A ciência demonstrou que os neurônios não se regeneram?
Cada parte da língua é responsável por identificar um sabor?
O cérebro humano usa apenas 10% de sua capacidade?
Açúcar deixa as crianças hiperativas?
A muralha da China pode ser vista do espaço?
O golfinho é o animal mais inteligente depois do ser humano?
Temos a tendência de acreditar que uma afirmação é verdadeira quando somos expostos repetidamente àquela afirmação. Trata-se de um artifício mental conhecido como efeito da “ilusão da verdade”.
Olhando para as perguntas que ilustram o início do texto, muitos de nós responderíamos sim para grande parte delas. Acreditamos que nosso cérebro usa apenas 10% de sua capacidade total, que açúcar faz com que as crianças fiquem hiperativas, que é possível ver a muralha da China do espaço, que se “matarmos” nossos neurônios “matou bem morto”, que a língua está dividida em quadrantes responsáveis cada um por um sabor ou que os golfinhos são os animais mais inteligentes, depois dos humanos. Acreditamos nisso porque ouvimos essas informações reiteradamente.
No entanto, não há prova da utilização máxima de nossa capacidade cerebral, a muralha da China, por mais monumental que seja, não teria, ao que tudo indica, dimensão suficiente para que pudesse ser vista do espaço – o que foi visto na descrição de um astronauta foi o grande Canal da China -, açúcar pode gerar obesidade, resistência à insulina e hipertensão, mas não há evidência que cause hiperatividade, desde a década de 90 há provas da neurogênese, demonstrando a capacidade de regeneração de células cerebrais, os receptores de sabor estão distribuídos por toda a língua1ver Revista Galileu, golfinhos são fofos, mas segundo testes de inteligência cães, orangotangos, ratos e pombos estão na frente deles.
Acreditamos na informação que é repetida múltiplas vezes.
Como nós não temos condições de submeter todas as informações que recebemos a uma busca profunda da verdade, para facilitar nossa vida, nosso cérebro organiza as informações com base no que já aprendemos.
Para demonstrar esse mecanismo são feitos experimentos nos quais voluntários devem avaliar a verdade de uma lista de afirmações, umas verdadeiras, outras não. O teste é repetido, sendo mantidas parte das afirmações do primeiro teste no segundo, acompanhadas de afirmações novas. Os resultados mostram que as pessoas tendem a avaliar como sendo verdade as afirmações que já ouviram no teste anterior, mesmo que sejam falsas, porque soam mais familiares.
Muitas vezes, a ilusão da verdade pode nos levar por caminhos perigosos.
Trazendo a questão para a área da saúde, isso se deu, por exemplo, com a afirmação reiterada de que vacina causava autismo, aceita por muitos como uma verdade sem que se buscasse a fundo a razão e confirmação da afirmação.
A ilusão da verdade mostra como é importante buscar fontes confiáveis, checar informações e ter uma mente aberta para a contraposição.
Por mais força que tenha, a ilusão não sobrevive à busca de evidência e à análise dos fatos.
Muitas vezes a ilusão da verdade é posterior, pois assim só se tornou diante do avanço da ciência, como nos exemplos da língua e dos neurônios. Não se poderia falar propriamente em ilusão quando a evidência disponível à época levava àquela verdade.
A ilusão da verdade pode ser resultado de uma análise açodada ou gerada por algum viés, lembrando que temos a tendência de valorizar apenas as evidências que confirmam nossas hipóteses.
Por isso, temos que estar abertos para sempre reanalisar as afirmações que temos por verdadeiras, mas que não submetemos ao teste da “ilusão da verdade”.
Trazendo o tema para o direito à saúde, em especial a judicialização do direito à saúde, penso que alguns conceitos merecem uma análise mais atenta para afastar a convicção que está embasada na reiteração de afirmações que em verdade não encontram fundamento na origem do conceito.
Trago como exemplo o conceito da integralidade, amplamente utilizado nas ações que discutem o direito à saúde e que tem origem Constitucional.
Vemos reiteradamente a diretriz da integralidade, apresentada na Constituição no artigo 198, sendo apresentada como fundamento em ações judiciais para o deferimento de pedidos que impõem ao Sistema Único de Saúde o fornecimento de medicamentos ou de tratamentos que não estão contemplados na política pública e, muitas vezes, sequer estão amparados por evidências científicas no que se refere à sua eficácia, efetividade, acurácia ou superioridade terapêutica.
Constantemente somos expostos à informação que atendimento integral corresponde a atendimento ilimitado, dever de fornecer todo o tratamento existente, sem qualquer limitação.
Estamos há anos ouvindo que integralidade é dar tudo a todos, que o direito à saúde é ilimitado, pois é isso que dita o texto constitucional.
“A saúde e direito de todos”, “a Constituição determina que o atendimento seja integral, ou seja, todo e qualquer tratamento cabível para aquela situação clínica deve ser fornecido”…
De tanto lermos a afirmação, passou a ser verdade.
No entanto, não o é.
Sem entrar em qualquer discussão sobre finitude dos recursos, medicina baseada em evidência, relação de custo efetividade, reserva do possível, sustentabilidade do sistema, mas somente fazendo uma análise do texto constitucional e da gênese da constituição, me parece que o conceito que nos vem sendo apresentado é uma “ilusão da verdade” que não sobrevive a uma análise mais atenta ao texto constitucional do qual se origina.
Vejamos.
De plano, o artigo 196 da Constituição estabelece que a saúde é direito de todos e dever do Estado “garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”
Em seguida, o artigo 197 dispõe que “são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle (…)”.
Ou seja, o direito à saúde é garantido de acordo com as políticas públicas que forem estabelecidas para tanto, o que já é um limitador. Ao garantir o acesso universal para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a Constituição deixa claro que isso ocorrerá mediante políticas sociais e econômicas (art. 196), considerando-se como de relevância pública aquilo que estiver regulado por lei (art. 197).
A Lei nº 8.080/90, por sua vez, dispõe que a integralidade de assistência é constituída por um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema (art. 7º, II) e estabelece que a assistência terapêutica integral consistirá na “I – dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para a doença ou o agravo à saúde a ser tratado ou, na falta do protocolo, em conformidade com o disposto no art. 19-P” (art. 19-M).
Mais uma vez, resta claro que a integralidade se dá dentro das políticas públicas instituídas, observando os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas.
Voltando ao texto constitucional.
A diretriz da integralidade vem disposta no artigo 198, nos seguintes termos:
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: (...) II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
A diretriz constitucional de atendimento integral significa que todo e qualquer tratamento deve ser oferecido pelo SUS?
A resposta não permite algo além de sim ou não.
Se nem todos os tratamentos devem ser oferecidos a resposta é não.
Dentro do SUS, o atendimento integral eleito como diretriz do sistema guarda relação com atenção plena à pessoa.
O conceito foi trazido da chamada medicina integral, movimento surgido nos Estados Unidos para contrapor a crescente fragmentação ou especialização do atendimento médico, buscando que o paciente fosse visto como um todo, valorizando a saúde e a doença, permitindo o atendimento em todos os níveis, físico, mental e social e que a atenção se desse não somente na fase preventiva, mas também curativa.
Na 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, onde se começou a dar forma ao SUS, estabelecendo a saúde como dever do Estado, foram lançadas as diretrizes desse sistema único, dentre as quais a “integralização das ações, superando a dicotomia preventivo-curativo” (Relatório Final da 8ª Conferência Nacional de Saúde):
Mas a interpretação que se dá em muitos casos para a integralidade é que há um direito amplo e irrestrito a tudo.
Analisando mais a fundo a gênese Constitucional, a compreensão da expressão “atendimento integral” fica mais clara.
O artigo 196 foi sendo transformando durante a constituição da seguinte forma:
A integralidade foi citada pela primeira vez no texto Substitutivo 2, de 18/09/1987, no então artigo 226, que se transformaria na redação final no atual artigo 198, da Constituição:
Analisemos as diversas fases do processo constitucional, as alterações e as discussões sobre o tema.
Na fase A até a Fase E, nas subcomissões temáticas (FASE A – Anteprojeto do relator, FASE B – Emenda ao anteprojeto do relator, FASE C – Anteprojeto da subcomissão, FASE E – Emendas ao anteprojeto da subcomissão) a proposta de redação era a seguinte:
Art. 2º. As ações e serviços de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um Sistema Único, organizado de acordo com os seguintes princípios: I - comando administrativo único em cada nível de governo; II - integralidade e continuidade na prestação das ações de saúde; III- gestão descentralizada, promovendo e assegurando a autonomia dos Estados e Municípios; IV - participação da população através de entidades representativas na formulação das políticas e controle das ações nos níveis federal, estadual e municipal, em conselhos de saúde.(...)
Entre as Fases F e H nas Comissões temáticas, a redação alterou, no que se refere a integralidade para:
Art. 52 (...) II - atendimento integral e completo nas ações de saúde;
Nas fases I até P, na Comissão de Sistematização, a redação se alterou ao final para a redação inicial que vemos no quadro acima, com o primeiro substitutivo:
Art. 226. (...) II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas.
Nas fases posteriores, em plenário, chegou-se à redação atual, passando a numeração do artigo para 198.
A alteração da redação de “atendimento integral e completo nas ações de saúde” para “atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais”, já deixa clara a intenção de limitação, com a retirada do atendimento “completo”, mantendo apenas o “integral”.
Ainda, foi destacado que as atividades preventivas estão dentro do conceito de “atendimento integral”, pois foram ressaltadas nesse como prioritárias, o que se coaduna com o conceito acima de integralidade, proposto pelo movimento da medicina integral e na 8ª Conferência Nacional de Saúde que antecedeu a constituinte.
Analisando as audiências públicas, reuniões e emendas apresentadas, que precederam a redação final do texto, fica claro que a expressão “atendimento integral” buscava o atendimento à saúde como um todo, sem deixar de lado todos os aspectos que envolvem o conceito de saúde.
O que o pretendia o constituinte era que a saúde fosse vista em sua integralidade, diferente do que acontecia anteriormente, de modo que o indivíduo fosse cuidado em seu aspecto físico, mental e social e que todas as áreas fossem objeto de atenção.
Vejamos alguns exemplos.
A emenda 7B0051-0 para que fosse garantida a assistência multiprofissional2Documentos avulsos vol 193-3 p, 68:
A emenda 7B0052-8 que tem como origem proposta do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional relacionando a integralidade ao acesso aos tratamentos terapêuticos3 Documentos avulsos vol 193-3 p, 69:
A emenda 7B0158-3 é mais um exemplo que o que se buscava era o atendimento da saúde em todos os seus aspectos, físico, mental e social4Documentos avulsos vol 193-2 p, 12:
A emenda 26220, apresentada na fase O, que tinha como proposta, dentre outras, adicionar um parágrafo com a seguinte redação5Quadro Histórico art. 198, p. 68:
"Art. 261. A saúde § 1o. - A mulher terá assistência integral e gratuita, nas diferentes fases de sua vida”
A justificativa para a emenda era a seguinte: O atendimento à mulher pelo sistema de saúde tem-se limitado, quase que exclusivamente, ao período gravídico puerperal e, mesmo assim, de forma deficiente. Ao lado de exemplos amplamente conhecidos, como a assistência preventiva e de diagnostico precoce de doenças ginecológicas, outros aspectos como prevenção, detecção e terapêutica de doenças de transmissão sexual, repercussões biopsicossociais de gravidez não desejada, abortamento e acesso a métodos e técnicas de controle de fertilidade, têm sido relegados a plano secundário. Esse quadro assume importância ainda maior ao se considerar a crescente presença da mulher na força de trabalho, além de seu papel fundamental do núcleo familiar.
A proposta foi rejeitada pois “como o direito à saúde é de todos e o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde está garantido no texto do substitutivo, o relator não considera adequado destacar um grupo da população em detrimento de outros também importantes, como as crianças, por exemplo.”
Assim, a contrário senso, a análise da proposta de emenda deixa claro que o atendimento integral teria como definição o atendimento em todas as fases, não limitado somente a algumas situações.
Ou ainda a emenda 09902, apresentada na fase M, que pretendia o acréscimo do inciso V, com a seguinte redação “Os serviços de saúde prestados e os medicamentos essenciais fornecidos pelos órgãos e unidades integrados ao Sistema Nacional de Saúde são universais e gratuitos”, para que se fixasse o caráter de gratuidade dos serviços de saúde, que foi rejeitada sobre o fundamento que a gratuidade estava implícita. Tratar dos medicamentos essenciais é mais uma demonstração do intuito que movia os constituintes à época, reforçando que não havia a intenção de se fornecer todo e qualquer tratamento sem qualquer limitação6Quadro Histórico Art. 198, p. 40.
Mas o conceito de integralidade fica ainda mais claro quando se analisa as reuniões que precederam a redação do texto constitucional.
Vejamos alguns trechos das reuniões da Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente, sem destaques no original7Diário da Assembleia Nacional Constituinte, p. 98:
A SRA REGINA SENNA – (...)Temos algumas questões a levantar em relação a essa questão de assistência de saúde, nos seguintes termos: A assistência de saúde, hoje, tem sido apontada e até mesmo executada como uma assistência médica, à população, e não como uma assistência de saúde. Consideramos importante levantar esse aspecto, na medida em que a assistência à saúde, na visão mais global, mais integral, ao indivíduo, deve ser prestada por uma equipe multiprofissional, onde o conjunto dessa assistência determine uma política de saúde muito clara. E essa politica para nós significa uma assistência de saúde como direito de todos os cidadãos no território nacional, e é dever do Estado subsidiar essa assistência. (10ª Reunião – 28/04/1987) O SR. MOYSÉS GOLDBAUM – (...)Tradicionalmente, área de saúde coletiva vinha se voltando para aquilo que chamávamos ou se denominava área de saúde pública, que compreendia ações supletivas do Estado no atendimento às medidas que procurassem conter ou controlar os problemas de saúde que afetavam a grande massa da população brasileira, estando fora deste âmbito a questão da assistência à saúde. Quer dizer que poríamos, então, de um lado a área de saúde pública, e do outro a área da atenção médica propriamente dita, ou assistência a doentes, se assim pudermos colocar. No processo todo de modernização da sociedade, na medida em que a sociedade progride, se reorganiza, evidentemente, que se podem ver no decorrer da História as novas concepções de saúde vão surgindo e vão sendo concebidas novas formas de se entendê-Ias, e paralelamente com isso, corre a questão de uma reorganização, de uma reorientação dos serviços de saúde levando, então, a que os distintos fatores do setor venham desempenhar novos papéis no atendimento à questão de saúde da população. Esse processo que não é próprio somente da sociedade brasileira, ocorre em todos os países do mundo, observarmos os programas de medicina preventiva que nascem basicamente nos Estados Unidos; se nos debruçarmos sobre a sociedade americana, veremos o nascimento das diversas correntes que procuram atender às novas questões de saúde que surgem nesse País, como os programas de medicina preventiva, os programas de medicina familiar, os programas de medicina integral, os programas de medicina comunitária, que são também incorporados aqui na sociedade brasileira. (...) Lembraria aqui a participação intensa que tivemos na 8ª Conferência Nacional de Saúde e a realização do 10 Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, que nos permitiu referendar os postulados de eqüidade, de integralidade e de universalidade que são do sistema de saúde, e que estão expostos na 8ª Conferência Nacional de Saúde e referendado pelo Congresso brasileiro. Movimentos estes, então, nos têm permitido a elaboração de uma proposta, a qual foi elaborada pela Comissão de Política, e que eu pediria ao Dr. Eleutério Neto, que foi um dos elementos destacados na elaboração desta proposta, que apresentasse então a nossa proposta para a Constituinte. O SR.ELEUTÉRIO R. NETO- (....) Em 1º lugar, é a questão do conceito de saúde e na 8ª Conferência já se colocou isto de uma maneira bastante clara. Não podemos mais nos ater ao conceito de saúde como um conceito de assistência médica e não só como um conceito que engloba os aspectos preventivos, simplesmente. Entendemos que saúde é o resultante de fato de um conjunto de relações que se dão no interior da sociedade e que, portanto, a saúde está determinada por todas as condições de vida que cada um dos indivíduos e o conjunto da população obtêm num determinado momento histórico. Neste sentido é importante que se considere de fato como saúde ou como ações para a promoção, proteção e recuperação da saúde todas aquelas que incidem sobre a qualidade de vida do conjunto dos habitantes do território nacional. Isto é, a questão da habitação, a questão do saneamento, a questão do transporte, a questão da educação, a questão da alimentação e do abastecimento e, evidentemente, todas as outras ações específicas que tradicionalmente são consideradas como ações propriamente ditas do setor de saúde, que são as ações de promoção, de proteção e de recuperação da saúde, no interior do sistema de saúde propriamente dito. (...) entendemos que o Estado tem uma função fundamental e essencial para prover, para assegurar o cumprimento desse direito. E ele tem o dever, portanto, de assegurar que todos tenham acesso igualitário e universal a todas as ações, que de uma forma ou de outra incidem sobre as condições prévias, para as pessoas adoecerem ou não, e em relação à própria recuperação da saúde (...) porque o Estado, de fato, tem o direito de assegurar, de prover, de executar, inclusive, todas as ações que dizem respeito à promoção, à proteção e à recuperação da saúde para o conjunto dos habitantes do território nacional. (...) A segunda diretriz fundamental, para o sistema único de saúde, é a diretriz da integralidade; isto é, o cuidado, a atenção ao paciente, à população, ao conjunto de seus indivíduos que constituem uma coletividade que deve ser de uma forma contínua, deve ser de uma forma integrada, zelando pela dignidade do atendimento, e não vendo o indivíduo em termos do seu pé, da sua cabeça, do seu abdômen, nas ações que são feitas por uma instituição na prevenção, por outras instituições na área de curativo. Não. Isso tem que ser contínuo, tem que ser um sistema que seja integrado, que seja único. A terceira diretriz para nós é a questão da descentralização (...)Uma quarta diretriz, que me parece a mais fundamental de todas, que acho que é uma diretriz que deve estar presente na Constituição, não é uma questão particular da saúde, mas na saúde ela se coloca de uma forma crítica, é a questão da participação (...) (11ª Reunião - 29/04/1987) (...) há necessidade de levar à frente a integralidade das ações de saúde, separando não mais a preservação da restauração da saúde, recompondo a unidade desse processo e chegando, assim, ao nível das comunidades, ao nível da prestação dos serviços, outro modelo de saúde diferente do que prevalece no Brasil, onde os centros e os postos de saúde cuidam da prevenção e os ambulatórios da previdência social, nos consultórios médicos privados, e os hospitais cuidam da restauração da saúde. Essa separação, os exemplos são abundantíssimos, tem sido altamente lesiva à saúde do brasileiro e não pode permanecer. E, daí a proposta de que se crie nas redes de unidades básicas de saúde um tipo de unidade onde a preservação e a restauração se reúnam, onde elementos que atualmente figuram nos centros e postos de saúde se associem, na mesma oportunidade de acesso da população, aos que cuidam da restauração da saúde (...) (12ª Reunião em 30/04/1987).
Assim, me parece claro que a análise da gênese constitucional demonstra que a afirmação que a constituição garante a integralidade do direito à saúde, vista como a obrigação de dar tudo que é possível no mundo dos fatos, não é uma verdade.
Não há em nenhum momento demonstração no sentido que era isso que buscava o constituinte.
Então, fica a pergunta:, ainda que se entenda que é possível obrigar o Estado a oferecer serviços e prestações que não estão instituídos em políticas públicas, será que se pode entender que integralidade é acesso irrestrito a tudo, inclusive àquelas opções de tratamento que não importam em maior efetividade, mas somente comodidade, dar a todos o tratamento de ponta e a melhor tecnologia, ou será que a integralidade, não aquela desejada num mundo ideal, mas aquela que se extrai do texto constitucional, é dar a todos os pacientes uma resposta satisfatória em todos os níveis de atenção?
Por fim, todo o contexto constitucional demonstra que na apreciação do que é acesso integral à saúde não se pode desvincular os conceitos de eficácia, custo-efetividade, nem ignorar que o sistema público de saúde tem por finalidade atender a coletividade e não somente interesses individuais, mas isso fica para um outro texto.
Quando olhávamos para a integralidade, achávamos que estávamos vendo uma muralha da China, uma obra grandiosa, com grandes pretensões e acessível a poucos, mas isso não correspondia à realidade, pois ela não podia ser vista. Na verdade estávamos vendo algo mais simples, menos grandioso mas talvez mais essencial, um canal, levando a todos – e não somente a alguns – um bem indispensável, a água.