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Mulher e saúde mental

Ana Carolina Morozowski e Raffael Massuda

Juíza da 3ª Vara Federal de Curitiba e Médico psiquiatra, professor do Departamento de Medicina Forense e Psiquiatria da Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Judicialização de medicamentos psiquiátricos no Brasil: a realidade nos estados do Paraná e Santa Catarina.

1. Introdução:

Saúde mental é parte integrante do conceito de saúde e é considerada um direito básico para toda a população1 Mental health and human rights. Report of the United Nations High Commissioner for Human Rights. Um transtorno mental é caracterizado por perturbações na cognição e na regulação das emoções ou nos comportamentos, além de ser associado ao sofrimento e a incapacidades com impacto social, profissional e individual2Galderisi S, Heinz A, Kastrup M, Beezhold J, Sartorius N. Toward a new definition of mental health. World Psychiatry. 2015 Jun;14(2):231–3. Geralmente, os transtornos mentais são doenças crônicas e atingem cerca de 15% da população mundial. No Brasil, estima-se que mais de 45 milhões de pessoas tenham diagnóstico de algum transtorno mental3Global Burden of Disease Collaborative Network. Global Burden of Disease Study 2019 (GBD 2019).. Além do sofrimento individual, esses transtornos geram impactos econômicos e sociais importantes, como maior afastamento de trabalho, mortalidade precoce e menores ganhos financeiros4Arias D, Saxena S, Verguet S. Quantifying the global burden of mental disorders and their economic value. eClinicalMedicine. 2022 Dec;54:101675.

Figura 1. Número absoluto de pessoas com transtorno mental no Brasil. ( Gráfico criado com Datawrapper)

Os transtornos mentais podem ser classificados e agrupados de acordo com a apresentação básica de sintomas5American Psychiatric Association, American Psychiatric Association, editors. Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-5. 5th ed. Washington, D.C: American Psychiatric Association; 2013. 947 p., por exemplo:

i) os transtornos ansiosos, que incluem o transtorno de pânico, o transtorno de ansiedade generalizada, fobias, entre outros;

ii) os transtornos de humor, nos quais se enquadram o transtorno depressivo maior e o transtorno bipolar;

iii) os transtornos psicóticos, em que a esquizofrenia é o principal diagnóstico; e

iv) os transtornos de uso de substâncias, quando há o uso problemático de drogas lícitas e ilícitas.

No Brasil, assim como em diversos outros países, os transtornos mentais com maior prevalência são os transtornos ansiosos, seguidos pelos transtornos de uso de substâncias e depressão6Global Burden of Disease Collaborative Network. Global Burden of Disease Study 2019 (GBD 2019).. O tratamento geralmente é feito por equipe multiprofissional, e diversas terapias são necessárias, inclusive a utilização de medicação.

Figura 2. Porcentagem de pessoas com transtornos mentais no Brasil. ( Gráfico criado com Datawrapper)

No Brasil, a assistência à saúde da população é oferecida de acordo com um modelo misto. Os serviços de saúde são prestados tanto pelo sistema público de saúde, conhecido como Sistema Único de Saúde (SUS), como pelo sistema de saúde privado (suplementar). Cerca de 75% da população brasileira depende do SUS como forma de acesso assistencial à saúde. A gestão do SUS é tripartite, o que significa dizer que a sua organização e suas obrigações são estabelecidas e divididas entre municípios, estados e Distrito Federal e a União. Dentre outras responsabilidades, cabe precipuamente ao governo federal elaborar diretrizes terapêuticas e orientações de diagnóstico e decidir as opções farmacológicas para as mais diversas doenças, incluindo os transtornos mentais7Castro MC, Massuda A, Almeida G, Menezes-Filho NA, Andrade MV, de Souza Noronha KVM, et al. Brazil’s unified health system: the first 30 years and prospects for the future. Lancet. 2019 Jul 27;394(10195):345–56 8Souza Júnior PRBD, Szwarcwald CL, Damacena GN, Stopa SR, Vieira MLFP, Almeida WDSD, et al. Cobertura de plano de saúde no Brasil: análise dos dados da Pesquisa Nacional de Saúde 2013 e 2019. Ciênc saúde coletiva. 2021 Jun;26(suppl 1):2529–41.

De acordo com o art. 19-Q, da Lei nº  12.401/2011, que alterou a Lei nº 8.080/90, o Ministério da Saúde do Brasil define os medicamentos que devem ser disponibilizados aos usuários do SUS. Após a decisão de incorporação ao sistema, eles passam a integrar a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), uma lista que traz todas as substâncias que devem ser dispensadas gratuitamente no SUS. Essa lista contempla medicamentos de uso na rede básica (unidades de saúde e médicos de família) e na rede especializada em saúde (centros de especialidades e médicos especialistas). Quando se trata de medicamento utilizado na atenção especializada à saúde, o seu uso é regido pelos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDTs) do Ministério da Saúde do Brasil.

Em uma revisão recente, mostramos que existem hoje no SUS os PCDTs dos seguintes transtornos mentais: esquizofrenia, transtorno esquizoafetivo, transtorno bipolar, transtorno do espectro autista, tabagismo, deficiência intelectual e doença de Alzheimer. Posteriormente ao estudo, houve a publicação do PCDT para transtorno de déficit de atenção com hiperatividade. Não obstante, não existem protocolos especializados nacionais para tratamento das condições mais prevalentes, como os transtornos ansiosos, depressão e transtornos de uso de substâncias. 

Na ausência de medicamentos e de orientações oficiais sobre como tratar essas doenças, os estados e municípios podem definir se realizam uma ampliação da assistência farmacológica com a inclusão de determinada substância nas suas listas próprias de medicamentos (listas estaduais e municipais). Não raro, muitas situações clínicas ainda ficam sem tratamento adequado no SUS. Nesse caso, os usuários do sistema podem adquirir a medicação necessária com seus recursos. Quando eles não são suficientes, uma das formas para a sua obtenção tem sido o acionamento do Poder Judiciário. 

Na última década, ocorreu um aumento percentual importante dos processos judiciais no Brasil com temáticas de saúde. Estima-se que mais de 13% dos processos judiciais solicitam tratamentos (cirurgias, exames, internações, medicamentos etc.) 9Instituto de Ensino e Pesquisa INSPER. Judicialização da saúde no Brasil: Perfil das demandas, causas e propostas de solução – Relatório analítico propositivo Justiça Pesquisa. 2019. Há, porém, poucos estudos ou estatísticas demonstrando a frequência e as características dos medicamentos solicitados pela via judicial no Brasil. O objetivo deste artigo é demonstrar a porcentagem e a frequência dos diferentes grupos medicamentosos utilizados para tratamento psiquiátrico solicitados judicialmente contra os Estados de Santa Catarina e Paraná. 

2. Metodologia:

Foram solicitadas às Farmácias do Estado do Paraná e do Estado de Santa Catarina, as quantidades de medicações dispensadas por ordem judicial com pacientes ativos e a lista de frequências de medicações consideradas no tratamento de transtornos mentais nos respectivos estados. Eles foram separados em antidepressivos, estabilizadores de humor, antipsicóticos, estimulantes, indutores do sono, ansiolíticos e outros. Algumas das medicações utilizadas em transtornos mentais também são usadas em outras doenças, como valproato de sódio, lamotrigina, carbamazepina, gabapentina, pregabalina e duloxetina. Optamos por manter essas medicações em nossas análises.

3. Resultados:

Foram solicitados todos os medicamentos dispensados por ordens judiciais ativas na data de 27 de agosto 2022.

Ao todo, nessa data, existiam 20.985 solicitações de medicamentos pela via judicial para a Farmácia do Estado do Paraná, vinculada à Secretaria de Saúde do Estado do Paraná. Dessas, 3.176 (15%) eram de medicamentos utilizados em tratamentos psiquiátricos.

No Estado de Santa Catarina, havia 18.855 solicitações judiciais deferidas de medicamentos, e 4.923 (26%) delas eram de uso em tratamentos psiquiátricos. Considerando o total de medicações psiquiátricas fornecidas, os antidepressivos foram os mais deferidos (PR: 48%; SC: 46%). Em seguida, figuravam os antipsicóticos (PR: 24%; SC: 18%), os estabilizadores de humor (PR: 7%; SC: 15%) e os estimulantes ( PR: 12%; SC: 7%).

Em ambos os Estados, a maioria das decisões favoráveis ao usuário do SUS era para a disponibilização de drogas do grupo dos antidepressivos. Dentre os antidepressivos, a droga mais deferida judicialmente era a venlafaxina em ambos os estados. Individualmente, no Estado do Paraná, a droga mais fornecida judicialmente era o estimulante metilfenidato. Já em Santa Catarina era a venlafaxina. 

Grupo de medicamentos psiquiátricos deferidos judicialmente nos Estados do Paraná e Santa Catarina: 

Paraná Santa Catarina
Antidepressivos1513(44,16%)2285(39,86%)
Antipsicóticos822(23,99%)1013(17,67%)
Ansiolítico e Benzodiazepínicos161(4,70%)384(6,70%)
Canabidiol24(0,70%)88(1,54%)
Estabilizador de humor250(7,30%)843(14,71%)
Estimulantes420(12,26%)395(6,89%)
Hipnóticos76(2,22%)157(2,74%)
Medicamento para Demências53(1,55%)108(1,88%)
Outros*107(3,12%)459(8,01%)
Total 3426 (100%)5732(100%)
*Outros: pregabalina, biperideno e naltrexona 

4. Discussão:

Nosso estudo mostra que, de todas as solicitações por via judicial, no Estado do Paraná, 15% de solicitações de medicação estão relacionadas a diagnóstico psiquiátrico  e, no Estado de Santa Catarina, 26%. 

Os antidepressivos proporcionalmente são as drogas mais deferidas judicialmente e apresentam-se como cerca da metade das solicitações. Essas drogas são utilizadas para o tratamento de quadros de depressão e ansiedade, justamente transtornos mentais de maior prevalência na população.

O segundo grupo medicamentoso mais frequentemente concedido por via judicial foram os antipsicóticos. Dentre as medicações desse grupo, no Paraná, a mais deferida foi o aripiprazol, enquanto em Santa Catarina foi a quetiapina. O aripiprazol não está presente na RENAME, o que explica as solicitações judiciais. Já a quetiapina, por outro lado, está listada na RENAME, com PCDT com previsão de dispensação para diagnósticos de transtorno bipolar, transtorno esquizoafetivo e esquizofrenia, se solicitado via componente especializado da assistência farmacêutica. A quetiapina, porém, é uma medicação que pode ser utilizada para outros transtornos, além desses aprovados, como o transtorno depressivo. Todavia, de acordo com as regras da RENAME, a medicação pode ser dispensada apenas nos diagnósticos aprovados pelos PCDTs. Uma hipótese é que a quetiapina esteja sendo solicitada para fins diversos dos previstos nos PCDTs 10Maan JS, Ershadi M, Khan I, Saadabadi A. Quetiapine. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022.

Existem duas situações relacionadas aos diagnósticos psiquiátricos e ao uso e à dispensação medicamentosa no SUS. A primeira situação ocorre quando um determinado transtorno mental não foi contemplado com protocolo clínico e diretrizes terapêuticas elaborado pelo Ministério da Saúde. Nesse caso, os fármacos disponíveis no SUS para o seu tratamento estarão alocados no componente básico da assistência farmacêutica. A outra se dá quando o transtorno possui protocolo clínico e diretrizes terapêuticas. Com isso, os medicamentos mencionados no PCDT para o manejo da doença integrarão o componente especializado da assistência farmacêutica11Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – RENAME. Ministério da Saúde – Brasil; 2022.

Na primeira situação, de transtornos mentais sem PCDTs, estão os diagnósticos de transtornos depressivos e transtornos ansiosos. As drogas disponíveis para o tratamento dessas condições são aquelas listadas no componente básico da RENAME do Ministério da Saúde.

Estão disponibilizados quatro medicamentos: um inibidor seletivo de recaptação de serotonina, a fluoxetina, e três antidepressivos tricíclicos, menos utilizados atualmente pelos efeitos colaterais:  amitriptilina, clomipramina e nortriptilina12Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – RENAME. Ministério da Saúde – Brasil; 2022. Mesmo sendo as duas condições mais prevalentes, presente em cerca de 10% da população, não há diretrizes terapêuticas produzidas pelo Ministério da Saúde do Brasil para eles. Essa pode ser a principal explicação para o fato de que quase metade das solicitações judiciais são desse grupo medicamentoso. 

Transtornos mentais que apresentam PCDTs têm medicamentos aprovados e listados na RENAME no componente especializado. Para a prescrição do medicamento, há, em tese, a necessidade da avaliação de um especialista. Como já salientado, existem hoje PCDTs para os seguintes diagnósticos: esquizofrenia, transtorno esquizoafetivo, transtorno bipolar, transtorno do espectro autista, tabagismo, deficiência intelectual, doença de Alzheimer e transtorno de déficit de atenção com hiperatividade. 

Ocorre que, mesmo quando existe um PCDT, nem todas as medicações registradas no país para uma respectiva doença são incluídas nele. Há medicamentos que não passam pela análise do órgão responsável pela avaliação de tecnologias em saúde no SUS (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde-Conitec) e há aqueles cuja incorporação não é recomendada pela comissão. Assim, drogas não contempladas nos PCDTs podem ser objeto de processo judicial. Um outro fator que provoca a judicialização de medicamentos para doenças com PCDTs é a ausência de atualização dessas orientações. O de esquizofrenia, por exemplo, foi publicado há 10 anos, sem uma nova atualização até o momento

Quando observado em número absoluto, no estado do Paraná, a medicação mais deferida foi o metilfenidato, que foi aprovado e indicado para o tratamento do transtorno de hiperatividade e déficit de atenção. O metilfenidato e a lisdexanfetamina fazem parte do grupo de medicamentos denominados de estimulantes. Essas medicações passaram por uma recente revisão da Conitec, que considerou que o custo dessas medicações eram altos e as evidências eram de baixa qualidade para a recomendação de sua incorporação no SUS.

A existência de diferenças entre as frequências de solicitações de medicações psiquiátricas nos estados do Paraná e de Santa Catarina pode ser reflexo das diferenças regionais tanto na distribuição de medicamentos por municípios, como na própria judicialização da saúde em cada ente federativo, com perfis diferentes de solicitações ao poder judiciário, por mais que ambos os estados tenham semelhanças no perfil socioeconômico 13Instituto de Ensino e Pesquisa INSPER. Judicialização da saúde no Brasil: Perfil das demandas, causas e propostas de solução – Relatório analítico propositivo Justiça Pesquisa. 2019 14Sistema de contas regionais : Brasil 2020 / IBGE, Coordenação de Contas Nacionais. Rio de Janeiro: IBGE; 2022.

A promoção de acesso a medicamentos e novas terapias passa por uma decisão técnica, política e econômica e representa uma tarefa complexa dada a evolução na ciência médica e assistência à saúde. O equilíbrio entre a garantia de direitos fundamentais individuais dos cidadãos e a garantia de um Estado eficiente com distribuição de recursos escassos e que garanta universalidade e equidade da política pública em saúde para a população são desafios para o poder judiciário15Vieira FS. Judicialização e direito à saúde no Brasil: uma trajetória de encontros e desencontros. Rev saúde pública. 2023 Feb 17;57(1):1..  

Nosso trabalho tem algumas limitações. Ele foi realizado com dados fornecidos pelas Secretarias de Estado da Saúde dos dois estados, Paraná e Santa Catarina. Portanto, não foram consideradas as demandas que tiveram ordem judicial dirigida à União ou aos municípios desses estados. Ainda, ambos os estados pertencem à região sul do Brasil, o que impossibilita a extensão de seus resultados para outras regiões do Brasil. Por ser um corte transversal, não avalia de forma longitudinal como se deu a solicitação das medicações psiquiátricas nesses estados.

Com base nos dados apresentados, podemos concluir que a judicialização para acesso a medicamentos para transtornos mentais é uma realidade. Os números mostram que um número significativo de medicamentos dispensados por ordem judicial são destinados a transtornos mentais, especialmente antidepressivos e antipsicóticos. É importante ressaltar que a RENAME, tanto no seu conteúdo básico como especializado, nem sempre é suficiente para atender às necessidades de tratamento medicamentoso em saúde mental, o que pode levar à busca por alternativas através da via judicial. Esses dados são um indicativo da importância de avaliar e implementar políticas públicas que possam ampliar o acesso a medicamentos e outras terapias em saúde mental, reduzindo assim a necessidade de recorrer à judicialização para obter tratamento.

Imagem criada no Ideogrram.ai

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