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho determinou que a União depositasse, no prazo máximo de 15 dias, R$ 6,7 milhões para a aquisição de Zolgensma, o medicamento mais caro do mundo. Embora possua registro na ANVISA, ele é para um tipo de atrofia muscular espinhal diferente daquele diagnosticado na paciente beneficiada pela decisão.

Nesse processo, o Ministério da Saúde esclareceu não ser possível o fornecimento administrativo pela ausência do registro e por não ter sido analisada pela CONITEC a incorporação ao SUS. Entretanto, a decisão em sede de mandado de segurança, que não permite a dilação probatória, ou seja, não houve sequer perícia judicial, determinou a realização do depósito pela União.

Além da Anvisa, o estudo divulgado pelo CNJ, acima destacado, também mostra que a CONITEC, a quem compete assessorar o Ministério da Saúde nas atribuições relativas à incorporação, exclusão ou alteração de tecnologias em saúde pelo SUS, é citada em apenas 0,51% das decisões, enquanto seus protocolos aparecem em 5,83%:

gráfico que demonstra o pouco uso dos protocolos

Nesse contexto, é que surge a proposta deste texto.

É necessário que a judicialização da saúde encontre a deferência aos atos administrativos, ou seja, não é possível que aquela funcione bem sem a presença desta, cabendo destacar as palavras do Professor Egon Bockmann Moreira:

A toda evidência, não existe solução única para tais excessos no controle das decisões discricionárias. Mas há alguns caminhos que permitem atenuar tais usurpações de competência. Dentre eles, está o denominado princípio da deferência, ao estabelecer que decisões proferidas por autoridades detentoras de competência específica – sobretudo de ordem técnica – precisam ser respeitadas pelos demais órgãos e entidades estatais (em especial o Poder Judiciário, o Ministério Público e as Cortes de Contas).
Lastreado nos princípios da separação dos poderes e da legalidade, o princípio da deferência não significa nem tolerância nem condescendência para com a ilegalidade. Mas impõe o devido respeito às decisões discricionárias proferidas por agentes administrativos aos quais foi atribuída essa competência privativa. Os órgãos de controle externo podem controlar o devido processo legal e a consistência da motivação nas decisões discricionárias, mas não podem se imiscuir no núcleo duro daquela competência. Precisam respeitá-la e garantir aos administradores públicos a segurança jurídica de suas decisões. 
Assim, a necessária retomada do crescimento econômico passa também pelo prestígio ao princípio da deferência. Caso se persista na busca incessante da decisão excelente – com a sucessão de controles extraordinários – haverá imensa dificuldade em se implementar as soluções cabíveis para atos e contratos administrativos, tal como definidas pelos administradores a quem a lei atribuiu a o dever de decidir. Haverá incremento significativo nos custos de transação e imenso desestímulo aos administradores que pretendem trabalhar com perseverança. Muito há a ser feito, mas a aplicação do princípio da deferência e o respeito à discricionariedade já seriam grandes passos.

Não se trata de tema novo.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4874, o STF afirmou a deferência às escolhas técnicas feitas pela Administração Pública. Veja-se o seguinte trecho do referido julgado:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO DE INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO. ART. 7º, III E XV, IN FINE, DA LEI Nº 9.782/1999. RESOLUÇÃO DA DIRETORIA COLEGIADA (RDC) DA ANVISA Nº 14/2002. PROIBIÇÃO DA IMPORTAÇÃO E DA COMERCIALIZAÇÃO DE PRODUTOS FUMÍGENOS DERIVADOS DO TABACO CONTENDO ADITIVOS. AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. REGULAÇÃO SETORIAL. FUNÇÃO NORMATIVA DAS AGÊNCIA REGULADORAS. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. CLÁUSULAS CONSTITUCIONAIS DA LIBERDADE DE INICIATIVA E DO DIREITO À SAÚDE. PRODUTOS QUE ENVOLVEM RISCO À SAÚDE. COMPETÊNCIA ESPECÍFICA E QUALIFICADA DA ANVISA. ART. 8º, § 1º, X, DA Lei nº 9.782/1999. JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL. DEFERÊNCIA ADMINISTRATIVA. RAZOABILIDADE. CONVENÇÃO-QUADRO SOBRE CONTROLE DO USO DO TABACO – CQCT. IMPROCEDÊNCIA. 1. (...) 9. Definidos na legislação de regência as políticas a serem perseguidas, os objetivos a serem implementados e os objetos de tutela, ainda que ausente pronunciamento direto, preciso e não ambíguo do legislador sobre as medidas específicas a adotar, não cabe ao Poder Judiciário, no exercício do controle jurisdicional da exegese conferida por uma Agência ao seu próprio estatuto legal, simplesmente substituí-la pela sua própria interpretação da lei. Deferência da jurisdição constitucional à interpretação empreendida pelo ente administrativo acerca do diploma definidor das suas próprias competências e atribuições, desde que a solução a que chegou a agência seja devidamente fundamentada e tenha lastro em uma interpretação da lei razoável e compatível com a Constituição. Aplicação da doutrina da deferência administrativa (Chevron U.S.A. v. Natural Res. Def. Council). 10. (...) 13. Ação direta de inconstitucionalidade conhecida, e, no mérito julgados improcedentes os pedidos principais e o pedido sucessivo. Julgamento destituído de efeito vinculante apenas quanto ao pedido sucessivo, porquanto não atingido o quórum para a declaração da constitucionalidade da Resolução da Diretoria Colegiada nº 14/2012 da ANVISA. (ADI nº 4874, Relatora: Ministra ROSA WEBER, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 01/02/2018, Publicação em 01/02/2019; grifou-se).

Também precisa, nesse sentido, é a argumentação exposta pelo Ministro Luiz Fux no voto proferido no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5062:

Em uma democracia, a Constituição é o documento fundante, mas não exauriente do Estado. Isso significa que a resposta para a maioria dos dilemas sociais, embora balizada, não está predefinida na Lei Maior. Cabe a cada geração, através de seus representantes eleitos, disciplinar, com significativa margem de conformação, os conflitos intersubjetivos. Nesse cenário, toda inflação semântica dos enunciados constitucionais implica supressão de espaço de escolha das maiorias eleitas. Bem por isso já advertia o Chief Justice Marshall, da Suprema Corte Norte-americana, que "We must never forget that it is a constitution we are expounding" (McCulloch v. Maryland - 1819).
Reservo ainda dúvidas quanto à real capacidade de juízes, com formação intelectual, via de regra, estritamente legalista, procederem a um exame profundo sobre a correção técnica de marcos regulatórios específicos. À pouca expertise se somam as limitações de tempo e de informação típicas do processo judicial, o que tende a gerar uma perspectiva, senão equivocada, ao menos parcial do problema regulatório (“visão de túnel”). Tais contingências justificam cautela e prudência, rechaçando qualquer visão messiânica do Poder Judiciário como instância redentora da sociedade. (ADI nº 5062, Relator: Ministro LUIZ FUX, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 27/10/2016, Publicação em 21/06/2017; grifou-se).

O Ministro Luis Roberto Barroso discorreu sobre a expansão da intervenção judicial no Brasil, destacando a “capacidade institucional”, que nada mais é que a necessidade de se entender qual dos poderes da República está mais habilitado a produzir a melhor decisão sobre determinada matéria, bem como destacando os “efeitos sistêmicos”, ou seja, o impacto das decisões judiciais na política pública:

Cabe aos três Poderes interpretar a Constituição e pautar sua atuação com base nela. Mas, em caso de divergência, a palavra final é do Judiciário. Essa primazia não significa, porém, que toda e qualquer matéria deva ser decidida em um tribunal. Para evitar que o Judiciário se transforme em uma indesejável instância hegemônica, a doutrina constitucional tem explorado duas ideias destinadas a limitar a ingerência judicial: a de capacidade institucional e a de efeitos sistêmicos. Capacidade institucional envolve a determinação de qual Poder está mais habilitado a produzir a melhor decisão em determinada matéria. Temas envolvendo aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade podem não ter no juiz de direito o árbitro mais qualificado, por falta de informação ou de conhecimento específico. Também o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis podem recomendar uma posição de cautela e de deferência por parte do Judiciário. O juiz, por vocação e treinamento, normalmente estará preparado para realizar a justiça do caso concreto, a microjustiça, sem condições, muitas vezes, de avaliar o impacto de suas decisões sobre um segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público.

Não se ignoram, por outro lado, os questionamentos existentes sobre as atividades realizadas pela ANVISA e pela CONITEC.

O impasse sobre os medicamentos off label, objeto de debate na 80ª reunião da CONITEC, bem a possibilidade de registro tácito de medicamentos prevista na RDC 416/2020, já objeto de análise por aqui, são dois exemplos relacionados à ANVISA. 

Na CONITEC, o descumprimento do prazo legalmente estabelecido para a disponibilização das novas tecnologias incorporadas ao Sistema Único de Saúde e a incorporação de medicamentos oncológicos em um sistema que, como regra, não prevê a aquisição destes pelo Estado são dois dos maiores desafios a serem superados neste momento.

Finalmente, não pode ser afastada desse debate a redação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro após a Lei nº 13.655/2018, que positivou a necessidade de se considerar as consequências práticas das decisões judiciais. Se a decisão decide afastar as conclusões da ANVISA e/ou da CONITEC, há determinadas balizas a serem observadas. Não basta, por exemplo, invocar o direito à saúde e a dignidade da pessoa humana em seus conceitos abstratos para tornar sem efeito o ato administrativo ou obrigar a Administração a realizar algo, que ainda está pendente de análise pelos órgãos competentes. 

A respeito das questões deste texto, cabe destacar as conclusões do Professor Daniel Wang, quando se propôs a apresentar os elementos para a elaboração de uma jurisprudência construtiva na judicialização da saúde:

Ademais, o direito à saúde é um princípio, um mandado de otimização cuja realização depende das circunstâncias fáticas. O direito à saúde precisa ser entendido dentro do contexto de um sistema de saúde com mais necessidades que recursos e do qual dependem vários titulares do mesmo direito. A restrição à satisfação do direito, porém, precisa ser justificada e, dada a complexidade e multiplicidade de sujeitos envolvidos, é importante que haja regras para a alocação de recursos. O Judiciário protege melhor o direito à saúde examinando estas regras e exigindo sua observância do que fazendo alocações individuais que as violam.
Em conclusão, é juridicamente consistente e salutar para o SUS uma jurisprudência que impeça indivíduos (e indústria) de contornem as regras de alocação de recursos, mas que controle as escolhas alocativas do sistema, avaliando a regra aplicada para negar um tratamento, se ela é razoável ou arbitrária, e se foi adequadamente aplicada no caso concreto.

Não se trata o encontro proposto de um desafio fácil, porém seu enfrentamento será cada vez mais necessário num cenário em que novas tecnologias de saúde com custo milionário estão se tornando comuns e há crescente aumento da judicialização da saúde.

Como sempre defende o amigo Paulo Gabriel Vilas Bôas, colega de Advocacia Pública e de Comitê de Saúde do Estado do Paraná, é necessário que consigamos superar as nossas diferenças para debatermos de forma democrática e encontrarmos as melhores soluções para todos os interessados.

Foto do post: Noah on unsplash

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