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Luciana da Veiga Oliveira

O SUS “em tempos de pandemia”

“Em tempos de pandemia”… confesso que essa frase me exaure ultimamente. Usada indiscriminadamente para todas as situações, como se mais nada houvesse ou nada fosse feito, dissociado da situação pandêmica.

Mas preciso, por ora, deixar o exaurimento de lado pois, em se tratando de sistema de saúde, a análise “à luz da pandemia” é indispensável.

Então, falemos do SUS “em tempos de pandemia”.

O derramamento lá do alto do mundo de um vírus novo (agora não mais tão novo…também cansei da expressão “o novo coronavírus” pois já o sinto como conhecido de longa data) nos pegou quase que de surpresa. Os poucos meses que nos separaram da primeira notícia até que chegasse em nossas terras não foram suficientes para nos prepararmos totalmente e para compreendermos a amplitude do problema.

O vírus chegou e nos vimos na situação de podermos contar somente com duas armas: o sistema de saúde e o isolamento.

Isolamento, seja ele vertical, horizontal, impondo “distanciamento social”, “quarentena” ou “lockdown”, por mais que tenha papel importante na contenção do contágio, acabou por ter em nossas terras papel coadjuvante, muitas vezes relegado a segundo plano ou mesmo ignorado.

Restou-nos em verdade somente uma arma com a qual poderíamos efetivamente contar: o sistema de saúde.

Tendo em mente que vivemos em um país onde 75% da população não tem acesso à saúde privada, no melhor estilo de uma dinâmica de grupo empresarial, de um culto religioso ou de um grupo de autoajuda, gostaria que todos fechássemos os olhos e hoje, passados alguns meses que a epidemia aqui chegou, tentássemos rever esse período todo, visualizando um país sem um sistema público de saúde.

Nesse exercício de imaginação, veríamos pessoas que fazem parte daquele contingente de cerca de 150 milhões, que não têm acesso à saúde privada, evitando buscar tratamento médico em razão do custo, sem acesso ao atendimento precoce, procurando assistência somente quando os sintomas se agravassem. Os hospitais não estariam prontos para isso. Ademais, em se tratando de um modelo privado, haveria uma distribuição desigual de leitos pelo país, pois é pouco lucrativo manter leitos em regiões com pouca demanda em situação normal. Por fim, não teríamos a possibilidade de padronizar e integrar os serviços de saúde, pois cada hospital é uma empresa que determina suas próprias regras. 

Não é difícil imaginar o caos sanitário que vivenciaríamos.

Vale lembrar que, em outros países, o elevado padrão financeiro da maioria da população não alterou a situação caótica gerada pela ausência de um sistema público de saúde.

Ainda que, por uma razão qualquer, nos sentíssemos muito longe da situação visualizada, por nos colocarmos distantes – por sorte e não por opção – dos 75% acima descritos, com um pouco de percepção realista essa visão também nos mostraria que o impacto maléfico da ausência de cuidados  atingiria a todos nós e em tantos níveis, que ainda que estivéssemos com nossos instintos egoístas aguçados no momento da visualização vislumbraríamos um feixe qualquer que nos alcançaria, seja pelo impacto na economia, na crise social ou mesmo no aumento das possibilidades de contágio.

Abrimos os olhos e ainda assim, com olhos bem abertos, mesmo com a existência de um sistema de saúde pública, vendo todos os impactos que a pandemia trouxe e o seu largo alcance, passamos a ver as vítimas em nós ou próximas de nós.

Tudo que estamos vivenciando ou meramente observando em razão da chegada do agora velho coronavírus pode reverter a grande assimetria que existe em nossos sentimentos quando estamos diante de uma vítima identificada, em comparação a quando não a conseguimos identificar, quando ela é esse ente sem cara, esse grupo quase alegórico ou imaginário, a coletividade.  

O fato é que nós tendemos a valorizar muito mais uma vida identificada do que a vida de milhares ou milhões de vidas na mesma situação (esse fenômeno foi descrito na última década por alguns cientistas comportamentais). É assim que nossa mente funciona. A atenção é maior para indivíduos isoladamente, perdendo a intensidade quando dirigida a grupos de indivíduos.

Exatamente porque conhecia esse viés e a interferência na mente das pessoas que Stalin dizia que: “uma única morte é uma tragédia; um milhão de mortes é uma estatística”.

O sentimento diminui quando as vítimas são tratadas como números.

Há também um viés descrito pela ciência comportamental, que também se aplica, que demonstra que temos mais empatia com situações mais próximas de nós. O interesse por um fato qualquer é inversamente proporcional à distância que nos separa da vítima. Maior distância, menor interesse.

A pandemia talvez nos faça pensar de forma mais coletiva e igualitária, pois deixou claro que qualquer um poderia ser atingido de alguma forma, ainda que não acometidos pela doença, tornando todos possíveis vítimas identificadas e ainda trouxe o problema para próximo de nós. 

Todos passaram a querer e a entender a importância de um sistema estruturado. 

Mesmo aqueles que têm acesso à saúde privada se viram na situação de poder precisar do Sistema Único de Saúde. 

Talvez isso faça com que passemos a desenvolver uma percepção do coletivo. 

Talvez em nenhum outro momento as pessoas tenham conseguido se colocar, com tanta empatia, na posição dos gestores, dos médicos e dos pacientes. 

A pandemia deixou clara a importância de um sistema de saúde forte e estruturado, sadio financeiramente e bem organizado. 

É um momento ímpar para que os gestores e a sociedade exteriorizem as dificuldades do sistema e suas limitações e possam encontrar ouvidos atentos e empáticos nos interlocutores com poder de decisão. 

É o momento de trazer novamente para um debate mais profundo a necessidade de um financiamento estruturante e o custo dos direitos, lembrando que “ignorar os custos é deixar certas trocas dolorosas fora do nosso campo de visão”1(HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass r. O custo dos direitos. Por que a liberdade depende dos impostos. São Paulo: Martins Fontes; 2019, p. 8)

A pandemia nos faz ver – ou espero que faça – a essencialidade de uma saúde pública forte e estruturada, e que isso é necessário não somente agora, mas também em momentos futuros.  Hoje conseguimos enxergar com clareza o resultado de anos de subfinanciamento do sistema, ver suas falhas e principalmente demonstrar a toda evidência a essencialidade do SUS e a importância de mantê-lo forte e estruturado, se nesse momento nós não conseguirmos ter uma visão coletiva, não sei quando teremos. 

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