1. Panorama geral
No livro O Alienista, de Machado de Assis, Simão Bacamarte é um médico que cuida dos doentes da Casa Verde, uma instituição para pessoas “desequilibradas” na cidade de Itaguaí. Em um dado momento da narrativa, o referido alienista envia um ofício à Câmara da cidade ordenando que todas as pessoas do hospital (80% da população) fossem devolvidas ao convívio social. No ofício, explica “que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e, como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto”1ASSIS, Machado de. O Alienista. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019, p. 207..
A despeito da ironia do nosso escritor, as doenças psiquiátricas atingem boa parte da população. Cerca de 970 milhões de pessoas sofrem de transtornos mentais no mundo. São 166 milhões de adolescentes. Os números aumentaram ainda mais com a pandemia da COVID-19. Estima-se que a prevalência de ansiedade e de depressão cresceu mais de 25% somente no seu primeiro ano. No Brasil, um dos países mais atingidos pela depressão, existem 7.2 milhões de pessoas acometidas por ela.
O presente texto visa analisar a assistência farmacêutica no SUS, que é um dos pilares da política de promoção da saúde mental. Ainda que outras estratégias assistenciais sejam fundamentais, a prescrição de medicamentos também é essencial para o tratamento de diversos quadros de doença mental.
2. Relações nacional, estaduais e municipais de medicamentos ofertados
pelo SUS
2.1 Lista nacional (RENAME)
Para que um medicamento seja ofertado pelo SUS em todo o território nacional, ele precisa ser analisado por um órgão de composição plural criado pela Lei nº 12.401/2011, chamado Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS). Antes da sua criação, as tecnologias eram analisadas pela Comissão para Incorporação de Tecnologias do Ministério da Saúde (CITEC).
O processo de incorporação é disciplinado pela lei antes referida e pelo Decreto nº 7.646/2011. Nele, é feita a análise das evidências científicas acerca da tecnologia. Também são abordadas questões de farmacoeconomia, para verificar custo-efetividade e o impacto orçamentário causado por sua eventual incorporação (§2º, do art. 19-Q, da Lei nº 8.080/90, acrescentado pela Lei nº 12.401/2011). Após a elaboração do relatório pela Conitec, que poderá recomendar ou não a inclusão do tratamento no SUS, o processo é encaminhado para o Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, vinculado ao Ministério da Saúde (art. 20, do Decreto nº 7.646/2011). É ele quem dá a última palavra no processo de incorporação (art. 23).
Uma vez aprovada a incorporação de um medicamento, ele deverá estar disponível no SUS 180 dias após a publicação da portaria que o incorporou (art. 25, do Decreto) e passará a constar da Relação Nacional de Medicamentos (RENAME), em que são arrolados todos os medicamentos oferecidos nacionalmente pelo SUS. Significa dizer que ela deverá ser entregue em todo o território nacional no prazo previsto.
2,2 Listas estaduais e municipais
Paralelamente à relação nacional, Estados, DF e Municípios podem ter suas próprias listas de medicamentos, com distribuição limitada aos seus territórios, em relações estaduais e municipais, estas últimas denominadas REMUME2Relação Municipal de Medicamentos Essenciais. Esses entes federados podem identificar doenças de maior prevalência e adotar as medidas que entenderem necessárias para combatê-las.
Ocorre que, a despeito de deixar margem para a ampliação do elenco de medicamentos, as relações estaduais e municipais podem gerar desigualdades quando se considera o território nacional. Isso se torna especialmente relevante quando as doenças atingem uma parcela importante da população, como é o caso dos transtornos mentais.
Por isso, é relevante que a RENAME possua um elenco satisfatório não só para o tratamento de doenças psiquiátricas, mas para outros agravos à saúde. Com isso, a igualdade prevista constitucionalmente no SUS será obedecida (art. 196, CF)
3. Atuação da Conitec em psiquiatria
3.1 Análises realizadas
Desde a sua criação, em 11 anos, a Conitec realizou quinze análises em psiquiatria, entre relatórios de recomendação de medicamentos e Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDTs). São eles:
- palmitato de paliperidona para o tratamento de esquizofrenia, com decisão de não incorporação (2013);
- risperidona no transtorno do espectro do autismo (TEA), com decisão de incorporação (2014);
- risperidona no tratamento da dependência de cocaína/crack, com decisão de não incorporação (2015);
- clozapina, lamotrigina, olanzapina, quetiapina e risperidona para o tratamento do transtorno afetivo bipolar, com decisão de incorporação (2015);
- risperidona no comportamento agressivo em adultos com transtornos do espectro do autismo, com decisão de incorporação (2016);
- clozapina na psicose associada à doença de Parkinson, com decisão de incorporação (2016);
- tartarato de vareniclina para tratamento adjuvante da cessação do tabagismo em pacientes adultos com doença pulmonar obstrutiva crônica ou doenças cardiovasculares, com decisão de não incorporação (2018);
- sequenciamento completo do exoma para investigação etiológica de deficiência intelectual de causa indeterminada, com decisão de incorporação (2019);
- vareniclina para cessação do tabagismo, com decisão de não incorporação (2019);
- PCDT para tabagismo (2020);
- PCDT para diagnóstico de etiologia de deficiência intelectual (2020);
- metilfenidato e lisdexanfetamina para indivíduos com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade, com decisão de não incorporação (2021);
- PCDT para transtorno esquizoafetivo (2021);
- dimesilato de lisdexanfetamina para indivíduos adultos com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade, com decisão de não incorporação (2021);
- PCDT para autismo (2022)
Além dos PCDTs acima citados, com base na Portaria nº 375, SAS/MS, de 10 de novembro de 2009, a Secretaria de Atenção à Saúde, do Ministério da Saúde elaborou outros três: o da esquizofrenia (2013), do transtorno afetivo bipolar do tipo I (2016) e o da doença de Alzheimer (2017).
3.2 A necessidade de o próprio SUS iniciar o processo administrativo
Dos dez processos que dizem respeito a medicamentos, três foram demandados pela indústria farmacêutica (2, 9 e 15). Os demais tiveram seu início por solicitação da própria SCTIE (4), do INCA/MS (7), da Secretaria de Atenção à Saúde – SAS/MS (10 e 12), da 1ª Vara Federal de Porto Alegre (11 e 14) e do Ministério Público Federal de Porto Alegre (13).
A indústria farmacêutica pediu a incorporação de medicamentos psiquiátricos em apenas três oportunidades nesses últimos 11 anos. Isso se deve possivelmente ao fato de que muitas drogas amplamente utilizadas hoje na Psiquiatria já estão com suas patentes expiradas. Quando uma empresa pede a análise de um princípio ativo pela Conitec que não está mais sob sua patente, ela não tem a garantia de que o seu produto será adquirido pelo SUS, na medida em que haverá concorrência dos demais fabricantes. Isso certamente é um desestímulo para a indústria, pois a instrução do pedido de incorporação demanda tempo e recursos financeiros.
Portanto, é essencial que os próprios entes que compõem o SUS iniciem o processo de análise, especialmente quando houver uma evidência de falha na política ou boas evidências de melhores respostas clínicas de um grupo medicamentoso. A proatividade deve marcar a incorporação de tecnologias psiquiátricas no SUS, a fim de que o usuário seja bem atendido.
3.3 Análise de evidências científicas em Psiquiatria
Ensaio clínico randomizado duplo-cego (em que nem o paciente nem o médico sabem o que está sendo prescrito) é o principal modelo de teste de medicamentos. Para se observar se uma medicação funciona, deve-se estabelecer, antes mesmo de realizar o estudo, quais os objetivos a serem alcançados com aquela medicação, também chamados de desfechos. Quando é realizado mais de um estudo da mesma medicação, para a mesma doença, pode-se agrupar os resultados com técnicas estatísticas e realizar uma análise sistemática das respostas que essa medicação pode ter.
Transtornos mentais, assim como outras doenças, têm métricas específicas avaliadas a partir de intervenções medicamentosas. Diferentemente, porém, de exames de sangue ou de imagem, a maior parte dos desfechos avaliados são comportamentais. A avaliação sintomática pode ocorrer de várias formas. A melhora do humor em um transtorno depressivo, da atenção no transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), a remissão de um quadro ansioso ou mesmo a melhora na qualidade de vida são algumas delas.
Transformar os sentimentos, os comportamentos e os sofrimentos da doença mental em algo mensurável para verificar se a medicação é realmente efetiva e deve ser incorporada ao arsenal terapêutico é a difícil tarefa que os estudos tentam responder. Significa dizer que a análise das evidências em psiquiatria deve tentar mensurar um desfecho abstrato e subjetivo, o que a torna diferente das outras áreas da medicina. Essa avaliação é feita por entrevistas clínicas e escalas validadas que servem justamente para medir a resposta da medicação. Uma medicação é aprovada se houver resposta terapêutica superior ao placebo.
Para uma medicação ser incorporada na RENAME e ser prevista em PCDT, a Conitec realiza uma avaliação da sua efetividade e segurança. Além disso, consideram-se os custos comparativos com medicações já aprovadas para as mesmas doenças. Ou seja, em regra, uma nova medicação, para ser incorporada, deve ser mais efetiva e/ou mais segura do que aquelas já fornecidas pelo SUS.
4. O que existe hoje na RENAME
Atualmente, a RENAME conta com os seguintes medicamentos:
- os antipsicóticos clozapina, olanzapina, quetiapina, risperidona, decanoato de haloperidol, haloperidol e cloridrato de clorpromazina;
- os estabilizadores de humor/anticonvulsivantes lamotrigina, ácido valpróico (valproato de sódio), carbamazepina e carbonato de lítio; os benzodiazepínicos/ansiolíticos clonazepam, diazepam e midazolam;
- os antidepressivos cloridrato de amitriptilina, cloridrato de clomipramina, cloridrato de fluoxetina, cloridrato de nortriptilina;
- os anticolinérgicos cloridrato de biperideno, lactato de biperideno.
Além desses,
- o anti-histamínico cloridrato de prometazina;
- a vitamina cloridrato de tiamina;
- os anticonvulsivantes fenitoína e fenobarbital;
- o antagonista de benzodiazepínico flumazenil; e
- as drogas para parkinson levodopa + carbidopa, levodopa + benserazida.
5. Escassez de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas e falhas em relação ao arsenal farmacêutico
Os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDTs) são manuais que determinam como se deve proceder para realizar o diagnóstico e o tratamento de uma doença, estabelecendo também critérios para acompanhar a sua evolução. Eles são elaborados por uma equipe técnica e de especialistas e, desde a edição da Portaria nº 27, SCTIE/MS, de 12 de junho de 2015, são aprovados pela Conitec. Baseiam-se nas evidências científicas existentes, trazendo segurança para os operadores do SUS e uniformidade na atenção ao paciente.
Devido às especificidades das doenças psiquiátricas, é importante que se estabeleçam procedimentos orientados pela técnica. Um protocolo com diretrizes claras tanto para diagnóstico, quanto para tratamento pode evitar, inclusive, o uso de medicações de forma desnecessária.
Apesar dos diversos avanços realizados no tratamento dos transtornos mentais a partir dos PCDTs já publicados, os transtornos mais prevalentes ainda não foram contemplados. A depressão, o transtorno obsessivo-compulsivo, o transtorno de estresse pós-traumático, os transtornos ansiosos e os transtornos alimentares são apenas alguns exemplos que não têm PCDTs vigentes. Dos transtornos de uso de substância, apenas o tabagismo é contemplado.
A presença dos PCDTs é importante não apenas para mostrar medicações e outras terapias que podem ser disponibilizadas pelo SUS para a população, mas também para guiar a substituição das linhas de tratamento quando há falha terapêutica.
A ausência, porém, de PCDTs para os transtornos mentais mais prevalentes em adultos, como o transtorno depressivo e os transtornos ansiosos, é contrastante. Por mais que existam medicações na RENAME para essas condições, o arsenal terapêutico farmacológico mantém-se limitado. Não há uma diretriz clara em caso de falha terapêutica ou efeitos colaterais que impossibilitem o uso das medicações disponibilizadas.
6. Consequências das falhas da política assistencial
Os problemas da política de atenção à saúde mental geram reflexos significativos para a sociedade, que podem ser sentidos em várias áreas. Uma das consequências da assistência deficiente e da falta de diretrizes claras e suficientes em relação ao tratamento é a conhecida judicialização da saúde. Os remédios psiquiátricos, a depender da relação estadual ou municipal que vigoram para as pessoas residentes em uma determinada localidade, são frequentemente objeto de judicialização.
No Estado do PR, segundo informação obtida junto à Secretaria Estadual de Saúde/PR, na data de 28/06/2022, dos 14.570 pacientes com cadastros ativos recebendo medicamentos por força de decisão judicial, 2.402 eram pacientes psiquiátricos. Além desse número, ainda existiam 117 pacientes recebendo canabidiol, 479 pacientes recebendo duloxetina e 339 pacientes recebendo pregabalina. O levantamento desses últimos medicamentos foi feito em separado, tendo em vista que eles não são utilizados somente para psiquiatria e a discriminação por patologia não pôde ser realizada.
Significa dizer que, em junho de 2022, pelo menos 16,48% dos cadastros ativos eram de pacientes psiquiátricos. A conclusão a que se chega é que, com um maior elenco de tecnologias para o tratamento dessas pessoas, a judicialização da saúde tende a diminuir.
7. Considerações Finais
O paciente com doença psiquiátrica é estigmatizado por terceiros, por si mesmo e pelos próprios agentes do sistema de saúde, em um ciclo que se perpetua.3“O estigma opera em círculos viciosos que abrangem o indivíduo que sofre de transtorno psiquiátrico, sua família e os serviços de saúde mental. O diagnóstico de transtorno psiquiátrico ou anormalidade visível, como o efeito colateral de fármacos, deflagra no observador a recuperação de conteúdos negativos como conhecimentos prévios, informação da imprensa e lembrança de filmes que levam à estigmatização. Os pacientes com doença mental que mostram sinais visíveis de suas condições, seja em virtude dos sintomas, seja em decorrência de efeitos colaterais que os fazem parecerem anormais, são vistos como fracos de caráter, preguiçosos ou ameaçadores. O estigma conduz à discriminação negativa do indivíduo com transtorno mental e, consequentemente, a prejuízos e desvantagens como reveses frequentes, serviços de saúde ruins e dificuldade de acesso a cuidados. Pacientes estigmatizados internalizam essas visões estigmatizantes e discriminatórias das pessoas em geral, dando origem ao chamado autoestigma. Há comprometimento da autoestima, mais incapacitação e menos resistência ao estresse. Tudo isso acarreta piora clínica e reinício do círculo vicioso.” ROCHA, F. L., HARA, C. e PAPROCKI, J. Doença mental e estigma. Revista Médica de Minas Gerais, v. 25.4, 2015. Em que pese não estejamos mais diante do quadro traçado por Machado de Assis e das barbáries perpetradas em manicômios, graças à reforma na atenção ao paciente com transtorno mental ocorrida no Brasil no início deste século, ainda há um longo caminho a percorrer.
Em Enfermaria nº 6, de Tchekhov4TCHEKHOV, Anton. O beijo e outras histórias. 4. ed, São Paulo: Editora 34, 2014, p. 214., Ivan Dmítritch é um dos internados na ala do hospital psiquiátrico que dá nome ao conto. Ele sofre de sintomas paranoides e obsessivos. Em um trecho do conto, Ivan diz: “Eu amo a vida, amo-a, apaixonadamente! Tenho mania de perseguição, um medo contínuo e torturante, mas há momentos em que a sede de viver se apossa de mim, e então tenho medo de perder o juízo. Quero tremendamente viver, tremendamente!”. A sede de viver, ao se “apossar” da personagem, é tratada como mais uma obsessão de Ivan, que lhe causa um novo medo: o de perder o juízo, que talvez ele já tivesse perdido. Essas palavras revelam que a humanidade permanece intacta mesmo naqueles que sofrem de transtornos mentais. O contista quis revelar algo que ainda hoje não se vê com clareza.
Esse é o caminho que se tem pela frente: o de permitir que as pessoas com transtornos psiquiátricos sejam vistas por todos em sua humanidade, a fim de que eles possam viver, talvez não tremendamente, mas o mais dignamente possível. E é dever do SUS oferecer meios para que isso aconteça.
Foto de Liza Polyanskaya – Unsplash