Preços de medicamentos no Brasil: uma tragédia evitável

1 Introdução

Pouco se fala sobre as determinantes comerciais da saúde (Commercial Determinants of Health – CDOH). De uma maneira bastante simples e resumida, elas consistem nos fatores, sistemas ou práticas comerciais que interferem na saúde da população, tanto para o bem (determinantes comerciais positivas) como para o mal (determinantes comerciais negativas).

O que se propõe a discutir neste momento é uma das principais determinantes comerciais negativas da saúde pública, que consiste no preço dos medicamentos.

Segundo estimativa feita na Assembleia Mundial da Saúde da OMS em 2019, as despesas com medicamentos levam aproximadamente cem milhões de pessoas à pobreza por anoWHO guideline on country pharmaceutical pricing policies, second edition. Geneva: World Health Organization; 2020. Licence: CC BY-NC-SA 3.0 IGO..

Conforme bem observado no Health and Human Rights Resource Guide, “agora, mais do que nunca, os elevados preços dos medicamentos essenciais são cada vez mais entendidos como um problema global que afeta todos os países, e não apenas os em desenvolvimento” (livre tradução dos autores).

É usual que os consumidores obtenham, nas farmácias, elevados descontos nas compras de medicamentos. Ainda que, no âmbito individual, uma pessoa saia de uma drogaria muito feliz ao comprar seu remédio com um grande desconto ou com o chamado “convênio com o fabricante”, isso não deveria ser motivo para regozijo, mas uma lástima.

Na verdade, quando se adquire o medicamento com desconto, possivelmente o valor inicial da oferta era muito superior ao devido. Essa tragédia se agrava em relação aos menos favorecidos e nas localidades onde não há concorrência entre os varejistas.

Por outro lado, os tratamentos para doenças raras e ultrarraras – nova tendência da indústria farmacêutica – têm possibilitado a oferta de medicamentos com preços milionários, sem que se possa entender as razões para a fixação dos valores de venda ou mesmo conhecer os preços praticados em outros países, se eventualmente lá disponíveis.

Para ficar em três exemplos, medicamentos com terapia genética para tratar Atrofia Muscular Espinhal – AME (Zolgensma), outro para Hemofilia B (Hemgenix) e o recente remédio para cuidados de Distrofia Muscular de Duchene – DMD (Elevidys), foram precificados por US$ 2,1 milhões, US$ 3,5 milhões e US$ 3,2 milhões, respectivamente.

São muitas as questões que o tema suscita acerca da regulação e dos encaminhamentos possíveis, elencando-se resumidamente alguns tópicos relevantes.

2 Transparência no investimento para pesquisa e desenvolvimento e nos seus resultados

O investimento da indústria em pesquisa e desenvolvimento (P&D) de novas tecnologias em saúde representa menos de 50% de seu custo, segundo dados do Washington Post. Márcia AngellA verdade sobre os laboratórios farmacêuticos: como somos enganados e o que podemos fazer a respeito. Trad. Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Record, 2009. e Peter GotzscheMedicamentos mortais e crime organizado. Como a indústria farmacêutica corrompeu a ciência médica. Trad. Ananyr Porto Fajardo. Porto Alegre: Bookman, 2016. destacam que a maioria das descobertas de novas drogas tem origem em pesquisas oriundas de fontes públicas.

Aliás, a falta de transparência em relação ao investimento em P&D, aos gastos com publicidade dos medicamentos e aos incentivos à sua prescriçãoAinda a respeito, os Estados Unidos da América aprovaram legislação específica (Sunshine Act) obrigando laboratórios e indústrias a informarem os valores pagos para médicos. e utilização, bem como ao lucro que a venda de novos produtos gera para a indústria farmacêutica é um ponto que merece atenção. Sem que esses dados venham a público de forma clara, a própria defesa das fabricantes – que costumeiramente invocam em seu favor o alto custo do desenvolvimento de novas tecnologias para justificar os preços praticados no mercado – fica prejudicada porque carente de demonstração objetiva.

Reportagem publicada no site do jornal “O Globo” noticiou que, de acordo com dados compilados pela Bloomberg, “o faturamento da farmacêutica dinamarquesa Novo Nordisk com o Ozempic e o Wegovy (dois medicamentos cuja eficácia para o tratamento de obesidade e comorbidades a ela relacionadas, como diabetes, riscos cardíacos e pressão alta foi recentemente comprovada) é tão alto que as vendas dos dois medicamentos logo ultrapassarão todo o orçamento de pesquisa da empresa nas últimas três décadas”.

O sigilo muitas vezes atinge inclusive os preços de comercialização dos medicamentos, pactuados em acordos de negociação com países que os adquirem para os respectivos sistemas públicos de saúde. Isso compromete a análise para precificação por parte de agências reguladoras de outros países, que não sabem sequer quais os valores praticados internacionalmente.

3 Critérios de precificação e reajustamento dos medicamentos

Além da necessária transparência, é indispensável que sejam repensados os critérios de precificação, revisão ou atualização das tabelas CMED, que sofrem reajuste anual segundo padrões inflacionários a despeito do preço de vários medicamentos diminuírem ao longo do tempo. A tabela CMED é elaborada tomando como base preços de registro em nove países. No entanto, nem sempre os valores tabelados no estrangeiro são aqueles efetivamente praticados.

A desconexão entre os valores das tabelas da CMED e a realidade do mercado pode ser facilmente aferida, como citado anteriormente, nos inúmeros casos em que as farmácias concedem grandes descontos nas vendas de medicamentos aos consumidores, bastando que, para tanto, o comprador cadastre o seu CPF no estabelecimento. Isso demonstra que para atuarem com uma margem de lucro viável economicamente, as empresas podem vender os medicamentos bem abaixo dos preços máximos estabelecidos.

Há várias situações em que o valor de venda direta ao consumidor efetivamente praticado é inclusive igual ou inferior ao Preço Máximo de Venda ao Governo (PMVG) estabelecido pela CMED, que corresponde ao preço de fábrica sobre o qual ainda incide o redutor do Coeficiente de Adequação de Preço (CAP).

Tome-se como exemplo a rivaroxabana, medicamento utilizado para o tratamento de trombose e embolia pulmonar. Na apresentação de 10mg, uma caixa com 30 comprimidos do laboratório EMS S/A tem o PMVG fixado em R$ 158,22 pela CMED (tabela vigente em setembro de 2024), considerada a alíquota máxima do ICMS (22%).

Em rápida consulta a sites de vendas na internet, pode-se encontrar o mesmo medicamento, na mesma apresentação, com preço ao consumidor de R$ 69,90, em que o vendedor oferece um desconto de 73% sobre o preço original:

Outra farmácia anuncia o mesmo produto pelo valor de R$ 60,99, com desconto de 75%:

O preço final praticado por algumas farmácias quando vendem ao consumidor é inferior à metade do preço máximo de venda do medicamento ao Poder Público, e tudo isso dentro da sistemática permitida pelo tabelamento existente.

A discrepância entre a tabela CMED e a realidade do mercado, ao menos no que diz respeito a medicamentos já difundidos e que contam com alguma concorrência, é de clareza solar, fazendo com que, na prática, a estipulação de preços máximos não produza qualquer efeito mercadológico. No mundo real, só o poder público, os consumidores que adquirem os fármacos em localidades onde não haja concorrência e aqueles hipossuficientes é que acabam, na maioria das vezes, pagando os preços mais elevados.

4 Momento da fixação do preço dos medicamentos 

Outro ponto relevante no tocante à precificação dos medicamentos é o momento da fixação inicial do seu preço. Para que um determinado produto seja vendido no país é necessário o prévio registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), na forma da Lei nº 6.360/76, ocasião em que a empresa indicará o preço que pretende praticar (art. 16, VII), embora a própria lei autorize a dispensa de informações econômicas em casos específicos (art. 16, § 2º).

Todavia, depois de autorizado o registro é que se inicia o efetivo processo de precificação, com a inclusão do valor na Tabela CMED mediante procedimento previsto na Lei nº 10.742/2003, regulado pela Resolução CMED nº 2/2004. A CMED possui prazo que varia entre 60 a 90 dias para estabelecer o preço, após o que será autorizada a comercialização segundo o processo solicitado pelo fabricante.

A autorização do registro sem a prévia precificação representa um vácuo prejudicial ao consumidor, que ficará sujeito ao preço livremente pretendido pelo fabricante pelo menos até que a CMED estabeleça o justo valor. Assim, é indispensável que o registro de um medicamento na ANVISA seja precedido de precificação ou que ambos os atos ocorram concomitantemente.

Esse hiato entre o registro de um medicamento e a fixação de seu preço de tabela pode ser bastante longo. Isso impede que as novas tecnologias registradas pela ANVISA sejam avaliadas para possível disponibilização pelo SUS, já que a CONITEC deve analisar, quando recebe os pedidos de incorporação, também a relação de custo x efetividade do tratamento dentro dos limiares estabelecidos, além do impacto orçamentário que referida incorporação traria (art. 19-Q, §2º, II, e §3º, da Lei nº 8.080/90). Sem que se saiba o preço de um medicamento, é certo que essa verificação – e, consequentemente, eventual incorporação – ficam prejudicadas.

No julgamento do Tema 1234 de Repercussão Geral (RE 1.366.243), em que o Supremo Tribunal Federal tratou de uma série de questões relacionadas à judicialização da saúde no Brasil, foi constituída uma comissão especial composta por representantes dos entes federativos e das mais diversas instituições envolvidas na judicialização com o objetivo de buscar algum consenso em relação às medidas a serem adotadas. Dentre as propostas feitas pela comissão, algumas se relacionam justamente à questão agora abordada.

O ideal seria que a precificação pudesse ser contemporânea ao registro, sendo decorrência lógica do seu pedido, a ser instruído com todos os elementos necessários para que a CMED, no bojo do próprio procedimento assim instaurado, já estabelecesse os preços máximos a serem observados nas vendas.

5 As repercussões da precificação na incorporação dos tratamentos ao SUS

A incorporação de novas tecnologias de saúde ao SUS depende da análise, pela CONITEC, não apenas das evidências científicas de segurança, eficácia e efetividade do tratamento, mas também de questões econômicas ligadas à relação de custo x efetividade e ao impacto orçamentário de eventual disponibilização pelo sistema público de saúde. O mesmo ocorre em relação à avaliação de incorporação feita pela ANS em relação à saúde suplementar.

Especificamente no que diz respeito à relação de custo x efetividade, a CONITEC, em atenção ao comando do art. 19-Q, § 3º, da Lei nº 8.080/90, já emitiu suas recomendações sobreO Uso de Limiares de Custo-Efetividade nas decisões em Saúde”. A comissão fixou limiares dentro dos quais, segundo a sua avaliação técnica, os custos com a incorporação de novas tecnologias de saúde ao SUS são vantajosos quando comparados aos resultados esperados com o tratamento e acima dos quais, consequentemente, os gastos não compensariam o benefício à saúde esperado.

Para possibilitar uma avaliação tecnicamente qualificada de todos esses aspectos de ordem econômica pelas agências responsáveis, é indispensável que o arcabouço regulatório da precificação dos medicamentos seja moderno, confiável e eficiente nos propósitos a que se destina, especialmente o de fazer com que os preços praticados atendam não apenas aos interesses da indústria farmacêutica, mas também dos destinatários de seus produtos.

6 Compartilhamento de riscos com a indústria

Além das questões relacionadas à precificação dos medicamentos, existem outras medidas que podem servir como determinantes comerciais positivas no objetivo de tornar os tratamentos médicos economicamente acessíveis aos cidadãos.

Uma delas é a celebração de acordo de compartilhamento de riscos entre o SUS – ou mesmo entre operadoras de planos de saúde – e os fabricantes de medicamentos.

Muitos dos novos medicamentos que chegam ao mercado com promessas revolucionárias – e, consequentemente, com valores altíssimos – não contam com todas as evidências científicas relacionadas aos desfechos clínicos relevantes para um sistema de saúde satisfatoriamente demonstradas, especialmente quando comparadas a outros tratamentos já disponíveis no mercado.

Em outras situações, os desfechos clínicos já observados ainda não permitem aferir com precisão uma relação de custo x efetividade ou de custo x oportunidade favorável à sua disponibilização pelo SUS ou por operadoras de planos de saúde. Neste cenário de incerteza, é razoável que os riscos de um possível não atendimento das expectativas do Poder Público com a disponibilização do tratamento à população necessitada sejam compartilhados com o fabricante ao invés de assumidos em sua integralidade pelo erário.

Os acordos de compartilhamento de riscos, em que pese já venham sendo utilizados largamente em outros países, ainda são pensados de forma tímida e com contornos não muito claros no nosso país. Na experiência brasileira, pode ser mencionada a Portaria GM nº 1.297/2019, do Ministério da Saúde, que instituiu projeto piloto de acordo de compartilhamento de risco para acesso ao medicamento Spinraza (Nusinersena) para o tratamento da Atrofia Muscular Espinhal (AME 5q) tipos II e III no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS.

Não houve, entretanto, notícias recentes sobre o êxito do procedimento, tampouco a extensão deste tipo de acordos para outras hipóteses de medicamentos ultracaros. Enfim, o regime experimental de compartilhamento de risco teve seu mérito de introduzir esse novo modo de aquisição e fornecimento de tecnologia nova para as pessoas que dela necessitem, mas há críticas ponderáveis ao modelo, como bem apontado por Ramos, Thomazi e Duarte Júnior“No entanto, em relação à fixação do preço, inexiste informação sobre abatimento absoluto ou porcentual do valor do medicamento na ocorrência de determinado evento futuro, e não há informações dispondo quais incertezas devam estar presentes no contrato. Importantes cláusulas de desempenho para a maior eficácia dos acordos, como as obrigações das partes, o valor mínimo e máximo a ser pago pelo medicamento e a manutenção do acordo em caso de judicialização também não foram disciplinados. Diante disso, e por se tratar de um projeto piloto, a regulamentação específica e detalhada dos acordos de compartilhamento de risco ainda é um desafio a ser enfrentado pela Administração Pública brasileira”. Ramos, Thomazi e Duarte Júnior in Acordos de compartilhamento de riscos para aquisição do medicamento Spinraza® no Brasil: novas perspectivas sobre a proteção jurídica dos pacientes.

7 Revisão da estratégia de investimento em pesquisa e desenvolvimento

O modelo atual de pesquisa e desenvolvimento de medicamentos é concentrado fortemente na iniciativa privada.

A busca do lucro, por si, não é algo ruim. Pelo contrário, é ela que incentiva a iniciativa privada a trabalhar para o desenvolvimento científico e para descobrir tratamentos de saúde cada vez mais eficazes e que revertem em proveito da sociedade. A atividade econômica relacionada ao desenvolvimento de novas tecnologias em saúde deve, portanto, ser incentivada.

Novas tecnologias são pensadas e desenvolvidas primordialmente de acordo com o proveito econômico que elas proporcionam para as empresas e não com as necessidades de saúde pública. O resultado disso é a existência de uma vasta gama de doenças negligenciadas e de tratamentos inovadores, mas economicamente inacessíveis à população, além da falta de equidade de acesso entre sociedades de alta e baixa renda.

Por essas razões, é fundamental que o Poder Público atue na pesquisa e desenvolvimento de tecnologias em saúde, seja diretamente, com pesquisas custeadas e promovidas em instituições públicas, seja indiretamente, incentivando a iniciativa privada a operar de acordo com o interesse público.

A Constituição atribuiu expressamente ao SUS a responsabilidade por “participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos” (art. 200, I) e por “incrementar, em sua área de atuação, o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação” (art. 200, V). Além disso, determinou que “a pesquisa científica básica e tecnológica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação” (art. 218, § 1º).

Recentemente foi publicada a Lei nº 14.977, de 18/09/2024, que, acrescentando o art. 19-W à Lei nº 8.080/90, determinou que laboratórios farmacêuticos públicos produzam os princípios ativos destinados ao tratamento das doenças determinadas socialmente e que, para isso, o poder público fica autorizado a financiar, estimular, promover e buscar parcerias com outros laboratórios para transferência de tecnologia.

8 Patentes Farmacêuticas

Os direitos sobre a propriedade intelectual, mais especificamente as patentes de medicamentos novos e inovadores, também devem ser objeto de especial atenção na busca pela acessibilidade dos preços dos fármacos.

Não se discute que uma proteção adequada aos direitos de propriedade intelectual é indispensável para incentivar o investimento privado na pesquisa e desenvolvimento científicos na saúde. Por outro lado, o acesso às novas tecnologias é uma questão de saúde pública e de proteção a direito fundamental que não pode ficar refém de regras de mercado e dos interesses de empresas privadas.

No âmbito internacional, as patentes são objeto de regulamentação pelo Acordo Sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS). Sobre ele, a Organização Mundial do Comércio assim se manifestou por meio da Declaração de Doha, ocasião em que deixou clara a necessidade da conjugação das patentes farmacêuticas com a proteção da saúde pública:

4. Nós concordamos que o Acordo TRIPS não impede e não deveria impedir seus membros de adotar medidas para proteger a saúde pública. Em conseqüência, enquanto reiteramos nosso compromisso com o Acordo TRIPS, nós afirmamos que o acordo pode e deve ser interpretado e implementado de modo a apoiar o direito dos membros da OMC de proteger a saúde pública e, em particular, de promover o acesso aos medicamentos para todos.
Assim sendo, nós reafirmamos o direito dos membros da OMC de utilizarem, em toda sua extensão, as disposições do acordo TRIPS que fornecem a flexibilidade necessária a esse propósito.

A licença compulsória nos casos de interesse público, e desde que o titular da patente não atenda a essa necessidade, também está prevista no art. 71 da Lei nº 9.279/96. Com base nele, inclusive, o TCU, no Processo 009.253/2015-7, recomendou ao Ministério da Saúde que avaliasse a possibilidade e a conveniência de concessão de licenças compulsórias para exploração de patentes de medicamentos a serem eventualmente incorporados ao SUS.

É certo que a licença compulsória é medida extrema que deve ser empregada com cautela e somente como último mecanismo de viabilização de acesso a um tratamento médico necessário aos cuidados adequados da saúde pública. Deve-se priorizar, portanto, a negociação de preços com o titular da patente e a licença voluntária. Ainda assim, a quebra de patente não pode ser descartada ou tomada como tabu. Foi com ela, aliás, que o Brasil serviu de exemplo para o mundo no tratamento do vírus da HIV pelo SUS.

9 Conclusão

Há um claro descompasso – não apenas no Brasil, mas no mundo todo – entre os preços dos medicamentos, em especial das tecnologias novas e inovadoras que chegam ao mercado, e a capacidade econômica dos consumidores, dos sistemas públicos e privados de saúde.

A correlação de forças entre os interesses econômicos da indústria farmacêutica e os interesses dos Estados e dos cidadãos nos cuidados com a saúde pública está claramente pendendo para os primeiros.

Há, no entanto, diversas determinantes comerciais positivas que, se corretamente empregadas, podem reequilibrar essa relação, permitindo que o ganho de uma das partes não se dê às custas da perda da outra. Privilegiar a acessibilidade aos medicamentos não significa desestimular a atividade econômica ou o investimento privado em pesquisa e desenvolvimento. Significa compatibilizar os diversos interesses, sem que um implique a aniquilação do outro.

Para tanto, várias medidas foram sugeridas no decorrer deste estudo, quais sejam:

  1. maior transparência da indústria farmacêutica em relação aos custos com pesquisa e desenvolvimento de tecnologias de saúde, composição e negociação de preços dos medicamentos e margem de lucro na sua comercialização;
  2. aprimoramento dos critérios de precificação dos medicamentos e de reajuste das tabelas da CMED;
  3. incentivo à celebração de acordos de compartilhamento de riscos e de pagamentos baseados em desfecho;
  4. revisão das estratégias de investimento em pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias em saúde; e,
  5. compatibilização entre os direitos de propriedade intelectual – patentes – e a acessibilidade econômica de medicamentos à sociedade, inclusive, quando necessário, mediante licenciamento compulsório.

Nenhuma dessas medidas, isoladamente, será a panaceia para o problema. No entanto, todas juntas, utilizadas de forma coordenada e com critérios técnicos qualificados, certamente contribuirão muito para que os medicamentos sirvam ao principal propósito a que se destinam, que é cuidar da saúde. Para isso, eles precisam chegar aos pacientes.

Imagem foto de Etactics Inc na Unsplash




Competência Judicial sobre Medicamentos e Procedimentos de Saúde: Resumo do Tema 1234

1. Competência:

1.1 Procedimentos, órteses, próteses, cirurgias e exames

1.2 Medicamentos

1.2.1 Incorporados com pactuação na Comissão Intergestores Tripartite (CIT)

  • Relacionados no Grupo 1A do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) → Justiça Federal (União no polo passivo);
  • Relacionados no Grupo 1B do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) → Justiça Estadual (Estado no polo passivo);
  • Relacionados no Grupo 2 do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) → Justiça Estadual (Estado no polo passivo);
  • Relacionados no Grupo 3 do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) → Justiça Estadual (Município no polo passivo);
  • Relacionados no Componente Básico da Assistência Farmacêutica (CBAF) → Justiça Estadual (Município no polo passivo);
  • Relacionados no Componente Estratégico da Assistência Farmacêutica (CESAF) → Justiça Federal (União no polo passivop. 67 do voto do relator;
  • Relacionados com Saúde Indígena → Justiça Federal (União no polo passivo).
1.2.2 Medicamentos não incorporados (não incluídos nas políticas públicas ou não incluídos para a situação específica, inclusive os com uso off label) ou incorporados sem pactuação na CIT

  • Valor da causa maior que 210 salários mínimos (ver item 4, valores superiores a R$ 296.500,00, em 2024) → Justiça Federal (União responsável por 100% do custeio);
  • Valor da causa entre 7 e 210 salários mínimos (valores entre R$ 9,884,00 e R$ 296.500,00, em 2024) → Justiça Estadual (sem a participação da União, Estado custeia e depois é ressarcido em 65% ou em 80% no caso de medicamentos oncológicos);
  • Valor da causa abaixo de 7 salários mínimos (valores inferiores a R$ 9.884,00, em 2024) → Justiça Estadual (Estado custeia totalmente). 
1.1.3 Não registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA)

  • Tema 500 STF – Justiça Federal (União no polo passivo).

2. Inclusão dos outros entes no processo

O Estado e/ou o Município poderão ser incluídos nos processos para facilitar o cumprimento em todos os casos, inclusive de medicamentos incorporados. Eles podem ser compelidos a pagar ou fornecer o medicamento, mas deverá haver a condenação da União a ressarcir o Estado ou o Município via Fundo Nacional de Saúde devendo constar EXPRESSAMENTE NA DECISÃO. Nesses casos não haverá condenação em custas e despesas ao Estado ou ao Município. Eventualmente, a obrigação do Estado pode ser transferida ao Município.

3. Ônus da parte autora

3.1.1 Medicamentos não incorporados:

  • Demonstrar segurança e eficácia com base na Medicina Baseada em Evidências e inexistência de substituto terapêutico;
  • Prova de que existem ensaios clínicos randomizados ou revisão sistemática com ou sem meta-análise que indiquem a segurança e a eficácia do medicamento não incorporado. 

4. Valor da Causa

  • Deve-se considerar o valor anual do tratamento, aferido com base no Preço Máximo de Venda do Governo (PMVG), situado na alíquota zero, do fármaco ou do princípio ativo, com menor valor divulgado pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED);
  • Havendo mais de um medicamento no pedido, necessário somar o valor dos medicamentos não incorporados;
  • Não havendo valor de tabela, deve-se oficiar à CMED para que ela indique um valor. Caso ela demore em indicar, usa-se o valor da proposta inicial da parte autora;
  • Se identificar que o valor da causa não irá ultrapassar 210 salários mínimos, deve-se excluir a União e declinar para a Justiça Estadual, salvo outra hipótese competência da Justiça Federal. 

5. Aquisição do Medicamento

Na aquisição do medicamento o valor do medicamento será limitado ao preço com desconto, proposto no processo de incorporação na Conitec ou ao valor já praticado pelo ente em compra pública, o que for menor. Nunca poderá haver pagamento judicial à parte em valor superior ao teto do PMVG, devendo-se contratar com o fabricante ou distribuidor.

6. Defensoria Pública

Excepcionalmente, até 19 de setembro de 2025, nos casos de declinação da Justiça Estadual para a Justiça Federal, e na hipótese de não atendimento pela Defensoria Pública da União (DPU) – seja pela ausência de atuação institucional na respectiva Subseção Judiciária, seja por ultrapassar o limite de renda para atendimento –, a Defensoria Pública Estadual (DPE), responsável pelo ajuizamento da demanda, permanecerá conduzindo o processo até que a DPU se organize administrativamente e passe a representar os interesses da parte autora. Obs: Esse ponto é objeto de Embargos de Declaração ainda pendentes de julgamento. 

7. Novidades na análise do processo pelo Juiz

Caso o medicamento já tenha sido analisado pela Conitec, o juiz deverá fazer o exame de legalidade do ato do órgão referido, mas sem entrar no mérito. Deverá fazer o exame de acordo com as questões procedimentais e ver a teoria dos motivos determinantes (se os motivos que fundamentaram a decisão são existentes e verdadeiros).

Cumpre a parte autora terá que apontar as causas pelas quais o ato deverá ser desconsiderado (ver item 3).

8. Quadro comparativo

Para facilitar a compreensão, segue quadro comparativo acerca da competência para processamento e julgamento dos processos considerando a publicação da decisão de julgamento do Tema 1234 em 19 de setembro de 2024:

CATEGORIA COMPETÊNCIA
(ações ajuizadas antes da publicação do Tema 1234)
COMPETÊNCIA
(ações ajuizadas após a publicação do Tema 1234)
CUSTEIO DA DECISÃO JUDICIAL
(ações anteriores ou posteriores ao Tema 1234)
Medicamentos
CEAF – 1A
Justiça Federal Justiça Federal União, com posterior ressarcimento caso outro Ente cumpra
Medicamentos
CEAF – 1B
Justiça Estadual Justiça Estadual Estado, com ressarcimento pela União no caso de ausência ou insuficiência de financiamento Portaria de Consolidação nº 2/2017
Medicamentos
CEAF – 2
Justiça Estadual Justiça Estadual Estado, com posterior ressarcimento caso o Município cumpra
Medicamentos
CEAF –
3
Justiça Estadual Justiça Estadual Município, com ressarcimento pela União em caso de ausência ou insuficiência de financiamento
Medicamentos
CESAF
Justiça Federal Justiça Federal União, com posterior ressarcimento, caso outro Ente cumpra
Medicamentos
CBAF
Justiça Estadual Justiça Estadual Municípiosalvo pactuação diversa na Comissão Intergestores Bipartite, com ressarcimento pela União em caso de ausência ou insuficiência de financiamento
Medicamentos
Saúde Indígena
Justiça Federal Justiça Federal UniãoPortaria GM/MS 4/2017
Não incorporados
(Valor da causa superior a 210 SM)
Mantém a competência
(Justiça Estadual ou Federal)
Justiça Federal União, com ressarcimento posterior caso o Estado cumpra
Não incorporados
(Valor da causa entre 7 e 210 SM)
Mantém a competência
(Justiça Estadual ou Federal)
Justiça Estadual Estado, mas a União deve ressarcir 65% nos medicamentos em geral e 80% nos oncológicos, independente do trânsito em julgado p. 69, voto do Relator
Não incorporados
(Valor da causa inferior a 7 SM)
Mantém a competência
(Justiça Estadual ou Federal)
Justiça Estadual Estado, com ressarcimento caso o município pague, ressalvada pactuação diferente na CIB
Medicamentos não registrados na ANVISA Tema 500
(Justiça Federal)
Tema 500
(Justiça Federal)
União, mas sem uma definição específica no Tema 1234
Demais pedidos
(órteses, próteses insumos e regulação)
Tema 793 Tema 793 Tema 793
Nota: A modulação dos efeitos da decisão do Tema 1234 foi exclusiva quanto à competência para o julgamento das ações dos medicamentos não incorporados, motivo pelo qual em relação aos demais critérios e determinações o julgado será aplicado a todos os processos, independente da data do ajuizamento da ação.

(atualizado em 24.09.2024).

Imagem de Suzanne D. Williams em Unsplash




A Nova Lei da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer (Lei nº 14.758/2023) – um Presente de Natal, mas sem Pilhas

Presente de natal

No dia 20 de dezembro de 2023 foi publicada a Lei nº 14.758, do dia anterior, que “Institui a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e o Programa Nacional de Navegação da Pessoa com Diagnóstico de Câncer; e altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990 (Lei Orgânica da Saúde)”.

A lei é um presente de Natal para as pessoas com câncer que precisam do SUS para se tratarem. Aliás, não só para elas, mas também para os familiares e cuidadores dos doentes, gestores públicos, prestadores de serviços e trabalhadores e trabalhadoras da saúde que há tanto tempo anseiam por uma melhor estruturação da política oncológica do nosso sistema público.

No entanto, é um daqueles presentes eletrônicos ou brinquedos que o Papai Noel entrega sem pilhas e por isso demandam uma certa paciência para que a criança saiba exatamente como vai funcionar e se, uma vez ligado, será de seu agrado.

De fato, a Lei nº 14.758/2023 elenca, no seu art. 2º, os principais objetivos da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer – PNPCCI- diminuir a incidência dos diversos tipos de câncer; II – garantir o acesso adequado ao cuidado integral; e III – contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos usuários diagnosticados com câncer, que foram instituídos, como não poderia deixar de ser, de maneira genérica e na forma de escopos que deverão nortear as medidas a serem adotadas daqui para frente pelo Poder Executivo. Essas medidas é que de fato construirão a nova política pública.

Os arts. 3º, 5º, 6º e 7º da lei arrolam os princípios e diretrizes da PNPCC, que também são um farol a guiar os administradores e gestores da saúde na concretização da nova política.

Vários dos objetivos, princípios e diretrizes estabelecidos nos dispositivos legais referidos já constavam, expressa ou implicitamente, no Anexo IX da Portaria de Consolidação nº 02/2017 do Ministério da Saúde, que teve como origem a Portaria MS/GM nº 874/2013.

Ainda que isso possa indicar, em um primeiro momento, que muito do que agora deve ser feito pelos diversos entes federativos que integram o SUS já o poderia ser mesmo antes do advento da Lei nº 14.758/2023, o fato é que a encampação de todas aquelas normas programáticas pela lei lhes confere agora maior força jurídica e vinculação do Administrador aos propósitos que devem conduzir a elaboração e o aperfeiçoamento da PNPCC, uma vez que não está mais a critério do Poder Executivo defini-los ou reduzi-los.

Ainda assim, a verdade é que o efetivo cumprimento de todas as promessas trazidas com a nova lei depende da boa vontade dos gestores, da disponibilidade orçamentária e da adoção de bons critérios técnicos na concretização da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer. São essas as pilhas necessárias para que o brinquedo funcione e faça a criança feliz.

Além do mais, a edição de um marco legal de uma política pública, mesmo quando ela já vem sendo construída antes dele, é sempre um novo incentivo para que a sua regulamentação avance e se aperfeiçoe. É isso o que se espera agora com o tratamento oncológico no SUS.

Como a Lei nº 14.758/2023 acabou de “sair do forno”, é necessário algum tempo e uma reflexão detida sobre suas normas para que seja devidamente interpretada e avaliada. Por isso, opiniões ou críticas mais assertivas neste momento seriam precipitadas e temerárias. Isso não impede, de qualquer modo, que se apontem novidades por elas trazidas que já se pode perceber serem de grande impacto na política de tratamento do câncer pelo SUS.

Neste momento, o foco dos apontamentos é sobre as questões que mais costumam ser tratadas na judicialização do tratamento oncológico do Sistema Único de Saúde.

Em relação a isso, o primeiro ponto que chama a atenção na Lei nº 14.758/2023 é o princípio instituído em seu art. 7º, I, que estabelece o seguinte:

Art. 7º São princípios e diretrizes relacionados ao tratamento do paciente com diagnóstico de câncer no âmbito da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer:

I - incorporação e uso de tecnologias, consideradas as recomendações formuladas por órgãos governamentais a partir do processo de avaliação de tecnologias em saúde e da avaliação econômica;

A novidade, aqui, reside no fato de que até o presente momento, a regra era a de que os medicamentos destinados ao tratamento dos diversos tipos de câncer fossem definidos por cada Centro de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (CACON) ou Unidade de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (UNACON), observadas as Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas (DDT’s) elaboradas pelo Ministério da Saúde.

Como o próprio nome sugere, essas “diretrizes” são apenas orientações não vinculantes para que os CACON’s e UNACON’s definam quais os tratamentos que disponibilizarão a seus pacientes.

Sempre existiu, contudo, uma limitação fática para essa liberdade de definição dos CACON’s e UNACON’s quanto aos tratamentos oncológicos a serem oferecidos, que é o valor da APAC (Autorização de Procedimento Ambulatorial de Alta Complexidade) paga pelo SUS como ressarcimento das despesas com o custo de tais tratamentos.

Como é muito comum que os valores tabelados sejam insuficientes para o custeio dessas despesas e estejam defasados em comparação com o custo atual das terapias, na prática, muito do que há disponível no mercado para os cuidados com os pacientes com câncer – especialmente medicamentos e procedimentos mais modernos -, mesmo quando previsto em Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas, acaba não sendo efetivamente disponibilizado pelo sistema público de saúde.

A título de exemplo, a seguinte tabela elaborada pela Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica – SBOC bem demonstra o descompasso entre o valor da APAC e o custo mensal do tratamento com diversos medicamentos antineoplásicos que já foram incorporados ao SUS (fugindo à regra de que tais medicamentos usualmente são definidos pelos próprios CACON’s e UNACON’s sem necessidade de prévia incorporação):

Essa situação, por outro lado, muitas vezes implica afronta ao princípio da universalidade do SUS, uma vez que os CACON’s ou UNACON’s que contam com fontes complementares de recursos públicos ou privados conseguem adquirir para os seus pacientes medicamentos que outros hospitais cujas fontes adicionais são menores ou mesmo inexistentes não conseguem.

O resultado disso é a tão propalada ideia da existência “do meu SUS é melhor que o seu SUS”, que evidentemente caracteriza uma violação à isonomia no Direito à Saúde garantida pela Constituição.

Por essas razões, veio em boa hora a determinação legal de que a incorporação efetiva das tecnologias de tratamento oncológico pelo SUS é agora um dos princípios da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer.

Com isso, uma vez estando os novos tratamentos formalmente incorporados após avaliação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde – Conitec, a lógica das Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas – que, como visto, servem apenas como recomendações de tratamentos cuja disponibilização ou não pode ser decidida por cada CACON/UNACON – é substituída pela dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT’s), que são documentos elaborados pelo Ministério da Saúde que estabelecem os medicamentos ou produtos a serem obrigatoriamente ofertados pelo SUS para o tratamento das doenças de que tratam.

Esses medicamentos ou produtos são aqueles avaliados pela Conitec quanto à sua eficácia, segurança, efetividade e custo-efetividade no procedimento prévio à incorporação, tudo nos termos dos arts. 19-O e 19-Q da Lei nº 8.080/90.

É justamente isso o que dispõe o art. 10, § 4º, da nova Lei nº 14.758/2023, em outra de suas bem-vindas novidades:

Art. 10. A partir da publicação da decisão de incorporar uma nova tecnologia em oncologia, as áreas técnicas terão o prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias para efetivar sua oferta no SUS.

(...)

§ 4º A utilização dos tratamentos incorporados deverá seguir os protocolos clínicos de diretrizes terapêuticas vigentes do Ministério da Saúde ou, na sua ausência, a recomendação para utilização da tecnologia realizada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS.

Com isso, os tratamentos oncológicos passam a ser formalmente incorporados ao SUS e assim de dispensação obrigatória aos pacientes que se encontrem dentro dos critérios previstos nos PCDT’s, sem depender da decisão de cada CACON ou UNACON.

Para que esta medida funcione da maneira adequada, contudo, é preciso que o Ministério da Saúde, mediante pactuação administrativa com os demais entes federativos na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), assegurem a efetiva disponibilidade dos novos tratamentos oncológicos incorporados ao SUS, seja mediante aquisição centralizada pelo próprio ministério, seja por meio de ressarcimento dos gastos dos prestadores dos serviços de oncologia por meio das APAC’s. Essa é, inclusive, mais uma das novidades trazidas pela Lei nº 14.758/2023, cujo art. 10, §§ 1º, 2º e 3º, estabelecem que:

Art. 10. A partir da publicação da decisão de incorporar uma nova tecnologia em oncologia, as áreas técnicas terão o prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias para efetivar sua oferta no SUS.

§ 1º Na fluência do prazo definido no caput deste artigo, deverão ser discutidas e pactuadas no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite as responsabilidades de cada ente federado no processo de financiamento, de aquisição e de distribuição da tecnologia, respeitadas a manutenção do equilíbrio financeiro entre as esferas de gestão do SUS e a garantia da linha de cuidado da doença, admitidas as seguintes modalidades:

I - aquisição centralizada pelo Ministério da Saúde, prioritariamente nos casos de:

a) neoplasias com tratamento de alta complexidade;

b) incorporações que representem elevado impacto financeiro para o SUS; ou

c) neoplasias com maior incidência, de forma a garantir maior equidade e economicidade para o País;

II - Autorização de Procedimento Ambulatorial de Alta Complexidade (APAC) exclusiva para aquisição do tratamento incorporado no SUS.

§ 2º Os medicamentos e os tratamentos previstos para a modalidade referida no inciso II do § 1º deste artigo serão negociados pelo Ministério da Saúde, e poderá ser estabelecido sistema de registro de preços conforme preceitua a Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos).

§ 3º Caso a incorporação de novo procedimento resulte em incremento do teto financeiro dos gestores municipais, estaduais e do Distrito Federal, estes deverão realizar os devidos ajustes nos contratos dos serviços sob sua gestão.

O maior mérito das normas transcritas é esclarecer e conferir alguma objetividade às responsabilidades dos entes federativos no fornecimento do tratamento oncológico pelo SUS, que tem sido uma das questões mais discutidas na chamada judicialização da saúde.

Como, via de regra, os medicamentos para tratamento de câncer não eram, até o advento da Lei nº 14.758/2023, formalmente incorporados ao SUS – ou, em grande parte dos casos de exceção em que eram incorporados, não tinham as respectivas responsabilidades pactuadas na CIT -, esses fármacos não estão incluídos na RENAME e, com isso, não têm as responsabilidades pela aquisição, custeio e fornecimento objetivamente repartidas entre os entes federativos. É óbvio que, neste cenário, nenhum dos entes reconhece a própria responsabilidade nos processos judiciais que discutem essa questão.

Agora, com a entrada em vigor da Lei nº 14.758/2023, ficou definido que nos casos de tratamentos de alta complexidade, que representem elevado impacto financeiro ao SUS ou sejam relacionados a neoplasias com maior incidência, é o Ministério da Saúde que deve, prioritariamente, adquirir centralizadamente os medicamentos (art. 10, §1º, I).

Nos outros casos, o fornecimento pode ser feito mediante aquisição direta pelos prestadores de serviço e posterior ressarcimento via APAC (inciso II). Neste último caso, entretanto, os medicamentos ou tratamentos deverão ser ainda assim negociados pelo Ministério da Saúde, inclusive com o estabelecimento de sistema de registro de preços, permitindo que as entidades particulares adquirentes possam se beneficiar dos preços mais vantajosos decorrentes da negociação em grande escala (art. 10, § 2º).

É importante observar que mesmo nos casos em que os medicamentos não sejam adquiridos centralizadamente pelo Ministério da Saúde, eles devem agora ser objeto de incorporação formal pelo SUS após o devido procedimento de avaliação de tecnologia em saúde pela Conitec uma vez que, como visto, esse passou a ser um dos princípios da PNPCC (art. 7º, I da Lei nº 14.758/2023). Além disso, os medicamentos incorporados de qualquer forma precisarão estar previstos em PCDT (art. 10, §4º, da mesma lei).

É de se esperar que, nas hipóteses em que o tratamento seja disponibilizado mediante aquisição direta pelos CACON’s/UNACON’s e posterior reembolso via Autorização de Procedimento Ambulatorial de Alta Complexidade, o Ministério da Saúde revise o valor da respectiva APAC de forma que ele seja suficiente para cobrir as despesas com o referido tratamento.

De fato, agora, com a Lei nº 14.758/2023, não cabe mais aos centros de referência em tratamento oncológico definir os medicamentos ou terapias que disponibilizarão a seus pacientes. Eles passam a ser obrigados a oferecer as tecnologias incorporadas ao SUS e previstas nos PCDT’s.

É dever do Ministério da Saúde, portanto, assegurar que os prestadores de serviço sejam devidamente ressarcidos das despesas que tiverem neste mister. Não há mais espaço, com isso, para argumentos normalmente levantados no sentido de que os CACON’s/UNACON’s poderiam ou deveriam se valer de fontes de receitas alternativas para cobrir as despesas com o tratamento.

Como os custos dos novos tratamentos poderão ser objetivamente aferidos de forma mais segura, já que existe a possibilidade de implantação de sistema de registro de preços nacional (art. 10, § 2º, da Lei nº 14.758/2023), é possível apurar com maior acurácia os valores das APAC’s necessários para a cobertura das despesas com as terapias incorporadas e, consequentemente, avaliar a necessidade de seu reajustamento.

É partindo desses pressupostos, inclusive, que o art. 10, § 3º, da Lei nº 14.758/2023 prevê a possibilidade de incremento do teto financeiro dos gestores municipais e estaduais em decorrência da incorporação de novas tecnologias para o tratamento do câncer.

Em uma rápida análise, essas parecem ser as novidades mais relevantes da Lei nº 14.758/2023 em relação às questões que são normalmente discutidas judicialmente nas demandas por tratamentos oncológicos pelo SUS. São medidas que, sem dúvida, aperfeiçoam e tornam mais racional a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer.

Esse é, portanto, um grande presente de Natal aos pacientes com câncer e a todos e todas que lidam de perto com suas angústias e sofrimentos. O que resta a ser feito agora é colocar boas pilhas neste presente para que ele funcione como se espera. Isso significa, dentre outras coisas:

a) efetivamente implantar a substituição do modelo de definição dos tratamentos oncológicos por meio de Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas pelo modelo dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas;

b) pactuar na CIT as responsabilidades pela aquisição, financiamento e entrega de todos os medicamentos oncológicos já incorporados ao SUS, mas até o momento não disponíveis para os pacientes;

c) implementar um fluxo que realmente permita que, após a incorporação de um novo tratamento oncológico ao SUS, a pactuação das responsabilidades na CIT, a resolução das questões orçamentárias e a efetiva disponibilização aos cidadãos sejam feitas dentro do prazo de 180 dias previsto no caput do art. 10 da Lei nº 14.758/2023;

d) revisar e, sempre que necessário, reajustar o valor das APAC’s nos casos em que a disponibilização dos tratamentos ocorrer mediante posterior ressarcimento aos CACON’s e UNACON’s, de maneira que elas sejam de fato suficientes para a cobertura das despesas incorridas pelos prestadores de serviços;

e) o Ministério da Saúde colocar em prática a obrigação de negociar centralizadamente os preços dos medicamentos e tratamentos oncológicos incorporados, viabilizando que as tratativas em grande escala resultem em preços mais acessíveis, inclusive quando a compra dos medicamentos for feita pelos CACON’s e UNACON’s; e

f) tornar claras as responsabilidades – especialmente financeiras – de cada um dos entes federativos nas hipóteses de dispensação dos tratamentos oncológicos mediante ressarcimento via APAC.

Com isso, certamente as expectativas criadas com a nova lei não se transformarão em frustração, mas em efetiva melhoria da vida e da saúde de pessoas tão carentes do auxílio estatal como são aquelas que sofrem com o câncer.

Imagem do postFoto de Kira auf der Heide na Unsplash




Judicialização de medicamentos psiquiátricos no Brasil: a realidade nos estados do Paraná e Santa Catarina.

Mulher e saúde mental

1. Introdução:

Saúde mental é parte integrante do conceito de saúde e é considerada um direito básico para toda a população Mental health and human rights. Report of the United Nations High Commissioner for Human Rights. Um transtorno mental é caracterizado por perturbações na cognição e na regulação das emoções ou nos comportamentos, além de ser associado ao sofrimento e a incapacidades com impacto social, profissional e individualGalderisi S, Heinz A, Kastrup M, Beezhold J, Sartorius N. Toward a new definition of mental health. World Psychiatry. 2015 Jun;14(2):231–3. Geralmente, os transtornos mentais são doenças crônicas e atingem cerca de 15% da população mundial. No Brasil, estima-se que mais de 45 milhões de pessoas tenham diagnóstico de algum transtorno mentalGlobal Burden of Disease Collaborative Network. Global Burden of Disease Study 2019 (GBD 2019).. Além do sofrimento individual, esses transtornos geram impactos econômicos e sociais importantes, como maior afastamento de trabalho, mortalidade precoce e menores ganhos financeirosArias D, Saxena S, Verguet S. Quantifying the global burden of mental disorders and their economic value. eClinicalMedicine. 2022 Dec;54:101675.

Figura 1. Número absoluto de pessoas com transtorno mental no Brasil. ( Gráfico criado com Datawrapper)

Os transtornos mentais podem ser classificados e agrupados de acordo com a apresentação básica de sintomasAmerican Psychiatric Association, American Psychiatric Association, editors. Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-5. 5th ed. Washington, D.C: American Psychiatric Association; 2013. 947 p., por exemplo:

i) os transtornos ansiosos, que incluem o transtorno de pânico, o transtorno de ansiedade generalizada, fobias, entre outros;

ii) os transtornos de humor, nos quais se enquadram o transtorno depressivo maior e o transtorno bipolar;

iii) os transtornos psicóticos, em que a esquizofrenia é o principal diagnóstico; e

iv) os transtornos de uso de substâncias, quando há o uso problemático de drogas lícitas e ilícitas.

No Brasil, assim como em diversos outros países, os transtornos mentais com maior prevalência são os transtornos ansiosos, seguidos pelos transtornos de uso de substâncias e depressãoGlobal Burden of Disease Collaborative Network. Global Burden of Disease Study 2019 (GBD 2019).. O tratamento geralmente é feito por equipe multiprofissional, e diversas terapias são necessárias, inclusive a utilização de medicação.

Figura 2. Porcentagem de pessoas com transtornos mentais no Brasil. ( Gráfico criado com Datawrapper)

No Brasil, a assistência à saúde da população é oferecida de acordo com um modelo misto. Os serviços de saúde são prestados tanto pelo sistema público de saúde, conhecido como Sistema Único de Saúde (SUS), como pelo sistema de saúde privado (suplementar). Cerca de 75% da população brasileira depende do SUS como forma de acesso assistencial à saúde. A gestão do SUS é tripartite, o que significa dizer que a sua organização e suas obrigações são estabelecidas e divididas entre municípios, estados e Distrito Federal e a União. Dentre outras responsabilidades, cabe precipuamente ao governo federal elaborar diretrizes terapêuticas e orientações de diagnóstico e decidir as opções farmacológicas para as mais diversas doenças, incluindo os transtornos mentaisCastro MC, Massuda A, Almeida G, Menezes-Filho NA, Andrade MV, de Souza Noronha KVM, et al. Brazil’s unified health system: the first 30 years and prospects for the future. Lancet. 2019 Jul 27;394(10195):345–56 Souza Júnior PRBD, Szwarcwald CL, Damacena GN, Stopa SR, Vieira MLFP, Almeida WDSD, et al. Cobertura de plano de saúde no Brasil: análise dos dados da Pesquisa Nacional de Saúde 2013 e 2019. Ciênc saúde coletiva. 2021 Jun;26(suppl 1):2529–41.

De acordo com o art. 19-Q, da Lei nº  12.401/2011, que alterou a Lei nº 8.080/90, o Ministério da Saúde do Brasil define os medicamentos que devem ser disponibilizados aos usuários do SUS. Após a decisão de incorporação ao sistema, eles passam a integrar a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), uma lista que traz todas as substâncias que devem ser dispensadas gratuitamente no SUS. Essa lista contempla medicamentos de uso na rede básica (unidades de saúde e médicos de família) e na rede especializada em saúde (centros de especialidades e médicos especialistas). Quando se trata de medicamento utilizado na atenção especializada à saúde, o seu uso é regido pelos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDTs) do Ministério da Saúde do Brasil.

Em uma revisão recente, mostramos que existem hoje no SUS os PCDTs dos seguintes transtornos mentais: esquizofrenia, transtorno esquizoafetivo, transtorno bipolar, transtorno do espectro autista, tabagismo, deficiência intelectual e doença de Alzheimer. Posteriormente ao estudo, houve a publicação do PCDT para transtorno de déficit de atenção com hiperatividade. Não obstante, não existem protocolos especializados nacionais para tratamento das condições mais prevalentes, como os transtornos ansiosos, depressão e transtornos de uso de substâncias. 

Na ausência de medicamentos e de orientações oficiais sobre como tratar essas doenças, os estados e municípios podem definir se realizam uma ampliação da assistência farmacológica com a inclusão de determinada substância nas suas listas próprias de medicamentos (listas estaduais e municipais). Não raro, muitas situações clínicas ainda ficam sem tratamento adequado no SUS. Nesse caso, os usuários do sistema podem adquirir a medicação necessária com seus recursos. Quando eles não são suficientes, uma das formas para a sua obtenção tem sido o acionamento do Poder Judiciário. 

Na última década, ocorreu um aumento percentual importante dos processos judiciais no Brasil com temáticas de saúde. Estima-se que mais de 13% dos processos judiciais solicitam tratamentos (cirurgias, exames, internações, medicamentos etc.) Instituto de Ensino e Pesquisa INSPER. Judicialização da saúde no Brasil: Perfil das demandas, causas e propostas de solução – Relatório analítico propositivo Justiça Pesquisa. 2019. Há, porém, poucos estudos ou estatísticas demonstrando a frequência e as características dos medicamentos solicitados pela via judicial no Brasil. O objetivo deste artigo é demonstrar a porcentagem e a frequência dos diferentes grupos medicamentosos utilizados para tratamento psiquiátrico solicitados judicialmente contra os Estados de Santa Catarina e Paraná. 

2. Metodologia:

Foram solicitadas às Farmácias do Estado do Paraná e do Estado de Santa Catarina, as quantidades de medicações dispensadas por ordem judicial com pacientes ativos e a lista de frequências de medicações consideradas no tratamento de transtornos mentais nos respectivos estados. Eles foram separados em antidepressivos, estabilizadores de humor, antipsicóticos, estimulantes, indutores do sono, ansiolíticos e outros. Algumas das medicações utilizadas em transtornos mentais também são usadas em outras doenças, como valproato de sódio, lamotrigina, carbamazepina, gabapentina, pregabalina e duloxetina. Optamos por manter essas medicações em nossas análises.

3. Resultados:

Foram solicitados todos os medicamentos dispensados por ordens judiciais ativas na data de 27 de agosto 2022.

Ao todo, nessa data, existiam 20.985 solicitações de medicamentos pela via judicial para a Farmácia do Estado do Paraná, vinculada à Secretaria de Saúde do Estado do Paraná. Dessas, 3.176 (15%) eram de medicamentos utilizados em tratamentos psiquiátricos.

No Estado de Santa Catarina, havia 18.855 solicitações judiciais deferidas de medicamentos, e 4.923 (26%) delas eram de uso em tratamentos psiquiátricos. Considerando o total de medicações psiquiátricas fornecidas, os antidepressivos foram os mais deferidos (PR: 48%; SC: 46%). Em seguida, figuravam os antipsicóticos (PR: 24%; SC: 18%), os estabilizadores de humor (PR: 7%; SC: 15%) e os estimulantes ( PR: 12%; SC: 7%).

Em ambos os Estados, a maioria das decisões favoráveis ao usuário do SUS era para a disponibilização de drogas do grupo dos antidepressivos. Dentre os antidepressivos, a droga mais deferida judicialmente era a venlafaxina em ambos os estados. Individualmente, no Estado do Paraná, a droga mais fornecida judicialmente era o estimulante metilfenidato. Já em Santa Catarina era a venlafaxina. 

Grupo de medicamentos psiquiátricos deferidos judicialmente nos Estados do Paraná e Santa Catarina: 

Paraná  Santa Catarina
Antidepressivos 1513 (44,16%) 2285 (39,86%)
Antipsicóticos 822 (23,99%) 1013 (17,67%)
Ansiolítico e Benzodiazepínicos 161 (4,70%) 384 (6,70%)
Canabidiol 24 (0,70%) 88 (1,54%)
Estabilizador de humor 250 (7,30%) 843 (14,71%)
Estimulantes 420 (12,26%) 395 (6,89%)
Hipnóticos 76 (2,22%) 157 (2,74%)
Medicamento para Demências 53 (1,55%) 108 (1,88%)
Outros* 107 (3,12%) 459 (8,01%)
Total  3426  (100%) 5732 (100%)
*Outros: pregabalina, biperideno e naltrexona 

4. Discussão:

Nosso estudo mostra que, de todas as solicitações por via judicial, no Estado do Paraná, 15% de solicitações de medicação estão relacionadas a diagnóstico psiquiátrico  e, no Estado de Santa Catarina, 26%. 

Os antidepressivos proporcionalmente são as drogas mais deferidas judicialmente e apresentam-se como cerca da metade das solicitações. Essas drogas são utilizadas para o tratamento de quadros de depressão e ansiedade, justamente transtornos mentais de maior prevalência na população.

O segundo grupo medicamentoso mais frequentemente concedido por via judicial foram os antipsicóticos. Dentre as medicações desse grupo, no Paraná, a mais deferida foi o aripiprazol, enquanto em Santa Catarina foi a quetiapina. O aripiprazol não está presente na RENAME, o que explica as solicitações judiciais. Já a quetiapina, por outro lado, está listada na RENAME, com PCDT com previsão de dispensação para diagnósticos de transtorno bipolar, transtorno esquizoafetivo e esquizofrenia, se solicitado via componente especializado da assistência farmacêutica. A quetiapina, porém, é uma medicação que pode ser utilizada para outros transtornos, além desses aprovados, como o transtorno depressivo. Todavia, de acordo com as regras da RENAME, a medicação pode ser dispensada apenas nos diagnósticos aprovados pelos PCDTs. Uma hipótese é que a quetiapina esteja sendo solicitada para fins diversos dos previstos nos PCDTs Maan JS, Ershadi M, Khan I, Saadabadi A. Quetiapine. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022.

Existem duas situações relacionadas aos diagnósticos psiquiátricos e ao uso e à dispensação medicamentosa no SUS. A primeira situação ocorre quando um determinado transtorno mental não foi contemplado com protocolo clínico e diretrizes terapêuticas elaborado pelo Ministério da Saúde. Nesse caso, os fármacos disponíveis no SUS para o seu tratamento estarão alocados no componente básico da assistência farmacêutica. A outra se dá quando o transtorno possui protocolo clínico e diretrizes terapêuticas. Com isso, os medicamentos mencionados no PCDT para o manejo da doença integrarão o componente especializado da assistência farmacêuticaRelação Nacional de Medicamentos Essenciais – RENAME. Ministério da Saúde – Brasil; 2022.

Na primeira situação, de transtornos mentais sem PCDTs, estão os diagnósticos de transtornos depressivos e transtornos ansiosos. As drogas disponíveis para o tratamento dessas condições são aquelas listadas no componente básico da RENAME do Ministério da Saúde.

Estão disponibilizados quatro medicamentos: um inibidor seletivo de recaptação de serotonina, a fluoxetina, e três antidepressivos tricíclicos, menos utilizados atualmente pelos efeitos colaterais:  amitriptilina, clomipramina e nortriptilinaRelação Nacional de Medicamentos Essenciais – RENAME. Ministério da Saúde – Brasil; 2022. Mesmo sendo as duas condições mais prevalentes, presente em cerca de 10% da população, não há diretrizes terapêuticas produzidas pelo Ministério da Saúde do Brasil para eles. Essa pode ser a principal explicação para o fato de que quase metade das solicitações judiciais são desse grupo medicamentoso. 

Transtornos mentais que apresentam PCDTs têm medicamentos aprovados e listados na RENAME no componente especializado. Para a prescrição do medicamento, há, em tese, a necessidade da avaliação de um especialista. Como já salientado, existem hoje PCDTs para os seguintes diagnósticos: esquizofrenia, transtorno esquizoafetivo, transtorno bipolar, transtorno do espectro autista, tabagismo, deficiência intelectual, doença de Alzheimer e transtorno de déficit de atenção com hiperatividade. 

Ocorre que, mesmo quando existe um PCDT, nem todas as medicações registradas no país para uma respectiva doença são incluídas nele. Há medicamentos que não passam pela análise do órgão responsável pela avaliação de tecnologias em saúde no SUS (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde-Conitec) e há aqueles cuja incorporação não é recomendada pela comissão. Assim, drogas não contempladas nos PCDTs podem ser objeto de processo judicial. Um outro fator que provoca a judicialização de medicamentos para doenças com PCDTs é a ausência de atualização dessas orientações. O de esquizofrenia, por exemplo, foi publicado há 10 anos, sem uma nova atualização até o momento

Quando observado em número absoluto, no estado do Paraná, a medicação mais deferida foi o metilfenidato, que foi aprovado e indicado para o tratamento do transtorno de hiperatividade e déficit de atenção. O metilfenidato e a lisdexanfetamina fazem parte do grupo de medicamentos denominados de estimulantes. Essas medicações passaram por uma recente revisão da Conitec, que considerou que o custo dessas medicações eram altos e as evidências eram de baixa qualidade para a recomendação de sua incorporação no SUS.

A existência de diferenças entre as frequências de solicitações de medicações psiquiátricas nos estados do Paraná e de Santa Catarina pode ser reflexo das diferenças regionais tanto na distribuição de medicamentos por municípios, como na própria judicialização da saúde em cada ente federativo, com perfis diferentes de solicitações ao poder judiciário, por mais que ambos os estados tenham semelhanças no perfil socioeconômico Instituto de Ensino e Pesquisa INSPER. Judicialização da saúde no Brasil: Perfil das demandas, causas e propostas de solução – Relatório analítico propositivo Justiça Pesquisa. 2019 Sistema de contas regionais : Brasil 2020 / IBGE, Coordenação de Contas Nacionais. Rio de Janeiro: IBGE; 2022.

A promoção de acesso a medicamentos e novas terapias passa por uma decisão técnica, política e econômica e representa uma tarefa complexa dada a evolução na ciência médica e assistência à saúde. O equilíbrio entre a garantia de direitos fundamentais individuais dos cidadãos e a garantia de um Estado eficiente com distribuição de recursos escassos e que garanta universalidade e equidade da política pública em saúde para a população são desafios para o poder judiciárioVieira FS. Judicialização e direito à saúde no Brasil: uma trajetória de encontros e desencontros. Rev saúde pública. 2023 Feb 17;57(1):1..  

Nosso trabalho tem algumas limitações. Ele foi realizado com dados fornecidos pelas Secretarias de Estado da Saúde dos dois estados, Paraná e Santa Catarina. Portanto, não foram consideradas as demandas que tiveram ordem judicial dirigida à União ou aos municípios desses estados. Ainda, ambos os estados pertencem à região sul do Brasil, o que impossibilita a extensão de seus resultados para outras regiões do Brasil. Por ser um corte transversal, não avalia de forma longitudinal como se deu a solicitação das medicações psiquiátricas nesses estados.

Com base nos dados apresentados, podemos concluir que a judicialização para acesso a medicamentos para transtornos mentais é uma realidade. Os números mostram que um número significativo de medicamentos dispensados por ordem judicial são destinados a transtornos mentais, especialmente antidepressivos e antipsicóticos. É importante ressaltar que a RENAME, tanto no seu conteúdo básico como especializado, nem sempre é suficiente para atender às necessidades de tratamento medicamentoso em saúde mental, o que pode levar à busca por alternativas através da via judicial. Esses dados são um indicativo da importância de avaliar e implementar políticas públicas que possam ampliar o acesso a medicamentos e outras terapias em saúde mental, reduzindo assim a necessidade de recorrer à judicialização para obter tratamento.

Imagem criada no Ideogrram.ai




Coparticipação da parte autora no custeio de tratamentos de saúde fornecidos judicialmente pelo SUS

Coparticipação no SUS

Uma releitura da hipossuficiência financeira

1. Propósito da reflexão

Este artigo propõe uma reflexão acerca da possibilidade de que o indivíduo que pretende receber judicialmente do SUS um tratamento não incluído nas políticas públicas participe, ainda que parcialmente e segundo suas condições econômicas, do seu custeio.

2. O Dogma da gratuidade no SUS

De antemão, é preciso deixar claro que não se pretende afastar o acesso universal e igualitário às ações e serviços públicos do SUS, até porque ele está previsto de forma expressa no art. 196 da Constituição. Muito embora seja largamente difundida a ideia de que os tratamentos disponíveis no Sistema Único de Saúde devam ser necessariamente gratuitos, essa exigência não se faz presente de forma clara no texto constitucional. Ela pode ser tida como uma decorrência da universalidade e da igualdade de acesso ao sistema público.

Por outro lado, não parece evidentemente equivocada uma leitura da Constituição que permita interpretá-la no sentido de que a universalidade estaria resguardada na medida em que ninguém fosse impedido de ter acesso ao SUS. Assim, quem não tem condições de pagar pelo tratamento, deve recebê-lo gratuitamente, mas o pagamento, ainda que parcial, poderia ser exigido daqueles que possuem capacidade financeira para tanto.

Essa lógica prestigiaria também o princípio da igualdade por tratar de maneira distinta situações fáticas diferentes. Em abono a esse entendimento, pode-se socorrer do art. 145, II, da Constituição, que autoriza os entes federativos a instituírem taxas pela utilização de serviços públicos específicos e divisíveis prestados aos contribuintes, bem como do art. 175, parágrafo único, III, também da Constituição, que atribui à lei ordinária dispor sobre a política tarifária relacionada à prestação de serviços públicos.

Nessa perspectiva, a gratuidade do SUS seria apenas uma opção legislativa, mas não uma imposição constitucional. Essa opção, de qualquer forma, foi feita pelo legislador ordinário, haja vista o teor do art. 43 da Lei nº 8.080/90:

Art. 43. A gratuidade das ações e serviços de saúde fica preservada nos serviços públicos contratados, ressalvando-se as cláusulas dos contratos ou convênios estabelecidos com as entidades privadas.

Por outro lado, nada impediria, a prevalecer a conclusão de que a Constituição não exige a gratuidade dos serviços do SUS em toda e qualquer situação, que alguma forma de cobrança viesse a ser prevista em lei, mas respeitando os princípios da universalidade e igualdade de acesso, de forma que nenhum indivíduo seja privado dos tratamentos oferecidos no sistema público de saúde por não ter condições financeiras de custeá-los.

A respeito dessa interessante discussão, vale uma leitura das seguintes lições de ALCENI GUERRA, BÁRBARA MENDONÇA BERTOTTI e SÍLVIO GUIDIComentários à Lei Orgânica da Saúde – LOS, Quartier Latin, p. 381/385:

Há vozes na doutrina que entendem a gratuidade como princípio do SUS. Consequência disso seria a impossibilidade de o legislador alterar o conteúdo do artigo 43 da LOS, de modo a tornar possível a cobrança por ações e serviços executados no âmbito do SUS. Essa é a posição de Suelli Gandolfi Dallari e Vidal Serrano. Esses professores entendem que a gratuidade no SUS é princípio, que aparece de forma implícita no ordenamento jurídico. Entendem que o princípio da gratuidade deriva da lógica da arrecadação de tributos que viabilizam as ações e serviços de saúde. Argumentam, ainda, a existência de tributos vinculados à saúde, como as taxas derivadas da fiscalização sanitária, por exemplo.
(...)
A posição nesse trabalho é diferente, compreendendo que a gratuidade é mera opção do legislador, que atualmente comporta uma série de exceções. Ou seja, a gratuidade dos serviços públicos de saúde não deriva de princípio, mas sim de regra.
(...)
Partindo dessa premissa (gratuidade como regra), ela pode ser alterada pela técnica legislativa adequada, podendo haver situações nas quais seja legítima a cobrança por certas atividades executadas no âmbito do SUS.
Se é certo que nem todas as atividades administrativas são financiadas por meio de arrecadação que exigem a lógica de prestação/contraprestação, a espécie de atividade serviço público parte da premissa da possibilidade de cobrança de taxa ou tarifa. E a política tarifária é base constitucional (art. 175) do regime jurídico da prestação de qualquer serviço público. Ocorre que, por uma opção do legislador infraconstitucional, decidiu-se que a política, nas hipóteses de prestação de serviços de saúde, seria a de subsídio integral.
(...)
Assim, a gratuidade não é, portanto, princípio, pois não “dispõe sobre os conteúdos intelectivos, racionalizados juridicamente e que representam os valores superiores adotados pela sociedade” brasileira. A gratuidade é mera opção do legislador infraconstitucional, que, como regra geral, preferiu impedir que os serviços públicos de saúde tenham uma política de financiamento ligada, total ou parcialmente, à cobrança de taxa ou tarifa.
(...)
Evidentemente que, alterada a predileção legislativa e abrindo-se com maior amplitude a possibilidade de cobrança pelo uso do serviço público de saúde, o administrador público deverá organizar o serviço de tal forma a viabilizar o acesso àqueles que não detiverem condições de arcar com os custos da atenção à sua saúde, impedindo que a existência de tarifa ou taxa seja um impedimento ao dever estatal e ao direito do cidadão de viver dignamente.

É preciso extrema cautela, de qualquer forma, na eventual adoção do entendimento de que é possível a cobrança por ações e serviços de saúde do SUS a quem tenha condições de pagar por eles. Acontece que o SUS foi concebido como um sistema universal e igualitário de saúde para toda a população, sem distinção de renda, classe social ou profissional, raça, idade ou qualquer outra. Antes do seu advento, a iniciativa privada e os parcos serviços públicos então existentes definitivamente não atendiam a esse propósito, o que fazia com que somente as classes mais privilegiadas tivessem acesso efetivo a serviços de qualidade.

Neste cenário, a hipotética permissão de cobrança pelas ações e serviços de saúde do SUS não poderia, em hipótese alguma, resultar em redução do já insuficiente orçamento da saúde, tampouco em um avanço da iniciativa privada sobre o sistema público que tirasse o seu controle das mãos do Estado, seja em termos financeiros, gerenciais, executivos ou de formulação de política pública, porque essa foi uma das maiores conquistas da sociedade brasileira com a Constituição de 1988.

Além do mais, seria razoável a destinação obrigatória ao orçamento do SUS de todos os pagamentos que viessem a ser feitos em razão de serviços por ele prestados. Assim, a cobrança funcionaria como um mecanismo de equidade no financiamento da saúde pública, com indivíduos que possuem condições econômicas de pagar pelos atendimentos recebidos, auxiliando no custeio dos atendimentos daqueles que não as possuem.

Tudo isso está sendo dito apenas para demonstrar que a participação do cidadão no custeio de um tratamento de saúde oferecido pelo SUS, quando há efetivas condições econômicas para tanto, não é algo inimaginável em relação àquilo que está disponível nas políticas públicas de saúde.

3. Uma noção ampliada e mais profunda da hipossuficiência econômica e o dever de coparticipação no custeio de tratamentos não padronizados requeridos judicialmente

O foco deste artigo, entretanto, diz respeito aos tratamentos demandados judicialmente, mas não padronizados no SUS. Em relação a eles, há fundamentos consistentes que permitem atribuir às autoras e autores das ações uma participação no custeio da prestação pretendida quando tenham condições financeiras para tanto. Não há, aqui, nenhuma afronta ao princípio da igualdade ou da universalidade do SUS porque as ações e serviços públicos de saúde já incorporados ao sistema público continuam disponíveis de forma gratuita a todos que deles necessitarem.

Agora, se o tratamento que se busca não é oferecido aos demais cidadãos, é razoável que o postulante, no mínimo, não tenha recursos para obtê-lo por conta própria, já que pretende algo além do que todos os outros recebem. Essa exigência tem sido aceita sem maiores divergências na jurisprudência. Ela consta expressamente na tese do Tema 106 dos recursos repetitivos do STJ (REsp 1.657.156), segundo a qual:

A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos:
i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;
ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito;
iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência.

Já no tema 6 de repercussão geral do STF (RE 566.471), que trata do dever do Estado de fornecer medicamentos de alto custo, ainda que a respectiva tese não tenha sido até o momento definida, ao menos seis ministros (Marco Aurélio, Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Rosa Webber e Ricardo Lewandowski) já consignaram em seus respectivos votos que a hipossuficiência econômica do demandante é um requisito a ser observado para tanto.

O que se defende neste momento é que não se deve ater a uma lógica estritamente dualista em relação à hipossuficiência econômica, de maneira a considerar que ou o autor da ação não tem condições financeiras de pagar por todo o tratamento – e assim pode recebê-lo do Estado -, ou tem condições de custeá-lo totalmente, caso em que não terá direito de recebê-lo do SUS.

Sem dúvida, haverá situações em que a autora ou o autor da demanda terá condição de pagar ao menos parte do tratamento vindicado, mas não a sua totalidade. A hipossuficiência, nessas hipóteses, é apenas parcial. Neste caso, se a capacidade econômica permite uma colaboração com o Estado no pagamento do tratamento que não é oferecido aos demais indivíduos, assim deve ser feito.

Essa possibilidade de análise mais ampla da hipossuficiência financeira, que em determinadas situações pode ser apenas parcial e por isso merece tratamento diferenciado, foi adotada pelo Código de Processo Civil na normatização da assistência judiciária gratuita. De fato, seu artigo 98, §§5º e 6º, dispõe o seguinte:

Art. 98. A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei.
(...)
§ 5º A gratuidade poderá ser concedida em relação a algum ou a todos os atos processuais, ou consistir na redução percentual de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento.
§ 6º Conforme o caso, o juiz poderá conceder direito ao parcelamento de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento.

Atentou-se o legislador às situações em que a parte requerente da assistência judiciária gratuita não tem condições econômicas para arcar com a integralidade das custas e despesas processuais, mas tem para pagar ao menos parte delas. Não há razões para que essa distinção não seja feita também em relação à hipossuficiência econômica exigida como condição para o fornecimento judicial de tratamentos não incluídos nas políticas públicas do SUS.

Pelo contrário, o tratamento diferenciado dispensado às pessoas que possuem condições de arcar com ao menos parte das despesas de um medicamento ou procedimento médico postulado em Juízo é medida que concretiza os princípios da equidade e da isonomia.

A equidade impõe que os recursos públicos sejam destinados prioritariamente àqueles que dependem exclusivamente do Estado para os cuidados com a sua saúde e não ao pagamento de despesas com tratamentos não disponíveis aos cidadãos em geral e em favor de pessoas que podem arcar, ainda que parcialmente, com os seus custos.

Já a isonomia exige tratamento diferenciado a situações distintas. Por isso, referido princípio é afrontado quando um indivíduo que possui condições financeiras de arcar com parcela dos custos de um tratamento não incorporado ao SUS recebe tratamento idêntico àquele que não possui condição alguma. Da mesma maneira, é anti-isonômica a conduta de tratar aquele primeiro indivíduo da mesma maneira que um outro que tem condições de pagar a totalidade das despesas do medicamento ou prestação de saúde requerida em Juízo e não incorporada ao SUS.

A única solução, portanto, que atende à equidade e à isonomia nas ações judiciais que buscam a concessão de tratamento médico não incorporado ao SUS, desde que preenchidos os demais requisitos impostos pela jurisprudência, é:

a) reconhecer o direito ao recebimento do tratamento independentemente de qualquer coparticipação financeira àqueles que não têm condições para tanto;

b) não reconhecer o direito ao recebimento do tratamento àqueles que possuem condições financeiras para arcar com os seus custos; e

c) reconhecer o direito ao recebimento do tratamento, mas mediante a devida coparticipação no custeio, àqueles que possuem condições de pagar parte das despesas, mas não a sua integralidade.

A repartição do custeio do tratamento, em determinadas hipóteses, entre o Estado e o beneficiário da tutela jurisdicional reduz o impacto orçamentário direto da judicialização da saúde. Além disso, provavelmente acarretará análises mais criteriosas dos demandantes na propositura das ações judiciais.

O ser humano intuitivamente tem um maior zelo por aquilo que adquire ou recebe com algum custo próprio quando comparado ao que é “de graça”. Por outro lado, sopesa com parâmetros mais restritos a real necessidade de um bem da vinda cuja aquisição demanda algum ônus seu.

4. Propostas de critérios para a aferição dos graus de hipossuficiência

O ponto mais sensível para essa análise ampliada da hipossuficiência econômica aqui proposta é delimitar critérios de alguma forma objetivos para diferenciar as situações em que o indivíduo não tem condições alguma de participar do custeio do tratamento médico reivindicado em juízo daquelas em que há condições de custeio total ou, mais difícil ainda, de custeio ao menos parcial e, neste caso, em que proporção.

A definição de parâmetros seguros, objetivos e justos para a distinção das diversas situações demanda reflexão mais aprofundada e estará sujeita, inevitavelmente, a críticas. Por isso, não se pretende neste momento propor uma solução definitiva ou mesmo reputada como a mais correta. Se a compreensão alargada da hipossuficiência econômica aqui defendida for aceita, certamente surgirão propostas interessantes de fixação de critérios para a definição de incapacidade financeira total, parcial ou capacidade financeira plena para custeio dos tratamentos. O importante neste momento é lançar uma ideia para discussão.

Ainda assim, com o propósito de alimentar o debate, duas sugestões para a fixação de critérios de hipossuficiência econômica nas ações de medicamentos podem ser feitas.

A primeira se dá por analogia ao entendimento jurisprudencial acerca dos critérios para concessão de assistência judiciária gratuita nos processos judiciais e para a penhora de parcela dos salários dos devedores em execuções judiciais.

A regra da impenhorabilidade de salários e vencimentos incide apenas quanto à fração do patrimônio pecuniário do devedor que se revele efetivamente necessária à manutenção de seu mínimo existencial, bem como à preservação de sua dignidade e da de seus dependentes, conforme entendimento firmado pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça no EREsp nº 1.582.475:

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. IMPENHORABILIDADE DE VENCIMENTOS. CPC/73, ART. 649, IV. DÍVIDA NÃO ALIMENTAR. CPC/73, ART. 649, PARÁGRAFO 2º. EXCEÇÃO IMPLÍCITA À REGRA DE IMPENHORABILIDADE. PENHORABILIDADE DE PERCENTUAL DOS VENCIMENTOS. BOA-FÉ. MÍNIMO EXISTENCIAL. DIGNIDADE DO DEVEDOR E DE SUA FAMÍLIA.
1. Hipótese em que se questiona se a regra geral de impenhorabilidade dos vencimentos do devedor está sujeita apenas à exceção explícita prevista no parágrafo 2º do art. 649, IV, do CPC/73 ou se, para além desta exceção explícita, é possível a formulação de exceção não prevista expressamente em lei.
2. Caso em que o executado aufere renda mensal no valor de R$ 33.153,04, havendo sido deferida a penhora de 30% da quantia.
3. A interpretação dos preceitos legais deve ser feita a partir da Constituição da República, que veda a supressão injustificada de qualquer direito fundamental. A impenhorabilidade de salários, vencimentos, proventos etc. tem por fundamento a proteção à dignidade do devedor, com a manutenção do mínimo existencial e de um padrão de vida digno em favor de si e de seus dependentes. Por outro lado, o credor tem direito ao recebimento de tutela jurisdicional capaz de dar efetividade, na medida do possível e do proporcional, a seus direitos materiais.
4. O processo civil em geral, nele incluída a execução civil, é orientado pela boa-fé que deve reger o comportamento dos sujeitos processuais. Embora o executado tenha o direito de não sofrer atos executivos que importem violação à sua dignidade e à de sua família, não lhe é dado abusar dessa diretriz com o fim de impedir injustificadamente a efetivação do direito material do exequente.
5. Só se revela necessária, adequada, proporcional e justificada a impenhorabilidade daquela parte do patrimônio do devedor que seja efetivamente necessária à manutenção de sua dignidade e da de seus dependentes.
6. A regra geral da impenhorabilidade de salários, vencimentos, proventos etc. (art. 649, IV, do CPC/73; art. 833, IV, do CPC/2015), pode ser excepcionada quando for preservado percentual de tais verbas capaz de dar guarida à dignidade do devedor e de sua família.
7. Recurso não provido. 
(STJ, Corte Especial, Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 1.582.475/MG, rel. Min. Benedito Gonçalves, data da decisão: 03/10/2018, DJe 16/10/2018)

Se é possível destinar parte do salário da pessoa para o pagamento de dívidas cobradas em juízo – e isso já considerando todas as despesas já existentes para a própria manutenção -, certamente também o será para o custeio de sua própria saúde. Restaria definir, então, em que situação a destinação de parte da remuneração mensal não comprometeria a subsistência do devedor/paciente.

No julgamento do IRDR nº 25 (Processo Representativo: 50300419520194047000/PR), que teve como objeto os critérios para a concessão de Assistência Judiciária Gratuita nos processos judiciais, o TRF/4ªR firmou a seguinte tese:

"A gratuidade da justiça deve ser concedida aos requerentes pessoas físicas cujos rendimentos mensais não ultrapassem o valor do maior benefício do regime geral de previdência social, sendo prescindível, nessa hipótese, qualquer comprovação adicional de insuficiência de recursos para bancar as despesas do processo, salvo se aos autos aportarem elementos que coloquem em dúvida a alegação de necessidade em face, por exemplo, de nível de vida aparentemente superior, patrimônio elevado ou condição familiar facilitada pela concorrência de rendas de terceiros. Acima desse patamar de rendimentos, a insuficiência não se presume, a concessão deve ser excepcional e dependerá, necessariamente, de prova, justificando-se apenas em face de circunstâncias muito pontuais relacionadas a especiais impedimentos financeiros permanentes do requerente, que não indiquem incapacidade eletiva para as despesas processuais, devendo o magistrado dar preferência, ainda assim, ao parcelamento ou à concessão parcial apenas para determinado ato ou mediante redução percentual."

Considerou o tribunal, então, que os rendimentos que atingem até o valor teto dos benefícios do Regime Geral da Previdência Social são presumidamente indispensáveis para o sustento dos requerentes da AJG e de suas famílias, de forma que não podem ser comprometidos com o pagamento de custas e demais despesas processuais. Quando os rendimentos superam aquele patamar, deverão os requerentes comprovar que, ainda assim, são necessários para a sua sobrevivência digna e por isso autorizariam a obtenção do benefício econômico processual.

Por questão de coerência, este mesmo raciocínio poderia ser utilizado na análise da hipossuficiência econômica nas ações de medicamentos. Poderia se presumido, então, que o paciente que aufere rendimentos mensais em valores que não superam o teto dos benefícios previdenciários pagos pelo INSS deles necessitam para a digna manutenção de sua sobrevivência e de sua família, não havendo possibilidade de coparticipação no custeio dos tratamentos vindicados.

Por outro lado, quando os rendimentos superam tal patamar, a presunção seria a de que há possibilidade de repartição dos custos sem que a parte interessada tenha comprometida a sua própria manutenção e a de seus familiares. Neste caso, a parcela de participação da parte autora da ação judicial poderia corresponder a 20% ou 30% de sua remuneração mensal total, que são os patamares normalmente fixados pela jurisprudência para a penhora nos processos de execução. O valor remanescente do tratamento seria arcado pelo Estado.

É preciso ressalvar, entretanto, que, tratando-se de presunções, elas poderiam ser afastadas em cada caso concreto pelas partes interessadas. Sendo assim, seria facultado ao autor da ação comprovar que, mesmo auferindo rendimentos superiores ao teto dos benefícios do Regime Geral da Previdência Social, suas particulares condições impediriam que parcela de sua renda fosse comprometida com o custeio do tratamento. Por outro lado, poderiam os réus comprovar que, ainda que o autor receba rendimentos inferiores ao teto do INSS, seu padrão de vida é compatível com a destinação de parcela de seus rendimentos para o pagamento do medicamento ou procedimento médico.

A segunda sugestão de fixação de critérios objetivos para a coparticipação dos autores e autoras das ações de saúde no custeio dos tratamentos é a correlação com as faixas de rendimentos para a fixação das alíquotas de pagamento do imposto de renda das pessoas físicas.

Desta forma, neste ano de 2023:

a) estariam dispensados de qualquer coparticipação as pessoas com rendimentos mensais de até R$ 1.903,98 (faixa 1 do IR – isenção);

b) aqueles que ganham entre R$ 1.903,99 e R$ 2.826,65 deveriam participar do custeio até o limite de 7,5% de seus rendimentos mensais (faixa 2 do IR – alíquota de 7,5%);

c) os que ganham entre R$ 2.826,65 e 3.751,05 participariam até o limite de 15% de seus rendimentos (faixa 3 do IR – alíquota de 15%);

d) se os ganhos mensais forem entre R$ 3.751,06 e R$ 4.664,68, a participação seria de até 22,5% dos rendimentos (faixa 4 do IR – alíquota de 22,5%);

e) por fim, quando os rendimentos mensais fossem acima de R$ 4.664,68, a coparticipação seria até o limite de 27,5% (faixa 5 do IR – alíquota de 27,5%).

Caso o custo do tratamento seja inferior ao limite da coparticipação do autor da ação, então ele deveria arcar sozinho com as despesas, ou seja, sua pretensão não poderia ser acolhida pelo Poder Judiciário.

Como dito anteriormente, ambas as propostas certamente podem ser objeto de críticas e por isso substituídas por outras, desde que sejam razoavelmente objetivas e com aplicação prática viável. Mesmo assim, há ao menos ideias iniciais que podem ser utilizadas para que a judicialização da saúde, aplicando um conceito mais amplo de hipossuficiência financeira, seja mais equânime, isonômica e menos prejudicial ao erário.

Não é fácil buscar alguma inovação jurídica em matéria que desperta tantos questionamentos e controvérsias. Essa é, entretanto, a razão para se tentar algo de novo. Como disse Platão, “o começo é a metade do todo”.

Imagem do post Mathieu Stern na Unsplash




Responsabilidade Solidária Consentida na Judicialização da Saúde – A Rede SUS dentro dos Processos

Solidarity

Por que deixar para o outro decidir, quando se pode fazer por conta própria?

Os litígios presentes na judicialização da saúde envolvendo o SUS são multipolares. Não há apenas uma lide entre o autor e o réu, como normalmente ocorre nos processos em geral.

Via de regra, o polo passivo nas ações em que se busca o recebimento de tratamento médico do SUS é composto por dois ou três entes federativos distintos. É bastante comum, com isso, que surjam no curso dos processos litígios específicos entre os próprios réus no que diz respeito à responsabilidade pelo fornecimento e pelo custeio do tratamento. Em suma, nenhum deles reconhece a responsabilidade pela entrega ou pelo financiamento do medicamento, do produto médico ou do procedimento concedidos judicialmente.

Esse cenário faz-se presente sobretudo nos processos em que se pretende o recebimento de tecnologia em saúde não incorporada ao sistema público.

A diferença entre uma lide multipolar nas ações de saúde e uma lide tradicional pode ser assim representada:

Multi

Com isso, há que se resolver não apenas se um tratamento deve ou não ser oferecido ao paciente demandante, mas também quem é o responsável pelo seu oferecimento. Aliás, a segunda discussão tem ganhado cada vez mais atenção dos tribunais, tornando-se tão ou até mesmo mais debatida do que a primeira. Basta verificar, por exemplo, que ela já é objeto de três temas afetados pelas cortes superiores como precedentes qualificados que já foram ou estão sendo decididos.

O Supremo Tribunal Federal abordou a responsabilidade dos entes federativos nas ações de saúde no Tema 793 de Repercussão Geral, quando firmou a seguinte tese:

Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.

Como a controvérsia jurisprudencial não cessou mesmo após o seu advento e sobretudo em relação aos tratamentos não incorporados ao SUS, o STF afetou um novo tema relacionado à mesma questão, que é o de número 1.234, no qual a corte apreciará a “Legitimidade passiva da União e competência da Justiça Federal, nas demandas que versem sobre fornecimento de medicamentos registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, mas não padronizados no Sistema Único de Saúde – SUS”.

Paralelamente a isso, o Superior Tribunal de Justiça também decidirá, em precedente qualificado, questão relacionada à responsabilidade dos entes federativos nas ações de saúde. No Incidente de Assunção de Competência 14, a corte afetou a seguinte matéria a julgamento:

Tratando-se de medicamento não incluído nas políticas públicas, mas devidamente registrado na ANVISA, analisar se compete ao autor a faculdade de eleger contra quem pretende demandar, em face da responsabilidade solidária dos entes federados na prestação de saúde, e, em consequência, examinar se é indevida a inclusão da União no polo passivo da demanda, seja por ato de ofício, seja por intimação da parte para emendar a inicial, sem prévia consulta à Justiça Federal.

Esse cenário demonstra como as controvérsias relacionadas à divisão de responsabilidades entre os entes federativos nas ações de saúde vêm ocupando espaço nos tribunais.

A jurisprudência, que em um primeiro momento parecia estar sendo aperfeiçoada e sedimentada no trato da questão, posteriormente deu demonstrações claras de persistência da controvérsia, especialmente em razão da divergência de entendimentos entre o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça quanto à responsabilidade solidária simples entre os entes federativos e o litisconsórcio necessário da União nas demandas por tratamentos não padronizados.

Enquanto o STF, após o julgamento do Tema 793 e por ambas as suas turmas, vem reiteradamente decidindo que a União deve necessariamente compor o polo passivo dos processos em que se pretende o recebimento de tratamentos não incorporados ao SUS, o Superior Tribunal de Justiça – interpretando a tese do Tema 793 do STF em sentido contrário ao da própria Corte Suprema –  permanece com o entendimento de que os entes da federação são solidariamente responsáveis pela dispensação de quaisquer tratamentos postulados em Juízo, cabendo aos autores das ações escolher contra quais pretende demandar. Espera-se ansiosamente que com o julgamento do Tema 1.234/STF e do IAC 14/STJ a controvérsia jurisprudencial seja finalmente dirimida.

Independentemente disso, o fato é que as disputas internas entre os entes federativos sequer deveriam fazer parte da judicialização da saúde. Acontece que o SUS é por sua própria definição um Sistema Único de Saúde, que forma uma rede regionalizada e hierarquizada, nos expressos termos do art. 198 da Constituição. É mais do que evidente que isso não significa que todos os entes federativos devam prestar e possam ser cobrados por quaisquer serviços de saúde à população. Muito pelo contrário, é justamente pela atuação em rede que cada um deles possui competências próprias definidas pela legislação e atos normativos de regência. Há que se respeitar essa repartição de competências também em sede judicial.

Ainda assim, o fato é que essa rede pressupõe uma atuação coordenada e harmônica entre União, Estados e Municípios. Um dos principais pilares do sistema de operação em rede do SUS é a pactuação das responsabilidades dos entes federativos nas Comissões Intergestores Tripartite e Bipartite.

O art. 14-A da Lei nº 8.080/90 é bastante elucidativo quanto à importância dessas comissões na estruturação do SUS, especificamente em relação às responsabilidades dos entes federativos:

Art. 14-A.  As Comissões Intergestores Bipartite e Tripartite são reconhecidas como foros de negociação e pactuação entre gestores, quanto aos aspectos operacionais do Sistema Único de Saúde (SUS). 
Parágrafo único.  A atuação das Comissões Intergestores Bipartite e Tripartite terá por objetivo: 
I - decidir sobre os aspectos operacionais, financeiros e administrativos da gestão compartilhada do SUS, em conformidade com a definição da política consubstanciada em planos de saúde, aprovados pelos conselhos de saúde;
II - definir diretrizes, de âmbito nacional, regional e intermunicipal, a respeito da organização das redes de ações e serviços de saúde, principalmente no tocante à sua governança institucional e à integração das ações e serviços dos entes federados;
III - fixar diretrizes sobre as regiões de saúde, distrito sanitário, integração de territórios, referência e contrarreferência e demais aspectos vinculados à integração das ações e serviços de saúde entre os entes federados. 

É na Comissão Intergestores Tripartite que se pactuam, por exemplo, as responsabilidades pelo custeio, aquisição e entrega dos medicamentos, produtos de interesse para a saúde e procedimentos disponíveis no SUS, nos termos dos arts. 19-P, I e 19-U, da Lei nº 8.080/90. Vejamos:

Art. 19-P.  Na falta de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, a dispensação será realizada:
I - com base nas relações de medicamentos instituídas pelo gestor federal do SUS, observadas as competências estabelecidas nesta Lei, e a responsabilidade pelo fornecimento será pactuada na Comissão Intergestores Tripartite; 
(...)
Art. 19-U.  A responsabilidade financeira pelo fornecimento de medicamentos, produtos de interesse para a saúde ou procedimentos de que trata este Capítulo será pactuada na Comissão Intergestores Tripartite.

Além disso, as Comissões Intergestores Bipartites tratam da divisão de responsabilidades entre os Estados e Municípios nos mais diversos serviços de saúde por eles desempenhados.

Tudo isso serve para demonstrar que os entes federativos têm a prerrogativa de, negociando entre si e dentro dos critérios gerais estabelecidos em lei, definirem as próprias responsabilidades no SUS. Uma vez definidas, eles estão vinculados ao que foi pactuado.

Dentro de todo este contexto, separemos a judicialização da saúde em dois cenários: o que trata de demandas por tratamentos já incorporados ao SUS e o que diz respeito a pedidos de tratamentos não incorporados.

No que diz respeito às demandas por tratamentos incorporados, não há nenhuma razão para que o Poder Judiciário deixe de dirigir suas determinações ao ente administrativamente competente para prestá-los. É isso o que determina, aliás, a parte final da tese do Tema 793/STF (“…diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências”), cuja clareza, entretanto, nem sempre é vista na jurisprudência.

Por outro lado, também não há nenhum motivo para que o ente que é o responsável por oferecer um tratamento já incorporado ao SUS, mas que veio, por alguma razão, a ser demandado judicialmente, não se disponha voluntariamente a entregá-lo.

Questões processuais à parte, isso pode ser feito independentemente de sua presença no processo, já que sequer uma ordem judicial precisaria ser proferida para assegurar um tratamento segundo os protocolos clínicos instituídos. Se ainda assim a ordem foi dada, a esperada atuação em rede dentro SUS impõe que o ente que figura como réu no processo, caso não seja o competente para oferecer o tratamento, diligencie junto ao que é para que a decisão judicial seja atendida. Da mesma maneira, o ente que não está no processo, mas é o que tem atribuição para oferecer o serviço, deve atender à solicitação do que foi demandado judicialmente. É assim, afinal, que ambos atuariam fora de um processo judicial.

De fato, se um paciente busca um determinado atendimento no SUS junto a uma instituição que não é a porta de entrada definida nos fluxos do sistema de saúde, não se pode imaginar que o atendimento seja simplesmente recusado sem o devido esclarecimento e encaminhamento do cidadão ao serviço correto. O serviço que constitui a porta de entrada, por sua vez, não vai recusar o atendimento pelo fato de o encaminhamento ter sido feito por outro órgão que não tinha atribuição para prestá-lo. Não há nenhuma razão, então, para que o mesmo procedimento não seja observado em sede judicial. Se for, não haverá mais discussão entre os entes federativos quanto à legitimidade passiva, litisconsórcio necessário, ressarcimentos etc.

Já em relação às demandas por tratamentos não incorporados, a situação é um pouco mais complexa, mas nem por isso impossível de ser resolvida.

É certo que, não sendo um tratamento incluído nas políticas públicas de saúde, logicamente as competências para o seu custeio e disponibilização não foram pactuadas entre os entes federativos. Por conseguinte, nenhum deles assumirá espontaneamente a obrigação do cumprimento de ordem judicial que o conceda.

Para solucionar esse impasse, entretanto, basta que a União, os Estados e os Municípios pactuem nas Comissões Intergestores as responsabilidades relacionadas aos atendimentos de ordens judiciais de tratamentos não padronizados.

Neste ponto, é preciso ter em mente que, queira-se ou não, a judicialização da saúde é um fato posto e que certamente não acabará tão cedo, apesar de poder e dever ser cada vez mais qualificada e menos invasiva. Por essa razão – e, repise-se, ainda que não seja desejável -, ela deve estar permanentemente presente no planejamento das políticas públicas de saúde.

Se a judicialização é inevitável, é preciso, no mínimo, que com ela se lide estrategicamente.

Sendo assim, os dados da judicialização da saúde devem ser devidamente coletados, tratados e analisados pelos técnicos e gestores dos entes federativos para que, com base neles, os próprios entes avaliem a melhor forma de divisão de responsabilidades entre si, seguindo, sempre que possível, as mesmas linhas gerais adotadas para os tratamentos já disponíveis no SUS e pactuados.

Essa divisão de atribuições dos tratamentos judicializados e não padronizados poderá abranger não apenas competências para custeio, aquisição e prestação ou entrega do tratamento, mas também compensações financeiras ou ressarcimentos diretos entre União, Estados e Municípios, que poderão ser feitos inclusive fundo a fundo de saúde.

Não há razão plausível para que o Poder Judiciário tenha que definir qual o ente federativo responsável pelo fornecimento de um tratamento não incorporado ao SUS se os próprios entes podem pactuar isso entre eles. Os juízes, definitivamente, não possuem as mesmas condições dos técnicos e gestores do SUS para avaliar de que modo a distribuição de atribuições para o cumprimento das ordens judiciais menos interfere e mais otimiza o funcionamento de todo o sistema. Por isso, quanto menos os magistrados e magistradas precisarem resolver essa questão, melhor.

Aliás, a própria Comissão Intergestores Tripartite já cogitou a possibilidade de pactuar responsabilidades relacionadas a medicamentos não incorporados ao SUS e que sejam objetos de determinações judiciais. A reunião de novembro de 2019 da CIT foi especialmente interessante porque, além de tratar da dificuldade do ressarcimento pela União aos Estados das despesas que estes tiveram com a aquisição judicial de medicamentos que não estavam na sua esfera de responsabilidade, abordou também os impactos da judicialização da saúde no custeio de medicamentos não incorporados ao SUS. A comissão aventou a possibilidade de que a própria CIT definisse os critérios de custeio dos fármacos não padronizados e adquiridos por força judicial.

Neste sentido, o Presidente do CONASS “Indicou acrescentar um tema na CIT, que diz respeito à adoção da conduta de divisão de custos de medicamentos quando não houver a incorporação pela Conitec, pois a referida temática não está consolidada e carece de entendimento”.

Se as responsabilidades fossem acordadas entre os próprios entes federativos – e isso só depende deles -, muito da judicialização da saúde estaria hoje resolvido. Com isso, juízes e juízas não precisariam definir segundo critérios próprios – ou mesmo sem critério algum, como muitas vezes ocorre – quem é que deve cumprir suas decisões.

Não há razão para que a rede SUS simplesmente se desfaça a partir do momento em que um tratamento é judicializado, de forma que os entes federativos passem a atuar cada um por si e contra os outros. A mesma atuação coordenada e harmoniosa que existe na prestação administrativa dos serviços de saúde deve se refletir também na esfera judicial. Isso colaborará sobremaneira para a manutenção da higidez do sistema público de saúde, cada vez mais afetado pela interferência judicial.

Certamente, a complexidade das divisões de competências internas no SUS, bem como o anseio para que as ordens judiciais sejam cumpridas com a máxima celeridade possível acabam servindo como estímulos para que se adote o entendimento jurisprudencial pela solidariedade passiva dos entes federativos nas ações de saúde. Com ele, evita-se – indevidamente, no meu ponto de vista – a árdua tarefa de investigar as pactuações administrativas dos diversos serviços de saúde disponíveis no SUS. Por outro lado, entretanto, promove-se nefasta desorganização do sistema, tanto do ponto de vista logístico e operacional, como também financeiro e orçamentário.

Se, por um lado, juízes e tribunais devem estar conscientes da importância de entenderem e seguirem as responsabilidades de cada ente federativo na estruturação do SUS; por outro, os próprios entes têm em suas mãos a possibilidade de resolverem internamente o que caberá a cada um quando o tratamento a ser oferecido decorre de determinação judicial. Com isso, evita-se o litígio desnecessário, que consome tempo e recursos pessoais e financeiros. Evita-se, também, interferências judiciais que passam a ser desnecessárias.

Enfim, não há razão para que os entes federativos deixem para o Poder Judiciário decidir questão que eles próprios podem resolver.

Deixem, os entes federativos, de lado discussões processuais e passem a atuar em rede também em sede judicial. Não importará, assim, quem é que figura na relação processual. O ente que lá estiver terá condições de, se não for o responsável pelo tratamento concedido judicialmente, viabilizar a sua prestação junto ao ente competente, tendo a segurança de que este acatará a demanda, sendo ou não parte processual. É assim que as coisas funcionam quando não há intervenção judicial. É assim que devem funcionar quando há.

Não se tem a ingenuidade de pretender que todos os litígios entre os próprios entes federativos sejam eliminados por este sistema, mas sim a confiança de que grande parte deles sejam.

Busquemos, então, uma solidariedade passiva consentida na judicialização da saúde, pela qual os entes federativos se comprometam a cumprir com as obrigações por eles próprios definidas, independentemente de qual seja o réu do processo.

Muitos complicadores para esta proposta surgirão e precisarão ser enfrentados. Alguns serão superáveis; outros, talvez não. Ainda assim, é preciso sonhar grande para realizar o possível.

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O SUS e a Assistência Farmacêutica na Psiquiatria

mulher com imagens sobreposta do rosto

“O que melhora o atendimento é o contato afetivo de uma pessoa com outra.
O que cura é a alegria, o que cura é a falta de preconceito.”

Nise da Silveira

1. Panorama geral

No livro O Alienista, de Machado de Assis, Simão Bacamarte é um médico que cuida dos doentes da Casa Verde, uma instituição para pessoas “desequilibradas” na cidade de Itaguaí. Em um dado momento da narrativa, o referido alienista envia um ofício à Câmara da cidade ordenando que todas as pessoas do hospital (80% da população) fossem devolvidas ao convívio social. No ofício, explica “que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e, como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto”ASSIS, Machado de. O Alienista. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019, p. 207..

A despeito da ironia do nosso escritor, as doenças psiquiátricas atingem boa parte da população. Cerca de 970 milhões de pessoas sofrem de transtornos mentais no mundo. São 166 milhões de adolescentes. Os números aumentaram ainda mais com a pandemia da COVID-19. Estima-se que a prevalência de ansiedade e de depressão cresceu mais de 25% somente no seu primeiro ano. No Brasil, um dos países mais atingidos pela depressão, existem 7.2 milhões de pessoas acometidas por ela.

O presente texto visa analisar a assistência farmacêutica no SUS, que é um dos pilares da política de promoção da saúde mental. Ainda que outras estratégias assistenciais sejam fundamentais, a prescrição de medicamentos também é essencial para o tratamento de diversos quadros de doença mental.

2. Relações nacional, estaduais e municipais de medicamentos ofertados
pelo SUS

2.1 Lista nacional (RENAME)

Para que um medicamento seja ofertado pelo SUS em todo o território nacional, ele precisa ser analisado por um órgão de composição plural criado pela Lei nº 12.401/2011, chamado Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS). Antes da sua criação, as tecnologias eram analisadas pela Comissão para Incorporação de Tecnologias do Ministério da Saúde (CITEC).

O processo de incorporação é disciplinado pela lei antes referida e pelo Decreto nº 7.646/2011. Nele, é feita a análise das evidências científicas acerca da tecnologia. Também são abordadas questões de farmacoeconomia, para verificar custo-efetividade e o impacto orçamentário causado por sua eventual incorporação (§2º, do art. 19-Q, da Lei nº 8.080/90, acrescentado pela Lei nº 12.401/2011). Após a elaboração do relatório pela Conitec, que poderá recomendar ou não a inclusão do tratamento no SUS, o processo é encaminhado para o Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, vinculado ao Ministério da Saúde (art. 20, do Decreto nº 7.646/2011). É ele quem dá a última palavra no processo de incorporação (art. 23).

Uma vez aprovada a incorporação de um medicamento, ele deverá estar disponível no SUS 180 dias após a publicação da portaria que o incorporou (art. 25, do Decreto) e passará a constar da Relação Nacional de Medicamentos (RENAME), em que são arrolados todos os medicamentos oferecidos nacionalmente pelo SUS. Significa dizer que ela deverá ser entregue em todo o território nacional no prazo previsto.

2,2 Listas estaduais e municipais

Paralelamente à relação nacional, Estados, DF e Municípios podem ter suas próprias listas de medicamentos, com distribuição limitada aos seus territórios, em relações estaduais e municipais, estas últimas denominadas REMUMERelação Municipal de Medicamentos Essenciais. Esses entes federados podem identificar doenças de maior prevalência e adotar as medidas que entenderem necessárias para combatê-las.

Ocorre que, a despeito de deixar margem para a ampliação do elenco de medicamentos, as relações estaduais e municipais podem gerar desigualdades quando se considera o território nacional. Isso se torna especialmente relevante quando as doenças atingem uma parcela importante da população, como é o caso dos transtornos mentais.

Por isso, é relevante que a RENAME possua um elenco satisfatório não só para o tratamento de doenças psiquiátricas, mas para outros agravos à saúde. Com isso, a igualdade prevista constitucionalmente no SUS será obedecida (art. 196, CF)

3. Atuação da Conitec em psiquiatria

3.1 Análises realizadas

Desde a sua criação, em 11 anos, a Conitec realizou quinze análises em psiquiatria, entre relatórios de recomendação de medicamentos e Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDTs). São eles:

  1. palmitato de paliperidona para o tratamento de esquizofrenia, com decisão de não incorporação (2013);
  2. risperidona no transtorno do espectro do autismo (TEA), com decisão de incorporação (2014);
  3. risperidona no tratamento da dependência de cocaína/crack, com decisão de não incorporação (2015);
  4. clozapina, lamotrigina, olanzapina, quetiapina e risperidona para o tratamento do transtorno afetivo bipolar, com decisão de incorporação (2015);
  5. risperidona no comportamento agressivo em adultos com transtornos do espectro do autismo, com decisão de incorporação (2016);
  6. clozapina na psicose associada à doença de Parkinson, com decisão de incorporação (2016);
  7. tartarato de vareniclina para tratamento adjuvante da cessação do tabagismo em pacientes adultos com doença pulmonar obstrutiva crônica ou doenças cardiovasculares, com decisão de não incorporação (2018);
  8. sequenciamento completo do exoma para investigação etiológica de deficiência intelectual de causa indeterminada, com decisão de incorporação (2019);
  9. vareniclina para cessação do tabagismo, com decisão de não incorporação (2019);
  10. PCDT para tabagismo (2020);
  11. PCDT para diagnóstico de etiologia de deficiência intelectual (2020);
  12. metilfenidato e lisdexanfetamina para indivíduos com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade, com decisão de não incorporação (2021);
  13. PCDT para transtorno esquizoafetivo (2021);
  14. dimesilato de lisdexanfetamina para indivíduos adultos com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade, com decisão de não incorporação (2021);
  15. PCDT para autismo (2022)

Além dos PCDTs acima citados, com base na Portaria nº 375, SAS/MS, de 10 de novembro de 2009, a Secretaria de Atenção à Saúde, do Ministério da Saúde elaborou outros três: o da esquizofrenia (2013), do transtorno afetivo bipolar do tipo I (2016) e o da doença de Alzheimer (2017).

3.2 A necessidade de o próprio SUS iniciar o processo administrativo

Dos dez processos que dizem respeito a medicamentos, três foram demandados pela indústria farmacêutica (2, 9 e 15). Os demais tiveram seu início por solicitação da própria SCTIE (4), do INCA/MS (7), da Secretaria de Atenção à Saúde – SAS/MS (10 e 12), da 1ª Vara Federal de Porto Alegre (11 e 14) e do Ministério Público Federal de Porto Alegre (13).

A indústria farmacêutica pediu a incorporação de medicamentos psiquiátricos em apenas três oportunidades nesses últimos 11 anos. Isso se deve possivelmente ao fato de que muitas drogas amplamente utilizadas hoje na Psiquiatria já estão com suas patentes expiradas. Quando uma empresa pede a análise de um princípio ativo pela Conitec que não está mais sob sua patente, ela não tem a garantia de que o seu produto será adquirido pelo SUS, na medida em que haverá concorrência dos demais fabricantes. Isso certamente é um desestímulo para a indústria, pois a instrução do pedido de incorporação demanda tempo e recursos financeiros.

Portanto, é essencial que os próprios entes que compõem o SUS iniciem o processo de análise, especialmente quando houver uma evidência de falha na política ou boas evidências de melhores respostas clínicas de um grupo medicamentoso. A proatividade deve marcar a incorporação de tecnologias psiquiátricas no SUS, a fim de que o usuário seja bem atendido.

3.3 Análise de evidências científicas em Psiquiatria

Ensaio clínico randomizado duplo-cego (em que nem o paciente nem o médico sabem o que está sendo prescrito) é o principal modelo de teste de medicamentos. Para se observar se uma medicação funciona, deve-se estabelecer, antes mesmo de realizar o estudo, quais os objetivos a serem alcançados com aquela medicação, também chamados de desfechos. Quando é realizado mais de um estudo da mesma medicação, para a mesma doença, pode-se agrupar os resultados com técnicas estatísticas e realizar uma análise sistemática das respostas que essa medicação pode ter.

Transtornos mentais, assim como outras doenças, têm métricas específicas avaliadas a partir de intervenções medicamentosas. Diferentemente, porém, de exames de sangue ou de imagem, a maior parte dos desfechos avaliados são comportamentais. A avaliação sintomática pode ocorrer de várias formas. A melhora do humor em um transtorno depressivo, da atenção no transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), a remissão de um quadro ansioso ou mesmo a melhora na qualidade de vida são algumas delas.

Transformar os sentimentos, os comportamentos e os sofrimentos da doença mental em algo mensurável para verificar se a medicação é realmente efetiva e deve ser incorporada ao arsenal terapêutico é a difícil tarefa que os estudos tentam responder. Significa dizer que a análise das evidências em psiquiatria deve tentar mensurar um desfecho abstrato e subjetivo, o que a torna diferente das outras áreas da medicina. Essa avaliação é feita por entrevistas clínicas e escalas validadas que servem justamente para medir a resposta da medicação. Uma medicação é aprovada se houver resposta terapêutica superior ao placebo.

Para uma medicação ser incorporada na RENAME e ser prevista em PCDT, a Conitec realiza uma avaliação da sua efetividade e segurança. Além disso, consideram-se os custos comparativos com medicações já aprovadas para as mesmas doenças. Ou seja, em regra, uma nova medicação, para ser incorporada, deve ser mais efetiva e/ou mais segura do que aquelas já fornecidas pelo SUS.

4. O que existe hoje na RENAME

Atualmente, a RENAME conta com os seguintes medicamentos:

  • os antipsicóticos clozapina, olanzapina, quetiapina, risperidona, decanoato de haloperidol, haloperidol e cloridrato de clorpromazina;
  • os estabilizadores de humor/anticonvulsivantes lamotrigina, ácido valpróico (valproato de sódio), carbamazepina e carbonato de lítio; os benzodiazepínicos/ansiolíticos clonazepam, diazepam e midazolam;
  • os antidepressivos cloridrato de amitriptilina, cloridrato de clomipramina, cloridrato de fluoxetina, cloridrato de nortriptilina;
  • os anticolinérgicos cloridrato de biperideno, lactato de biperideno.

Além desses,

  • o anti-histamínico cloridrato de prometazina;
  • a vitamina cloridrato de tiamina;
  • os anticonvulsivantes fenitoína e fenobarbital;
  • o antagonista de benzodiazepínico flumazenil; e
  • as drogas para parkinson levodopa + carbidopa, levodopa + benserazida.

5. Escassez de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas e falhas em relação ao arsenal farmacêutico

Os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDTs) são manuais que determinam como se deve proceder para realizar o diagnóstico e o tratamento de uma doença, estabelecendo também critérios para acompanhar a sua evolução. Eles são elaborados por uma equipe técnica e de especialistas e, desde a edição da Portaria nº 27, SCTIE/MS, de 12 de junho de 2015, são aprovados pela Conitec. Baseiam-se nas evidências científicas existentes, trazendo segurança para os operadores do SUS e uniformidade na atenção ao paciente.

Devido às especificidades das doenças psiquiátricas, é importante que se estabeleçam procedimentos orientados pela técnica. Um protocolo com diretrizes claras tanto para diagnóstico, quanto para tratamento pode evitar, inclusive, o uso de medicações de forma desnecessária.

Apesar dos diversos avanços realizados no tratamento dos transtornos mentais a partir dos PCDTs já publicados, os transtornos mais prevalentes ainda não foram contemplados. A depressão, o transtorno obsessivo-compulsivo, o transtorno de estresse pós-traumático, os transtornos ansiosos e os transtornos alimentares são apenas alguns exemplos que não têm PCDTs vigentes. Dos transtornos de uso de substância, apenas o tabagismo é contemplado.

A presença dos PCDTs é importante não apenas para mostrar medicações e outras terapias que podem ser disponibilizadas pelo SUS para a população, mas também para guiar a substituição das linhas de tratamento quando há falha terapêutica.

A ausência, porém, de PCDTs para os transtornos mentais mais prevalentes em adultos, como o transtorno depressivo e os transtornos ansiosos, é contrastante. Por mais que existam medicações na RENAME para essas condições, o arsenal terapêutico farmacológico mantém-se limitado. Não há uma diretriz clara em caso de falha terapêutica ou efeitos colaterais que impossibilitem o uso das medicações disponibilizadas.

6. Consequências das falhas da política assistencial

Os problemas da política de atenção à saúde mental geram reflexos significativos para a sociedade, que podem ser sentidos em várias áreas. Uma das consequências da assistência deficiente e da falta de diretrizes claras e suficientes em relação ao tratamento é a conhecida judicialização da saúde. Os remédios psiquiátricos, a depender da relação estadual ou municipal que vigoram para as pessoas residentes em uma determinada localidade, são frequentemente objeto de judicialização.

No Estado do PR, segundo informação obtida junto à Secretaria Estadual de Saúde/PR, na data de 28/06/2022, dos 14.570 pacientes com cadastros ativos recebendo medicamentos por força de decisão judicial, 2.402 eram pacientes psiquiátricos. Além desse número, ainda existiam 117 pacientes recebendo canabidiol, 479 pacientes recebendo duloxetina e 339 pacientes recebendo pregabalina. O levantamento desses últimos medicamentos foi feito em separado, tendo em vista que eles não são utilizados somente para psiquiatria e a discriminação por patologia não pôde ser realizada.

Significa dizer que, em junho de 2022, pelo menos 16,48% dos cadastros ativos eram de pacientes psiquiátricos. A conclusão a que se chega é que, com um maior elenco de tecnologias para o tratamento dessas pessoas, a judicialização da saúde tende a diminuir.

7. Considerações Finais

O paciente com doença psiquiátrica é estigmatizado por terceiros, por si mesmo e pelos próprios agentes do sistema de saúde, em um ciclo que se perpetua.“O estigma opera em círculos viciosos que abrangem o indivíduo que sofre de transtorno psiquiátrico, sua família e os serviços de saúde mental. O diagnóstico de transtorno psiquiátrico ou anormalidade visível, como o efeito colateral de fármacos, deflagra no observador a recuperação de conteúdos negativos como conhecimentos prévios, informação da imprensa e lembrança de filmes que levam à estigmatização. Os pacientes com doença mental que mostram sinais visíveis de suas condições, seja em virtude dos sintomas, seja em decorrência de efeitos colaterais que os fazem parecerem anormais, são vistos como fracos de caráter, preguiçosos ou ameaçadores. O estigma conduz à discriminação negativa do indivíduo com transtorno mental e, consequentemente, a prejuízos e desvantagens como reveses frequentes, serviços de saúde ruins e dificuldade de acesso a cuidados. Pacientes estigmatizados internalizam essas visões estigmatizantes e discriminatórias das pessoas em geral, dando origem ao chamado autoestigma. Há comprometimento da autoestima, mais incapacitação e menos resistência ao estresse. Tudo isso acarreta piora clínica e reinício do círculo vicioso.” ROCHA, F. L., HARA, C. e PAPROCKI, J. Doença mental e estigma. Revista Médica de Minas Gerais, v. 25.4, 2015. Em que pese não estejamos mais diante do quadro traçado por Machado de Assis e das barbáries perpetradas em manicômios, graças à reforma na atenção ao paciente com transtorno mental ocorrida no Brasil no início deste século, ainda há um longo caminho a percorrer.

Em Enfermaria nº 6, de TchekhovTCHEKHOV, Anton. O beijo e outras histórias. 4. ed, São Paulo: Editora 34, 2014, p. 214., Ivan Dmítritch é um dos internados na ala do hospital psiquiátrico que dá nome ao conto. Ele sofre de sintomas paranoides e obsessivos. Em um trecho do conto, Ivan diz: “Eu amo a vida, amo-a, apaixonadamente! Tenho mania de perseguição, um medo contínuo e torturante, mas há momentos em que a sede de viver se apossa de mim, e então tenho medo de perder o juízo. Quero tremendamente viver, tremendamente!”. A sede de viver, ao se “apossar” da personagem, é tratada como mais uma obsessão de Ivan, que lhe causa um novo medo: o de perder o juízo, que talvez ele já tivesse perdido. Essas palavras revelam que a humanidade permanece intacta mesmo naqueles que sofrem de transtornos mentais. O contista quis revelar algo que ainda hoje não se vê com clareza.

Esse é o caminho que se tem pela frente: o de permitir que as pessoas com transtornos psiquiátricos sejam vistas por todos em sua humanidade, a fim de que eles possam viver, talvez não tremendamente, mas o mais dignamente possível. E é dever do SUS oferecer meios para que isso aconteça.

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STF e STJ na judicialização da saúde: o passo que ainda falta ser dado

Chegando ao destino

Nas ações judiciais pelas quais os cidadãos pretendem receber do Poder Público tratamentos não disponíveis no SUS, três grandes questões normalmente precisam ser resolvidas. São elas:

  1. O tratamento postulado é realmente necessário e eficaz, considerando inclusive as alternativas terapêuticas já disponibilizadas no SUS?
  2. Quem é o ente federativo responsável pela sua dispensação?
  3. O valor do tratamento, inclusive em uma relação “custo x efetividade”, é um ponto a ser considerado para que se decida se o Poder Público deve ou não fornecê-lo? Se for, qual o seu limite?

Não se pretende, neste momento, adentrar nas nuances e nas diversas vertentes que cada uma dessas questões apresenta. Quem estiver interessado em se aprofundar nessas discussões tem muitos outros posts aqui no blog para se entreter.

O que este artigo quer demonstrar é que a jurisprudência do STJ e, principalmente, do STF – que vem abordando cada vez mais aspectos da judicialização da saúde – já confere critérios mais ou menos objetivos para nortear as decisões dos demais tribunais e juízes brasileiros em relação às questões 1 e 2, mas precisa, por outro lado, tratar com toda a prioridade possível a questão 3.

Antes de demonstrar a lacuna existente e o tamanho da sua relevância, é preciso enfatizar a importância da existência de diretrizes jurisprudenciais seguras a respeito dos aspectos envolvidos na judicialização da saúde.

Se a judicialização em si já traz impactos negativos para o sistema público de saúde como um todo (não se está a dizer que impactos positivos também não ocorram), eles serão tanto mais graves quanto maior a falta de critérios objetivos para a intervenção judicial nas políticas públicas existentes. É nesse aspecto que a atuação uniformizadora do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça ganha fundamental papel.

Deixando de lado quaisquer considerações sobre o mérito das decisões em si, são muito bem vindas as teses que paulatinamente vêm sendo estabelecidas pelo STJ e pelo STF nos recursos repetitivos e representativos de controvérsia relacionados à judicialização da saúde. Foram essas teses, aliás, que buscaram definir critérios para que as questões 1 e 2, mencionadas logo no início deste texto, fossem resolvidas.

De fato, o STF já se manifestou mais de uma vez a respeito do dever de que se avaliem em Juízo a efetiva necessidade e a eficácia do tratamento médico reivindicado, bem como a inexistência de alternativas terapêuticas adequadas no SUS (questão 1).

Na tese do Tema 1.161“Dever do Estado de fornecer medicamento que, embora não possua registro na ANVISA, tem a sua importação autorizada pela agência de vigilância sanitária”, ele consignou que o fornecimento em sede judicial de fármaco sem registro, mas com importação autorizada pela ANVISA, pressupõe a constatação da “imprescindibilidade clínica do tratamento, e a impossibilidade de substituição por outro similar constante das listas oficiais de dispensação de medicamentos e os protocolos de intervenção terapêutica do SUS”. Eis a tese:

“Cabe ao Estado fornecer, em termos excepcionais, medicamento que, embora não possua registro na ANVISA, tem a sua importação autorizada pela agência de vigilância sanitária, desde que comprovada a incapacidade econômica do paciente, a imprescindibilidade clínica do tratamento, e a impossibilidade de substituição por outro similar constante das listas oficiais de dispensação de medicamentos e os protocolos de intervenção terapêutica do SUS”.

Já no julgamento do Tema 6/STF“Dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras para comprá-lo”, embora a tese ainda esteja pendente de definição, ao menos sete ministrosaqueles cujos votos puderam ser verificados: Marco Aurélio, Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski já se posicionaram no sentido de que o fornecimento do fármaco não padronizado pressupõe a constatação da necessidade do tratamento – com comprovação mediante prova técnica qualificada (medicina baseada em evidências) – e da inexistência de alternativas adequadas no SUS.

Nesta mesma linha, o STJ, no julgamento do Tema 106“Obrigatoriedade do Poder Público de fornecer medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS” estabeleceu que a o fornecimento de medicamentos não disponíveis no sistema público depende da “comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS”.

Dessa forma, mesmo sendo os critérios mais ou menos abstratos, é perfeitamente possível aos litigantes e ao julgador compreenderem que a concessão judicial de tratamento não disponível no SUS impõe que se verifique a comprovação de sua efetiva necessidade, bem como da inexistência de alternativas adequadas dentro do sistema público, tudo de acordo com as evidências médico-científicas.

No que diz respeito ao ente federativo obrigado a disponibilizar o tratamento médico (questão 2), a matéria foi objeto de tese específica firmada pelo STF no Tema 793, a qual dispõe que:

“Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”

A tese acima gerou e ainda gera distintas linhas interpretativas cuja análise não cabe nos propósitos deste artigo. O que é importante observar é que, da forma como entendeu por bem, o Supremo Tribunal Federal preocupou-se em estabelecer os critérios a serem adotados pelos demais tribunais e juízos quanto à responsabilidade dos entes federativos pelo cumprimento das decisões judiciais de entrega de tratamentos não inseridos nas políticas públicas. Para uma compreensão mais profunda do entendimento da Corte, é indispensável a leitura do voto do min. Edson Fachin, relator para o acórdão.

Como se vê, a jurisprudência do STF e do STJ vem se empenhando em definir quando o fornecimento de um tratamento médico não disponível no SUS pode ser determinado judicialmente e quem é responsável por seu cumprimento. A grande lacuna que remanesce é aquela relativa à questão financeira: a que custo isso pode ser feito? Há um limite? Se há, qual é ele? Essa é a questão 3, que ainda não foi respondida.

A discussão sobre os custos dos tratamentos e seus impactos no orçamento público existe desde os primórdios da judicialização da saúde. Ela está inevitavelmente atrelada ao confronto argumentativo entre “reserva do possível” e “máxima efetividade dos direitos fundamentais”. O tema rendeu e ainda rende incessantes pesquisas, teses e obras jurídicas, além de debates jurisprudenciais. Aqui no blog, o(a) leitor(a) pode refletir um pouco mais sobre o assunto no post “A reserva do possível na assistência farmacêutica do SUS: A mariposa e a estrela”.

Na verdade, tudo o mais que se discute na judicialização da saúde acaba figurando como mecanismo de defesa da Administração contra o comprometimento de recursos públicos não reservados no orçamento da saúde. O que os entes federativos pretendem, ao fim e ao cabo, é que a intervenção judicial não acarrete maiores ônus financeiros ao Estado, até porque isso pode inclusive comprometer as políticas de saúde já existentes.

Mesmo neste cenário, não há, até o presente momento, uma definição jurisprudencial segura a respeito de eventuais limites financeiros à atuação do Poder Judiciário na judicialização da saúde.

É certo que a jurisprudência do STF, ao menos desde o julgamento da ADPF 45 (min. Celso de Mello), vem afastando alegações genéricas de escassez de recursos públicos (“reserva do possível”) como obstáculos à determinação de fornecimento de prestações não previstas nas políticas públicas de saúde. No entanto, isso não significa que a Corte Suprema entenda inexistir limite orçamentário algum à atuação jurisdicional.

De todas as teses firmadas pelo STJ e pelo STF em questões relacionadas à judicialização da saúde, nenhuma trata especificamente de eventuais limites a serem observados em relação ao custo dos tratamentos ou de sua ausência. Aparentemente, a situação não deverá mudar com a definição da tese do Tema 6/STF.

O seguinte quadro sintetiza os requisitos para o fornecimento judicial de medicamentos de alto custo estabelecidos por diversos Ministros do Supremo Tribunal Federal cujas manifestações já estão disponíveis ao público:

Tabela comparativa

Como se vê, muitas são as condições propostas pelos Ministros, mas nenhuma delas relacionada a eventual custo do tratamento, o que chega a ser curioso, já que o tema em debate foi definido justamente como “dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras para comprá-lo”. Seria importante, então, que ao menos a definição de “alto custo” fosse abordada, já que ela é precisamente o objeto do tema.

Seria possível argumentar que se nem o STF, nem o STJ incluíram em seus diversos acórdãos submetidos à sistemática dos recursos repetitivos quaisquer referências a eventuais limites orçamentários à concessão judicial de tratamentos médicos não disponíveis no SUS, a conclusão seria a de que, de fato, os aspectos financeiros seriam irrelevantes para a solução dos casos. Realmente, caso se considere que os requisitos a serem observados são exclusivamente aqueles explicitados nas diversas teses, não deveriam os litigantes e os juízes preocupar-se com os custos do tratamento nas demandas judiciais.

A questão, entretanto, não é tão simples.

Em primeiro lugar, o próprio STF já se manifestou no sentido de que o elevado impacto financeiro do tratamento pode, sim, ser óbice à concessão judicial, ainda que em face de particularidades do caso concreto. A título de exemplo, tem-se a decisão do min. Luiz Fux na STP 856/RN, de 09/03/2022, na qual consta que:

(...)
À luz das premissas assentadas no julgamento do RE 855.178-ED, passo a analisar o caso concreto, pontuando que o valor da prestação de saúde no caso sub examine revela-se sobremaneira elevado proporcionalmente à capacidade econômica do Município requerente, de modo que, neste juízo não exauriente, revela-se a existência de potencial lesão de natureza grave ao interesse público (à economia pública municipal), a ensejar o deferimento parcial da medida liminar.
Com efeito, dos elementos constantes nos autos e nos estritos limites da cognição possível em sede de incidente de contracautela, vislumbra-se a existência de plausibilidade na argumentação do requerente, no sentido de que o imediato cumprimento da decisão impugnada seria capaz de gerar desorganização financeira e orçamentária no âmbito da Administração do Município de Assú/RN, haja vista o seu porte atual. O imediato cumprimento da decisão impugnada representa grave risco à manutenção do equilíbrio das contas municipais, revelando-se imperiosa a parcial concessão da medida de liminar, a fim de que o juízo de origem proceda à devida delimitação da responsabilidade pela prestação entre os entes que compõem o SUS.

Além do mais, não se identifica na jurisprudência das cortes superiores uma corrente sustentando que o custo do tratamento não é um critério ao qual o julgador deva se atentar. Via de regra, as decisões apenas deixam de tratar da questão, atendo-se à necessidade do tratamento e à inexistência de alternativas no SUS. No entanto, a relevância do tema impede que conclusões sejam implícitas ou de difícil constatação.

Como já dito, os custos da judicialização sobre o orçamento da saúde e seus impactos na política pública existente são da essência dessa discussão. A preocupação com a repercussão financeira dos tratamentos não padronizados concedidos judicialmente nasceu com a judicialização da saúde e permanecerá sempre a ela umbilicalmente ligada. Não se pode esperar, então, que sua solução nos tribunais se dê por meras inferências ou, mais grave do que isso, que simplesmente seja contornada para que não precise ser decidida, seja para se estabelecer que aspectos financeiros do tratamento são irrelevantes para a aferição do direito individual dos demandantes, seja para se consignar que devem ser observados e, neste último caso, em que termos.

É fato que as decisões monocráticas e acórdãos das cortes superiores não vêm afastando o direito aos tratamentos requeridos tendo como base apenas o seu valor. O que aparenta ocorrer, entretanto, é que a questão não é enfrentada por ser absolutamente tormentosa e de dificílima solução. É até possível que a constante ausência de quaisquer referências, nas decisões, sobre a capacidade de absorção, pelo orçamento público, do valor dos tratamentos seja realmente porque o seu custo é considerado algo irrelevante para a solução das ações individuais, bastando que estejam demonstradas, por elementos técnicos e científicos robustos, a necessidade e eficácia do tratamento, bem como a ausência de alternativas terapêuticas no SUS. Ainda que a hipótese se confirme, a falta de um claro posicionamento neste sentido faz proliferar e se perpetuar a controvérsia jurisprudencial nos tribunais de segunda instância e nos juízos de primeiro grau.

Além do mais, não parece correto que se conclua automaticamente que a falta de consideração dos impactos financeiros de tratamentos concedidos judicialmente nos casos concretos que se apresentam às cortes superiores signifique que em nenhuma hipótese os custos da terapia devam ser tomados em consideração. A riqueza e a variabilidade das situações específicas, a rápida evolução da medicina e a assombrosa elevação dos preços das tecnologias em saúde que se dizem revolucionárias impõem, no mínimo, cautela na afirmação de que as questões orçamentárias não devem, em hipótese alguma, constituir óbice à concessão de tratamentos pela via judicial.

Imagine-se, hipoteticamente, que em pouco tempo surja um tratamento “revolucionário” que ofereça consideráveis chances (note-se bem: sem certeza) de se impedir por completo a progressão de uma doença degenerativa rara ao custo de vinte milhões de reais por paciente. A hipótese parece absurda, mas não é. Seria possível afirmar que a jurisprudência aceitaria a dispensação judicial sem qualquer consideração relacionada ao custo? É até possível que sim, mas a conclusão contrária também seria plausível.

Por outro lado, certamente o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça, conscientes de que estarão a definir uma tese que vinculará todos os demais tribunais e juízes do país em casos futuros, analisarão de forma mais criteriosa eventuais limites financeiros à atuação do Poder Judiciário, o que poderá os levar à adoção de parâmetros econômicos a serem considerados, ainda que com certa dose de subjetividade a ser empregada em cada caso concreto.

Pronunciar-se expressamente a respeito da (ir)relevância de critérios econômicos na solução de processos individuais de saúde não significa empregar um raciocínio binário na busca da solução. Em tese, os parâmetros financeiros de análise podem ser agregados a outros critérios que também devam ser considerados, numa espécie de análise de relação custo x efetividade do tratamento.

Mesmo que as cortes superiores não estabeleçam balizas objetivas e rígidas de apuração desta relação – o que, aliás, seria o mais provável de acontecer -, o simples fato de decidir que os demais juízes devem ou não devem levar em consideração, no julgamento dos casos concretos, os custos do tratamento em comparação com os benefícios esperados já seria um avanço na busca pela segurança jurídica.

É de suma relevância, ainda, que se defina se o Poder Judiciário está vinculado às conclusões da Conitec de que a incorporação de determinada tecnologia ao SUS não é recomendada por questões orçamentárias ou de relação custo x efetividade desfavorável. O STF vem paulatinamente adotando maior deferência judicial às análises científicas da Anvisa e da Conitec no registro e na incorporação de novos tratamentos de saúde ao SUS, sem que se trate, entretanto, do grau de deferência a ser adotado em relação às análises econômicas, que também são atribuição legal da agência de avaliação de tecnologias em saúde do SUS.

De fato, o art. 19-O, parágrafo único, da Lei nº 8.080/90 estabelece que os medicamentos incorporados ao SUS “serão aqueles avaliados quanto à sua eficácia, segurança, efetividade e custo-efetividade para as diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde de que trata o protocolo”.

O art. 19-Q, §2º, II, por sua vez, dispõe que os relatórios de recomendação da Conitec deverão levar em consideração, necessariamente, “a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas, inclusive no que se refere aos atendimentos domiciliar, ambulatorial ou hospitalar, quando cabível”.  

Por fim, o parágrafo terceiro do art. 19-Q da Lei nº 8.080/90, recentemente acrescentado pela Lei nº 14.312/2022, proporcionará um considerável incremento no grau de tecnicidade e na objetividade das análises de custo x efetividade feitas pela Conitec ao impor que “as metodologias empregadas na avaliação econômica a que se refere o inciso II do § 2º deste artigo serão dispostas em regulamento e amplamente divulgadas, inclusive em relação aos indicadores e parâmetros de custo-efetividade utilizados em combinação com outros critérios”.

Como se pode perceber, a capacitação e a competência da Conitec no processo de incorporação de novas tecnologias de saúde ao SUS não se restringe à análise das evidências científicas do tratamento em si. Elas também incluem a avaliação econômica e de custo x efetividade dos novos tratamentos, que sem dúvida alguma impõe conhecimento técnico especializado que o Poder Judiciário não tem e que, via de regra, não é suprido por provas periciais médicas ou notas técnicas emitidas pelos diversos Núcleos de Apoio Técnico (NAT’s) que assessoram os juízes nas demandas de saúde.

A questão que precisa ser resolvida, então, é a seguinte: no julgamento das ações individuais de saúde, exige-se a mesma deferência do Poder Judiciário tanto em relação às análises científicas das tecnologias em saúde quanto em relação à avaliação econômica feita pela Conitec?

É importante que a resposta seja dada de forma clara e objetiva pelas cortes superiores, porque inferências jurisprudenciais indiretas ou, o que é ainda mais problemático, a simples omissão no trato da questão financeira impede que se atinja o grau possível e desejado de segurança jurídica.

Não é o propósito deste artigo defender a melhor solução a ser adotada, até porque são vastas as pesquisas e os ensaios jurídicos que investigam a relação entre a “reserva do possível” e a “máxima efetividade do direito à saúde”.

O que se pretende, aqui, é apenas alertar para a importância de que nossas cortes superiores definam de forma clara:

  1. se o Poder Judiciário deve ou não levar em consideração o custo do tratamento nas ações individuais, inclusive prestando ou não deferência às recomendações da CONITEC; e, em caso positivo,
  2. quais são os critérios a serem adotados nessa análise.

Ao resolverem esses pontos tão sensíveis na judicialização da saúde, a cúpula do Poder Judiciário dará um grande passo rumo à segurança jurídica e ao trato sistêmico de um problema que tanto aflige os gestores e procuradores públicos, os magistrados e os cidadãos.

Imagem do Post:Salmen Bejaoui 




Salvem a Conitec!!!

Salvem a conitec

Muitos veículos de informação vêm noticiando a possibilidade de substituição da Diretora do Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias e Inovação em Saúde, que também preside a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec). De acordo com fontes jornalísticas, a sua exoneração foi solicitada por Hélio Angotti,  Secretário de Ciência, Tecnologia, Gestão e Insumos Estratégicos (SCTIE), e está sendo cogitada em razão da Diretora ser contrária ao kit COVID.

O que está em jogo com a troca é a independência da Conitec.

A Conitec, vinculada ao Ministério da Saúde, é responsável pela análise dos tratamentos que serão oferecidos pelo SUS. Seu trabalho consiste basicamente em avaliar as evidências científicas existentes sobre um determinado tratamento, o seu custo-efetividade e o impacto orçamentário que a sua oferta causará aos cofres públicos. Ao final do processo, a Conitec recomenda se a nova tecnologia deve ou não ser ofertada pelo SUS, cabendo ao Secretário da SCTIE decidir se a população terá ou não acesso a ela.

Sua atuação é – e nunca pode deixar de ser – eminentemente técnica. Órgãos cuja conduta deve ser pautada pela técnica precisam agir de acordo com ela.

Na análise das evidências científicas dos tratamentos de saúde que se pretende que sejam oferecidos a toda a população, o único fator limitante de sua atuação deve ser a ciência. Nada mais.

Na situação específica do kit COVID, o relatório da Conitec que não recomendou a sua incorporação seguiu o que os estudos existentes sobre a cloroquina, a hidroxicloroquina e a azitromicina preceituam.

Não há dinheiro sobrando no SUS para se gastar com tratamentos cuja ineficácia já foi comprovada. Aliás, isso é vedado pela própria lei que instituiu a Conitec. Logo, a atuação do órgão e de sua presidente, além de ter seguido a ciência, também se pautou na legalidade. Não há motivos técnicos para a sua substituição.

A eventual troca na coordenação da Conitec acabará por transformar a Comissão em um órgão político, na medida em que se deixa claro, pelo chefe do Ministério da Saúde, que o que importa não é a ciência, nem o interesse do cidadão de ter os recursos do SUS bem aproveitados, mas sim, um interesse político para fazer prevalecer um discurso que já foi amplamente refutado no mundo todo.

A falta de observância estrita da ciência também pode propiciar uma maior interferência da indústria farmacêutica no processo de decisão da Conitec para a aprovação de outros medicamentos ineficazes. Com isso, a já estremecida confiança do cidadão no SUS ficará ainda mais abalada.

É necessário fortalecer a Conitec, não enfraquecê-la.

Outro prejuízo que já se pode antever, caso prevaleça a politização da Conitec, é um aumento da judicialização da saúde.

O poder judiciário recebe há algumas décadas processos em que se pedem tratamentos que não são oferecidos pelo SUS. Muitas vezes, essa judicialização possui um grave efeito adverso: ela desestrutura a organização do SUS, comprometendo as políticas públicas instituídas.

Parte do orçamento do SUS é direcionado para o cumprimento das ordens judiciais. O juiz, quando decide esses processos, analisa (ou pelo menos deveria analisar) o que a Conitec fez, se a tecnologia pleiteada já foi submetida ao órgão e se houve relatório de recomendação final.

Quanto mais técnica for a Conitec e quanto mais fundamentado for o seu relatório, maiores serão as chances de o juiz aceitar o que ela recomendou e manter hígida a política pública.

É fácil perceber que uma Conitec marcada por decisões políticas não será respeitada pelos juízes.

Por tudo isso, fica claro que os cargos da Conitec não podem ser distribuídos com base em favoritismo político. Também já é hora de evoluirmos para criarmos mecanismos legais que assegurem a independência da Comissão, como ocorre com as agências reguladoras.

A sua criação, em 2011, representou um grande avanço para o SUS, mas o momento demonstra que precisamos avançar mais.

O artigo deveria se encerrar por aqui quando veio a ingrata notícia – que não foi propriamente uma grande surpresa – de que o Secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde não aprovou a recomendação da Conitec contrária à adoção do kit covid pelo SUS, ou seja, autorizou o seu uso no sistema público de saúde. Isso aconteceu por meio da Portaria SCTIE/MS nº 4, de 20/01/2022.

Além disso, também não foram aprovadas as recomendações da Conitec sobre o tratamento hospitalar medicamentoso (Portaria SCTIE/MS nº 01/2022), de controle da dor e sedação (Portaria SCTIE/MS nº 02/2022) e da assistência hemodinâmica e medicamentos vasoativos (Portaria SCTIE/MS nº 02/2022), todos para a Covid-19.

Se havia fortes indícios de interferência política na Conitec mediante a possível substituição de sua presidente, agora não há dúvidas.

Ataca-se com um único golpe não apenas a própria comissão, mas também a saúde das pessoas, a ciência, a eficiência da Administração – que deixa de se concentrar nos tratamentos preventivos e de recuperação eficazes para gastar recursos e desgastar os profissionais e gestores do SUS e a população em geral – e o ordenamento jurídico da saúde, que foi estruturado tendo como norte as evidências científicas (art. 19-O e art. 19-P, §2º, I, da Lei nº 8.080/90).

Deveria ser inimaginável – apesar de tudo parecer possível atualmente – que um documento “técnico” formalizado pelo Ministério da Saúde para refutar as conclusões amplamente discutidas e debatidas pela Conitec dissesse, por exemplo, que há evidências científicas de segurança e eficácia na utilização de hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19, mas não há em relação às vacinas.

No entanto, foi exatamente isso que constou na Nota Técnica nº 2/2022-SCTIE/MS, amplamente divulgada pela imprensa: 

Tabela do MS considerando que vacina não tem comprovação

Somente depois de incessantes e duras críticas por parte da imprensa e de respeitadas instituições médicas e científicas é que o Secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde houve por bem retirar a referida tabela da Nota Técnica 02/2022, conforme divulgado pela mídia.

Não há que se perder mais tempo discutindo eficácia de hidroxicloroquina para tratar Covid. No meio científico, essa questão está superada.

É preciso que os esforços sejam concentrados naquilo que vai proteger a população, e o que protege a população é o respeito à verdade, à ciência, ao funcionamento das instituições, que devem atuar pautadas pelo bem comum, sem favoritismos, sem pressões políticas sobre órgãos técnicos, sem desmonte de estruturas e conhecimentos conquistados com muito custo durante anos ou décadas.

A Conitec deve ser a tradução da ciência no processo de incorporação de tecnologias ao SUS. Só que é preciso permitir que ela assim seja. A política possui seu próprio campo de atuação, que definitivamente nem sempre coincide com a verdade científica.

Salvem a Conitec!!!

Post scriptum (27/05/23): O texto publicado foi escrito por mim, Fabiano, pelo Bruno e pela Carol. Em razão de ter sido feito em conjunto por nós três na ocasião da publicação original não constaram os nossos nomes. A falha da ausência de autoria no texto deve ser atribuída exclusivamente a mim como responsável pela editoração do blog,.

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São Tomé e o canabidiol – breves considerações à luz da Medicina Baseada em Evidências

Folha de canabis

Recentemente, foi criada a Rede Parlamentar em Defesa da Cannabis Medicinal, na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Um dos seus objetivos é trabalhar para a aprovação do Projeto de Lei nº 1.180/2019, dessa casa legislativa, que visa à instituição de política pública que garanta o fornecimento de produtos de Cannabis no SUS, em SP.

O plantio domiciliar da Cannabis, bem como a sua comercialização e de seus derivados para fins medicinais são assunto corriqueiro na mídia, nas sociedades médicas, associações de pacientes e nos órgãos reguladores em nosso país. Ocorre que muitas das ideias divulgadas trazem uma análise simplista do assunto, desvinculada da realidade científica a respeito dos tratamentos propostos. Isso se deve, em parte, ao grande investimento em marketing das empresas que comercializam os produtos derivados da Cannabis, cujo faturamento está na ordem de bilhões de dólares ao ano, tendo atingido 21,3 bilhões de dólares em vendas, em 2020. 

É necessário enfatizar que os autores deste texto não possuem vínculo com ordem religiosa, nem perfil conservador, o que poderia levar a uma análise enviesada da questão científica em função de um prejulgamento a respeito do seu uso para fins recreativos. O presente artigo tem por base apenas a análise do propugnado valor terapêutico da planta, sem adentrar na questão da aceitação ou da legalização de seu uso para fins recreativos. Não menos importante é esclarecer que os autores se sensibilizam com os pacientes e familiares que encontram esperança na utilização de produtos à base de Cannabis.

Dentre os cerca de 100 canabinoides existentes na planta, os dois mais utilizados são o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC). O CBD é o mais estudado na medicina e não possui efeito psicoativo, ao contrário do THC, cujo uso não é recomendado para indivíduos com menos de 25 anos. Isso porque, em pessoas com o cérebro em desenvolvimento, ele pode provocar quadros de psicose, transtornos psiquiátricos, crises convulsivas etc.

A primeira coisa que precisa ficar clara é o fato de que a Cannabis, para servir como tratamento médico, deve passar por um processo de separação de seus canabinoides. Se a planta for consumida de maneira tradicional, o paciente receberá todos os seus canabinoides, inclusive os tóxicos. Por isso, autorizar o plantio da Cannabis pode servir a outros fins, mas não é a saída para tratar doenças.

A segunda questão que merece ser pontuada diz respeito à comprovação dos benefícios terapêuticos que os produtos da Cannabis podem trazer. Apesar das notícias e dos relatos de que eles trazem benefícios espetaculares, pelo menos no atual estágio de pesquisa, não há comprovação de eficácia a amparar a prescrição da substância para a maioria dos casos, como doenças do sono, dor e doenças psiquiátricas.

Há, contudo, estudos indicando um benefício clínico no tratamento de epilepsias refratárias, nos quadros das síndromes de Lennox-Gastaut e de Dravet. Para esses dois casos, e somente para eles, foram feitos ensaios clínicos randomizados de qualidade, controlados por placebo, demonstrando um efeito terapêutico com a utilização do canabidiol. Em contrapartida, foram descritos alguns efeitos adversos, tais como sonolência, redução de apetite e alterações hepáticas, que não se demonstraram graves.

Diante disso, com base no conhecimento que se tem hoje, a prescrição do canabidiol deve se dar com cautela, somente para os quadros de epilepsia acima descritos, após o uso de outras substâncias, sem que tenha havido o controle das crises. A sua indicação para todas as outras doenças não tem respaldo científico. Prescrever o canabidiol para outras situações é como prescrever substâncias sem comprovação de eficácia, como infelizmente ocorreu em grande escala no Brasil, no combate à COVID-19.

Se indicar o canabidiol para situações em relação às quais não há comprovação dos benefícios é desaconselhável, pretender que o Sistema Único de Saúde incorpore a substância em suas listas para esses casos é inadmissível. Para que uma determinada tecnologia seja incorporada no SUS, ela deve ser analisada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), conforme estabelecido pela Lei nº 12.401/2011. Nessa análise, a Conitec considera as evidências científicas a respeito da tecnologia, bem como questões econômicas. Esse processo se chama avaliação de tecnologia em saúde (ATS) e ocorre em vários países que possuem sistema público de saúde. Isso já demonstra a inadequação de qualquer iniciativa do poder legislativo que objetive criar para o SUS a obrigação de fornecer determinado medicamento.

Recentemente, a Conitec avaliou o canabidiol para epilepsia refratária a medicamentos antiepilépticos, para os casos das síndromes de Lennox-Gastaut e de Dravet, recomendando a sua não incorporação. A comissão, embora tenha admitido que os estudos demonstraram efeito do tratamento, considerou que eles não foram convincentes no sentido de demonstrar a relevância média do seu impacto, pois não conseguiu apontar melhora na qualidade de vida dos pacientes. A conclusão foi de que o tamanho do efeito “em média” não está provado como relevante. Além disso, a relação de custo-efetividade desfavorável e o alto impacto orçamentário que haveria com a oferta do medicamento pelo SUS também foram considerados para a negativa de recomendação de incorporação.

Ainda que o canabidiol não esteja incluído nas políticas públicas de saúde, o SUS vem sendo compelido a fornecê-lo a vários pacientes com as mais diversas doenças, em razão de decisões judiciais. A título de exemplo, a substância é um dos dez tratamentos mais concedidos em ações judiciais em face do Estado do PR, no ano de 2021.

É necessário estabelecer mecanismos que assegurem e incentivem a pesquisa do uso do canabidiol para outras doenças. Enquanto isso, a sociedade, os órgãos de comunicação e o poder público em geral devem estar cientes das limitações dos estudos hoje existentes a respeito da eficácia dos produtos da Cannabis, porque, na medicina, não basta crer em um medicamento, tem que haver prova de que ele funciona.

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Deferência judicial e controlabilidade das decisões da Conitec: o caso do nusinersena

legos em deferência

1. Introdução

Este artigo traz uma avaliação crítica dos diversos posicionamentos expressados pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) nas vezes em que se manifestou sobre a incorporação do medicamento nusinersena para o tratamento de Atrofia da Medula Espinhal – AME. O tratamento é de custo elevadíssimo e a doença é rara e muito grave. Daí decorre a relevância das análises feitas pelo órgão, tanto em relação à própria política de assistência farmacêutica como em relação à judicialização da saúde.

Antes de mais nada, é preciso enaltecer a existência e o trabalho desenvolvido pela Conitec para a qualificação do SUS. A comissão, sem dúvida, foi uma das maiores conquistas do sistema público de saúde. Sua atuação é fundamental para a existência de uma política de assistência terapêutica qualificada, para a sustentabilidade do SUS e para a incorporação real da ciência como padrão de conduta no trato da saúde dos cidadãos. O trabalho por ela desempenhado é digno de elogios.

As considerações feitas neste texto têm como propósito apenas contribuir para o contínuo aprimoramento das atividades da Conitec e para uma aproximação harmoniosa entre ela e o Poder Judiciário, que cada vez mais é chamado a se manifestar sobre as questões avaliadas pela comissão de avaliação de tecnologias em saúde.

2. Deferência judicial e controlabilidade das decisões da Conitec

A importância da deferência judicial às análises e decisões técnicas da Administração Pública na fixação da política de assistência farmacêutica é inquestionável. De fato, o Poder Executivo – especialmente por meio da Conitec – é a instância com competência, legitimidade e capacidade técnica para avaliar as novas tecnologias em saúde passíveis de incorporação ao SUS, devendo as suas decisões ser respeitadas pelo Poder Judiciário, que normalmente atua em caráter pontual nas demandas de saúde, sem uma perspectiva global e necessária para o aperfeiçoamento e a sustentabilidade do SUS.

Por essas razões, havendo decisão expressa do Ministério da Saúde, após a devida avaliação da Conitec, pela não incorporação de um determinado medicamento ao SUS, não cabe, via de regra, ao Poder Judiciário imiscuir-se em nova análise e desconsiderar a decisão do gestor e do órgão técnico capacitado para avaliação de tecnologias em saúde.

Isso não significa, entretanto, que as avaliações técnicas e as decisões sobre incorporação de medicamentos ao SUS estejam imunes a qualquer apreciação judicial. Na medida em que tais atos impactam diretamente no direito fundamental à saúde (seja ele analisado sob a perspectiva individual ou coletiva), é atribuição do Poder Judiciário verificar se a Administração atua segundo o dever constitucional a ela imposto de proteção aos direitos fundamentais e dentro da margem de discricionariedade atribuída.

Neste cenário, ainda que o Poder Judiciário não seja o órgão tecnicamente preparado para a avaliação da necessidade e da conveniência de incorporação de novos tratamentos ao SUS, ele deve atuar no controle da Administração ao menos em relação a critérios de legalidade, razoabilidade e motivação das decisões administrativas, de forma a assegurar que o Poder Executivo exerça suas competências de forma satisfatória e legítima. Para tanto, é de suma importância que a motivação dos atos administrativos, especialmente daqueles que interferem no delineamento dos direitos fundamentais, seja adequada para justificar as razões pelas quais o Estado nega uma proteção pretendida pelo cidadão, ainda que por meio da instituição de uma política pública que não atenda ao caso concreto por fatos compreensíveis.

Especificamente na tutela do direito à saúde, é preciso que as decisões que recusam a incorporação de novos tratamentos ao SUS demonstrem de forma objetiva e consistente as razões que as fundamentam. É assim que se legitima a política pública, mesmo que ela não seja capaz de atender a todos os anseios dos cidadãos.

Como bem ensina CASS SUNSTEIN (The Cost-Benefit Revolution, p. 153, aqui em livre tradução):

“A desconfiança nas decisões de uma agência pode produzir considerações compensatórias. Se as agências são sistematicamente enviesadas ou se erros graves de análise são prováveis, a revisão da arbitrariedade pode ser intensificada.”

É justamente a clara motivação das decisões que afasta a desconfiança do órgão controlador e, consequentemente, reduz as chances de sua revisão.

Enfim, o dever de deferência do Judiciário às decisões técnicas da Administração pressupõe, no mínimo, que elas sejam satisfatoriamente justificadas. Com isso, os juízes podem ao menos compreender as razões de decidir e visualizar a sua razoabilidade, ainda que com elas não concordem.

Por esses motivos é que tanto a doutrina como a jurisprudência admitem, ao lado da deferência, um controle judicial mínimo sobre a competência e a motivação das decisões técnicas proferidas pelo Poder Executivo, inclusive para afastá-las quando for o caso.

 No voto condutor do acórdão que resultou na tese do Tema 500/STF (RE 657.718/MG) – relativo à obrigação do Estado de fornecer medicamentos não registrados na ANVISA – o ministro Roberto Barroso, após salientar a importância do respeito, pelo Poder Judiciário, às decisões técnicas da agência reguladora, ponderou que “isso, é claro, não impede a propositura de demandas judiciais que questionem a própria decisão da agência, comprovando-se técnica e cientificamente que foi equivocada”.

O voto do ministro Edson Fachin no mesmo julgamento tratou de forma substanciosa dos limites do controle judicial sobre as decisões das agências reguladoras. O seguinte trecho é digno de nota:

Em termos práticos, isso impõe ao Estado o dever de dar transparência às decisões tomadas pelas agências reguladoras. A transparência deve, ainda, atingir a todos os que forem afetados pela decisão. Ademais, deve a decisão também ter fundamentos verificáveis, isto é, ainda que se discorde das razões adotadas, todos devem reconhecer como suficiente para se chegar às conclusões as razões apresentadas. Finalmente, devem as agências garantir o direito de recurso ou revisão por parte daqueles que direta ou indiretamente possam ser afetados pela decisão

Com efeito, ainda que se discorde da decisão tomada em uma avaliação de tecnologia em saúde, é primordial que se compreenda ao menos as razões que a justificam para que, então, se exija deferência judicial. O dever de motivação (art. 2º da Lei nº 9.784/99) ganha especial relevo.

Lecionando sobre a correlação entre a deferência judicial e o dever de motivação na experiência estrangeira, EDUARDO JORDÃOControle Judicial de Uma Administração Pública Complexa – A Experiência Estrangeira na Adaptação da Intensidade do Controle – Melheiros Editores, p. 114 assim escreve:

A integração do dever de motivação no controle substancial deferente - Os tribunais de Estados Unidos e Canadá ampliaram a relevância do dever de motivação ao basear fortemente sobre ele o controle judicial substantivo, para o qual já haviam consagrado uma orientação deferente. Em suma, passou-se a considerar uma decisão juridicamente válida quando bem motivada. Neste contexto, a "razoabilidade" de uma decisão, por exemplo, deixa de ser examinada em relação a padrões substantivos próprios dos tribunais, e ganha conteúdo procedimental. A decisão razoável não é aquela que não se afaste consideravelmente de uma opção substancial de predileção dos tribunais, mas aquela que tenha sido adotada de forma transparente e bem justificada pela administração pública.

Novamente tratando da questão, mas desta vez no julgamento do Tema 6/STF (RE 566.471), relacionado ao dever do Estado de fornecer medicamentos de alto custo não incorporados ao SUS, o ministro Roberto Barroso assim se manifestou em seu voto:

Por isso, nos casos em que a CONITEC chegou a avaliar pedido de incorporação de medicamento, mas concluiu de modo desfavorável ao fornecimento gratuito do fármaco pelo Poder Público, deve-se privilegiar a decisão técnica do órgão responsável. Nessa situação, o que se deve poder questionar na via judicial é tão somente a fundamentação técnica e científica da decisão do SUS de não incluir a tecnologia nas listas de dispensação existentes.

Uma questão complexa que se coloca na hipótese de o Poder Judiciário concluir que a decisão do órgão gestor ou técnico do Poder Executivo possui vício de fundamentação ou falha técnica evidente é definir quais as consequências disso para o caso concreto.

Poderia o juiz determinar que o órgão ou autoridade responsável pela decisão suprisse a falha constatada, fazendo com que a interferência judicial no ato administrativo fosse mínima. Essa seria, em tese, a solução mais adequada para a preservação da competência do Poder Executivo. Por outro lado, poderia trazer consequências negativas para o processo que trate da situação individual de um paciente, que deveria aguardar a convalidação do ato administrativo que possivelmente demandaria tempo considerável.

Uma outra alternativa seria o juiz prestar a devida deferência à decisão administrativa ainda que considere a mácula na motivação ou a falha técnica, mas paralelamente a isso adotar medidas destinadas a regularizá-la para situações futuras, como a comunicação do fato ao órgão ou autoridade prolator ou a órgãos de fiscalização e controle de seus atos.

Uma terceira hipótese seria o juiz, reputando o ato nulo pela falha ou ausência de motivação ou mesmo por equívocos técnicos flagrantes, desconsiderá-lo no julgamento da ação individual, valendo-se de outras provas e informações técnicas para decidi-la.

Este é um tema realmente complexo que merece ser discutido separadamente.

Feitos esses esclarecimentos, é importante verificar como a Conitec se manifestou sobre a incorporação do nusinersena ao SUS para o tratamento da AME.

3. A avaliação da Conitec sobre a incorporação do nusinsersena para o tratamento da AME  

Em um primeiro momento, a Conitec avaliou a viabilidade de incorporação do nusinersena para o tratamento da AME Tipo I.

ROSÂNGELA CAETANO, RENATA CURI HAUEGEN E CLAUDIA GARCIA SERPA OSORIO-DE-CASTRO, em valioso artigo acerca da incorporação do fármaco ao SUS, assim relataram as sucessivas provocações e manifestações da Conitec:

Ocorreram duas solicitações de apreciação de incorporação do medicamento, separadas por um ano. A primeira demanda foi submetida pela SCTIE/MS em janeiro de 2018. Recomendação preliminar de não incorporação foi feita na 69ª reunião ordinária de agosto de 2018 e submetida à consulta pública por 20 dias, tendo recebido 36.972 contribuições. Na 72ª reunião ordinária, em novembro de 2018, as contribuições foram apreciadas. Conforme ata pública dessa reunião, estudos publicados após a busca feita para o relatório da CONITEC foram revisados e seus resultados corroboravam a recomendação de não incorporação. O Plenário entendeu que não houve evidência suficiente para alterar sua recomendação inicial e deliberou, por unanimidade, manter a não incorporação. O Relatório nº 400 correspondente à deliberação final não está disponível nas páginas eletrônicas da CONITEC; a demanda consta apenas como “processo encerrado a pedido do demandante”.
Em dezembro de 2018, a Advocacia Geral da União (AGU) emitiu o Parecer nº 01377/2018/CONJUR-MS/CGU/AGU17 em atendimento à consulta do então Secretário da SCTIE/MS, que versava sobre a possibilidade de sua decisão em sentido diverso da recomendação do Plenário da CONITEC. Segundo o Parecer, o Despacho SCTIE s/n (documento SEI “7088380”) traz como “principal motivação do não acatamento do relatório da CONITEC a existência de uma nova proposta de preço por parte da empresa Biogen, proposta essa ocorrida após a avaliação já realizada pela CONITEC” (argumento 38). Afirma que, ao entender como “pertinente a incorporação do medicamento nusinersena para todos os com AME 5q, independentemente de fenótipo...” (p. 3-4), o Despacho realiza “ampliação objetiva do escopo técnico da matéria”, uma vez que a apreciação da CONITEC se limitou à indicação para AME 5q tipo I. A AGU discute também que a nova proposta de preço não resolve a “fragilidade das evidências clínicas referidas na recomendação da CONITEC” (argumento 31).
O Parecer transcreve o resumo executivo do Relatório nº 400 da CONITEC, destacando os critérios que subsidiaram a recomendação de não incorporação (argumento 36). Diante das atribuições legais de competência, ressalta que, apesar do caráter de assessoramento das atividades da CONITEC, “não se pode concluir pela existência de um poder amplo e ilimitado de revisão, pelo SecretaÌrio da SCTIE, do entendimento exarado pela CONITEC” (argumento 23). Finaliza, considerando que “não obstante haver, de fato, a possibilidade do Secretário da SCTIE/MS, a priori, decidir”, pode “haver grave insegurança jurídica na opção pela decisão de não acatamento da recomendação da CONITEC”. Orienta que a SCTIE/MS, caso opte por não acatar a recomendação da CONITEC, promova nova submissão.
Em janeiro de 2019, nova submissão foi realizada, com indicação sem restrição por tipo de AME, tendo por demandante o fabricante. No relatório preliminar da CONITEC de março de 2019 consta, contudo, recomendação favorável de incorporação apenas para o tratamento da AME 5q tipo I, por considerar que os estudos avaliando a doença de início tardio eram escassos.
(...)
A nova recomendação foi submetida à consulta pública por 10 dias, recebendo 41.787 contribuições. Dos 172 relatórios com recomendação final favorável de incorporação pela CONITEC entre janeiro de 2012 e abril de 2019, 123 foram submetidos à consulta pública. As contribuições do nusinersena correspondem a 55,8% do total de 74.900 contribuições Tabela 3. O número máximo de contribuições até então tinha ocorrido na avaliação das insulinas análogas de ação prolongada para o tratamento de diabetes mellitus tipo I (2.574).
(...)
Em 4 de abril, apenas uma semana após o término da consulta, o Plenário da Comissão deliberou, também por unanimidade, pela incorporação do fármaco para o tratamento da AME 5q tipo I.
No relatório final da CONITEC, as condições estabelecidas diferem da recomendação preliminar. Continua exigido o diagnóstico confirmatório e que os pacientes não estejam em ventilação mecânica invasiva permanente contínua, mas não existem menções à idade ou ao intervalo de tempo para o início do tratamento. Também não há mais referência à doação de frascos e sim à negociação de preço com o fabricante. Consta ainda que, caso sejam apresentadas evidências adicionais sobre eficácia, efetividade e segurança do nusinersena para o tratamento dos tipos II e III de AME 5q, o tema poderá ser reavaliado pela CONITEC.
(...)
A Portaria SCTIE nº 24 foi assinada em 24 de abril de 2019. A sessão ocorreu no Senado, com o Ministro da Saúde informando que a aquisição do nusinersena seria realizada sob nova modalidade de compras, a partilha de risco.

Como se vê, em novembro/2018 a CONITEC emitiu relatório final (não disponível em sua página na internet) ratificando relatório inicial que recomendava a não incorporação do nusinersena para a AME ao SUS. Na ocasião, reputou-se não existirem evidências científicas seguras de sua efetividade.

Em janeiro/2019, nova consulta à agência foi feita, sendo pouco provável que em intervalo de tempo tão curto novas evidências científicas tenham surgido. Ainda assim, em março/2019 a CONITEC emitiu novo relatório, desta vez recomendando a incorporação do medicamento para o Tipo I da doença, o que foi confirmado no relatório final emitido logo na sequência, em abril/2019.

Esse mesmo relatório de abril de 2019 concluiu pela ausência de evidências científicas seguras a respeito da eficácia e efetividade do Nusinersena para o tratamento da AME tipos II e III, ou do tipo I com diagnóstico tardio.

Por essa razão é que foi feita a seguinte ressalva na Recomendação Final:

(...) A CONITEC informa que caso sejam apresentadas evidências adicionais sobre eficácia, efetividade e segurança do nusinersena para tratamento dos tipos II e III de AME 5q, o tema poderá ser reavaliado.

Em síntese, mesmo diante da ausência de evidências científicas robustas a respeito dos benefícios do Nusinersena no tratamento da AME Tipos II e III, os estudos ao menos sugeriam que o medicamento poderia ser eficaz também nestes casos, o que precisaria ser confirmado.

Justamente em razão dessa possibilidade é que o Ministério da Saúde, de forma inovadora, chegou a editar a Portaria GM nº 1.297, de 11 de junho de 2019, que “institui projeto piloto de acordo de compartilhamento de risco para incorporação de tecnologias em saúde, para oferecer acesso ao medicamento Spinraza (Nusinersena) para o tratamento da Atrofia Muscular Espinhal (AME 5q) tipos II e III no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS”.

É importante sublinhar que a Portaria GM nº 1.297/2019 não incorporou incondicionalmente o Nusinersena ao SUS para o tratamento da AME Tipos II e III. Ela apenas autorizou que fosse firmado um acordo de compartilhamento de riscos com a fabricante do medicamento, de maneira que, até que coletadas maiores evidências da eficácia do fármaco nestes casos, os custos financeiros do tratamento fossem repartidos entre o Ministério da Saúde e a indústria farmacêutica, na forma e nas condições que viessem a ser pactuadas.

Acontece que, nada obstante essa intenção inicial do Ministério da Saúde, no final do ano de 2020 tomou-se conhecimento de que a opção pelo acordo de compartilhamento de riscos não chegou a bom termo, tendo sido encerrada antes mesmo de sua implementação.

Ainda que não se disponha de informações oficiais a respeito, já que o Ministério da Saúde não se manifestou de forma clara e objetiva perante os cidadãos, a empresa fabricante do produto veio a público comunicar a ausência de êxito na formalização do acordo, noticiando o seguinte:

Orientada pelo princípio da transparência e comprometimento, a Biogen Brasil Produtos Farmacêuticos Ltda. (“Biogen”) vem, por meio desta, trazer esclarecimentos sobre o andamento do acordo de compartilhamento de risco por desfecho. Em audiência com representantes da Biogen Brasil na última semana, o Ministério da Saúde colocou que, após explorar diversas alternativas, não foi encontrada solução que viabilizasse a aquisição e dispensação do nursinersena para atender aos pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) tipos II e III, tal como originalmente planejado. A orientação é que a Biogen faça uma nova submissão à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec).

Na sequência, frustrada a iniciativa do acordo de compartilhamento de riscos, a Conitec avaliou o pedido de incorporação do nusinersena para o tratamento da AME Tipos II e III, o que se deu pelo Relatório de Recomendação nº 595 de 2021. A agência emitiu deliberação preliminar não recomendando a incorporação do tratamento. Eis a síntese das razões de que se valeu, segundo o próprio relatório:

Recomendação preliminar: Pelo exposto, os membros do plenário da Conitec, em sua 92ª reunião ordinária, no dia 05 de novembro de 2020, deliberaram por maioria simples dos presentes, que a matéria fosse disponibilizada em consulta pública com recomendação preliminar não favorável à ampliação de uso no SUS, do medicamento nusinersena para AME tipos II e III. Foi discutido sobre a possível influência de outras intervenções (por exemplo, cuidados fisioterapêuticos e OPME) no desfecho dos pacientes, comparado ao que seria oferecido pelo medicamento nusinersena e a importância da administração precoce para a obtenção dos desfechos esperados. Alguns membros do plenário apontaram também que o benefício dessa tecnologia isolada, apesar de existente, não é capaz de modificar o curso da doença e, do ponto de vista do custo-benefício, não justifica o montante de recursos necessários para sua implementação.

O processo foi, então, submetido a consulta pública, cujas contribuições a Conitec entendeu terem sido insuficientes para a modificação da recomendação preliminar, que foi, portanto, ratificada na recomendação final. Vejamos:

14. RECOMENDAÇÃO FINAL
Os membros da Conitec presentes na 94ª reunião ordinária, no dia 04 de fevereiro de 2021, deliberaram, por maioria simples dos votos, recomendar a não incorporação do nusinersena para o tratamento de AME 5q tipos II e III (início tardio). Os membros presentes entenderam que não houve argumentação suficiente para alterar a recomendação preliminar. Foi assinado o Registro de Deliberação nº 590/2021.
Ainda assim, sucedeu-se a realização de audiência pública que teve como finalidade "ouvir a sociedade sobre a proposta de incorporação do nusinersena para o tratamento da Atrofia Muscular Espinhal (AME) 5q dos tipos 2 e 3 e recepcionar contribuições, de modo a levantar mais subsídios, além dos já compilados no relatório técnico final da Comissão, para a tomada de decisão, após a demanda de diversos segmentos da sociedade".

A audiência contou com a participação de representantes das mais diversas instituições envolvidas na discussão (fabricante, gestores do SUS, profissionais da saúde, pesquisadores, membros da sociedade civil etc.), que expuseram os respectivos e variados pontos de vista a respeito da conveniência ou necessidade de incorporação do nusinersena ao SUS para o tratamento da AME Tipos II e III.

Ocorre que o relatório de recomendação, após compilar todas as opiniões e informações colhidas na audiência pública – as quais, frise-se, foram das mais diversas naturezas e nos mais diferentes sentidos – ateve-se a emitir uma “nova” recomendação final (após a audiência pública) no seguinte sentido, in verbis:

 16. RECOMENDAÇÃO FINAL APÓS A AUDIÊNCIA PÚBLICA 
Os membros da Conitec presentes na 5ª Reunião Extraordinária da Conitec, no dia 12 de maio de 2021, deliberaram, por maioria simples, modificar parcialmente a recomendação final da 94ª reunião ordinária. Tendo em vista o exposto na Audiência Pública nº 1/2021, os membros da Conitec recomendaram a incorporação do nusinersena para o tratamento da atrofia muscular espinhal 5q tipo II, com diagnóstico até os 18 meses de idade, conforme Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Ministério da Saúde; e pela não incorporação do nusinersena para tratamento da atrofia muscular espinhal 5q tipo III. Foi assinado o Registro de Deliberação nº 619/2021.

Com isso, o nusinersena foi efetivamente incorporado ao SUS também para o tratamento da AME Tipo II (Portaria SCTIE/MS Nº 26, DE 1º/06/2021), mas não para o Tipo III.

Da leitura do relatório não é possível inferir quais foram, exatamente, as informações colhidas na audiência pública que levaram a Conitec a alterar as recomendações inicial e final (antes da audiência pública, mas após a consulta pública) para, desta vez, sugerir a incorporação do medicamento para o tratamento da AME Tipo II. Da mesma maneira, não constam no relatório os fundamentos para que a incorporação do tratamento do Tipo III da doença permanecesse não recomendada. A agência ateve-se a explicar a mudança de posicionamento apenas “Tendo em vista o exposto na Audiência Pública nº 1/2021”

Como já dito, entretanto, inúmeras informações e opiniões foram expostas na audiência pública. Basta que se verifique o quadro 23 do relatório de recomendação para que se perceba quão variadas e até mesmo dissonantes elas são. Não há, portanto, forma de se extrair quais foram, de fato, os dados mais consistentes considerados pela Conitec para que revisse a recomendação contrária à incorporação do medicamento para a AME Tipo II, tampouco para que mantivesse a recomendação de não incorporação para a AME Tipo III.

Não houve, enfim, fundamentação clara e objetiva para a tão relevante mudança de postura. Grosso modo, seria algo como o juiz julgar procedente ou improcedente uma pretensão apenas “tendo em vista as provas dos autos”, o que evidentemente não atende ao dever de motivação.

Aliando este fato às bruscas e pouco compreensíveis mudanças de posicionamento da Conitec também na análise da incorporação do nusinersena para a AME Tipo I, conforme relatado acima, torna-se difícil prestar a aconselhável deferência judicial.

A deferência judicial é o acolhimento de decisões alheias que sejam bem fundamentadas e, portanto, compreensíveis. Não é um ato de fé, mas de respeito aos motivos demonstrados por aquele que tem competência e preparo para tratar da questão. Para se prestar deferência, não é necessário concordar com a decisão, mas é preciso bem entendê-la, tanto em relação aos fatos que a embasaram como em relação à avaliação sobre eles feita.

4. Conclusão

Para que a deferência judicial às decisões da Conitec seja satisfatoriamente atingida, é necessário que se trabalhe em duas frentes:

a) a conscientização dos juízes de que a Conitec é o órgão competente e qualificado para a avaliação de tecnologias em saúde a serem incorporadas ao SUS, de forma que suas análises e recomendações devem ser respeitadas porque feitas após rigoroso procedimento de levantamento das evidências científicas e de custo-efetividade; e

b) a conscientização da Conitec de que, quanto mais claros e objetivos forem seus relatórios e quanto mais fácil a identificação dos motivos que conduziram às recomendações firmadas, maior é a chance de serem acolhidos pelo Poder Judiciário.

Imagem do Post: Stillness InMotion




Sudoku do STF – Harmonizando as teses sobre saúde

observando mapa mental

“A tese não deve suscitar novos conflitos.”

Ministro Marco Aurélio

A frase foi dita pelo ministro Marco Aurélio, na sessão de fixação da tese do tema 500 do STF.

Infelizmente, sua colocação não foi observada pelo Tribunal nas teses de direito à saúde, o que vem acarretando inúmeros debates. Atualmente são: o tema 6 (obrigatoriedade de fornecimento de medicamento de alto custo), ainda sem tese, o tema 500 (obrigatoriedade de fornecimento de medicamentos não registrados na ANVISA), o tema 793 (responsabilidade dos entes federados pelas prestações em saúde) e o tema 1161 (obrigatoriedade de fornecimento de medicamento sem registro na ANVISA, mas com autorização de importação).

Tanto o julgamento do tema 6, como o julgamento e as teses dos demais deram origem a vários questionamentos. Afinal, o que é substituto terapêutico? Como se comprova que o tratamento é imprescindível? Como se verifica se a parte é hipossuficiente? A família do requerente também deve comprovar a hipossuficiência? Quais são as agências renomadas no exterior do tema 500? Quem paga pelos medicamentos não padronizados?

Não há dúvidas de que essas perguntas não podem ser detalhadamente respondidas e de que o STF avançou na matéria. Todavia, é possível que alguns pontos sejam aprofundados, a fim de que os operadores do direito tenham mais segurança quando analisam os processos de saúde. A partir do momento em que o tribunal fixa requisitos vagos que não encontram suporte na legislação ou na regulamentação, é necessário que ele esclareça minimamente o seu conteúdo. Com uma definição mais clara do que ficou estabelecido pelo STF também ganha o jurisdicionado, que vai saber com mais precisão quando pode ou não pleitear tratamento fora da política pública de saúde.

A ausência de resposta a questões importantes aliada à dificuldade de exame conjunto e sistematizado das decisões e julgados acarretam conflitos, a despeito da advertência do ministro avicultor recém aposentado. Como já disse o mesmo ministro: “a crise é aguda”, e os juízes sabem disso.

Por isso, o Direito em Comprimidos traz para você o super, o mega, o incrível SUDOKU das teses do STF:

mapa mental teses
Teses STF

Por fim, queremos dizer que essa é uma crítica construtiva e que o blog apoia o STF e a democracia sempre!




Incorporação de medicamentos oncológicos pelo SUS: decifra-me ou te devoro – Parte III

Monalisa de máscara

Quanto mais se estuda a forma de padronização e de disponibilização da assistência terapêutica do SUS, mais se percebe a complexidade do regramento jurídico a elas relacionado e de sua operacionalização. Não por outro motivo, aliás, este é o terceiro capítulo da série “Decifra-me ou te devoro”, que já tratou, anteriormente, da pactuação da assistência farmacêutica e da divisão de competências nas ações e serviços públicos em saúde.

Agora, o que se pretende entender é como e por que medicamentos oncológicos são incorporados ao SUS. Essa compreensão é de suma importância para o operador do Direito à Saúde saber lidar com algumas das causas da judicialização relacionada ao tratamento do câncer.

Diante do que se tem visto ultimamente na prática, a missão não será fácil.

Antes de tudo, é preciso deixar bem assentada a forma como a assistência oncológica, especialmente a medicamentosa, é prestada pelo SUS.

O fornecimento dos fármacos para o tratamento do câncer deverá ocorrer, preferencialmente, por intermédio da Unidade de Assistência de Alta Complexidade (UNACON) ou do Centro de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (CACON) no qual o paciente já vem sendo tratado, conforme diretriz traçada pela Portaria nº 874/2013 do Ministério da Saúde. O art. 25, III, da Portaria dispõe que os hospitais especializados habilitados para a assistência oncológica são responsáveis pelos serviços relacionados ao tratamento do câncer e à atenção às urgências referentes às intercorrências e agudização da doença.

Via de regra, não há uma lista de medicamentos oncológicos disponíveis no SUS. Cabe aos CACON’s ou UNACON’s definirem, dentro das Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas estabelecidas pelo Ministério da Saúde, aqueles que serão fornecidos aos seus pacientes com o posterior reembolso, pela União, por meio das respectivas Autorizações de Procedimentos de Alta Complexidade – APAC. Assim, os hospitais são responsáveis pela aquisição e fornecimento dos medicamentos por eles mesmos padronizados, cabendo-lhes codificar e cobrar conforme as normas expressas nas portarias e manuais do SUS.

A liberdade de definição e prescrição dos medicamentos pelos CACON’s/UNACON’s, portanto, é limitada pelo valor da APAC. Se o tratamento disponibilizado pela instituição de saúde tiver um custo maior, ela precisará arcar com as despesas excedentes por sua conta. Sendo assim, dentro do atual modelo de assistência oncológica, não haveria, em um primeiro momento, necessidade de incorporação de fármacos à Relação Nacional de Medicamentos (RENAME), como ocorre com as demais doenças. O que se torna necessária é a estipulação de valores de APAC’s que sejam condizentes com os tratamentos adequados a serem disponibilizados pelo SUS dentro da margem de liberdade conferida às instituições de saúde credenciadas.

Nada impede, entretanto, que o Ministério da Saúde opte por padronizar determinados medicamentos oncológicos para facilitar a logística de sua dispensação ou por razões de ordem financeira, quando a aquisição centralizada se mostrar mais vantajosa. Foi o que ocorreu com as seguintes drogas: mesilato de imatinibe, dasatinibe, nilotinibe, trastuzumabe, l-asparaginase, rituximabe e dactinomicina. Todas elas são adquiridas diretamente pelo Ministério da Saúde, enviadas às Secretarias Estaduais de Saúde e então distribuídas aos CACON´s/UNACON’s.

Desta forma, não há, ordinariamente, necessidade de avaliação de medicamentos oncológicos pela CONITEC para que eles possam ser dispensados pelo SUS.

A despeito disso, têm sido bastante comuns as submissões de remédios para o tratamento de câncer à análise da CONITEC com a consequente emissão de relatórios de recomendação. Sendo positivo o parecer da agência, tais medicamentos acabam sendo efetivamente padronizados pelo Ministério da Saúde, a despeito da regra geral de se conferir ampla liberdade aos CACON’s/UNACON’s para a definição das drogas a serem ministradas aos pacientes, com posterior ressarcimento das despesas nos limites das APAC’s. 

O problema é que grande parcela dos medicamentos oncológicos incorporados não está sendo efetivamente disponibilizada, mesmo vários anos após a incorporação.

A seguinte relação – gentilmente disponibilizada pela Secretaria de Saúde do Paraná – elenca uma série de medicamentos para o tratamento de câncer que já foram incorporados pelo Ministério da Saúde, mas não estão sendo adquiridos e fornecidos até o momento, mesmo ultrapassado o prazo máximo para disponibilização de cento e oitenta dias após a incorporação (art. 25 do Decreto 7.646/2011):

medicamentos oncologicos

Considerando o grande número de fármacos presentes na lista e também que alguns desses medicamentos já foram incorporados ao SUS há mais de sete anos, é difícil crer que a não disponibilização aos pacientes decorra de trâmites burocráticos ou de dificuldades na aquisição. De qualquer forma, se realmente há empecilhos insuperáveis para o fornecimento (a falta de aquisição vários anos após a incorporação não deve decorrer de problemas provisórios e contornáveis), é preciso que sejam claramente expostos. Neste caso, cabe ao Ministério da Saúde revogar a incorporação de maneira fundamentada. Se os empecilhos não existem, então as respectivas portarias de incorporação devem ser cumpridas com a efetiva aquisição e entrega dos medicamentos.

Argumentos de ordem financeira não seriam justificativas válidas para a não disponibilização de medicamentos oncológicos já incorporados ao SUS. Ocorre que a CONITEC analisa a relação custo-efetividade dos medicamentos submetidos ao seu crivo, além de estimar o impacto orçamentário aos cofres públicos para os anos seguintes. Como a incorporação ocorre necessariamente após o relatório da CONITEC, é de se pressupor que o gestor tem conhecimento e garante a existência dos recursos necessários para a aquisição e disponibilização dos fármacos. Caso contrário, a incorporação não teria ocorrido – ou, ao menos, não deveria tê-lo.

De qualquer forma, ainda que se considere que a incorporação foi irregular, impossível de ser bancada ou inconveniente ao interesse público por não haver recursos financeiros suficientes para arcar com as despesas dela decorrentes, a portaria que a determinou deve ser anulada ou revogada. O que não se pode admitir é um ato administrativo válido e em plena vigência que simplesmente não é cumprido pela própria Administração.

Outro problema que tem sido recorrente nas incorporações de medicamentos oncológicos é o condicionamento da efetiva disponibilização à negociação de preço com o fabricante. O que acontece é que, em regra, tanto os relatórios da CONITEC como as subsequentes portarias de incorporação simplesmente estabelecem tal requisito, mas sem prever as consequências para a sua não implementação no prazo legal. Além disso, não se levam a público os resultados da negociação de preço ou mesmo o início e a finalização das tratativas.

A negociação de preço de um medicamento incorporado ao SUS não é apenas uma condição para a sua disponibilização, quando assim prevista na respectiva portaria. Ela é também uma obrigação do Ministério da Saúde. Se não existe intenção de negociar, e sendo esse um requisito constante no relatório de recomendação da CONITEC, ou a portaria de incorporação deve afastá-lo para que a padronização seja incondicional, ou não deve haver incorporação. No entanto, se a opção discricionária do gestor foi a de incorporar o medicamento mediante negociação de preço, então as tratativas devem ser feitas, mesmo que não sejam ao final exitosas.

O art. 25 do Decreto nº 7.646/2011 dispõe que “a partir da publicação da decisão de incorporar tecnologia em saúde, ou protocolo clínico e diretriz terapêutica, as áreas técnicas terão prazo máximo de cento e oitenta dias para efetivar a oferta ao SUS”.

Desta forma, se o Ministério da Saúde não demonstrar ao menos que deu início à negociação de preços dentro do prazo de cento e oitenta dias, mas também não revogar a portaria de incorporação, o medicamento incorporado deve ser imediatamente concedido, inclusive por determinação judicial, se for o caso.

Situação mais complexa ocorre quando as tratativas entre a Administração e o fabricante, apesar de iniciadas, não foram finalizadas dentro do prazo de cento e oitenta dias. Neste caso, a rigor, seria necessário analisar se a delonga foi indevidamente causada por uma das partes, o que é bastante difícil. Ainda assim, é de se exigir ao menos que o Ministério da Saúde explique que não foi possível a finalização da negociação e prorrogue o prazo para a disponibilização do medicamento por meio de Decreto do Poder Executivo (diploma de igual hierarquia ao que estabeleceu o prazo de cento e oitenta dias), ou então que revogue a portaria de incorporação. O importante, acima de tudo, é que se saiba a quantas anda a negociação.

Para não desanimar aqueles que pretendem compreender de forma clara as nuances da política de assistência oncológica medicamentosa no SUS, trago um último problema.

Como visto anteriormente, a regra é a da inexistência de padronização dos medicamentos oncológicos disponíveis no SUS, já que as instituições de saúde que oferecem tratamento do câncer possuem liberdade para definirem os respectivos esquemas terapêuticos, mediante posterior reembolso das despesas pelo Ministério da Saúde via APAC. Sendo assim, a disponibilização de medicamentos novos pode dispensar qualquer providência do gestor público, desde que a oferta seja compatível com o valor da APAC. Se não for, ela deve ser feita mediante o aumento da APAC ou pela aquisição centralizada do próprio fármaco.

Neste cenário, seria bastante interessante que a CONITEC, ao fazer a análise da relação custo-efetividade do medicamento oncológico submetido à sua apreciação e do impacto orçamentário decorrente de sua incorporação, também examinasse a necessidade ou conveniência de sua oferta mediante inserção na RENAME, por meio de incremento do valor da APAC ou mesmo sem que seja necessária qualquer providência adicional, caso os recursos da APAC já sejam suficientes para a dispensação. 

Foi isso o que a CONITEC fez no relatório de recomendação do sorafenibe para tratamento do carcinoma hepatocelular, ocasião em que concluiu não haver necessidade de incorporação pelo fato de o medicamento ser suportado pela APAC (não vamos, neste momento, entrar no mérito do acerto desta conclusão). Vejamos:

“O plenário da CONITEC esclareceu a dinâmica do tratamento oncológico, onde o procedimento APAC de tratamento do carcinoma hepatocelular não inviabiliza o uso do medicamento sorafenibe por pacientes no âmbito do SUS. O esquema de tratamento deve ser definido pelo médico em conjunto com o paciente, conforme protocolo do serviço de saúde assistencial. O valor de reembolso será o valor proposto para as APACs disponíveis para o tratamento do CHC avançado irressecável. Não há a necessidade de criação de um novo procedimento APAC específico para a incorporação do sorafenibe nos esquemas quimioterápicos utilizados no SUS para o tratamento do CHC avançado irressecável em monoterapia na quimioterapia paliativa”.

Com base nisso, a recomendação foi de sua não incorporação ao SUS.

Infelizmente, entretanto, nem sempre as coisas são tão claras.

Em vários relatórios de avaliação de medicamentos oncológicos, a CONITEC não fez qualquer consideração específica acerca da necessidade ou conveniência de efetiva incorporação do medicamento para aquisição centralizada ao invés de sua dispensação direta pelos CACON’s/UNACON’s e posterior reembolso via APAC, ou vice-versa. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o trastuzumabe, o nivolumabe e a abiraterona, todos com recomendação favorável à incorporação para inclusão na RENAME.

No caso do pazopanibe e do sunitinibe para tratamento do carcinoma de células renais metastático, a situação ficou obscura. Apesar de concluir que o valor da APAC é insuficiente para o custeio dos medicamentos, a CONITEC recomendou a sua incorporação “conforme o modelo da assistência oncológica no SUS”:

“Nesse contexto a CONITEC reconheceu que o valor ressarcido pelo procedimento APAC é insuficiente para a utilização de medicamentos como sunitinibe e pazopanibe, para o tratamento do carcinoma de células renais metastático pelos hospitais credenciados no SUS e habilitados em oncologia”. (...) “Os membros da CONITEC presentes na 72ª reunião ordinária, nos dias 07 e 08 de novembro de 2018, deliberaram, por unanimidade, por recomendar a incorporação do cloridrato de pazopanibe e do malato de sunitinibe para carcinoma renal de células claras metastático, mediante negociação de preço e conforme o modelo da Assistência Oncológica no SUS”.

Ocorre que o modelo da assistência oncológica do SUS é justamente o de livre aquisição pelos hospitais com posterior ressarcimento por APAC, cujo valor, no caso concreto, a CONITEC reputou insuficiente para as despesas com os fármacos. Presume-se que a incorporação seja feita mediante padronização e inclusão dos remédios na RENAME, mas neste caso não se estará seguindo o “modelo de assistência oncológica”. Se for para seguir o modelo, haverá necessidade de aumento do valor da APAC. O fato é que, até o momento, nem uma coisa nem outra foi feita.

A incorporação do gefitinibe para câncer de pulmão de células não pequenas em primeira linha também foi um tanto confusa. Acontece que, ao avaliar o impacto orçamentário da incorporação, a CONITEC fez constar o seguinte em seu relatório de recomendação:

“Impacto orçamentário de R$ 8,3 milhões no primeiro ano e R$ 42,2 milhões em 5 anos. Considerando, porém, a incorporação sem modificação do modelo de financiamento, no mesmo valor da APAC para tratamento quimioterápico do câncer de pulmão células não pequenas avançado atual, não haveria impacto orçamentário para o sistema”.

Se o valor do medicamento já “cabe” na APAC, não haveria, em um primeiro momento, necessidade de sua incorporação. Se houve razões que serviram para justificá-la, não foram expostas de forma clara no relatório.

Como se pode perceber, não há um alinhamento visível entre o modelo da assistência oncológica no SUS e a forma pela qual a incorporação dos medicamentos para o tratamento do câncer vem sendo conduzida pela CONITEC. O próprio órgão, aliás, parece já ter se dado conta da necessidade de examinar de maneira mais detida esses tipos de drogas. É o que se constata na leitura da Ata de sua 72ª Reunião, que tratou da incorporação do pazopanibe e do sunitinibe. Após diversas manifestações na consulta pública sobre as dificuldades encontradas no modelo de assistência oncológica e sobre a corriqueira insuficiência dos valores das APAC’s para a adequada cobertura dos tratamentos necessários, a ata registra que:

“(...) o plenário concordou que algumas informações deveriam ser melhor apresentadas no relatório e alguns membros retomaram a questão de como a CONITEC deve avaliar e incorporar medicamentos antineoplásicos, visto o modelo de assistência oncológica do SUS. Porém, foi orientado que a CONITEC deve manifestar sua recomendação de incorporação ou não, e como o medicamento será disponibilizado será definido posteriormente, de acordo com o financiamento adequado”.

O ideal é que a CONITEC avalie expressamente se no caso concreto é necessário ou conveniente que o fornecimento de medicamento oncológico submetido à sua análise se dê mediante aquisição centralizada pelo Ministério da Saúde ou pelo modelo de assistência oncológica do SUS (via APAC). Isso seria feito no contexto do estudo do impacto orçamentário. Na segunda hipótese, é preciso avaliar também se o valor da APAC para o tratamento do tipo de câncer investigado é suficiente para cobrir as despesas com o novo fármaco. Se a conclusão for positiva e não houver vantagens claras na aquisição centralizada, não há necessidade de incorporação. Por outro lado, se o valor da APAC for insuficiente, seria de suma relevância que a CONITEC fizesse constar essa informação em seu relatório, caso não se opte pela padronização do medicamento.

Esse panorama tão confuso tem dado causa a grande parte da judicialização da saúde relacionada aos medicamentos oncológicos, que poderia, entretanto, ser evitada. Para isso, é preciso que:

a) o Ministério da Saúde dê efetivo cumprimento às portarias de incorporação dessas drogas, adquirindo-as e as disponibilizando segundo os critérios de incorporação;

b) o Ministério da Saúde haja de forma clara e transparente na negociação de preços com o fabricante após a incorporação sempre que ela for uma condição para a disponibilização do medicamento; bem como que decida objetivamente pela manutenção ou revogação das incorporações em que o acordo não for obtido;

c) a CONITEC aprofunde a análise do impacto orçamentário das incorporações de medicamentos oncológicos considerando dois cenários: i) a padronização do medicamento com sua inclusão na RENAME; e ii) o seu custeio segundo o modelo de assistência oncológica, ou seja, mediante livre aquisição pelos CACON’s/UNACON’s e posterior ressarcimento via APAC. Nesta segunda hipótese, é preciso que se deixe claro se o valor da APAC é realmente suficiente para arcar com os gastos do remédio.

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Tratamentos off label na judicialização da saúde

Quadra de tênis

1. Breve contextualização do tema

Dentre as inúmeras questões controvertidas na judicialização da saúde e que parecem nunca ser solucionadas pela jurisprudência, mesmo após teses serem firmadas pelas cortes superiores em julgamentos de recursos repetitivos, está aquela relacionada à possibilidade de o Poder Público ser compelido judicialmente a fornecer medicamentos em desacordo com as indicações constantes das respectivas bulas. Tanto o STF como o STJ já buscaram tratar deste ponto de forma pretensamente definitiva, mas a discussão ainda é candente nas varas e tribunais Brasil afora. É sobre isso que este artigo vai tratar.

2. Definição de tratamento off label

De forma bem simplificada, tratamentos ou prescrições off label são aqueles que não estão dentro dos parâmetros indicados na bula do medicamento, tal qual aprovada pela ANVISA. Isso pode se dar por diversas razões, conforme explicado pelo próprio Ministério da Saúde, através da CONITEC:

Ainda sem tradução oficial para o português, usa-se o termo off label para se referir ao uso diferente do aprovado em bula ou ao uso de produto não registrado no órgão regulatório de vigilância sanitária no País, que, no Brasil, é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Engloba variadas situações em que o medicamento é usado em não conformidade com as orientações da bula, incluindo a administração de formulações extemporâneas ou de doses elaboradas a partir de especialidades farmacêuticas registradas; indicações e posologias não usuais; administração do medicamento por via diferente da preconizada; administração em faixas etárias para as quais o medicamento não foi testado; e indicação terapêutica diferente da aprovada para o medicamento.

Por mais que a definição traga uma ideia de algo excepcional ou anormal, tratamentos off label são muito mais comuns do que se imagina. Muitas vezes, fundam-se em práticas já consagradas no meio médico e validadas pela experiência clínica, ainda que não indicadas em bula. Em outros casos, motivam-se pela ausência de terapias alternativas, o que faz com que os médicos busquem nos medicamentos já registrados pela ANVISA – e que contam, portanto, com a pressuposta garantia de segurança para a saúde do paciente – outras possibilidades de tratamentos, seja para doenças distintas ou para grupos de pacientes não contemplados nas indicações da bula.

Prescrições fora das indicações da bula são corriqueiras, por exemplo, no tratamento pediátrico, uma vez que o pequeno número de pesquisas científicas com crianças limita sobremaneira os registros de medicamentos em formulações ou dosagens específicas para elas. Por isso, há estimativas do próprio Ministério da Saúde de que as prescrições off label sejam superiores a 90% na pediatria. Conclusões parecidas foram atingidas no estudo de McIntyre J, Conroy S, Avery A, Corns H, Choonara I (Unlicensed and off label prescribing of drugs in general practice), segundo o qual:

On general paediatric surgical and medical wards, 36% of children receive at least one drug that is either unlicensed or off label during their inpatient stay. In paediatric intensive care this figure is 70% and in neonatal intensive care 90%.  A recent study of children's wards in five European countries found almost half of all prescriptions were either unlicensed or off label.
(…)
In conclusion, we found that an appreciable number of GP prescriptions for children are drugs used in an off label way. The reason for this is not hazardous prescribing practices but rather anomalies and inadequacies of product licence information with respect to children. Children deserve the safety, efficacy, and quality of medicines that the regulatory process affords to adults and such anomalies and inadequacies need to be addressed.

Situações semelhantes ocorrem com doenças raras ou em cuidados com idosos, que também não costumam figurar com tanta frequência nas pesquisas científicas destinadas a experimentar tratamentos de doenças de maior prevalência entre pessoas mais jovens.

É preciso deixar claro, portanto, que um tratamento off label não se equipara à utilização de medicamento sem registro na ANVISA. Além disso, é importante observar que muitas vezes tratamentos off label são estudados dentro dos mais rigorosos critérios científicos. Isso é possível porque, como será visto adiante, referidos tratamentos não são proibidos. Além do mais, é possível que indicações não aprovadas em um determinado país o sejam em outro, no qual as pesquisas prévias ou posteriores ao registro podem ser feitas normalmente. Com isso, é viável, em tese, colher evidências científicas de segurança, eficácia e efetividade da utilização de um medicamento mesmo na falta de previsão específica na sua bula.

3. Posicionamento da ANVISA, do CFM e do CFF

Ainda que seja proibida a prescrição, venda e utilização de medicamentos não registrados pela ANVISA, salvo autorização excepcional, a própria agência não veda a utilização de medicamentos registrados de forma distinta daquela indicada nas respectivas bulas. Em sua página na internet constam as seguintes informações:

O uso off label de um medicamento é feito por conta e risco do médico que o prescreve, e pode eventualmente vir a caracterizar um erro médico, mas em grande parte das vezes trata-se de uso essencialmente correto, apenas ainda não aprovado. Há casos mesmo em que esta indicação nunca será aprovada por uma agência reguladora, como em doenças raras cujo tratamento medicamentoso só é respaldado por séries de casos. Tais indicações possivelmente nunca constarão da bula do medicamento porque jamais serão estudadas por ensaios clínicos” (...) O uso off label é, por definição, não autorizado por uma agência reguladora, mas isso não implica que seja incorreto.

Neste ponto, a ANVISA segue os mesmos parâmetros do governo inglês, cujo sistema público de saúde é tido como referência internacional.

Postura semelhante é adotada pelo Conselho Federal de Medicina, que elaborou o Parecer 02/2016, o qual foi assim ementado:

Ementa - Os procedimentos médicos off label são aqueles em que se utilizam materiais ou fármacos fora das indicações em bula ou protocolos, e sua indicação e prescrição são de responsabilidade do médico. Não compete às Comissões de Ética emitir juízo de valor sobre o uso de off label.

No corpo do parecer, o posicionamento do CFM é exposto de forma mais clara:

O uso off label de um medicamento é feito por conta e risco do médico que o prescreve, e pode eventualmente vir a caracterizar um erro médico, mas em grande parte das vezes trata-se de uso essencialmente correto, apenas ainda não aprovado.
(...)
Utilizando linguagem objetiva, as prescrições na área não são proibidas porque se lida com produtos consagrados e de utilização reconhecida, contudo fora dos parâmetros previstos em bula ou em protocolos clínicos. No caso, o médico responde por eventuais insucessos, e, nessa circunstância, o sistema CRM/CFM será chamado a julgar, fazendo-o à luz de cada caso.
(...)
CONCLUSÃO Os procedimentos médicos off label são aqueles em que se utilizam materiais ou fármacos fora das indicações em bula ou protocolos e correm por conta de cada médico que o prescreve ou executa. Ao CRM/CFM compete julgar os insucessos sob a ótica do risco a que o médico submeteu seu paciente.

Já em relação aos farmacêuticos, o seu Código de Ética (Resolução CFF 596/2014) dispõe o seguinte no art. 14, XXIII:

Art. 14 - É proibido ao farmacêutico:
(…) 
XXIII - fornecer, dispensar ou permitir que sejam dispensados, sob qualquer forma, substância, medicamento ou fármaco para uso diverso da indicação para a qual foi licenciado, salvo quando baseado em evidência ou mediante entendimento formal com o prescritor.

A ressalva final contida no dispositivo citado demonstra que há um alinhamento em relação ao entendimento do CFM e da ANVISA. Todos eles aceitam, em princípio, a prescrição de tratamentos off label, mas ressalvando de forma bastante clara que os médicos prescritores devem assumir a responsabilidade pela utilização de medicamentos fora das indicações da bula. Portanto, ainda que não seja uma prática vedada, cabe aos médicos arcar com os riscos eventualmente decorrentes da prática, o que impõe que sejam investigadas por esses profissionais, em cada caso, as evidências científicas que sustentam as prescrições e as consequências para os pacientes em decorrência de sua utilização e não utilização.

4. Tratamentos off label no SUS

Por mais que a prescrição de medicamentos fora das indicações da bula seja prática corrente e não vedada pela ANVISA e pelos órgãos de controle e fiscalização médica e farmacêutica, a dispensação off label de fármacos no âmbito do SUS é proibida. De fato, o art. 19-T da Lei nº 8.080/90 (na redação dada pela Lei nº 12.401/2011) estabelece o seguinte:

Art. 19-T.  São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS:  
I - o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA;
  II - a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa.

É importante notar a distinção entre os procedimentos vedados em cada um dos incisos do dispositivo legal para bem compreender a proibição da dispensação off label no SUS. Enquanto o inciso I se refere a tecnologias em saúde “de uso não autorizado” pela ANVISA, o inciso II faz alusão a tecnologias “sem registro” na agência. A norma diferencia claramente, portanto, a situação de ausência de registro daquela em que a tecnologia é registrada, mas o uso se dá em desacordo com o autorizado. Ambas as hipóteses são vedadas.

A proibição não parece ilegítima ou desarrazoada. Como visto anteriormente, os tratamentos off label não contam com evidências científicas que tenham sido previamente submetidas à análise da ANVISA por ocasião do registro do medicamento. É justamente por isso que, ainda que tolerados pela própria agência e pelo CFM, ambos ressalvam expressamente que eventuais danos causados aos pacientes são riscos a serem suportados pelo médico prescritor e pelo paciente que com eles tenha expressamente assentido, tudo a ser apurado em cada caso específico.

A situação é muito diferente, entretanto, quando se trata de incorporação de um tratamento por uma política pública de saúde. Neste caso em que referido tratamento passa a ser institucionalizado mediante protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas estabelecidos por critérios objetivos, não há margem para a assunção de riscos e responsabilidades pelo Estado, para o dispêndio de recursos públicos e para a disponibilização ao público em geral de terapias  com prescrições não avalizadas pela ANVISA. Aqui se está muito além de interesses exclusivamente particulares de pacientes específicos e seus médicos de confiança que optam, juntos, pela submissão e prescrição de tratamentos fora das indicações da bula, assumindo os riscos daí decorrentes.

Vale relembrar que a segurança e eficácia do tratamento analisados pela ANVISA quando um medicamento é submetido a registro dizem respeito ao “uso a que se propõe”, nos termos do art. 16, II da Lei nº 6.360/76. É por isso que quando se pretende alterar as indicações do fármaco, sua composição ou dosagem, faz-se necessária a aprovação da agência, sob pena de cancelamento do registro. É o que dispõe o art. 19 da mesma lei:

Art. 19 - Será cancelado o registro de drogas, medicamentos e insumos farmacêuticos, sempre que efetuada modificação não autorizada em sua fórmula, dosagem, condições de fabricação, indicação de aplicações e especificações anunciadas em bulas, rótulos ou publicidade. 
Parágrafo único. Havendo necessidade de serem modificadas a composição, posologia ou as indicações terapêuticas de produto farmacêutico tecnicamente elaborado, a empresa solicitará a competente permissão ao Ministério da Saúde, instruindo o pedido conforme o previsto no regulamento desta Lei.

Assim, a vedação à disponibilização de tratamentos off label pelo SUS é uma garantia de que as terapias oferecidas pelo sistema público de saúde são seguras e eficazes. Ainda que na esfera privada, médicos e pacientes possam abrir mão dessa garantia “oficial” em razão de particularidades do caso concreto ou da convicção do profissional da saúde de que a utilização fora das indicações da bula conta com evidências científicas para o tratamento, essa flexibilidade não pode ser assumida genérica e irrestritamente dentro de uma política pública de saúde.

5. Tratamentos off label na jurisprudência do STF e do STJ

Como ocorre com praticamente todas as questões mais relevantes da judicialização da saúde na jurisprudência, a possibilidade de se obter judicialmente tratamentos off label pelo SUS ainda gera discussões, mesmo após o STF e o STJ já terem tratado, em acórdãos submetidos ao regime dos recursos repetitivos, do registro na ANVISA como requisito para que o Poder Público seja condenado a disponibilizar medicamentos não padronizados.

Tudo seria mais tranquilo se a análise se restringisse ao Tema 106/STJ, ocasião em que aquela Corte firmou a tese segundo a qual dentre os requisitos para a concessão de medicamentos não incorporados ao SUS está a “existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência”. A expressão “observados os usos autorizados pela agência” foi incluída na redação da tese por ocasião do julgamento dos embargos de declaração no REsp 1.657.156 justamente para esclarecer que tratamentos off label também não podem ser fornecidos por determinação judicial. O seguinte trecho do voto do Min. Benedito Gonçalves, que conduziu o acórdão, é bastante elucidativo:

Com efeito, o art. 19-T da lei n. 8.080/1990 dispõe que:
Art. 19-T. São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS: (Incluído pela Lei nº 12.401, de 2011)
I - o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA; (Incluído pela Lei nº 12.401, de 2011)
II - a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na ANVISA.”
Verifica-se, assim, que referido dispositivo de lei impõe duas vedações distintas. A constante do inciso I que veda o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso pelo SUS de medicamento fora do uso autorizado pela ANVISA, ou seja, para tratamento não indicado na bula e aprovado no registro em referido órgão regulatório. Já o inciso II, impede a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso pelo SUS de medicamento que não tenha ainda sido registrado na ANVISA. Assim, nos termos da legislação vigente, no âmbito do SUS somente podem ser utilizados medicamentos que tenham sido previamente registrados ou com uso autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA (uso off label).
(...)
Sendo assim, ainda que não conste no registro na ANVISA, na hipótese de haver autorização, ainda que precária, para determinado uso, é resguardado o direito do usuário do Sistema Único de Saúde de também ter acesso a utilização do medicamento no uso autorizado não presente no registro. 
Ante o exposto, acolho parcialmente os embargos de declaração do Estado do Rio de Janeiro, sem efeitos infringentes, para esclarecer que onde se lê: "existência de registro na ANVISA do medicamento", leia-se: "existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência".

Curiosamente, entretanto, o mesmo STJ – mas desta vez por meio das turmas que julgam matérias de direito privado (3ª e 4ª Turmas) – firmou entendimento no sentido de que “considera-se abusiva a negativa de cobertura de plano de saúde quando a doença do paciente não constar na bula do medicamento prescrito pelo médico que ministra o tratamento (off label)” (AgInt no AREsp 1682588/SP, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/12/2020, DJe 18/12/2020, dentre vários outros em idêntico sentido).

Acontece que o STF, no julgamento do Tema 500 de Repercussão Geral, firmou a seguinte tese:

1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido de registro (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); (ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União.

Nem a tese, nem o acórdão que lhe deu origem (RE 657.718), tampouco o voto do Min. Roberto Barroso, nos termos do qual o acórdão foi firmado, fazem qualquer referência ao tratamento off label.  Não ficou claro, portanto, se o registro na ANVISA a que a tese se refere é especificamente aquele para uso do medicamento tal como previsto na bula. Se for assim entendido, tratamentos em desacordo com o uso autorizado pela agência devem ser considerados, para todos os fins, como sem registro. Por outro lado, numa interpretação mais restritiva da tese, somente a ausência de qualquer registro atrairia a sua incidência.

Há decisões monocráticas do próprio STF no sentido de que a discussão sobre a possibilidade de concessão judicial de tratamentos off label pelo SUS não se enquadra na tese do Tema 500 (RE 1308073 / RJ – RIO DE JANEIRO – RECURSO EXTRAORDINÁRIO – Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA – Julgamento: 05/03/2021; e RE 1282257 – Min. EDSON FACHIN – Julgamento: 16/10/2020).

No STJ, há acórdão da 1ª Seção que chegou a essa mesma conclusão. Trata-se do AgInt no CC 172.061/PA, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, julgado em 01/09/2020. Na ocasião, o Tribunal julgou conflito negativo de competência entre Juízo Federal e Juízo Estadual em processo objetivando o fornecimento, pelo SUS, de Hidroxicloroquina, Cloroquina e Azitromicina aos pacientes com COVID-19. O Juízo Estadual remeteu o processo ao Federal sob o argumento de que o tratamento postulado é off label, o que tornaria a presença da União no polo passivo obrigatória. O Juízo Federal não aceitou a competência, suscitando o conflito.

O STJ decidiu que “o entendimento exposto no julgamento do RE n. 657.718/MG” – que deu origem ao Tema 500/STF – “diz respeito, apenas, a medicamentos sem registro na ANVISA, para o qual a Corte Suprema estabelece a obrigatoriedade de ajuizamento da ação em face da União”. Concluiu, então, que “tratando-se, in casu, de responsabilidade solidária dos entes federados, e não ajuizada a demanda em face da União, afastada a competência da Justiça Federal, na medida em que, conforme supracitado, ainda que se trate de uso off label dos medicamentos indicados, estes possuem regular registro na ANVISA”, tudo nos termos da ementa do acórdão.

Ainda que o STJ estivesse decidindo sobre competência jurisdicional, o fato é que ficou claro o seu entendimento de que a tese firmada no Tema 500/STF não abrange tratamentos off label.

6. Breves reflexões críticas

Como visto, tanto o STJ como o STF já se manifestaram sobre a possibilidade de dispensação, pelo SUS, de medicamentos sem registro na ANVISA. De acordo com a tese do Tema 106/STJ, ela é vedada, inclusive no que diz respeito aos tratamentos off label. Trata-se, então, de uma vedação absoluta e incondicional que é perfeitamente compreensível, na medida em que baseada apenas na legislação ordinária, que de fato veda a entrega de medicamentos sem registro ou em desacordo com ele pelo SUS (art. 19-T da Lei nº 8.080/90). Já segundo a tese do Tema 500/STF, medicamentos não registrados na ANVISA podem ser fornecidos judicialmente pelo SUS, mas apenas nas hipóteses excepcionais lá previstas e atendidos os requisitos estabelecidos.

Em um primeiro momento, seria o caso de prevalecer o entendimento do STF, a quem compete analisar a questão também sob o prisma constitucional. No entanto, caso se confirme a orientação já adotada por algumas decisões monocráticas do STF e pelo acórdão da 1ª Seção do STJ referidos no item anterior de que os tratamentos off label não estão abrangidos na Tese do Tema 500/STF, duas alternativas seriam possíveis.

A primeira seria enquadrar o tratamento off label apenas no Tema 106/STJ, cuja tese dele tratou expressamente, para concluir que estaria vedado em qualquer hipótese. A situação seria bastante incoerente, porque neste caso o fornecimento de medicamentos sem registro algum na ANVISA seria possível, dentro dos critérios estabelecidos na tese do Tema 500/STF, mas o fornecimento de fármacos registrados, mas prescritos em desacordo com as indicações da bula seria completamente vedado. Em outras palavras, a hipótese mais grave de completa ausência de registro receberia um tratamento mais suave do que a hipótese menos grave.

A segunda alternativa seria aplicar, ainda que analogicamente, os requisitos e condicionantes para a disponibilização de medicamentos sem registro na ANVISA, da forma como previstos na tese do Tema 500/STF, também aos casos de tratamentos off label. O emprego da tese por analogia decorre justamente do fato de o STJ e o STF entenderem que ela não teria sido firmada propriamente para as situações de prescrições off label

Haveria, entretanto, uma relativização a ser feita.

Como demonstrado acima, a própria ANVISA, o CFM e o Código de Ética dos profissionais farmacêuticos aceitam a prescrição e a utilização de medicamentos off label, ainda que sob responsabilidade do profissional prescritor e com os riscos daí decorrentes sendo assumidos também pelo paciente. É uma situação distinta da ausência de qualquer registro, porque o registro para indicações diversas das pretendidas assegura, no mínimo, que o fármaco não é perigoso para a saúde humana em níveis não aceitáveis.

Por outro lado, conforme consta na própria página eletrônica da ANVISA na internet, citada no item 3, acima, “Há casos mesmo em que esta indicação nunca será aprovada por uma agência reguladora, como em doenças raras cujo tratamento medicamentoso só é respaldado por séries de casos.

Neste caso, é preciso cautela na exigência contida na tese do Tema 500/STF de que o medicamento não registrado na ANVISA esteja ao menos registrado em renomadas agências estrangeiras. Neste ponto, uma obediência estrita e rigorosa de tal requisito em relação aos tratamentos off label poderia resultar na absoluta impossibilidade prática de dispensação do fármaco para tratamentos importantes de doenças raras, mesmo já tendo ele sua segurança atestada para tratamentos distintos.

Por outro lado, de forma a evitar o fornecimento, pelo SUS, de tratamentos que possam oferecer riscos inaceitáveis aos pacientes ou que não contem com uma garantia efetiva de que os resultados a que se propõe serão atingidos, a exigência de registro em agências estrangeiras para o uso a que se pretende fazer pode ser substituída pela exigência de evidências científicas qualificadas e possíveis de serem produzidas dentro das particularidades do caso concreto. Desta forma, a situação seria um meio termo entre a ampla liberdade de prescrição off label na iniciativa privada (sob risco e responsabilidade das partes envolvidas) e os rigores necessários para o fornecimento de medicamentos não registrados pela ANVISA.




Medicamentos de dispensação excepcional: retrocesso ou necessidade?

Placa avisando o caminho errado

Quando se trata de judicialização da saúde, há uma inversão de papéis há muito discutida, entre o judiciário e o executivo, a quem cabe a gestão da saúde pública no país.

A possibilidade de o judiciário intervir na política pública de saúde vem sendo sacramentada em diversos julgados dos tribunais superiores, o que nos traz a necessidade de refletir sobre a imperatividade de adequação administrativa visando evitar maiores danos não só financeiros mas à principiologia do sistema público, fundado na universalidade de acesso e igualdade.

Quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou o Recurso Especial 1657156, submetido ao rito dos recursos repetitivos (Tema 106), decidiu que há situações que não se enquadram no rol taxativo estabelecido pelo Sistema Único de Saúde e que há situações que não são atendidas pela saúde pública.

Ante tal constatação, decidiu o STJ pela obrigação do poder público no fornecimento de medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS, desde que presentes, cumulativamente, os seguintes requisitos:

  1. Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;
  2. Incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo do medicamento prescrito; e
  3. Existência de registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ou autorização de uso.

A decisão é de observância obrigatória pelos órgãos jurisdicionais inferiores, o que veio a legitimar a possibilidade do Judiciário determinar o fornecimento de medicamentos não incorporados, levando a milhares de ações no poder judiciário.

Hoje existe no SUS uma taxatividade sobre o que é oferecido pelo sistema. Mas nem sempre foi assim.

Houve um tempo em que o sistema público de saúde reconhecia a impossibilidade de pretender a definição de um elenco taxativo de tratamento para atender todas as possibilidades fáticas num universo de milhões de pacientes.

As doenças são dinâmicas, as situações dos pacientes peculiares e sempre haverá necessidade de adequação.

Seguindo essa premissa, a partir de 1982, ainda nos tempos do INAMPS, era permitida em caráter excepcional a aquisição de medicamentos não constantes da relação nacional de medicamentos essenciais (RENAME), quando a natureza ou a gravidade da doença e as condições peculiares do paciente o exigiam e desde que não houvesse na RENAME medicamento substitutivo aplicável ao caso concreto (Portaria Interministerial nº 3 MPAS/MS/MEC, de 15 de dezembro de 1982).

O médico prescritor deveria apresentar solicitação justificada e homologada pelo prestador do serviço de saúde.

Não havia um elenco de medicamentos considerados excepcionais, todos os medicamentos que não constassem na RENAME da época poderiam ser considerados excepcionais e disponibilizados ao paciente.

A redação da Portaria traz os mesmos fundamentos hoje impostos pelo STJ para permitir decisões judiciais, com exceção da exigência de demonstração de incapacidade financeira (de constitucionalidade duvidosa frente à universalidade do SUS).

Com o tempo, o regramento aberto de permitir que o gestor analisasse caso a caso as situações excepcionais e atendesse as excepcionalidades, foi cedendo espaço para uma lista paralela à RENAME, na qual passaram a ser discriminados os medicamentos excepcionais.

Passo a passo, com o incremento da lista, cada vez mais o sistema foi se distanciando da premissa original, qual seja, de que haveria situações excepcionais que não poderiam ser regradas de plano.

Posteriormente, os medicamentos excepcionais foram substituídos pelo componente especializado.

Hoje, na prática, o que há é a recriação do componente excepcional, só que nas mãos do judiciário, numa clara inversão de papéis.

O que o Judiciário faz, em atenção ao decidido no repetitivo, é verificar se há comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS, seguindo praticamente os mesmos critérios exigidos pela administração à época em que a dispensação excepcional era permitida pelo sistema público.

A dispensação somente do que está incorporado seria o ideal dentro de um sistema público de saúde, que foi desenhado para atender a coletividade. No entanto, a judicialização excessiva e a resposta dos tribunais superiores vem demonstrando que o sistema não está atendendo à contento àquilo que a sociedade entendeu como necessário – ressalvo aqui meu entendimento pessoal sobre a adequação ou mesmo prudência em relação a vários pontos dessa constatação jurisprudencial.

A criação da CONITEC e de um procedimento objetivo e com prazo certo para a incorporação de novas tecnologias em saúde foi um avanço enorme. Todavia, quer pela não avaliação de tecnologias muito judicializadas, quer pela demora na avaliação e incorporação ou pela resposta negativa frente a outras evidências científicas de grau elevado – ou quer pela interpretação da integralidade tal como apresentada na constituição -, o fato é que o sistema criado pela Lei nº 12.401/2011 não tem se mostrado suficiente para frear a judicialização.

Assim, é imperioso que a administração pública repense a possibilidade de recriar, ainda que para situações pontuais e com regras efetivamente limitadoras, algum sistema administrativo com a mesma essência do extinto sistema que permitia a dispensação excepcional de medicamentos.

Ainda que se possa argumentar que na época do componente excepcional a saúde pública não tinha abrangência universal, de modo que o impacto financeiro era menor, o que impediria a recriação da sistemática nos dias de hoje, o que ocorre é que, na prática, o componente excepcional foi recriado, só que nas mãos do judiciário.

Não só foi recriado nas mãos do poder que não deveria ditar políticas públicas, mas o foi com custos financeiros desnecessários e importantes, seja com o movimento da máquina do judiciário, de financiamento público, seja com os custos do processo (custas, perícias, honorários), seja com o custo de aquisição individualizado, inevitavelmente mais alto, sem controle administrativo, sem possibilidade de compra centralizada, etc.

Não só os custos financeiros são relevantes, mas também o impacto na desorganização do sistema e no afastamento dos princípios que regem o Sistema Único de Saúde, em especial da universalidade e igualdade de acesso.

Não se está aqui a defender a extinção do rol de medicamentos padronizados, mas sim a coexistência com a possiblidade de dispensação excepcional, quando a excepcionalidade do caso assim indique.

A dispensação poderia se dar, como visto acima, com regras efetivamente excepcionais e limitadoras, nas situações em que há efetivo vazio administrativo; para doenças raras; quando ainda não foi possível a análise ou quando a situação do caso concreto foge ao quadro que foi analisado pela CONITEC; ou ao menos para atender pontualmente situações mais graves e de maior risco no intervalo desde a incorporação até a efetiva disponibilização – prazo esse que, como sabemos, em grande parte das vezes ultrapassa em muito o prazo legal de 180 dias – ou nos casos em que a incorporação ainda não foi efetivada ante a ausência de pactuação de preço com a indústria.

A mera possibilidade de requerimento de dispensação excepcional abriria espaço para o diálogo entre prescritor, paciente e gestão, possibilitando a mediação, o acertamento de condutas, o controle e análise da prescrição pela administração, análise essa muito mais efetiva naquele espaço, que é o mais adequado, pela sua estrutura e pela qualificação técnica dos que lá atuam, do que a análise que é feita hoje pelo judiciário.

Poderia também se argumentar que a dispensação excepcional tal como anteriormente regrada seria um retrocesso, pois criaria um sistema de incorporação às avessas, contrário ao disposto na Lei nº 12.401/2011, paralelo àquele implementado pela CONITEC.

É um fato.

Mas também é um fato que a incorporação às avessas já foi criada, só que está a cargo do Judiciário.

Importante, portanto, que façamos o seguinte questionamento: há possibilidade real, tangível, de a jurisprudência pátria rever nos próximos anos a interpretação que permite ao judiciário condenar o poder público a fornecer medicamentos não padronizados?

Se a resposta for sim, talvez a reflexão aqui trazida não faça sentido.

Se a resposta for não – como me parece que é – ou mesmo se a resposta for sim, mas num longo prazo, deveria o poder executivo persistir na situação de passividade?

Persistir na passividade ou na obstinação por não mudar o que já está posto e regrado por certo não mitigará os danos, de modo que é premente buscar alternativas para que o Poder Executivo retome uma atribuição que é sua, ainda que as alternativas sejam imperfeitas. 

Ao abrir mão de manter a decisão sobre a excepcionalidade dentro da esfera administrativa, o sistema de saúde cria para si impactos desnecessários, não só por razões financeiras, econômicas e administrativas, como visto acima, mas também por permitir a violação aos princípios da universalidade e da igualdade, princípios estes que somente podem ser garantidos se a excepcionalidade for analisada dentro do sistema, o qual padronizará o acesso a todos que utilizem o SUS, o que não é assegurado se o acesso ao excepcional somente for garantido àqueles que procurem o poder judiciário.

A necessidade de coexistência dos dois sistemas, um rol e uma excepcionalidade, criada pela jurisprudência dos tribunais pátrios, faz lembrar trecho da peça “a exceção e a regra”, de Bertolt Brecht.

A reflexão não vem pelo título da peça – apesar deste trazer à lembrança a constatação da excepcionalidade sempre existente e necessária – mas sim por um pequeno trecho da narrativa.

A peça trata do julgamento de um homicídio ocorrido durante uma viagem pelo deserto, que tinha como viajantes um comerciante, um guia e um carregador. Durante a viagem o comerciante reflete sobre as diferenças sociais entre os três viajantes e considera que sua desvantagem numérica poderia fazer com que os outros dois se unissem contra ele, assim, decide por demitir o guia,  continuando  a viagem  apenas  com  o  carregador,  que era um homem mais simples, menos instruído e desprotegido pela lei. A estratégia se revelou catastrófica, pois a ausência do guia não eliminou as desconfianças que o comerciante tinha em relação ao outro viajante e trouxe mais conflitos, como ambos não conheciam o caminho, andaram em círculos até acabarem perdidos no deserto. A situação, que ao fim e ao cabo foi gerada pela demissão do guia, leva ao clímax da peça – o comerciante mata o carregador numa situação de erro gerado por seus preconceitos.

O sistema público contava com dois componentes, um padronizado, mais simples, menos sujeito a erros, outro mais complexo, que claramente trazia mais dificuldades operacionais.

Optou por manter somente um deles, o mais simples. A escolha acabou com o tempo se mostrando equivocada, pois a complexidade da viagem demandou a presença de ambos.

Ambos os companheiros de viagem eram necessários, ainda que trouxessem dificuldades ao comerciante. Um para dar rumo (RENAME e demais padronizações), outro para carregar o peso (excepcionalidade).

Ao recriar a possibilidade de acesso excepcional a medicamentos, a administração pública retomaria para si a parte da gestão da política pública em saúde que foi entregue ao judiciário, nas mãos de quem não deveria estar.

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Anuência prévia da ANVISA nos pedidos de patente de medicamentos

criando medicamentos

1 – Introdução

A atuação da ANVISA como anuente em pedidos de patente de produtos ou processos farmacêuticos é um tema que sempre suscitou muitos debates. Desde o início da instituição da anuência prévia, pela MP nº 2.006/1999, houve divergências entre a autarquia sanitária e o INPI, assim como vários processos foram ajuizados por empresas farmacêuticas contestando a sua obrigatoriedade. O Superior Tribunal de Justiça está analisando o tema no RESP 1.543.826.

A doutrina especializada aponta vários motivos para que a norma que instituiu a anuência prévia seja considerada inválida. Alguns deles não têm consistência e merecem ser revistos, mas outros demonstram claramente que ela padece do vício de inconstitucionalidade.

2 – A propriedade industrial como direito fundamental

A propriedade industrial é o privilégio que o inventor tem de proteger os seus inventos contra quem queira se utilizar deles. Trata-se de um direito fundamental, que vem erigido no art. 5º, XXIX, da Constituição Federal, que diz que “a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País”. A sua proteção atende aos princípios constitucionais da ordem econômica e, mais especificamente, ao da propriedade privada (art. 170, III, da CF).

A despeito das críticas que se fazem às patentes farmacêuticas por dificultarem o acesso à saúde, elas são imprescindíveis para reconhecer e proteger o esforço intelectual e fomentar a investigação, inovação e o desenvolvimento da economia e do setor ao qual a patente está vinculada. É intuitivo que se deva outorgar o privilégio de exclusividade de exploração econômica e industrial àquele que foi responsável por determinada invenção, ainda que por um período de tempo. Por outro lado, também é fácil perceber que a ausência de proteção à propriedade industrial teria efeitos graves, fazendo com que o aprimoramento da técnica e o avanço das tecnologias fosse desestimulado.

Como direito fundamental, a propriedade industrial merece proteção e pode ser relativizado quando em conflito com outros direitos fundamentais, sem que, todavia, seu núcleo seja esvaziado. Alexandre de Moraes explica que “quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito do alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua”Direito Constitucional. 24ª ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2009..

3 – Evolução legislativa da patente para produtos e processos farmacêuticos

3.1 – A legislação em vigor (Lei nº 9.279/1996)

A propriedade industrial – inclusive de produtos farmacêuticos – é regida atualmente pela Lei nº 9.279/96 (Lei de Propriedade Industrial), que disciplina os direitos e as obrigações a ela relativos, adequando-os ao Acordo TRIPS (ACORDO SOBRE ASPECTOS DOS DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL RELACIONADOS AO COMÉRCIO), que foi incorporado ao nosso sistema jurídico pelo Decreto nº 1.355/94.

3.2 – A previsão anterior: ausência de patenteabilidade (Lei 5.772/1971)

Antes disso, no Brasil, quando ainda estava em vigor a Lei nº 5.772/71, os produtos farmacêuticos não podiam ser objeto de patente, de acordo com o seu art. 9º, c, que estabelecia que não eram privilegiáveis “as substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos, de qualquer espécie, bem como os respectivos processos de obtenção ou modificação”.

3.3 – A superveniência do acordo TRIPS

Todavia, com a incorporação do acordo TRIPS, a vedação ficou superada. Isso porque o artigo 27.1 do referido acordo estabeleceu que “qualquer invenção, de produto ou de processo, em todos os setores tecnológicos, será patenteável”, desde que atenda a determinados requisitos.

3.4 – A previsão de anuência prévia pela ANVISA (MP nº 2.006/1999)

Sob o fundamento de adequar a novidade trazida ao nosso ordenamento jurídico, em 1999 foi editada a MP nº 2.006, alterando a Lei nº 9.279/96, para acrescer o artigo 229-C.

O dispositivo estabeleceu que “A concessão de patentes para produtos e processos farmacêuticos dependerá da prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVS)”. A regra foi repetida pelas MPs nºs 2.104 e 2.105 e suas reedições, até ser convertida na Lei nº 10.196/2001. Assim, o processo de concessão de patentes, cujo andamento e julgamento competia unicamente ao INPI, passou também a depender de ato de outra autarquia, a ANVISA, quando se tratar de produto ou processo farmacêutico.

Instituiu-se, assim, a obrigatoriedade de anuência prévia da ANVISA.

4 – Evolução regulamentar

Tendo em vista que o art. 229-C tratou somente de estabelecer o instituto da anuência prévia, sem fixar, ainda que minimamente, qualquer aspecto relativo à atuação da ANVISA, ficou a cargo da regulamentação estabelecer como ela se daria nos processos de patentes.

4.1 – Amplitude e objeto do exame exercido na anuência prévia

Em vista da ausência de concretude da lei de propriedade industrial no que tange à anuência prévia, surgiram diversas dúvidas a seu respeito, principalmente acerca: a) do objeto da atividade a ser exercida pela ANVISA (se dizia respeito à patenteabilidade do produto ou somente a questões de saúde pública); b) do momento em que se daria a anuência prévia; c) do processo a ser seguido pela ANVISA para a análise do pedido; d) do recurso cabível contra o ato de indeferimento da ANVISA; e e) do destino a ser dado ao processo de pedido de patente em caso de indeferimento da anuência.

4.2 – Evolução normativa regulamentar

A RDC nº 45/08 da ANVISA foi o primeiro ato regulamentar sobre o assunto. Posteriormente, foi editada a Portaria Interministerial nº 1.065/2011, do Ministério da Saúde e do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, que estabeleceu novo fluxo de análise dentro da autarquia. Em 2013, adveio a RDC nº 21/2016 da ANVISA, alterando a RDC de 2008. Também a Portaria Conjunta nº 01/2017 da ANVISA e do INPI tratou do tema. Por fim, em novembro de 2020, a ANVISA publicou 4 manuais sobre o exame de pedidos de patentes de produtos e processos farmacêuticos, em cumprimento ao determinado no acórdão nº 1.199/2020, do Tribunal de Contas da União.

Os manuais publicados no final de 2020 estabelecem 3 etapas para o processo de anuência prévia: a análise da admissibilidade, a avaliação se os pedidos são contrários à saúde pública e a decisão final.

4.3 – Objeto do mérito a ser avaliado pela ANVISA

Com relação ao mérito da avaliação a ser feita pela ANVISA, após longo debate, ficou definido entre INPI e ANVISA que esta só avaliaria questões relativas à saúde pública e não entraria no mérito da patenteabilidade do produto ou processo. Assim, o manual estabelece que a ANVISA analisa: a) se eles representam risco à saúde; e b) se eles são considerados de interesse para as políticas de assistência farmacêutica no SUSDisponível em https://www.gov.br/anvisa/pt-br/setorregulado/regularizacao/medicamento..

5 – Questionamentos usuais contra a anuência prévia

5.1 – Da transitoriedade da anuência prévia

A anuência prévia integra as disposições transitórias da Lei de Propriedade Industrial. Em razão disso, João Paulo Remédio Marques sustenta que ela teria natureza transitória e seria destinada a disciplinar apenas situações especiais, a exemplo das patentes “pipeline”A figura da anuência prévia da autoridade sanitária brasileira no quadro da concessão de patentes e o Acordo TRIPS. In: Actas de Derecho Industrial y Derecho de Autor, Volumen 31 (2010-2011), Instituto de Derecho Industrial, Universidad de Santiago de Compostela, Madrid, Barcelona, Buenos Aires: Marcial Pons, pp. 373-400..

No julgamento do processo que deu origem ao RESP 1.543.826, o desembargador André Fontes, do TRF da 2ª Região, também se manifestou no sentido de que a norma teria sua aplicação limitada no tempo ou a algumas situações. Por oportuno, transcrevo a sua fala: “essa legislação sobre patente de remédio veio muito rapidamente, e o INPI não tinha condições de fazer isso. Ele não tinha farmacêutico, não tinha Engenheiro Químico, para fazer o que a lei mandava. Ele tinha para fazer o que já fazia, porque ninguém consegue tudo de um dia para o outro, as coisas vêm aos poucos. Quem tinha condições de fazer isso? A Anvisa. A Anvisa tinha condições de fazer essa apuração. Então, o que o Governo fez? Sabendo que a Anvisa tinha especialistas e técnicos, criou a necessidade de a Anvisa fazer o exame, até o dia em que o INPI pudesse, de fato, exercer a sua função. Vejam: não estou diminuindo a função do INPI. O Doutor André, presente aqui, sabe que eu jamais falaria mal dos advogados dos laboratórios, muito menos do INPI. A verdade é que a Anvisa vem fazendo algo que todos nós poderíamos fazer”.

A despeito dessas respeitáveis opiniões, a natureza transitória da atuação da ANVISA nos processos de patente não vingou, mesmo porque a ANVISA, desde o início, demonstrou que a considerava imprescindível e nunca quis abrir mão dessa função.

5.2 – Distinção das competências do INPI e da ANVISA

Uma alegação comumente invocada para que a norma que instituiu a anuência prévia seja afastada diz respeito ao fato de a lei não ter outorgado competência para que a ANVISA atue em processos de patentes.

O INPI, criado pela Lei nº 5.648/70, é uma autarquia federal. Sua finalidade vem prevista no art. 2º, nos seguintes termos: “O INPI tem por finalidade principal executar, no âmbito nacional, as normas que regulam a propriedade industrial, tendo em vista a sua função social, econômica, jurídica e técnica, bem como pronunciar-se quanto à conveniência de assinatura, ratificação e denúncia de convenções, tratados, convênios e acordos sobre propriedade industrial”. Seu escopo é precipuamente a análise de pedidos de patentes de invenção e modelos de utilidade, de registro de desenho industrial e de registro de marca.

Para que seja concedida a patente, é necessário que se cumpram os requisitos do art. 8º da Lei de Propriedade Industrial, quais sejam,  a novidade, a atividade inventiva e a aplicação industrial,  que estão também mencionados no art. 27.I, do acordo TRIPS. A nossa lei nada mais fez do que reproduzir o já estabelecido no acordo incorporado ao nosso ordenamento jurídico. E nem poderia ser diferente. São esses os requisitos que devem ser verificados para a concessão de patente. O objetivo é saber se o produto ou processo constitui novidade.

A seu turno, a ANVISA, também autarquia federal, foi criada pela Lei nº 9.782/99. Sua finalidade foi fixada no art. 6º: “A Agência terá por finalidade institucional promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras”.

A autarquia sanitária, na área farmacêutica, deve processar e julgar os pedidos de registro de medicamentos e outros produtos para a saúde, avaliando-os quanto à sua segurança e eficácia, a fim de que eles possam ser comercializados no território nacional. Para tanto, faz uma análise dos estudos pré-clínicos e clínicos dos produtos objeto de processo, verificando se eles causam danos à saúde, quais são seus possíveis efeitos adversos, se eles funcionam ainda que minimamente, para quais doenças e em que doses eles são indicados, etc. O objetivo é saber qual a repercussão do produto para a saúde, para que se determine se ele pode entrar no mercado nacional.

Disso se percebe que a competência e os objetivos outorgados pela Lei às duas autarquias são diferentes, não havendo competências comuns a ambas. Uma lida com proteção de invenções. Outra, com questões de saúde.

Todavia, ainda que dentre as áreas de atuação da ANVISA não esteja a análise de pedidos de patente, a anuência prévia poderia ser vista como atividade abarcada no art. 8º da Lei nº 9.782/99, que diz que “Incumbe à Agência, respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública”.

Portanto, o argumento da diversidade de competências das duas autarquias não constitui, em princípio, algo que determine por si só a invalidade da norma instituidora da anuência prévia.

5.3 – Possibilidade de legislação em contrariedade a tratado

Outro argumento muito utilizado para questionar a anuência prévia consiste na impossibilidade de a legislação interna ir contra tratado internacional ao estabelecer novo requisito de patenteabilidade. Além dos requisitos previstos no art. 17.1 do acordo TRIPS, a legislação acabou introduzindo um novo (compatibilidade do produto com a saúde pública).

No entanto, o tratado internacional que não diga respeito a direitos humanos, quando incorporado ao direito brasileiro, possui status de lei ordinária. Assim, o conflito entre o tratado e a lei ordinária deve ser resolvido à luz dos princípios da anterioridade e da especialidade.

O tratado do TRIPS não trata de direitos humanos. Como a alteração do art. 229-C é posterior ao tratado, isso indica que este, por si só, também não seria motivo para a sua desconsideração.

5.4 – Falso motivo em que se embasou a inclusão da anuência prévia

A alteração promovida na Lei nº 9.279/99, que acrescentou o seu art. 229-C, foi inicialmente introduzida pela MP nº 2.006/99. Em sua exposição de motivos, foi consignado que “Quanto ao artigo quarto, prevê-se que a concessão de patente – tanto de processo quanto de produto-, pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial, somente será feita com a anuência prévia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Este trabalho em conjunto entre INPI e ANVISA garantirá os melhores padrões técnicos no processo de decisão de patentes farmacêuticas, à semelhança dos procedimentos aplicados pelos mais avançados sistemas de controle de patentes e de vigilância sanitária em funcionamento nos países desenvolvidos”.

Eis o motivo dado para o ato legislativo: melhorar a capacidade técnica de análise dos pedidos, tal qual países avançados. Todavia, nunca existiu nenhum país, avançado ou não, que tenha estabelecido, por ato normativo ou regulamentar, a necessidade de que a sua agência sanitária interfira no processo de patente. O motivo para a alteração legislativa, portanto, não condiz com a realidade.

Ainda que o motivo falso não leve à invalidação da norma, é importante ter em mente que a justificativa para a criação da anuência prévia estava desvinculada da realidade. O problema da figura da anuência já estava presente desde o seu nascimento.

6 – A inconstitucionalidade da previsão normativa

Tratemos agora dos argumentos que demonstram a inconstitucionalidade do art. 229-C da Lei de Propriedade Industrial.

6.1 – Necessidade de observância ao princípio da proporcionalidade

Tanto as leis, como os atos de direito público devem atender ao princípio da proporcionalidade. De acordo com Marçal Justen Filho, “A proporcionalidade é um instrumento jurídico adequado para controlar as decisões que importem restrições a direitos, prerrogativas e outras liberdades de um sujeito. […] Segundo a proporcionalidade, toda decisão de cunho restritivo deve ser examinada sob três primas diversos. A validade dessa restrição dependerá da ausência de violação às três dimensões da proporcionalidade”Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 17. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 91..

Os três prismas mencionados pelo doutrinador são: proporcionalidade-adequação (atingimento do objetivo), proporcionalidade-necessidade (não há nenhuma outra medida disponível que seja menos restritiva) e proporcionalidade em sentido estrito (não há desproporcionalidade com o objetivo buscado).

O Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência sólida no sentido de que as leis devem estar em consonância com o princípio da proporcionalidade. Confira-se decisão proferida na ADI 2667, no início de 2020, de relatoria do Ministro Celso de Mello:

“TODOS OS ATOS EMANADOS DO PODER PÚBLICO ESTÃO NECESSARIAMENTE SUJEITOS, PARA EFEITO DE SUA VALIDADE MATERIAL, À INDECLINÁVEL OBSERVÂNCIA DE PADRÕES MÍNIMOS DE RAZOABILIDADE – As normas legais devem observar, no processo de sua formulação, critérios de razoabilidade que guardem estrita consonância com os padrões fundados no princípio da proporcionalidade, pois todos os atos emanados do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do “substantive due process of law”.”

Na ADI 5468, o mesmo Ministro explicou o seguinte:

“Impende advertir, desse modo, considerada a essencialidade de tal princípio, que todos os atos emanados do Poder Público, inclusive as leis por ele editadas, devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do “substantive due process of law”. A essência do “substantive due process of law” reside na necessidade de proteger os direitos, as liberdades e as prerrogativas das pessoas e instituições contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou destituída do necessário coeficiente de razoabilidade. Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal.”

Veremos, a seguir, que a obrigatoriedade de anuência prévia não passa pelo crivo da proporcionalidade.

6.2 – Desnecessidade de análise prévia pela ANVISA no que diz respeito ao risco à saúde

Uma das atribuições clássicas da ANVISA é verificar se uma determinada tecnologia em saúde atende aos requisitos de segurança e eficácia, ou seja, aferindo se uma tecnologia traz riscos à saúde.

A pesquisa farmacêutica se inicia com a fase de inovação, em que são descobertas novas moléculas para selecionar compostos promissores. Encontrada uma molécula, ela será objeto de estudos pré-clínicos, nos quais se avaliam a sua toxicidade, a sua segurança, suas ações e seus efeitos. Passa-se então aos estudos clínicos, desenvolvidos em 4 fases. Na primeira, estuda-se a farmacocinética, o intervalo de doses, os efeitos e a toxicidade do composto. Na segunda, a análise é das doses, da eficácia e da segurança. Na terceira, que consiste, via de regra, nos ensaios clínicos randomizados com maior número de participantes, o foco é também na eficácia, na segurança e na qualidade de vida. Por fim, a fase IV (farmacovigilância) é realizada após a introdução da tecnologia no mercado, para verificarem a efetividade e a segurança no mundo real.

O pedido de concessão de patente de produto ou processo farmacêutico se dá logo na fase inicial, de descoberta da molécula, quando ainda nem se sabe se ela trará qualquer benefício para a saúde. Note-se que a cada 10.000 moléculas descobertas, apenas uma será viável para uso em humanos.

Em vista disso, a anuência prévia da ANVISA é totalmente desnecessária, pois quando ela é feita nem se sabe se o produto vai ter bons resultados nos estudos pré-clínicos e clínicos, podendo gerar desperdício de dinheiro e de força de trabalho, descurando do princípio da eficiência que rege a administração pública.

Pode-se argumentar que os pedidos de patente demoram tanto para serem analisados que, quando da anuência prévia, os demais estudos já poderiam estar concluídos.

Ainda assim, a análise pela ANVISA é despicienda e vai contra a eficiência administrativa, ao menos no que diz respeito à avaliação de risco à saúde. Isso porque ela já terá lugar no processo de pedido de registro, não havendo nenhuma razão para que ela ocorra duas vezes. A não anuência poderá ser substituída pelo não deferimento do registro. 

Há ainda mais um argumento que aponta para a desproporcionalidade da norma. O processo de pesquisa e desenvolvimento farmacêutico é dinâmico. Assim, pode-se até mesmo pensar que algo que, em um determinado momento, seja considerado nocivo à saúde, venha a apresentar resultados positivos no futuro para a mesma patologia ou para outra. Caso isso venha a ocorrer, o inventor que teve seu pedido de patente negado por contrariedade à saúde não poderá usufruir do privilégio de patente que lhe seria devido.

Assim, fica claro que o fim objetivado pela norma não é razoável e fere a proporcionalidade.

6.3 – Inviabilidade de a ANVISA verificar as circunstâncias que são objeto do exame da anuência prévia

Depois, considerando que o pedido de registro de patente dá-se num estágio muito inicial do desenvolvimento do produto ou processo farmacêutico, é até mesmo inviável à ANVISA apurar se ele representa risco à saúde se ele é considerado de interesse para as políticas de assistência farmacêutica no SUS. Esses são os objetivos do exame feito pela ANVISA na anuência prévia do processo de registro de patente.

No entanto, como o pedido de registro se dá muito antes do início das fases de estudos clínicos, a ANVISA nem mesmo detém dados que possam amparar sua decisão a respeito da existência de eventual risco à saúde e sobre o interesse às políticas de assistência farmacêutica do SUS. E nem pode exigir daquele que formulou o pedido de registro a apresentação desses estudos, que são exigíveis apenas posteriormente, quando do registro do produto ou processo farmacêutico junto à ANVISA.

Para fins de registro industrial, exige-se apenas a demonstração de novidade, de atividade inventiva e de aplicação industrial.

Isso torna inócuo o exame produzido pela ANVISA por ocasião da anuência prévia, confirmando a ausência de razoabilidade e proporcionalidade de sua exigência para fins de registro de patente.

6.4 – Inadequação, desnecessidade e desproporcionalidade em sentido estrito da anuência prévia em razão do interesse do Ministério da Saúde para políticas de assistência farmacêutica

Se a atuação da ANVISA nos pedidos de patente por razões de risco à saúde não leva em conta os princípios da eficiência e da proporcionalidade, a atuação para verificação de interesse do Ministério da Saúde para a inclusão do produto em sua assistência farmacêutica é ainda mais descabida. Isso porque, caso haja a negativa da ANVISA ao pedido de patente, o direito fundamental à propriedade industrial seria completamente aniquilado, sem garantir o seu núcleo.

A Lei de Propriedade Industrial prevê, em seu art. 71, a licença compulsória de patentes, nos seguintes termos: “Nos casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular”.

Percebe-se, pois, que, caso haja interesse público em uma determinada tecnologia farmacêutica, não há que se obstar a concessão de patente, esvaziando completamente o núcleo do direito de propriedade industrial e o esforço de pesquisa e desenvolvimento da indústria farmacêutica, sem qualquer indenização. Caso haja interesse público na tecnologia, a norma a ser seguida é a que prevê o licenciamento compulsório da patente, uma vez que ela prevê a remuneração do seu detentor pela expropriação de seu patrimônio, conforme estabelecido no art. 73, da Lei nº 9.279/96. E isso, apenas naqueles casos em que não haja possibilidade de atendimento da necessidade pública pelo titular da patente ou do seu licenciado.

Sobre o tema, Vitor Pamela Fidalgo ensina que as licenças compulsórias, “permitindo a um terceiro explorar a patente sem o consentimento de seu titular, mas mediante uma remuneração, vêm equilibrar todo este sistema, sendo mais do que apenas válvula de escape do mesmo, na medida em que permitem a prossecução dos objetivos próprios do Direito de Propriedade Industrial ou mesmo do interesse público em geral. Como medidas excecionais que são, nunca deverão ser discricionárias”As Licenças Compulsórias de Direitos de Propriedade Industrial. In: Coleção de Estudos de Direito Intelectual, TOMO 1, Coimbra: Almedina, 2016. p. 19..

Também em relação a este aspecto, configura-se a inconstitucionalidade do art. 229-C.

7 – Conclusão

No presente artigo, tratou-se da irrazoabilidade da necessidade de anuência prévia da ANVISA no processo de registro de patentes, quer no que diz respeito aos produtos e processos farmacêuticos que apresentam riscos à saúde, quer em relação àqueles que sejam interessantes ao SUS e à saúde pública. Excluir a anuência prévia não permite de forma alguma que medicamentos nocivos sejam utilizados ou comercializados, já que a avaliação quanto à eficácia e à segurança da tecnologia será feita quando do processo de registro, de competência da própria ANVISA. Tampouco impede que medicamentos que são importantes ao SUS sejam por ele oferecidos, com ou sem licença compulsória. Ou seja, nenhum prejuízo advém da supressão da atuação da ANVISA no processo de registro de patentes.

Por outro lado, impedir a concessão de patente em situações de não anuência da ANVISA significa violação ao princípio da eficiência, implicando custos desnecessários, assim como esvaziamento indevido e desproporcional do direito de propriedade industrial constitucionalmente assegurado.

Por tudo isso, antes de impedir a patente de medicamentos, a ANVISA deve seguir apreciando com o cuidado de sempre os processos de registro de medicamentos, assim como o poder público deve atentar às situações que podem ensejar a sua licença compulsória, na medida em que este, sim, é um instrumento de proteção ao direito à saúde da coletividade, que não suprime completamente o direito à propriedade industrial.




A reserva do possível na assistência farmacêutica do SUS: A mariposa e a estrela

bandeira e mariposa

Diz a lenda que uma jovem mariposa, quando rodopiava pelos ares em uma certa noite, viu distante uma estrela brilhante pela qual se apaixonou. Decidiu, então, que iria voar em torno do astro que conquisto seu coração. Retornando ao lar, contou à sua mãe a súbita paixão e a ideia de ir ao encontro da estrela. A mãe mariposa, como era de se esperar, não tardou a dizer à filha que seu desejo era impossível. Mandou que parasse de ocupar a mente com bobeiras e que seguisse o exemplo de suas irmãs, da própria mãe e de todas as outras mariposas, voando em volta de postes e lâmpadas cujos brilhos lhes eram acessíveis.

A jovem mariposa, logicamente, não deu ouvidos aos conselhos da mãe. Ciente de que a jornada até a estrela amada era muito longa e que ainda não estava preparada para isso, resolveu tentar alçar voos progressivamente mais altos. E assim o fez. Todas as noites, esforçava-se para chegar um pouco mais próximo da estrela, voando um pouco mais alto do que a noite anterior.

Depois de algum tempo nessa incessante busca, a jovem mariposa evidentemente não conseguiu aproximar-se da estrela o suficiente para voar ao redor dela. Na verdade, ainda estava bem longe disso. Ainda assim, por conta de seu esforço e da incessante dedicação ao objetivo proposto, ela conseguia voar a uma altitude muito maior do que todas as outras mariposas. Com isso, podia contemplar os prédios, as nuvens e as montanhas bem do alto. Por mais que não tenha atingido a felicidade plena de se encontrar com a estrela amada, a felicidade de voar tão alto somente a ela era possível, não às outras mariposas.

Não conseguiu fazer o que era impossível, mas o possível que ela atingiu realmente valeu a pena.

A relação entre o real, o que é possível e o que é impossível é um tema mais do que recorrente na judicialização da saúde. Não é exagero dizer que quase sempre essa é a essência das lides que envolvem tecnologias de saúde reivindicadas do SUS. De um lado, está o paciente buscando um tratamento que não é padronizado pelo sistema público de saúde, e, de outro, estão os entes públicos afirmando que não lhes é possível fornecer todos e quaisquer tratamentos a todos os indivíduos que os postularem, e isso simplesmente porque os recursos públicos são finitos, de forma que devem ser alocados segundo uma política pública criteriosamente estabelecida.

O princípio da reserva do possível – sobretudo quando relacionado à concretização dos direitos fundamentais de segunda dimensão, que são aqueles que demandam mais recursos financeiros para sua implementação – já é bastante conhecido e trabalhado pela doutrina constitucional e pela jurisprudência. Via de regra, entretanto, a sua análise é feita de forma abstrata, pregando a necessidade de ponderação entre a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial com as condições orçamentárias do Estado para, em cotejo com todas as suas outras obrigações e funções, assegurar os direitos sociais na medida do que é possível ser feito.

Quanto mais abstrata é a argumentação, mais suscetível ela é de embasar decisões tomadas por subjetivismos ou por convicções políticas ou ideológicas. Daí a importância de se estabelecer, na medida do que é viável, parâmetros concretos para a aferição do princípio da reserva do possível, especificamente, neste modesto artigo, na judicialização da saúde.

Já de início é preciso deixar claro que, apesar de a discussão sobre a reserva do possível nas lides que envolvem a concessão judicial de tratamentos médicos quase sempre girar em torno dos recursos financeiros existentes no orçamento do SUS e daqueles que são necessários para o custeio das prestações demandadas, ela não pode, de forma alguma, ater-se a esta questão, por mais relevante que seja.

Tão importante como destinar recursos públicos necessários e suficientes para uma adequada concretização do direito à saúde é bem administrá-los. Mais do que isso, se o orçamento é limitado, um bom gerenciamento torna-se ainda mais imperativo.

No Brasil, infelizmente, tanto o financiamento como a gestão da saúde pública têm deixado a desejar. Procurei demonstrar isso de forma objetiva em um outro artigo, que pode ser acessado por aqui.

O subfinanciamento da saúde já vem sendo demonstrado há tanto tempo que dispensa, aqui, maiores comentários. Convém, ainda assim, relembrar que ele vem sendo paulatinamente agravado com os limites impostos pela EC 95/2016, que congelou, por vinte anos, o orçamento do SUS.

Já em relação ao gerenciamento dos recursos públicos destinados à saúde, ainda há muito a ser feito para que seja considerado de excelência.

Antes de prosseguir neste ponto, no entanto, é preciso deixar bem claro que o SUS tem incontáveis virtudes e exemplos de excelência na atenção à saúde que são motivos de muito orgulho para o país e seus cidadãos. Da mesma maneira, é fato que a maioria dos profissionais da saúde, agentes técnicos, administrativos e gestores que atuam nos mais diversos serviços públicos de saúde são pessoas de muita competência, dedicadíssimas a um trabalho hercúleo, pouco valorizado, mas que proporciona resultados grandiosos comparados às condições em que exercido. Não são essas pessoas, definitivamente, as responsáveis pela falta de oxigênio que mata pacientes internados em hospitais públicos, pela falta de agulhas e seringas para vacinar a população que passa pela maior e mais grave pandemia dos últimos tempos ou pelas filas intermináveis para consultas médicas, exames ou cirurgias. Isso tudo decorre da falta de suporte ao trabalho dos profissionais sérios que o SUS tem. Mesmo esses problemas, de todo modo, não podem ser imputados a todos os gestores, porque há, sim, muitos lugares em que o atendimento à saúde funciona bem.

Feitas essas ressalvas por questão de justiça, retomemos a análise do panorama geral.

Conforme o relatório do TCU no processo TC 023.961/16-3, que tratou da Gestão em Saúde no Brasil, 46% dos municípios possuíam capacidade de gestão em estágio inicial, 51% em estágio intermediário e apenas 3% em estágio aprimorado. Em relação aos Estados, 52% estavam no estágio inicial, 41% no estágio intermediário e somente 7% possuíam capacidade de gestão aprimorada.

Esta apuração foi feita mediante mecanismos de avaliação trabalhados junto aos órgãos envolvidos. Dentre inúmeras outras necessidades apuradas pela Corte de Contas para o aprimoramento da gestão, foram elencadas as seguintes:  a) incremento na regulação do acesso à assistência à saúde; b) melhorias no monitoramento e gestão de filas; c) medidas estruturantes para controles na gestão de utilização de órteses, próteses e materiais especiais; d) constituição de consórcios públicos na assistência farmacêutica; e) aumento no controle relativo à dispensação de medicamentos aos usuários do SUS, realizada pelas farmácias da rede própria; f) estabelecimento de processo de seleção dos gestores das secretarias de forma transparente; e g) utilização de sistemas informatizados, prioritariamente aqueles disponibilizados pelo Ministério da Saúde. 

É preciso deixar claro, entretanto, que há em meio às diversas unidades gestoras do SUS aquelas que atuam com elevado padrão de gestão, como demonstram os próprios números levantados pelo TCU.

De acordo com o Banco Mundial, em relatório elaborado no ano de 2017, somente com a otimização do orçamento já disponível, o Brasil poderia ter prestado o mesmo nível de serviços de saúde pública usando 34% menos recursos. O relatório informa que “se o Brasil equiparasse a eficiência de todos os municípios aos mais eficientes, o país poderia economizar aproximadamente R$ 22 bilhões, ou 0,3% do PIB, no seu Sistema Único de Saúde (SUS) sem nenhum prejuízo ao nível dos serviços prestados, nem aos resultados de saúde”; bem como que “em nível nacional, os serviços ambulatoriais e hospitalares poderiam crescer em 140% e 79%, respectivamente, por meio da maximização da eficiência“. Diversos problemas relacionados à gestão são apontados, tais como a excessiva descentralização na aquisição de medicamentos e a falta de integração dos serviços diagnósticos, especializados e hospitalares.

Na esfera federal, a situação não é muito distinta. Alguns exemplos recentes trazidos com a pandemia da COVID-19 servem para demonstrar que o emprego adequado dos escassos recursos públicos que compõem o orçamento SUS ainda é deixado de lado em diversas ocasiões.

Contra todas as evidências científicas levantadas por estudos sérios e respeitados, o Ministério da Saúde recomendou, por meio da Nota Informativa nº 17/2020- SE/GAB/SE/MS, a utilização da hidroxicloroquina como tratamento precoce da COVID-19, o que causou protestos das mais diversas e gabaritadas instituições, como o Conselho Nacional de Saúde, a Fiocruz e a Sociedade Brasileira de Infectologia, dentre outras.

Tão certa é a falta de mínimo respaldo científico para a recomendação do propalado “tratamento precoce” que o Twitter anotou em um post do Ministério da Saúde que incentivava essa forma de tratamento a informação de que teria havido “a publicação de informações enganosas e potencialmente prejudiciais relacionadas à COVID-19”. A própria ANVISA, dias depois, ao analisar pedidos de uso emergencial de vacinas contra o vírus, esclareceu de maneira categórica que, nas palavras da Diretora Relatora, Meiruze de Freitas,até o momento não contamos com alternativa terapêutica aprovada disponível para prevenir ou tratar a doença causada pelo novo coronavírus.”

Evidentemente, a utilização de medicação sem eficácia no combate à doença, além dos possíveis efeitos adversos à saúde, acarreta gastos desnecessários de recursos públicos. O mesmo se diz em relação aos tão propalados quanto ineficazes “Kits COVID”.

Outro exemplo de gestão ineficiente de recursos públicos da saúde foi a manutenção em estoque de quase sete milhões de testes diagnósticos para COVID-19 (RT-PCR) que tiveram seu prazo de validade expirado, conforme noticiado pela imprensa, e posteriormente prorrogado pela ANVISA, mas, ainda assim, com riscos de nova expiração sem utilização.

Cite-se, ainda, o gasto de trinta milhões de reais com campanha publicitária do SUS que, supostamente relacionada à COVID-19, teve como foco a exaltação ao agronegócio e a retomada das atividades comerciais, como informado pela mídia.

Por outro lado, análises do Tribunal de Contas da União vêm apontando uma inequívoca necessidade de aprimoramento também na gestão da judicialização da saúde pelo Ministério da Saúde. No Processo 009.253/2015-7 (Acórdão 1.787/2017 – Rel. Min. Bruno Dantas), o TCU realizou uma “auditoria operacional, sob a forma de fiscalização de orientação centralizada (FOC), no Ministério da Saúde e nas Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, com o objetivo de identificar o perfil, o volume e o impacto das ações judiciais na área da saúde, bem como investigar a atuação do Ministério da Saúde e de outros órgãos e entidades dos três poderes para mitigar os efeitos negativos da judicialização nos orçamentos e no acesso dos usuários à assistência à saúde. (Judicialização da Saúde)”. A apreciação da Corte de Contas resultou na recomendação de diversas providências, das mais variadas naturezas, ao Ministério da Saúde. São as seguintes:

9.1. recomendar ao Ministério da Saúde (...) que, em articulação com os demais órgãos envolvidos, avalie a conveniência e a oportunidade de adotar os seguintes procedimentos, com vistas à melhoria do controle administrativo sobre as ações judiciais referentes à saúde, bem como da eficiência, eficácia e economicidade dos procedimentos adotados para tratar o problema dos crescentes gastos com a judicialização da saúde:
9.1.1. rotinas permanentes de coleta, processamento e análise de dados relativos às ações judiciais de saúde, bem como rotinas de detecção de indícios de fraude (...);
9.1.2. estabelecimento de objetivos e metas com o intuito de minimizar os impactos da crescente judicialização da saúde;
9.1.3. criação de coordenação, núcleo ou congênere para centralizar todas as informações relativas aos processos judiciais e coordenar todas as ações que envolvam a judicialização da saúde, com atribuições, em especial, de:
9.1.3.1. auxiliar a formulação da defesa do ente público pela respectiva procuradoria;
9.1.3.2. produzir um diagnóstico preciso e consistente sobre o impacto da judicialização no orçamento e na gestão da política pública;
9.1.3.3. tornar mais racional, eficiente e econômica a compra de medicamentos que deverão ser fornecidos por força de decisões judiciais;
9.1.3.4. tornar mais racional, eficiente e econômica a prestação de serviços concernentes ao tratamento médico-hospitalar a ser fornecido por força de decisões judiciais;
9.1.3.5. detectar a ocorrência de fraudes cometidas no âmbito da judicialização da saúde;
9.1.3.6. identificar duplicidades de pagamento por parte dos entes federativos;
9.1.3.7. monitorar os pacientes beneficiários de decisões judiciais;
9.1.3.8. realizar inspeções em processos e avaliações de pacientes, selecionados conforme critérios de risco e materialidade;
9.1.3.9. classificar os itens de saúde judicializados (como, por exemplo: existência ou não de registro na Anvisa, apreciação ou não pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS – Conitec, incorporados ou não às políticas do SUS e uso off-label);
9.1.3.10. identificar os itens incorporados ao SUS que são judicializados, de forma a reconhecer e corrigir eventuais falhas na gestão;
9.1.3.11. auxiliar os magistrados na tomada de decisão por meio do fornecimento de informações técnicas, a serem disponibilizadas preferencialmente na internet, a fim de que possam alcançar as varas judiciais mais remotas, sobre medicamentos e tratamentos incorporados ao SUS, protocolos clínicos, medicamentos e tratamentos alternativos, medicamentos não registrados na Anvisa etc.;
9.1.3.12. monitorar o atingimento dos objetivos e metas estabelecidos, propondo melhorias;
9.2. recomendar ao Ministério da Saúde (...) que, em articulação com os demais órgãos envolvidos, avalie a conveniência e a oportunidade de adotar os seguintes procedimentos, com vistas a diminuir gastos com medicamentos judicializados de alto custo não incorporados ao SUS, não registrados na Anvisa ou já regularmente fornecidos pelo SUS:
9.2.1. envio tempestivo das informações ao Ministério Público Federal, diante do indício de fraudes no âmbito da judicialização da saúde, como, por exemplo, a repetição sistemática de prescrições por parte dos mesmos profissionais de saúde e/ou de advogados e a existência de rede entre pacientes, associações, médicos e advogados que denotem ações articuladas objetivando benefícios indevidos;
9.2.2. exame da possibilidade e da pertinência de concessão, de ofício, de licença compulsória para a exploração da patente, nos casos de emergência nacional ou interesse público, conforme disposto no art. 71 da Lei 9.279, de 14 de maio de 1996;
9.3. recomendar ao Ministério da Saúde (...) que, em articulação com os demais órgãos e entidades envolvidos, avalie a conveniência e a oportunidade de adotar os seguintes procedimentos, com vistas à melhoria dos procedimentos de ressarcimento financeiro a estados e municípios que custeiam ações e serviços de saúde judicializados que são de competência federal:
9.3.1. regulamentação do processo de ressarcimento de valores despendidos pelas secretarias estaduais e municipais de saúde em face do cumprimento de decisões judiciais que imputam a estados, ao Distrito Federal e aos municípios obrigações diversas das estabelecidas nas políticas de saúde do SUS, considerando, inclusive, a glosa de valores despendidos pela União no cumprimento de decisões judiciais cujas ações e serviços de saúde são de competência de outro ente federativo;9.3.2. controle e divulgação do ressarcimento dos valores acima descritos;

Como se pode perceber, as recomendações envolvem tanto medidas para evitar a judicialização da saúde (identificar os itens incorporados ao SUS que são judicializados, de forma a reconhecer e corrigir eventuais falhas na gestão e examinar a possibilidade e a pertinência de concessão de licença compulsória para a exploração de patentes), como para reduzir o seu impacto financeiro (adotar procedimentos para detecção de fraudes; estabelecer diagnósticos, objetivos e metas de minimização dos impactos econômicos; tornar mais racional, eficiente e econômica a compra de medicamentos judicializados) ou melhor administrá-la (adotar rotinas permanentes de coleta, processamento e análise de dados relativos às ações judiciais de saúde; criar núcleos e coordenações de centralização de informações de processos judiciais; auxiliar na elaboração de defesa pela procuradoria; implementar ou aperfeiçoar procedimentos de repasses financeiros aos demais entes federativos que cumpriram as decisões judiciais, etc).

A simples existência de tantas recomendações já serve para demonstrar que ainda há muito a ser feito no aprimoramento da gestão da judicialização da saúde, o que sem dúvida impactará positivamente na racionalização de recursos públicos. Por outro lado, nenhuma delas pode ser considerada impossível de ser adotada, ou seja, estão todas dentro da “reserva do possível”.

Ainda assim, nova auditoria realizada pelo TCU cerca de três anos depois para acompanhar a implementação das referidas recomendações concluiu que nenhuma delas havia sido efetivamente concluída. De fato, no Processo de Tomada de Contas 034.546/2018-9 (Acórdão 3.036/2020 – Rel. Min. Bruno Dantas), o Tribunal considerou que as recomendações 9.1.1, 9.1.3.2, 9.1.3.3, 9.1.3.4, 9.1.3.5, 9.1.3.6, 9.1.3.8, 9.1.3.9, 9.1.3.10 e 9.1.3.11 ainda estavam em implementação; que as recomendações 9.1.2, 9.1.3.1, 9.2.2 e 9.3.2 estavam parcialmente implementadas; e que as recomendações 9.1.3.7, 9.1.3.12, 9.2.1 e 9.3.1 não foram implementadas.

Fora isso, a compreensão do princípio da reserva do possível, quando se trata da implementação da política de assistência terapêutica do SUS, não pode ficar restrita apenas aos recursos financeiros nela alocados e na sua gestão.

Não há nenhuma dúvida de que o custo dos tratamentos médicos mais modernos e eficazes é um dos maiores obstáculos à sua acessibilidade, e isso não apenas para as populações ou países de baixa renda. No entanto, existem diversas alternativas para lidar com este problema que vão além do simples pagamento pelas novas tecnologias ou da negociação de preços com a indústria farmacêutica, que, como se sabe, não costuma ceder a quaisquer razões que impeçam a obtenção de excepcionais lucros.

É de se esperar, por exemplo, que o governo invista seriamente na pesquisa científica destinada ao desenvolvimento de novos tratamentos médicos, seja para suplantar vazios terapêuticos decorrentes do desinteresse da iniciativa privada em desenvolver tecnologias que não se mostrem lucrativas como se espera (cite-se, neste caso, a grave e iminente ameaça à saúde pública mundial decorrente da falta de desenvolvimento de novos antibióticos, que tem o potencial de vitimar cerca de dez milhões de pessoas por ano até 2050, segundo estimativa da OMS), seja para buscar alternativas mais baratas e acessíveis para tratamentos patenteados e com custos elevados demais para serem suportados pelo sistema público de saúde. 

Não custa lembrar que a Constituição atribuiu expressamente ao SUS a responsabilidade por “participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos” (art. 200, I) e por “incrementar, em sua área de atuação, o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação” (art. 200, V). Mais do que isso, a mesma Constituição determinou que “a pesquisa científica básica e tecnológica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação” (art. 218, § 1º).

O Brasil conta com universidades públicas e institutos de pesquisa científica altamente qualificados e que podem colaborar muito na pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias em saúde, inclusive mediante parcerias com instituições privadas, mas desde que satisfatoriamente financiados.

Outra área crucial para a atuação do Estado na promoção do acesso da população a tecnologias em saúde modernas e eficazes é a dos direitos sobre a propriedade intelectual, mais especificamente as patentes de medicamentos novos e inovadores.

Não há dúvida de que uma proteção adequada aos direitos sobre a propriedade intelectual é indispensável para incentivar o investimento privado na pesquisa e desenvolvimento científicos na área da saúde. Por outro lado, o acesso às novas tecnologias é uma questão de saúde pública e de proteção a direito fundamental que não pode, de forma alguma, submeter-se exclusivamente às regras de mercado e aos interesses de empresas privadas que, ao fim e ao cabo, atuam sempre na expectativa de lucro, como é de se esperar em uma sociedade capitalista.

Por isso, sempre que os interesses particulares e econômicos de detentores de patentes que as utilizam para obter lucros exorbitantes obstarem o necessário acesso da população a tratamentos médicos indispensáveis a uma adequada proteção de sua saúde, é preciso que o Estado intervenha sobre os direitos de propriedade intelectual, compatibilizando o interesse particular do detentor da patente com o interesse público na concretização do direito fundamental à saúde. O que não falta é respaldo jurídico para isso.

O Acordo Sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS) estabelece o seguinte em seus artigos 30 e 31:

Artigo 30
Exceções aos Direitos Conferidos
Os Membros poderão conceder exceções limitadas aos direitos exclusivos conferidos pela patente, desde que elas não conflitem de forma não razoável com sua exploração normal e não prejudiquem de forma não razoável os interesses legítimos de seu titular, levando em conta os interesses legítimos de terceiros.
Artigo 31
Outro Uso sem Autorização do Titular
Quando a legislação de um Membro permite outro uso do objeto da patente sem a autorização de seu titular, inclusive o uso pelo Governo ou por terceiros autorizados pelo governo, as seguintes disposições serão respeitadas:
(...)
(b) esse uso só poderá ser permitido se o usuário proposto tiver previamente buscado obter autorização do titular, em termos e condições comerciais razoáveis, e que esses esforços não tenham sido bem sucedidos num prazo razoável. Essa condição pode ser dispensada por um Membro em caso de emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência ou em casos de uso público não comercial. No caso de uso público não comercial, quando o Governo ou o contratante sabe ou tem base demonstrável para saber, sem proceder a uma busca, que uma patente vigente é ou será usada pelo ou para o Governo, o titular será prontamente informado;

Tornando mais assertiva a necessidade da compatibilização dos direitos sobre a propriedade intelectual – notadamente as patentes farmacêuticas – com a proteção da saúde pública, a própria Organização Mundial do Comércio emitiu a conhecida Declaração de Doha, na qual consignou que:

4. Nós concordamos que o Acordo TRIPS não impede e não deveria impedir seus membros de adotar medidas para proteger a saúde pública. Em conseqüência, enquanto reiteramos nosso compromisso com o Acordo TRIPS, nós afirmamos que o acordo pode e deve ser interpretado e implementado de modo a apoiar o direito dos membros da OMC de proteger a saúde pública e, em particular, de promover o acesso aos medicamentos para todos.
Assim sendo, nós reafirmamos o direito dos membros da OMC de utilizarem, em toda sua extensão, as disposições do acordo TRIPS que fornecem a flexibilidade necessária a esse propósito.

A possibilidade de concessão de licença compulsória de ofício pelo Poder Público em casos de interesse público, e desde que o titular da patente não atenda a essa necessidade, também está prevista no art. 71 da Lei nº 9.279/96. Foi com base neste dispositivo legal, inclusive, que o TCU, no já referido Processo 009.253/2015-7, recomendou ao Ministério da Saúde que avaliasse a possibilidade e a conveniência de concessão de licenças compulsórias para exploração de patentes de medicamentos a serem eventualmente incorporados ao SUS.

Apesar da existência de fundamentos jurídicos sólidos para a concessão de licenças compulsórias de medicamentos indispensáveis à política de assistência farmacêutica quando os detentores das patentes não colaboram para viabilizar o acesso aos medicamentos à população em geral por intermédio do Estado, a experiência tem demonstrado que essas medidas são normalmente seguidas de sérias resistências, ameaças e retaliações por parte da indústria farmacêutica e até mesmo dos países em que elas estão sediadas, tudo em razão dos interesses econômicos que orbitam a discussão. Daí a importância de a questão ser trabalhada também junto à OMS e à OMC, evitando-se que o país seja indevidamente penalizado por buscar assegurar o direito à saúde de seus cidadãos.

Aliás, este problema vem sendo debatido seriamente há alguns anos pela Organização Mundial da Saúde, que chegou a instituir o “High-Level Panel on Acces do Medicines”, do qual resultou um excelente relatório com um diagnóstico das sérias dificuldades de acessibilidade da população mundial a medicamentos e com diversas recomendações de medidas a serem implementadas pelos Estados-partes e pelas instituições privadas para afastar os óbices existentes. Dentre essas recomendações, estão as seguintes (em tradução livre):

Os membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) devem se comprometer eles próprios, nos mais altos níveis políticos, a respeitar a letra e o espírito da Declaração de Doha sobre TRIPS e a Saúde Pública, abstendo-se de qualquer ação que limite a sua implementação e uso para promover o acesso a tecnologias em saúde. Mais especificamente:
(...)
Os membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) devem fazer uso completo das flexibilidades do direito de propriedade do Acordo sobre Aspectos Intelectuais Relacionados ao Comércio (TRIPS), conforme confirmado pela Declaração de Doha para promover o acesso às tecnologias de saúde quando necessário.
(...)
Os governos devem adotar e implementar legislação que facilite a concessão de licenças compulsórias. Tal legislação deve ser projetada para efetuar de forma rápida, justa e previsível e implementável as licenças compulsórias ​​para as necessidades públicas em saúde legítimas, e particularmente no que diz respeito aos medicamentos. O uso da licença compulsório deve ser baseado nas disposições encontradas na Declaração de Doha e os fundamentos para a emissão de licenças compulsórias deixados ao critério dos governos.
(...)
Os governos e o setor privado devem se abster de ameaças explícitas ou implícitas, táticas ou estratégias que prejudiquem o direito dos Membros da OMC de usar as flexibilidades do TRIPS. Pressões políticas e comerciais indevidas devem ser relatadas ao Secretariado da OMC durante a Revisão da Política Comercial dos Membros. Membros da OMC devem registrar reclamações contra pressão política e econômica indevidas, que inclui a tomada de medidas punitivas contra os Membros da OMC ofensores.

Desta forma, as ameaças de retaliações políticas ou econômicas não podem inibir o Poder Público de relativizar os direitos sobre as patentes quando eles são exercidos em desconformidade com o interesse de todos os cidadãos atendidos pela política de assistência terapêutica. Neste caso, deve o governo buscar por meios diplomáticos o necessário apoio internacional, bem como o respaldo da OMS e da OMC em sua atuação.

Como se pode perceber, fazer todo o possível na assistência terapêutica do SUS é muito mais do que aplicar os recursos existentes em rubricas orçamentárias específicas. É financiar adequadamente o SUS, gerir com excelência os recursos financeiros disponíveis e a própria judicialização da saúde, investir na pesquisa, desenvolvimento e fabricação de medicamentos e evitar que interesses particulares da indústria farmacêutica se sobreponham ao direito à saúde de toda a população. Somente quando conseguir demonstrar de forma clara que atua de maneira séria em todas essas frentes é que o Poder Público poderá arguir legitimamente o princípio da reserva do possível como obstáculo intransponível para o fornecimento de quaisquer outros tratamentos a seus cidadãos além daqueles já padronizados.

Enfim, se a mariposa (SUS) certamente não conseguirá chegar à sua amada estrela (atingir o brilho de poder fornecer a todos os cidadãos todos os tratamentos que necessitem ou desejam), ela pode ao menos buscar alçar voos mais altos (melhorar significativamente a atual assistência terapêutica) ao invés de permanecer queimando suas asas nas lâmpadas baixas tão atrativas, mas tão limitantes.




De médico e de louco…

Chapeleiro louco

Início dos anos 2000, Comarca de Curiúva-PR, juíza com atuação em todas as competências: cível, criminal, família, infância e juventude, juizados especiais, eleitoral e por aí vai.

Uma tarde entro no cartório e encontro uma funcionária com os pés em carne viva, pele toda descascada, de chinelos.

O que aconteceu com o teu pé fulana? – pergunto.

Não sei doutora, passei algumas pomadas, mas nada resolveu.

Como alguém que adora dar palpite arrisquei: será que não é fungo? Fiz recentemente um tratamento para micose nas unhas e tomei um remédio chamado fluconazol.

Como é o nome do remédio doutora? Vou anotar.

Ai falei demais.

Fulana, remédio precisa de prescrição, vá ao médico e confira com ele.

Cidade pequena, a moça comprou o remédio e na semana seguinte estava com a pele dos pés normal novamente, muito agradecida pela indicação.

Passados mais alguns dias, uma conselheira tutelar me procura no fórum.

Apreensiva, imaginando alguma criança em situação de vulnerabilidade, a recebi e perguntei: tudo bem? Alguma tarefa difícil para o Conselho?

Então doutora, queria perguntar uma coisa para a senhora, por isso vim até aqui – fala a conselheira meio sem jeito. Meu menino está com uma mancha no braço…o que a senhora acha que pode ser? Será que a senhora pode dar uma olhada nele? Passar algum remédio?

Livrei-me da saia justa prometendo para mim mesma nunca mais “receitar” nada para ninguém e a orientando a procurar o pediatra.

Ela ainda insistiu dizendo que eu havia “curado” a funcionária do cartório

Nos despedimos e minha “carreira” de médica (ou de curandeira?), para o bem da humanidade, terminou por ali.

A história, no entanto, permaneceu na memória e mais recentemente me trouxe a reflexão que agora compartilho de forma despretensiosa.

A proximidade do juiz estadual com a comunidade, seja em grandes ou pequenos Municípios, o torna mais suscetível na análise de demandas por medicamentos ou tratamentos médicos? É mais difícil para ele tomar decisões nas demandas por saúde?

A filosofia, com o conceito de justiça, e a psicologia, com o conceito de empatia, auxiliam nessa resposta. Daniel Wang em seu artigo “Judicialização da Saúde: da crítica à busca de uma jurisprudência construtiva” (2019), explicita que:

“Nossos julgamentos morais são moldados pela aprovação daquilo que faz os outros felizes e a rejeição ao que causa dor, mesmo se não somos diretamente afetados. Hume chamou a capacidade de sentir sympathy de “humanidade”. Humanidade para Hume, porém, é diferente de justiça. A humanidade é inescapavelmente parcial e escassa. Nossa sympathy é maior quanto mais próximos somos de uma pessoa ou quanto melhor a conhecemos. O drama de alguém cujo nome, rosto e história conhecemos e com quem nos identificamos nos afeta muito mais do que a de um estranho ou um número em uma estatística”. (WANG, 2019, p.2)

Um estudo que analisou a percepção de magistrados no Estado do Maranhão sobre as demandas envolvendo saúde pública (NEVES e PACHECO, 2017) confirma essa constatação. A maioria dos entrevistados referiu alguma dificuldade na apreciação de causas que envolvem a vida e a saúde das pessoas. Um deles, ao falar de tal dificuldade, chegou a se utilizar da expressão “a escolha de Sofia”, fazendo
analogia com a história da mãe polonesa, presa num campo de concentração durante a Segunda Guerra e que é forçada a escolher um de seus dois filhos para ser morto (p. 757-760).

O mesmo estudo ainda aponta as impressões da constitucionalista Ana Paula de BarcellosBARCELLOS, Ana Paula de. O direito a prestações de saúde: complexidade, mínimo existencial e o valor das abordagens coletivas e abstratas. In: Revista da Defensoria Pública, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 133-160, jul./dez. 2008. (2008) sobre o dilema:

“É certamente penoso para um magistrado negar […]. Um doente com rosto, identidade, presença física e história pessoal, solicitando ao Juízo uma prestação de saúde, é percebido de forma inteiramente diversa da abstração etérea do orçamento e das necessidades do restante da população, que não são visíveis naquele momento e têm sua percepção distorcida pela incredulidade do magistrado, ou ao menos pela fundada dúvida de que os recursos públicos estejam sendo efetivamente utilizados na promoção da saúde básica” (BARCELLOS, 2008, p. 136, apud NEVES e PACHECO, 2017, p. 759-760).

Transportando os conceitos da filosofia e da psicologia para o direito e encaminhando a questão para o enfoque processual, todavia, abre-se uma nova reflexão, em especial no que diz respeito às demandas relativas à saúde pública.

Note-se, primeiramente, que muitas vezes uma demanda com base no direito fundamental à saúde tem como pano de fundo a necessidade de incorporação de determinado medicamento ou insumo ao SUS ou a necessidade de revisão de determinado protocolo clínico ou de revisão de critérios administrativos de gestão de acesso a alguns serviços, como consultas especializadas, cirurgias ou leitos hospitalares.

O juiz se depara, deste modo, com questões como definição de políticas públicas, alocação de recursos orçamentários e análise de evidências científicas cuja amplitude e complexidade extrapolam os limites da lide individual e o colocam, antidemocraticamente, na condição de substituto do administrador.

Daí já se pode inferir que não é propriamente a natureza da demanda que dificulta ou dramatiza sua análise, mas sim seu tratamento sob o prisma da tutela individual encaminhada pelas vias processuais tradicionais.

Vale dizer, a causa ajuizada sob este formato, embora ingresse no sistema judiciário com a roupagem individual, encerra verdadeiro litígio de interesse público e sua abordagem convencional se revela ainda mais imprópria quando se repetem ações com o mesmo pedido.

A doutrina, aliás, já identificou os inúmeros problemas que o tratamento das demandas repetitivas nos mesmos moldes das individuais pode acarretar:

“I) abarrotamento dos juízos de demandas idênticas ou similares, com possível contraste de decisões (superficialmente produzidas) e eventual tratamento diferenciado das partes em presença da mesma lesão; II) diversidade de defesa técnica entre os litigantes habituais e eventuais; III) em decorrência da ausência de mecanismos legítimos e que proporcionem coerência e estabilidade decisória uma completa anarquia interpretativa e IV) déficits de representação (subrepresentação) no julgamento da causa piloto pelo fato de somente parcela dos argumentos e interesses são levados em consideração. E, em países como o Brasil, em que não são asseguradas políticas públicas adequadas de obtenção de direitos fundamentais, a já aludida litigância de interesse público (Publicinterestlitigation), que consiste num dos fatores determinantes da geração de demandas repetitivas, não constitui uma exceção, mas, sim, uma regra, de modo a conduzir inúmeras pessoas à propositura de demandas envolvendo pretensões isomórficas (v.g., contra o poder público), que merecem um tratamento diferenciado e legítimo" (THEODORO JÚNIOR, et al, 2016, p. 381, apud BAHIA, NUNES e COTA, 2019, p. 19)THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC – Fundamentos e sistematização. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016..

Para solucionar tais problemas e a inadequação dos instrumentos processuais habituais na tutela das ações por direitos fundamentais e de interesse público, apresenta-se o conceito de processo estrutural.

Neste a principal preocupação do julgador é a de decidir mediante observação do contexto social, político e econômico em que se insere a demanda, com a consciência de que sua decisão pode provocar mudanças institucionais complexas.

Conforme explica Fernando Alcântara Castelo (2017):

“a garantia da efetividade do provimento é uma das maiores, senão a maior, preocupação dessas decisões, que buscam privilegiar a solução mais ampla, que alcance resultados que possam beneficiar toda a coletividade, atendendo as suas necessidades” (ibidem, p. 5)

Desse panorama exsurge, por consequência, outra constatação, a de que é no âmbito das ações coletivas que o juiz pode, mais facilmente e com mais segurança, proferir decisões “estruturais”, uma vez que:

“ao contrário do processo individual, o conflito estrutural não diz respeito tão somente a dois polos de interesses contrapostos. A racionalidade destes conflitos é diversa: trata-se de um processo multipolar, nos quais, superando a lógica bipolarizada, são formados diversos núcleos de interesses, muitas vezes antagônicos, acerca do objeto do litígio” (FACHIN e SCHINEMANN, 2018, p. 237).

Ainda que se admita a prolação de decisões estruturais em demandas individuais por medicamentos, as vantagens da adoção do processo estrutural nas ações coletivas são evidentes, com destaque para:

“a maior capacidade de diálogo com os gestores públicos e com a sociedade organizada, bem como a potencialidade de ser um mecanismo capaz de levar a um efetivo aprimoramento da política pública de medicamentos pela via judicial” (CHAGAS et al, 2020, p. 108)

A par disso, o ajuizamento de uma ação coletiva relativa à macro-lide geradora de processos multitudinários enseja, por relação de prejudicialidade, a suspensão das ações individuais, consoante entendimento já reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de recurso repetitivoRecurso Especial No 1.110.549 – RS (2009/0007009-2), Relator Min. Sidnei Benetti, DJE 14/12/2009, fazendo estancar novos ajuizamentos com idêntica pretensão e evitando que sejam proferidas decisões conflitantes e desiguais.

Há de se ponderar, contudo, que as ações coletivas encontram pouco incentivo na cultura processual brasileira. Recente pesquisa promovida pelo CNJ (MELO e HERCULANO, 2019), embora tenha apresentado dados que “contrariam a crença que aponta que tribunais e juízes estariam mais dispostos a decidir casos individuais de forma favorável do que realizar reformas estruturais na política pública de saúde via ações coletivas” ainda verificou que “é baixo o número de ações coletivas se comparadas às individuais. Isso revela que a judicialização da saúde se dá muito mais pela via individual do que pela coletiva” (p. 4).

Como forma de iniciar uma mudança desse paradigma, algumas sugestões se mostram oportunas para incentivar o ajuizamento de ações coletivas, particularmente a utilização de dados estatísticos das próprias demandas individuais, tais como número de ações que se repetem em micro e macrorregiões e número de pareceres e notas técnicas solicitadas aos NATs em relação a determinado medicamento ou tratamento.

Os dados poderiam ainda ser confrontados com os pareceres e estudos em andamento pela CONITEC com identidade de objeto e informados aos órgãos competentes de modo a contribuir na definição de atualização ou estabelecimento de novos protocolos clínicos.

Igualmente no campo estatístico, em plena “era dos dados”, também a melhoria na pesquisa de informações disponíveis nos sistemas processuais poderia auxiliar na valorização da tutela coletiva.

Hermes Zaneti Jr. e Daniela Bermudes Lino, no artigo “Os painéis do CNJ e os dados da efetividade das ações coletivas no Brasil” (2019), trazem opiniões relevantes para tanto:

  • “a taxonomia das tabelas unificadas CNJ/CNMP é fundamental. Uma boa alimentação dessas informações pelo Judiciário e pelos MPs poderá representar um ganho quantitativo, mas também qualitativo. Com dados poderemos evitar ajuizamento de ações desnecessárias e demonstrar a efetividade das ações ajuizadas;
  • a taxonomia pode ser melhorada. Por exemplo, marcar as ações coletivas dentro de uma classe específica, evitando que ações com nome de ação civil pública, mas que são individuais, fossem consideradas para fins de coleta de dados. Embora isso já tenha sido resolvido em parte pelo Ministério Público com a disciplina dos procedimentos administrativos, o problema não foi eliminado e a questão do erro humano acaba sendo potencializada pela confusão terminológica;
  • devemos evoluir nas ferramentas de pesquisa a partir do cruzamento de informações. Os painéis do CNJ apresentam algumas dificuldades de leitura, por exemplo, não foi possível, pelo menos até agora, obter um cruzamento dos dados de assunto e classe (ações coletivas por matéria). No MP-ES, esse cruzamento é possível, como foi demonstrado — assunto, movimento e classe podem ser combinados;
  • para os novos rumos da pesquisa sobre a efetividade das ações coletivas, agora é importante, para além dos números, buscar dados sobre os resultados das ações coletivas, tempo de tramitação, eventualmente, número de membros do grupo. Claro que algumas dessas questões exigiria mudanças das ferramentas de alimentação de dados e de pesquisa, mas isso seria uma segunda etapa;
  • no painel do CNJ, não conseguimos relacionar o movimento da classe (ação civil pública, por exemplo) com o movimento (procedência, improcedência etc.). No painel do MP-ES, esse cruzamento de dados é possível e permite-se a identificação, por assunto, das sentenças favoráveis, desfavoráveis ou parcialmente favoráveis ao MP do Espírito Santo”. (ibidem, p. 8)

A Resolução nº 339 de 08/09/2020 do CNJ, a propósito, dá um grande passo nesse sentido na medida em que estabelece a criação dos Núcleos de Ações Coletivas e as regras para implantação dos cadastros de ações coletivas dos Tribunais.

A Resolução, aliás, apresenta diretrizes bastante inovadoras para disponibilização de tais cadastros:

Art. 8º Cabe aos tribunais abrangidos por esta Resolução a criação ou aprimoramento, conforme o caso, de cadastros próprios de processos coletivos, que deverão ser disponibilizados em seus portais na internet, com
informações atualizadas e de interesse público, observadas as seguintes diretrizes:
I – as informações deverão ser de fácil localização, em formato de consulta e linguagem acessível ao jurisdicionado;
II – destaque dos temas de repercussão social, econômico e ambiental; e
III – apresentação de esclarecimentos sobre o funcionamento das ações coletivas e a possibilidade de direcionamento para cadastros de soluções administrativas, inquéritos ou soluções consensuais dos legitimados para as ações coletivas, como o Ministério Público e a Defensoria Pública.

O emprego de dados estatísticos consistentes, portanto, aliado ao diálogo institucional com os legitimados para as ações coletivas e com a própria Administração, poderia servir de termômetro para a análise de legítimas necessidades sociais e fazer emergir uma judicialização da saúde mais propositiva e eficaz no auxílio à construção de políticas públicas nesta área.

Voltando à história que serviu de ponto de partida para a presente reflexão, finalizo com a confiança de que, ao sair de um “modelo de atuação judicial meramente responsivo e repressivo” para assumir um “modelo resolutivo e participativo” (DIDIER JUNIOR e ZANETI JUNIOR, 2017DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes. Curso de direito processual civil – v. 4:processo coletivo. 11. ed. Salvador: JusPODIVM; 2017., apud CHAGAS et al., 2020, p. 106) na apreciação das demandas de saúde, o Judiciário deixa a posição de “curandeiro” para ocupar a de agente transformador da sociedade.

Imagem do post: Paolo Nicolello on Unsplash




Divisão de competências nas Ações e Serviços Públicos em Saúde no SUS: decifra-me ou te devoro – Parte II

gato em pose de esfinge

Há um tempo atrás, publicamos neste blog o artigo Pactuação da assistência farmacêutica no SUS: decifra-me ou te devoro. Para quem acha que a divisão de responsabilidades entre os entes federativos em relação à aquisição e ao fornecimento de medicamentos pelo sistema público de saúde já é complexa, tenho a dizer que seus problemas aumentaram. Mas é preciso enfrentá-los, porque o conhecimento da repartição das atribuições administrativas entre União, estados e municípios nas ações e serviços públicos em saúde em geral dentro do SUS é fundamental para a definição de questões processuais e materiais na judicialização da saúde, especialmente a competência jurisdicional e a legitimidade das partes, na esteira do que decidido pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 793 em sede de repercussão geral, cuja análise também foi objeto de estudo aqui no blog.

A maior parte das discussões voltadas à judicialização da saúde no âmbito do SUS costuma versar sobre a entrega de medicamentos, que tem uma sistemática específica de repartição de competências administrativas regulamentada pela Política de Assistência Farmacêutica. Não se pode desconsiderar, entretanto, as não menos importantes demandas pelas demais tecnologias em saúde, tais como próteses, órteses, exames laboratoriais e de diagnósticos, procedimentos cirúrgicos e toda a gama de demais procedimentos inseridos dentro das ações e dos serviços públicos de saúde do SUS.

Tanto os medicamentos como as demais ações e serviços públicos de saúde estão inseridos na assistência terapêutica integral do SUS referida pelo art. 6º, I, “d” da Lei nº 8.080/90, a qual consiste, nos termos do art. 19-M da mesma lei, na “dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde” (inciso I) e na “oferta de procedimentos terapêuticos, em regime domiciliar, ambulatorial e hospitalar, constantes de tabelas elaboradas pelo gestor federal do Sistema Único de Saúde – SUS” (inciso II). Os produtos a que se refere o inciso I são as órteses, próteses, bolsas coletoras e equipamentos médicos (art. 19-N, I da Lei nº 8.080/90). 

Todos esses produtos e procedimentos devem estar inseridos em Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas e são incorporados ao SUS, excluídos ou alterados pelo Ministério da Saúde, após a necessária avaliação técnica pela CONITEC em relação à sua eficácia, segurança, efetividade e ao custo-efetividade (art. 19-O, parágrafo único e art. 19-Q da Lei nº 8.080/90).

Especificamente em relação aos medicamentos, o art. 19-P da Lei nº 8.080/90 estabelece que sejam instituídas pelos respectivos gestores do SUS listas de todos os fármacos incorporados nas respectivas esferas. São as conhecidas Relações nacional (RENAME), estaduais e municipais (REMUME’s) de medicamentos, atualizadas periodicamente conforme novas drogas são nelas incluídas, atualizadas ou delas excluídas.

Além dessas relações específicas para os medicamentos previstas na Lei nº 8.080/90, o Decreto nº 7.508/2011 previu a criação da RENASES (Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde), a qual, como o próprio nome diz, “compreende todas as ações e serviços que o SUS oferece ao usuário para atendimento da integralidade da assistência à saúde” (art. 21). É nesta lista, portanto, que constam todos os produtos (órteses, próteses, bolsas coletoras e equipamentos médicos) e demais procedimentos (exames, procedimentos cirúrgicos, tratamentos ambulatoriais e hospitalares, etc) disponíveis no sistema público de saúde. De forma bastante didática, o art. 14 da Portaria de Consolidação nº 01/2017 do Ministério da Saúde dispõe o seguinte:

Art. 14. Fica publicada a Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (RENASES), que compreende todas as ações e serviços que o SUS oferece ao usuário, para atendimento da integralidade da assistência à saúde, em atendimento ao disposto no art. 22 do Decreto nº 7.508 de 28 de junho de 2011 e no art. 7º, inciso II da Lei nº 8.080/90, disponível no endereço eletrônico do Ministério da Saúde: http://portalsaude.saude.gov.br.
§ 1º Esta versão contém as ações e serviços ofertados pelo SUS na data de publicação do Decreto nº 7508, de 28 de junho de 2011, com acréscimo dos novos serviços e ações instituídos posteriormente.
§ 2º As ações e serviços descritos na RENASES contemplam, de forma agregada, toda a Tabela de Procedimentos, Órteses, Próteses e Medicamentos do SUS.

A elaboração da RENASES é atribuição do Ministério da Saúde, que deve, entretanto, observar as diretrizes gerais pactuadas pela Comissão Intergestores Tripartite – CIT, tudo nos termos do art. 22 e do art. 32, parágrafo único, I do Decreto nº 7.508/2011. Essa comissão reúne representantes das três esferas de gestão do SUS, harmonizando as respectivas competências comuns e operacionalizando as deliberações conjuntas dentro da estrutura estabelecida pelo pacto federativo. Atualmente, é a Resolução 02/2012 da CIT que dispõe sobre as diretrizes para a elaboração da RENASES no âmbito do SUS.

Assim como ocorre em relação às listas de medicamentos, além da Relação Nacional de Ações e Serviços em Saúde, “os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão adotar relações específicas e complementares de ações e serviços de saúde, em consonância com a RENASES, respeitadas as responsabilidades dos entes pelo seu financiamento, de acordo com o pactuado nas Comissões Intergestores” (art. 24 do Decreto nº 7.508/2011). No entanto, mesmo as tecnologias em saúde a serem incorporadas às relações estaduais ou municipais, em complemento à relação nacional, deverão ser previamente submetidas à análise da CONITEC (art. 18, §3º da Portaria de Consolidação nº 01/2017 do Ministério da Saúde).

Obedecendo ao comando do art. 16 da Portaria de Consolidação/MS 01/2017, a RENASES é dividida em cinco partes, a saber: I – Ações e Serviços da Atenção Primária; II – Ações e Serviços da Urgência e Emergência; III – Ações e Serviços da Atenção Psicossocial; IV – Ações e Serviços de Atenção Especializada, esta subdividida em Atenção Ambulatorial Especializada, Odontologia Especializada e Atenção Hospitalar; e V – Ações e Serviços da Vigilância em Saúde.

Ao contrário da RENAME, que é dividida em diversos componentes (grupos de medicamentos), cada qual com atribuições específicas de financiamento, aquisição e distribuição pelos diversos entes federativos, os componentes da RENASES não guardam relação necessária com as competências administrativas ou responsabilidades financeiras da União, estados e municípios. A divisão, como visto acima, dá-se de acordo com o tipo de atendimento à saúde prestado (atenção primária, urgência e emergência, atenção psicossocial, atenção especializada e vigilância sanitária). Dentro destes grupos, os deveres assumidos por cada ente federativo deverão ser necessariamente pactuados na Comissão Intergestores Tripartite – CIT. É o que estabelece o art. 23 do Decreto nº 7.508/2011:

Art. 23. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios pactuarão nas respectivas Comissões Intergestores as suas responsabilidades em relação ao rol de ações e serviços constantes da RENASES.

Importante pontuar que as responsabilidades a serem pactuadas na CIT não são apenas as financeiras, mas também aquelas relativas à efetiva prestação dos serviços, tudo de acordo com as particularidades administrativas e sociais de cada região. Sobre isso, o art. 15 da Portaria de Consolidação/MS 01/2017 traz diretrizes importantes a serem observadas:

Art. 15. O financiamento das ações e serviços da RENASES será tripartite, conforme pactuação, e a oferta das ações e serviços pelos entes federados deverá considerar as especificidades regionais, os padrões de acessibilidade, o referenciamento de usuários entre municípios e regiões, e a escala econômica adequada.

A RENASES também categoriza as diversas formas de acesso às ações e serviços de saúde nela constantes, que deverão estar de acordo com critérios de referenciamento fundamentados nas normas e Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do SUS, conforme dispõe o art. 19 da Portaria de Consolidação/MS 01/2017. De acordo com o art. 20 da mesma portaria, as formas de acesso são as seguintes:

I - mediante procura direta pelos usuários, sem exigência de qualquer tipo de encaminhamento ou mecanismo de regulação de acesso. São as denominadas “portas de entrada do SUS” (unidades básicas de saúde, urgência e emergência, centros de atenção psicossocial, dentre outras); 
II - mediante encaminhamento de serviço realizado por um serviço próprio do SUS;
III - mediante autorização prévia de dispositivo de regulação de acesso (central de regulação, complexo regulador ou outro dispositivo incumbido de regulação, coordenação de cuidado ou controle de fluxo de pacientes entre serviços de saúde);
IV - com exigência de habilitação, ou seja, autorização pelo gestor municipal, estadual ou federal para que um estabelecimento de saúde já credenciado ao SUS passe a realizar o procedimento necessário; 
V - com indicação e autorização prevista em Protocolos Clínicos ou Diretrizes Terapêuticas específicos; e
VI – tratando-se de ação ou serviço voltado para a saúde coletiva, com intervenções individuais, em grupo e na regulação e controle de produtos e serviços, no campo da vigilância.

Para cada uma dessas formas de acesso, a RENASES estabeleceu um código numérico (1 a 6, respectivamente), que foi marcado ao lado de cada tratamento nela constante. Para se ter uma ideia de como a lista foi elaborada, tomemos como exemplo o procedimento de elaboração de plano terapêutico individual para o tratamento de doenças crônicas:

tabela renases

Explicada como se dá a repartição de competências entre os entes federativos e a forma de acesso às ações e serviços listados na RENASES, e nos termos da tese firmada pelo STF no Tema 793 de repercussão geral“Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”, cabe aos autores de demandas judiciais que pleiteiam algum dos tratamentos não medicamentosos constantes na referida relaçãoA repartição de competências administrativas específica para a assistência farmacêutica possui regulamentação própria, explicada em outro post do blog., bem como ao Juízo, apontar qual é, no caso concreto, o ente competente para seu o custeio ou fornecimento.

Como visto anteriormente, para isso será necessário verificar como a prestação do serviço ou o fornecimento da tecnologia em saúde foi pactuado na Comissão Intergestores Tripartite, o que, há que se reconhecer, não será nada fácil em grande parte dos casos, já que as pactuações individuais da CIT, caso estejam disponibilizadas ao público, são de pesquisa e acesso complexos. Sendo assim, a medida que parece mais célere e produtiva é a consulta pelo Juízo diretamente aos gestores do SUS, no bojo do processo e preferencialmente antes da decisão de eventual pedido de tutela de urgência, para que indiquem como foram pactuados a prestação e o custeio da ação ou serviço público de saúde requerido na ação.

Essa consulta prévia aos gestores do SUS pode ser antecipada por outros atores da judicialização da saúde que tenham prerrogativas de obtenção de informações para o desempenho de suas funções institucionais, tal como ocorre com o Ministério Público e a Defensoria Pública. Assim procedendo, o direcionamento da ação judicial contra os réus legítimos será mais seguro e a análise de tutelas de urgência pelo Poder Judiciário poderá ser mais ágil. Também os particulares podem requerer esse tipo de informação, de acordo com a Lei nº 12.527/2011. Todavia, exigir que eles a apresentem no processo seria um ônus demasiado diante da dificuldade que podem encontrar nos casos concretos.

A definição dos entes federativos competentes para o fornecimento e custeio da tecnologia em saúde, previamente à eventual determinação judicial de sua entrega, é fundamental para a qualificação da judicialização da saúde e para a mínima interferência jurisdicional na gestão do SUS. De fato, o que se tem observado na prática é que condenações solidárias resultam, via de regra, na assunção de responsabilidade do ônus não necessariamente pelo ente administrativamente competente, mas por aquele que atua com mais eficiência e boa vontade no processo. Isso sem contar a afronta expressa à tese do Tema 793/STF, segundo a qual “diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”.

A questão se torna bem mais complexa quando a ação ou serviço de saúde postulado judicialmente não consta na RENASES. Como não houve incorporação ao SUS, também não houve pactuação de responsabilidades pela CIT. Desta forma, não há, a rigor, um ente federativo ao qual foi atribuída competência para o seu custeio ou fornecimento. Para piorar, não existem no ordenamento jurídico sequer diretrizes gerais a serem observadas pelos gestores para a fixação das competências por ocasião da pactuação e que pudessem ser perquiridas judicialmente, ao contrário do que ocorre em relação aos medicamentos, cuja divisão de responsabilidades e enquadramento nos diversos componentes da assistência farmacêutica são norteados pelos artigos 50 a 53 do Anexo XXVIII da Portaria de Consolidação/MS 02/2017.

Haveria, em tese, três saídas dessa encruzilhada.

A primeira seria atribuir à União a responsabilidade pelo custeio e fornecimento da ação ou serviço de saúde não incluído na RENASES, já que cabe ao Ministério da Saúde elaborar e atualizar a lista, padronizando as tecnologias a serem oferecidas pelo SUS. Esta alternativa não parece a mais adequada, basicamente por duas razões:

a) via de regra, o custeio das ações e serviços das tecnologias incluídas na RENASES será repartido entre os entes federativos, respeitando-se (ao menos assim deveria ser) a capacidade financeira de cada um. Se, de um lado, estados e municípios não possuem condições de arcar com tratamentos, procedimentos e serviços em geral de alto custo, é preciso que eles ao menos participem do financiamento das ações realizadas nos respectivos territórios, que atendem à população local em relação às necessidades mais corriqueiras ou mesmo às mais complexas, mas dentro de suas possibilidades no cofinanciamento;

b) o Ministério da Saúde teria grandes dificuldades (ou mesmo impossibilidade) operacionais para disponibilizar judicialmente tratamentos de saúde que devam ser ministrados em estabelecimentos administrados ou contratados pelos estados e municípios. Basta considerar, a título de exemplo, pedidos de procedimentos cirúrgicos não constantes na RENASES que demandem leitos, internações ou consultas médicas cuja regulação não é feita normalmente pela União, com poucas exceções relacionadas aos hospitais federais. Na realidade, o cumprimento das ordens judiciais pelo gestor federal em tais hipóteses pode inclusive desorganizar a regulação feita pelos municípios, estados ou instituições de saúde por eles contratadas.

A segunda saída seria, na falta de pactuação das competências dos entes federativos pela CIT, atribuir responsabilidade solidária entre todos eles. Neste caso, corre-se o mesmo risco apontado na alternativa anterior ao se exigir o cumprimento da ordem judicial inclusive de ente que pode não ter ingerência nenhuma na ação ou serviço de saúde postulado. A situação é mais delicada sobretudo nos casos em que a prestação a ser cumprida não pode ser convertida em pagamento em pecúnia, como ocorre na liberação de consultas médicas e disponibilização de leitos hospitalares, por exemplo. Isso sem falar no risco de se sobrecarregar financeiramente os entes federativos menores com eventuais altos custos do tratamento a ser providenciado, incompatível com os respectivos orçamentos.

A terceira alternativa – que parece ser a mais adequada, apesar de também trazer algumas dificuldades – é definir a responsabilidade pelo cumprimento de ordens judiciais para prestação de ações ou serviços de saúde não incluídos na RENASES mediante uma interpretação analógica das tecnologias já incorporadas e com competências pactuadas. A proposta consiste, basicamente, em verificar como foram pactuados o custeio e o fornecimento da tecnologia mais próxima possível daquela que se pretende obter judicialmente, aplicando-se as mesmas regras em relação à tecnologia não padronizada.

Há duas principais vantagens na adoção desta solução.

A primeira é preservar, na medida do possível, as competências dos entes administrativos já previstas para casos semelhantes, evitando-se a imposição de obrigações de difícil ou impossível cumprimento e preservando ao máximo a capacidade financeira de arcar com o ônus da determinação judicial.

A segunda é facilitar o cumprimento da ordem judicial, já que ela será direcionada contra o ente já preparado para disponibilizar a ação ou serviço de saúde buscado, supondo-se que outros congêneres ou próximos já estão sendo oferecidos.

Um exemplo real ajudará a esclarecer o raciocínio.

Um indivíduo com suspeita de ter uma doença rara denominada Xantomatose Cerebrotendínea necessitava de um exame genético (teste genético para xantomatose cerebrotendínea com pesquisa de mutação no gene da enzima esterol 27-hidroxilase) para confirmar a existência da doença e com isso iniciar o tratamento adequado. Foi informado pela Regional de Saúde do estado onde reside que referido teste não está contemplado na tabela de procedimentos do SUS. No entanto, consta no item 4.1 da RENASES (Atenção Ambulatorial Especializada) o procedimento “Exames complementares do diagnóstico: exames de genética”, com a descrição “exames de análise cromossômica para diagnóstico de malformações congênitas e aconselhamento genético”.

Na hipótese de a realização do referido exame ser postulada judicialmente e o pedido ser acolhido, o Juízo poderia verificar junto aos gestores do SUS qual a forma de pactuação do procedimento constante na RENASES (Exames complementares do diagnóstico: exames de genética) e aplicá-la analogicamente ao caso concreto para definir o ente responsável pelo cumprimento da ordem judicial, já que a tecnologia buscada também é um exame genético, ainda que não padronizado.

Uma excelente ferramenta para a busca por procedimentos congêneres ao pretendido judicialmente e que estejam incorporados ao SUS é o SIGTAP (Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS), disponível para consulta na internet. O sistema, de manuseio intuitivo, traz informações muito importantes a respeito da modalidade de cada atendimento, financiamento, correlações com a RENASES, CID, CBO, além de outras. Como exemplo, veja o resultado para a consulta ao procedimento de mastectomia radical com linfadenectomia:

mastectomia consulta

Como já adiantado, entretanto, algumas dificuldades podem se apresentar nos casos concretos. É o que aconteceria, por exemplo, se o procedimento solicitado e não padronizado, apesar de ter natureza semelhante a um outro já incorporado ao SUS, tiver um custo acentuadamente maior, o que poderia levar a uma pactuação distinta na CIT no caso de incorporação. Outra hipótese seria a de uma complexidade elevada na própria identificação de procedimento padronizado semelhante. Pode-se citar, ainda, a simples inexistência de qualquer ação ou serviço de saúde oferecido pelo SUS e parecido com aquele que se busca judicialmente, impossibilitando a aplicação analógica da divisão de competências.

Em quaisquer dessas situações, a melhor solução a ser adotada é determinar que a ação ou serviço público de saúde objeto de demanda judicial seja viabilizada pelo ente federativo que possui ingerência sobre a instituição de saúde em que o tratamento deve ser realizado (via de regra, o município, quando o tratamento for feito em unidades básicas de saúde ou ambulatórios; e município ou estado, conforme a gestão local, quando for feito em hospitais ou clínicas especializadas), seja por via direta ou pela contratualização firmada com entidades privadas que prestam serviços ao SUS.

Além disso, é necessário que ao menos se enquadre a ação ou serviço de saúde objeto do processo em um dos componentes da RENASES (I – Ações e Serviços da Atenção Primária; II – Ações e Serviços da Urgência e Emergência; III – Ações e Serviços da Atenção Psicossocial; IV – Ações e Serviços de Atenção Especializada; e V – Ações e Serviços da Vigilância em Saúde) para então se determinar que o seu custeio seja suportado pelos entes federativos de acordo com as regras de financiamento previstas para cada um dos referidos componentes.

Acerca deste ponto, a Portaria de Consolidação/MS 06/2017 traz, de forma sistematizada, as normas sobre o financiamento e a transferência dos recursos federais para as ações e os serviços de saúde do SUS para cada uma das partes (componentes) da RENASES. Vejamos:

Componente da RENASES Regras de financiamento (Portaria de Consolidação/MS 06/2017)
I- Ações e Serviços da Atenção Primária Título II – Do custeio da Atenção Básica
II – Ações e Serviços da Urgência e Emergência Título VIII, Capítulo II – Do financiamento da Rede de Atenção às Urgências e Emergências
III – Ações e Serviços da Atenção Psicossocial Título VIII, Capítulo III – Do financiamento da Rede de Atenção Psicossocial
IV – Ações e Serviços de Atenção Especializada Título III – Do custeio da Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar
V – Ações e Serviços da Vigilância em Saúde Título IV – Do custeio da Vigilância em Saúde

As normas sobre o financiamento de cada um dos componentes da RENASES são complexas e envolvem questões técnicas que dificilmente serão assimiladas de forma segura pelos atores de uma ação judicial. Ainda assim, é importante que o Juízo, ao determinar a disponibilização de um tratamento não medicamentoso que não esteja padronizado no SUS e não possa ser equiparado a outro já oferecido pelo sistema público para a definição das responsabilidades pelo fornecimento e custeio, assegure ao menos que, após a prestação da ação ou serviço de saúde objeto do processo, o seu ônus financeiro seja suportado ou ressarcido de acordo com as regras da Portaria de Consolidação/MS 06/2017, conforme dispõe a tese do Tema 793/STF. Este acerto de contas pode ser feito diretamente entre os gestores dos entes federativos envolvidos, mas para isso é fundamental que a decisão judicial assegure o direito do ente federativo que a cumpriu de ser eventualmente ressarcido, caso o custeio (parcial ou integral) não lhe coubesse.

Por mais que a apuração e definição das responsabilidades dos entes federativos pela prestação de ações e serviços de saúde que não consistem na simples entrega de medicamentos seja trabalhosa, sobretudo no caso de procedimentos e terapias não padronizados, ela deve ser feita tanto pela determinação contida na tese do Tema 793/STF como para se preservar ao máximo o bom funcionamento administrativo e a higidez orçamentária do SUS, que já são inevitavelmente afetados pela simples judicialização da saúde.

De todo modo, há medidas que poderiam ser implementadas para facilitar a resolução de controvérsias que chegam ao Poder Judiciário, qualificando a judicialização da saúde e, consequentemente, mitigando os efeitos maléficos que ela causa ao SUS em termos de gestão. Dentre elas, podem ser citadas as seguintes:

a) maior transparência e acessibilidade às formas de pactuação das ações e serviços públicos de saúde pelos gestores do SUS na CIT, permitindo uma melhor compreensão ao público em geral;

b) maior objetividade no regramento aplicável à pactuação das competências dos entes federativos das ações e serviços públicos de saúde; e

c) aprimoramento da interlocução entre os órgãos do Poder Judiciário e os gestores do SUS, para que estes tenham conhecimento das demandas que costumeiramente são levadas à apreciação judicial e assim possam, eventualmente, definir as responsabilidades administrativas como forma de organizar o cumprimento das determinações judiciais ou mesmo padronizar os tratamentos mais demandados, de acordo com os critérios técnicos e orçamentários adequados.

Imagem do Post: Paul Hanaoka on Unsplash




Duelo de gigantes: CONITEC versus ANVISA e o uso off label no SUS

Batman e Superman

Os bons acabam bem e os maus acabam mal. É este o sentido da ficção. 

Oscar Wilde

Na ficção todos sabem quem são os vilões e os heróis, e cada qual recebe os castigos e recompensas devidas. Já na realidade os papéis e os desfechos não são tão definidos. A visão maniqueísta da realidade pode ser reconfortante ao traçar a clara linha entre o certo e o errado, mas a epígrafe do autor inglês é um alerta: na vida real os vilões, não raro, escapam e vivem felizes para sempre, e os heróis vão mais cedo para o cemitério.

Distinguir o certo e o errado é trabalho diário de juristas e filósofos morais, e às vezes surgem casos fascinantes em que não há uma solução clara extraída da lei ou da jurisprudência. Esses chamados “hard cases” fazem sucesso entre bons roteiristas de Hollywood e dão um frio na barriga tanto de juízes, que se debruçarão muitos dias sobre a sentença, como na de advogados, que labutarão também arduamente sem saber o que brotará da cabeça do julgador: quaisquer das posições são razoáveis, do réu e do autor, e é natural que pessoas racionais divirjam em certas questões morais.

O caso que se apresentará aqui, porém, não está aberto a dissenso, a matizes e semitons. Aqui há um lado certo e um errado. Um lado razoável e outro desarrazoado. Não é um “hard case”, estando muito mais para um “easy case”.

Pois bem. Dentre as  milhares de ações que são ajuizadas mensalmente pleiteando prestações de saúde em nosso país, uma pleiteava o medicamento micofenolato de mofetila para a doença lúpus eritematoso sistêmico.

Era o típico processo para não existir. Isto porque a CONITEC tem parecer pela incorporação no SUS do micofenolato de mofetila para essa doença desde 2017. Tudo corresse como devia, e 180 dias depois da decisão de incorporação os doentes de lúpus teriam uma política pública de fornecimento do medicamento, bastando ir à farmácia municipal e ter dispensado o medicamento salvador. A história porém tem um plot twist ingrato para pacientes e para o SUS: segundo o registro do mofetila na ANVISA, ele somente pode ser usado para evitar rejeição a órgãos transplantados, e o SUS – segundo sua lei orgânica, a Lei nº 8.080/90 – somente fornece medicamentos com usos aprovados pela ANVISA.

Por isso, a CONITEC – órgão que decide quais tecnologias serão fornecidas no SUS – fez pedido de autorização de uso fora de bula para a ANVISA, nos termos do art. 21 do Decreto nº 8.077/2013, porque demonstradas as evidências científicas sobre a eficácia, efetividade e a segurança do medicamento no tratamento do lúpus. Assim o art. 21 do Decreto nº 8.077/2013:

Art. 21. Mediante solicitação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS - Conitec, a Anvisa poderá emitir autorização de uso para fornecimento, pelo SUS, de medicamentos ou de produtos registrados nos casos em que a indicação de uso pretendida seja distinta daquela aprovada no registro, desde que demonstradas pela Conitec as evidências científicas sobre a eficácia, acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento ou do produto para o uso pretendido na solicitação.

Trata-se de regra bem pensada, que objetiva evitar lacunas na assistência farmacêutica do SUS. Ou, de outra forma, buscou-se nela assegurar a integralidade da assistência e a igualdade: quem fosse atendido por médico particular e pudesse adquirir o medicamento teria acesso ao tratamento off label; já a regra do decreto pretende não deixar desassistido o usuário do SUS na mesmíssima situação. Trata-se de mecanismo criado por quem conhecia bem o SUS e suas necessidades e que harmoniza à perfeição as competências institucionais da CONITEC e da ANVISA. A CONITEC, se decidir pelo uso off label de tecnologia no SUS, deve antes da incorporação requerer esse uso e se submeter à ANVISA, que tem a última palavra sobre registro de medicamentos no Brasil. Uma regra que propicia um diálogo harmônico entre dois órgãos fundamentais do SUS e que poderia concretizar relevantes políticas de assistência farmacológica.

Mas aí vieram os juristas.

A procuradoria da ANVISA entendeu que o tal art. 21 do Decreto nº 8.077/2013 teria uma aplicabilidade muito restrita: incidiria tão apenas em casos de uso experimental (uso em pesquisa). O argumento vai resumido: decreto só tem validade se tiver alguma base em lei, e, segundo a procuradoria da ANVISA, a única norma legal que autoriza uso fora das hipóteses de registro seria o art. 24 da Lei nº 6.360/1976:

Art. 24. Estão isentos de registro os medicamentos novos, destinados exclusivamente a uso experimental, sob controle médico, podendo, inclusive, ser importados mediante expressa autorização do Ministério da Saúde.

Em síntese, o corpo jurídico da ANVISA excluiu do referido decreto qualquer utilidade para fins de política pública de assistência farmacêutica. O que teria restado seria um uso incompatível com finalidade institucional da CONITEC, ela que não promove ensaios clínicos ou experimentos; antes, ela avalia a qualidade metodológica desses ensaios clínicos para decidir se certa tecnologia em saúde será incorporada ao SUS.

Mas há salvação. Há outra lei, anterior mesmo ao Decreto nº 8.077/13, que lhe dá base de validade e legalidade, e é justamente a Lei nº 12.401/11, que alterou a lei orgânica do SUS e criou a CONITEC. O fundamental é que ela distinguiu entre registro, de um lado, e autorização de uso, de outro, em seu art. 19-T:

Art. 19-T. São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS:
I - o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA;
II - a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa.

Ou seja, já em 2011 o legislador distinguiu dois institutos de competência da ANVISA, ambos requisitos para que o SUS adquirisse medicamentos: o registro, que é o caminho normal de introdução do medicamento no mercado, e a autorização de uso, que é o caminho excepcional. Com base nessa distinção legal, em 2013 a Presidência da República publicou o Decreto nº 8.077/2013 e, em seu art. 21, conferiu à CONITEC a competência de requerer à ANVISA a autorização de uso off label.

A interpretação da procuradoria da ANVISA, que somente conecta esse decreto à Lei nº 6.360/76 (uso experimental), torna inexistente ou sem efeito a expressão “uso não autorizado” do inc. I do art. 19-T, e aí incide em má hermenêutica, porque “verba cum effectu sunt accipienda“, ou seja, não se presumem palavras inúteis na lei. O que o decreto em análise fez, ao contrário do que defendeu a procuradoria da ANVISA, foi dar utilidade às palavras da Lei nº 12.401/11.

Mas essa censura da “verba cum effectu…”, como que feitiço, pode se voltar contra a nossa tese (e para os que não são do direito agora se acautelem: parece bizantinismo do que se tratará, mas não é recomendável deixar um flanco aberto em argumento jurídico). A própria procuradoria da ANVISA identificou um verbo a mais, que distingue os dois incisos citados do art. 19-T, e um verbo nada menos que fundamental na assistência farmacêutica: dispensar, o ato pelo qual o farmacêutico entrega a medicação mediante apresentação da receita médica. E concluiu então que, por isso, não se pode dispensar medicamentos sem registro na ANVISA.

Onde falharam os advogados da ANVISA? É que máximas de interpretação não são monolíticas e inescapáveis e exigem manejo cuidadoso, quase tailor made. Então pergunto: faz sentido o SUS pagar por medicamento de uso não autorizado pela ANVISA (inc. I do art. 19-t), porém depois não dispensá-lo? O SUS compra medicamentos para regulação de mercado, como uma CONAB compra arroz e feijão para estocar em armazéns? Ou para formar reservas monetárias como o BACEN compra dólares? Não. Se o SUS compra medicamentos, é para dispensá-los ao seu usuário, e não para o deleite pessoal do ministro ou de um secretário da saúde. Em síntese, a procuradoria da ANVISA caiu numa pegadinha do legislador, que, no inciso II, incorreu na má técnica legislativa que Scalia chamava de cinto e suspensórios (belt and suspenders approach)Scalia, Antonin; Garner, Bryan A.. Scalia and Garner’s Reading Law: The Interpretation of Legal Texts (p. 150). Thomson West. Edição do Kindle.. Então, excepcionalmente, há sim palavras inúteis na lei, mas identificar essas redundâncias pede aquela interpretação inteligente sugerida por Carlos Maximiliano.

Mas indo além do aparente bizantinismo da interpretação textual – e é o labor do jurista lidar com normas escritas que exigem compreensão e interpretação – trago agora um tanto de pragmatismo.

Hoje há mais de vinte terapias com eficácia e segurança atestadas pelo corpo técnico qualificado da CONITEC e que poderiam representar significativo ganho em saúde populacional, seja diretamente, porque não há alternativa terapêutica, seja indiretamente, por meio de economia de recursos escassos do SUSEstes os medicamentos e seus respectivos usos off label que a CONITEC espera aprovação da ANVISA: – risperidona: transtorno do espectro do autismo; – micofenolato de mofetila: lúpus eritematoso sistêmico; – everolimo: imunossupressão no transplante pulmonar; – tacrolimo: imunossupressão no transplante pulmonar; – sirolimo: imunossupressão no transplante pulmonar; – micofenolato de mofetila: imunossupressão no transplante pulmonar; – micofenolato de sódio: imunossupressão no transplante pulmonar; – tacrolimo: imunossupressão no transplante cardíaco; – sirolimo: imunossupressão no transplante cardíaco; – everolimo: imunossupressão no transplante de pâncreas; – tacrolimo: imunossupressão no transplante de pâncreas; – sirolimo: imunossupressão no transplante de pâncreas; – micofenolato de mofetila: imunossupressão no transplante de pâncreas; – micofenolato de sódio: imunossupressão no transplante de pâncreas; – everolimo: imunossupressão no transplante de medula óssea; – tacrolimo: imunossupressão no transplante de medula óssea; – sirolimo: imunossupressão no transplante de medula óssea; – micofenolato de mofetila: imunossupressão no transplante de medula óssea; – micofenolato de sódio: imunossupressão no transplante de medula óssea;  – micofenolato de mofetila: nefrite lúpica; – bevacizumabe: edema macular diabético; e – danazol: síndrome de Evans..

E não adianta aguardar o laboratório, porque não virá dele o pedido de registro para um novo uso, à míngua de suficientes incentivos econômicos ou, em casos limites, em virtude inclusive de acertos entre fabricantes, a fim de que um não peça registro de novo uso que concorra com o produto do outro laboratório. Aliás as únicas duas RDCs da ANVISA de que se tem notícia e que autorizaram usos off label, a RDC nº 53 de 2009 e a RDC nº 111 de 2016, coincidiram com hipóteses em que teria havido acordos entre laboratórios para reserva de mercado. Esta última RDC inclusive tem por pano de fundo um caso rumoroso que já gerou multas milionárias a laboratórios na Itália (182,5 milhões de euros) e na França (444 milhões de euros).

A RDC 111 de 2016 aliás merece um parágrafo só dela. É que naquela época a procuradoria da ANVISA já levantara suas objeções ao uso off label no SUS. Sua aprovação se deve muito provavelmente a uma feliz sincronia, porque à época era presidente da ANVISA o médico Jarbas Barbosa da Silva Júnior, sanitarista profundo conhecedor do SUS e alguém que por certo sabia da importância do uso off label de medicamentos como política pública (atualmente o médico ocupa a vice-direção da Organização Panamericana da Saúde em Washington). Sua aprovação, mesmo em face de parecer jurídico contrário, é em boa parte atribuível à coragem cívica e lucidez de seu então diretor-presidente.

Retomando. Até hoje, vinte tecnologias de saúde poderiam ter sido incorporadas ao SUS para uso off label a partir de pareceres da CONITEC, mas se enfrenta o desastroso entendimento da procuradoria da ANVISA. Entendimento este que, pelo menos desde as alterações à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) de 2018 já deveria ter sido revisto, porque ali o legislador comandou não apenas ao juiz, mas também ao administrador (aí incluído o parecerista), contemplar as consequências práticas da decisão:

Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Porque enquanto a procuradoria da ANVISA não revisar seu parecer: 1) laboratórios em alguns casos continuarão a fazer entre si acordos ruinosos para o SUS;  2) o SUS despenderá fábulas de dinheiro em tecnologias quando há outras off label mais custo-efetivas; 3) usuários do SUS ficarão ao desamparo, distantes de medicamentos cuja eficácia e segurança foram já atestadas pela CONITEC; 4) caso se insurjam contra esse desamparo e vão – com razão! – a  juízo,  aumentarão as estatísticas da judicialização da saúde, com processos que também custam uma fortuna em horas-juiz, horas-defensor-público, horas-servidor, horas-procurador… Processos, repito, que não deveriam sequer existir, não fosse aquele infeliz parecer jurídico.

Importante que se diga que a ANVISA tem preservada sua competência de glosar o ato da CONITEC e entender que o uso off label é inseguro ou ineficaz. É a ANVISA quem terá a última palavra após instrução e encerramento do procedimento de autorização de uso. E também é atribuição da ANVISA debruçar-se sobre as delicadas repercussões regulatórias da autorização de uso off label como política pública, por meio de análise de impacto regulatório.

Tampouco colabora para a superação do imbróglio o entendimento da Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde, que discorda daquele da ANVISA, porém reluta em submeter a controvérsia à AGU a fim de que se dirima a disputa, ao argumento de que, caso a AGU acolha o parecer jurídico da ANVISA, haveria “prejuízo à saúde pública brasileira”. Ora, o prejuízo ao SUS já existe, e as mais de vinte indicações off label elencadas pela CONITEC estão à espera de uma solução jurídica que não vem, seja por conta da procuradoria da ANVISA, seja por conta da postura do consultor jurídico do MS. Ou seja, pior do que está não fica! Acionar-se a AGU para dirimir a disputa entre MS e ANVISA, na pior das hipóteses, manteria as indicações off label da CONITEC sem eficácia, como sem eficácia já são hoje.

No melhor cenário, a AGU já teria imposto à procuradoria da ANVISA entendimento pela legalidade ampla do art. 21 do Decreto nº  8.077/13, e toda esta postagem sequer teria existido. Saliente-se que das duas RDCs da ANVISA que autorizaram uso off label (RDC 53/09 e RDC 111/16) uma perdeu a utilidade, porque o Tenofovir para hepatite é hoje on label, e a outra, do Avastin para DMRI, caducou por transcurso de prazo, não tendo sido renovada. E pediatras e farmacêuticos do SUS continuarão a receitar e dispensar medicamentos off label para curar as criancinhas, não importa o que digam o consultor jurídico da ANVISA, o juiz ou o bispo, porque é o que sempre se fez.

Se me permitem, aqui vai uma sugestão final aos juízes aos quais se distribuam pleitos de medicamentos off label aprovados pela CONITEC. Defiram sem tardar a liminar para o início do tratamento, mas, ao mesmo tempo, determinem que seja requerida a citação da ANVISA para que ela venha aos autos em litisconsórcio, porque é ela que está em mora, e não município, estado ou União. O autor terá seu pleito atendido imediatamente pelos demais réus e não será prejudicado pela lide paralela. Como a ANVISA será também ré, poderá o juiz ordenar-lhe, com os argumentos aqui desenvolvidos, que expeça autorização de uso off label nos termos requeridos pela CONITEC. Trata-se de uma solução inabitual esta de se resolver coletivamente um pleito individual, mas que já foi acolhida em precedente do TRF4 relatado pelo Desembargador Fernando Quadros da Silva (AC 5002552-84.2013.404.7100/RS):

ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE TRATAMENTO MÉDICO. EXISTÊNCIA DE POLÍTICA PÚBLICA. INSTITUÍDA. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. MULTA.
1. A existência de política pública para implante de estimulador cerebral profundo impede sua realização na rede privada, nos termos em que pleiteados pela parte autora.
2. No entanto, quando entraves burocráticos impedem a concretização de serviços de saúde instituídos, cabíveis, sim, medidas que conduzam à efetividade do tratamento buscado, tais como os definidos na sentença objurgada, que determinou seja ultimado o convênio firmado entre a secretaria de saúde do Estado do Rio Grande do Sul e o Hospital de Clínicas de Porto Alegre. (...)

Aliás, o próprio STJ, no tema 106, insinuou a necessidade de coletivização das demandas de saúde ao exigir que o juiz oficie à CONITEC, informando o deferimento judicial de tecnologia não padronizada no SUS para que ela desencadeie processo de análise para fins de incorporação. E por fim, o Código de Processo Civil parece confortar essa sugestão em seu art. 139, porque ali autoriza o juiz a “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial”.

Ordenar-se a ANVISA a instruir e despachar o pedido de autorização off label de uso, numa só decisão do juiz, satisfaz o pedido da parte no processo, e ao mesmo tempo resolve coletivamente um importante vácuo de assistência no SUS.

Se vingar essa sugestão e os juízes federais corrigirem o procedimento da ANVISA nos processos individuais de medicamentos, teremos um final feliz: o SUS economizará fortunas e atenderá melhor seus usuários, e alguns milhares de processos judiciais se extinguirão como que por encanto.

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