Não sabemos o que é alto custo

Foto Pau casals comprando frutas

Um mercador de Benares, na Índia, tinha oito pérolas iguais – na forma, no tamanho e na cor. Sete delas tinham o mesmo peso e a oitava era um pouco mais leve que as demais, de menor valor, portanto. O mercador precisava identificar a mais leve, mas para isso somente poderia usar a balança duas vezes. É possível, com essa limitação, identificar aquela de menor valor?

O problema foi apresentado por Malba TahanAli Yezzid Izz-Edin Ibn-Salin Malba Tahan, o famoso escritor árabe, é o pseudônimo do escritor brasileiro Julio Cesar de Mello e Souza em sua obra “O homem que calculava”.

Definir o valor de algo – ou o que vale mais – pode trazer grandes dificuldades.

O Supremo Tribunal Federal submeteu ao rito de repercussão geral a definição sobre a obrigatoriedade, ou não, de o Estado fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras para comprá-lo, à luz dos artigos 2º; 5º; 6º; 196; e 198, §§ 1º e 2º, da Constituição (Recurso Extraordinário nº 566.471 – Tema 6).

Nos termos em que o tema foi delimitado, não se trata de decidir sobre o dever do Estado – em sentido amplo – de fornecer medicamento fora daqueles padronizados pelo Sistema Único de Saúde, mas sim decidir sobre o dever de fornecer medicamento de alto custo e para pessoa portadora de doença grave.

Nada obstante a definição de doença grave não gere maiores dificuldades, a mesma facilidade não acompanha a definição de medicamento de alto custo.

A origem da expressão “alto custo” guarda relação com os então chamados “medicamentos excepcionais”, instituídos pela Portaria Interministerial nº 3 MPAS/MS/MEC, de 15 de dezembro de 1982.

À época havia uma possibilidade de dispensação de medicamentos não incluídos na RENAME (Relação Nacional de Medicamentos) “quando a natureza ou a gravidade da doença e as condições peculiares do paciente o exigirem e desde que não haja, na RENAME, medicamento substitutivo aplicável ao caso”. Todos os medicamentos que não estavam na RENAME poderiam ser considerados excepcionais e disponibilizados pelo gestor ou prestador do serviço, seguindo alguns critérios.

Essa era a regra no tempo do INAMPS, vinculado ao Ministério da Previdência e Assistência Social, que fornecia atendimento àqueles que trabalhavam em empregos formais e contribuíam com a Previdência Social, gente com “carteira assinada”.

Em 1993, já sob a égide da Constituição de 88 e do Sistema Único de Saúde, foi publicada a primeira lista de medicamentos excepcionais (Portaria SAS/MS nº 142, de 06 de outubro de 1993). 

Ou seja, não mais era possível a dispensação excepcional de qualquer medicamento, mas somente dos listados.

A Portaria GM/MS nº 1.318/2002 incluiu novos medicamentos excepcionais e estabeleceu que para a dispensação deveriam ser utilizados os critérios de diagnóstico, indicação, tratamento, entre outros parâmetros definidos nos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) publicados pelo Ministério da Saúde, constando dentre os considerandos “que os usuários destes medicamentos são pacientes crônicos e/ou fazem seu uso por períodos prolongados e ainda o alto custo destes tratamentos”.

Deu-se início à utilização da expressão “alto custo”.

Posteriormente, a referência ao alto custo dos medicamentos repetiu-se na Portaria GM/MS nº 2.577, de 27 de outubro de 2006, que constituiu o componente de medicamentos de dispensação excepcional, para tratamento de agravos inseridos nos seguintes critérios:

1) doença rara ou de baixa prevalência, com indicação de uso de medicamento de alto valor unitário ou que, em caso de uso crônico ou prolongado, seja um tratamento de custo elevado; e (grifei)

2) doença prevalente, com uso de medicamento de alto custo unitário ou que, em caso de uso crônico ou prolongado, seja um tratamento de custo elevado desde que: (grifei)

a) haja tratamento previsto para o agravo no nível da atenção básica, ao qual o paciente apresentou necessariamente intolerância, refratariedade ou evolução para quadro clínico de maior gravidade, ou

b) o diagnóstico ou estabelecimento de conduta terapêutica para o agravo estejam inseridos na atenção especializada.

Em resumo, à época do Inamps havia uma certa liberalidade, pois em tese qualquer medicamento não contido na Rename (Relação Nacional de Medicamentos) poderia ser dispensado, não havendo limitação de valor. A liberdade de prescrição era possível ante o limitado acesso aos medicamentos.

A mesma liberalidade não prevaleceu com a criação do Sistema Único de Saúde. De fato, com a Constituição de 88 adveio a saúde de acesso universal, como “direito de todos e dever do Estado”.

Assim, não há como se comparar a possibilidade de fornecimento de medicamento não padronizado na época do INAMPS com a época atual, sob a égide do SUS, quando os medicamentos são de acesso universal e igualitário.

Após a Constituição de 88, com a criação do Sistema Único de Saúde e a universalização do acesso, se tornou necessária a limitação dos medicamentos, sendo então criadas as listas dos medicamentos excepcionais que seriam dispensados. Ainda, na medida em que somente são dispensados aqueles medicamentos previamente selecionados, há uma limitação implícita de valor, razão pela qual não se fez necessário definir nas portarias o que seria alto custo.

Atualmente, o componente excepcional foi substituído pelo Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF), estando a assistência farmacêutica estruturada em três componentes: básico, especializado e estratégico.

Os atos normativos citados relacionam os medicamentos excepcionais ao seu alto custo, mas não definem o que este seria.

O fato é que nunca houve uma definição do que seria alto custo, mas ainda hoje utilizamos a expressão como se guardasse relação com algum critério estabelecido pelo Sistema Único de Saúde.

A expressão se tornou tão corriqueira que hoje faz parte da delimitação do Tema submetido à repercussão geral pelo STF.

Assim, na ausência de definição de alto custo dentro do SUS, resta analisar o que seria o medicamento de alto custo para os limites da tese a ser definida no Tema 6 de repercussão geral.

Poderia se pensar em definir alto custo para os padrões do Sistema Único de Saúde.

Para tanto se faria necessária a análise da possibilidade de o sistema arcar com determinado medicamento, considerando a prevalência da doença, o uso prolongado ou não, além de outros critérios.

Não se trata de análise fácil. E talvez em grande parte das vezes demandaria do julgador análises econômicas inviáveis num processo individual.

Juntamente com Ana Carolina Morozowski, buscamos um critério objetivo para definir o custo de um medicamento para delimitação da responsabilidade entre os três entes da Federação.

O mesmo critério pode balizar a definição de alto custo.

Naquele artigo, defendemos que:

“Considerando que as pactuações já havidas atribuíram aos Estados a responsabilidade pelo financiamento dos medicamentos do grupo 2, pode-se aferir que a responsabilidade por medicamentos mais caros do que aqueles que se situam nesse grupo não deve ser atribuída aos Estados ou aos Municípios. Essa conclusão privilegia a lógica já instituída, bem como respeita a intenção das partes que já foi expressa nas pactuações anteriores.
Todavia, tendo em vista que os preços praticados por cada Estado são diferentes, para que se pudesse extrair uma uniformidade em todo o território nacional acerca do limite de custo acima do qual não poderia haver o direcionamento da responsabilidade de financiamento aos Estados e, logicamente, aos Municípios, recorreu-se ao preço da tabela CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos) dos 12 medicamentos mais caros elencados na tabela referente ao grupo 2, sem ICMS pelo PF (preço de fábrica).
Com base nessa pesquisa, aferiu-se que, de fato, pela tabela CMED, o tratamento mais caro imposto ao Estado é o que vem em primeiro lugar na lista, qual seja, a Mesalazina 500 mg comprimido com microgrânulos de liberação prolongada, com o custo mensal médio de R$ 720,25 por paciente. Poder-se-ia concluir, então, que qualquer  tratamento que custe mais do que R$ 720,25 por mês, de acordo com a tabela CMED, seria necessariamente de financiamento da União. Evidentemente, os critérios ora propostos são dinâmicos, assim como são os preços e custos de medicamentos adquiridos pelos entes estatais para os diversos grupos. Então, a proposta defendida permite que o método de definição dos limites para o custeio também esteja em mutação e em conformidade com as variações de custos dos medicamentos.”

Assim, um critério objetivo seria definir o patamar a partir do qual um medicamento seria considerado como de alto custo tomando por base o medicamento mais caro disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde.

No entanto, tal critério revela grandes dificuldades.

A primeira dificuldade se dá em relação à prevalência da doença ou à quantidade de indivíduos que poderão fazer uso do medicamento.

Não há como se definir numa ação individual que um medicamento seria de alto custo simplesmente por superar o limite do medicamento mais caro fornecido pelo SUS pois não há como analisar o impacto coletivo.

Explico.

Atualmente o medicamento mais caro fornecido pela União é o Nusinersena, com custo unitário por frasco/ampola de 5 ml de cerca de R$ 160.000,00. De acordo com a bula, a dose recomendada é de 12 mg (5 mL) por administração, sendo necessárias inicialmente 4 doses de carga nos dois primeiros meses e depois uma dose a cada 4 meses, assim, o tratamento em menos de um ano custaria cerca de 1 milhão de reais.

A incorporação levou em conta a quantidade de indivíduos que em tese deveriam receber o tratamento, considerando que se trata de doença rara, de baixa prevalência.

Poderíamos entender como de alto custo somente os medicamentos que tenham custo unitário, por frasco, ampola, comprimido ou seja qual for a forma de apresentação, acima de R$ 160.000,00?

Outra dificuldade é o fato de que União, Estado e Municípios, pela forma de financiamento tripartite estabelecida pelo SUS, têm entre os elencos sob sua responsabilidade limites de custos diversos.

Assim, não bastaria definir o que é alto custo, mas teria que se definir o que é alto custo para a União, o que é alto custo para o Estado e o que é alto custo para o Município.

Frente a tais dificuldades, poderíamos então defender que o alto custo deveria ser analisado em relação ao usuário do sistema e não em relação ao sistema.

Assim, bastaria analisar se a parte tem condições financeiras para arcar com o tratamento solicitado.

Dessa forma, a delimitação da tese seria no sentido de decidir se o Estado deve fornecer medicamentos não padronizados para os pacientes com doença grave (nos termos do tema apresentado) que demonstrem que não têm condições financeiras de arcar com o tratamento pleiteado.

Nessa linha é o Voto do Ministro Marco Aurélio no Recurso Extraordinário 566.471, limitando o direito ao recebimento de medicamento de alto custo àqueles que comprovem incapacidade financeira, tanto do beneficiário quanto dos membros da família, respeitadas as disposições sobre alimentos dos artigos 1.694 a 1.710 do Código Civil.

Na mesma linha decidiu o STJ no REsp 1.657.156, em sede de repetitivo, quando definiu que para a concessão judicial de tecnologia em saúde não prevista no SUS o autor deve comprovar a incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito.

Assim, alto custo seria qualquer medicamento ou produto que não pudesse ser custeado pelo beneficiário.

A limitação de acesso àqueles que não têm condições financeiras de arcar com o custo do medicamento – nada obstante possa representar algum conflito com o princípio da universalidade do sistema – foi colocada como forma de limitação ao acesso àquilo que o sistema não oferece.

O fato é que qualquer das opções traz dificuldades e pode gerar assimetrias e trazer desarmonia ao sistema. 

O custo do medicamento, por si só, não é o único critério para sua incorporação no sistema único de saúde.

Reduzir a sistemática da incorporação a isso é não entender o sistema.

Talvez o melhor entendimento seja que o que importa, o que é premente, é definir a obrigatoriedade de o estado fornecer aquilo que não está nas políticas públicas e delimitar o tema como o dever de fornecer medicamentos não incorporados no SUS, pois é esse o tema que bate às portas do judiciário diariamente.

Nesse sentido os votos dos Ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, que submeteram a tese tratando da possibilidade de o Estado ser obrigado por decisão judicial a fornecer medicamento não incorporado pelo SUS, independentemente do custo (há somente três votos, além dos citados, o do Relator Min. Marco Aurélio que manteve a expressão alto custo na delimitação da tese, após os três votos houve pedido de vista do Min. Gilmar Mendes).

Definir uma tese na qual permaneça a expressão “alto custo” pode resultar em não definição objetiva de critérios que balizem os julgamentos monocráticos e dos tribunais inferiores.

De fato, a delimitação do tema aos medicamentos de alto custo não alcança todo o espectro da judicialização, afinal, há dever do Estado de fornecer medicamentos de baixo custo não padronizados no SUS?

Por outro lado, se a decisão final do STF for permitir o fornecimento pelo SUS de medicamentos não incorporados, ainda que sob algumas condições, haveria a necessidade de fixação de algum limite de valor.

Explico. Fixados critérios para o fornecimento desses medicamentos, como a inexistência no SUS de tratamento ou medicamento similar ou genérico, o esgotamento das alternativas terapêuticas oferecidas pelo SUS, a demonstração da necessidade do uso à luz da medicina baseada em evidências, o registro na ANVISA e a incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento, alguém que esteja em situação que se enquadre em todos os requisitos teria direito a qualquer medicamento independentemente do custo?

Tem o sistema condições de arcar – respeitando os princípios da universalidade e igualdade – com o fornecimento de novas tecnologias com valores elevadíssimos, como temos visto nos últimos anos, que chegam a 12 milhões de reais por paciente? (a razão mística para que algo possa custar tanto fica para discussão em outro post).

Não podemos esquecer que à luz do ordenamento jurídico (Lei nº 8.080/90) a incorporação de tecnologias ao SUS deve respeitar uma análise de custo efetividade.

Respondendo à pergunta anterior, talvez o sistema até possa arcar com a incorporação de medicamentos de custo muito elevado, inclusive já o fez em algumas situações, uma delas citada neste texto, no entanto, a análise de custo efetividade nunca será adequada se realizada com o material probatório constante de uma demanda individual, ainda mais porque não existe um limiar de custo efetividade explícito em nosso sistema, a análise é feita casuisticamente pela CONITEC e envolve uma gama imensa de dados.

Como o Judiciário não pode se furtar a enfrentar demandas que lhe são apresentadas, sendo fixados alguns critérios para a concessão de medicamentos sem que sejam fixados critérios de como enfrentar a questão da relação de custo efetividade dentro das demandas individuais, o Judiciário se verá na situação de ter que criar critérios, como já vem fazendo, sem que possa no entanto fazer uma real análise de custo efetividade.

Pior. Na ausência de critérios de custo efetividade, caso a decisão do judiciário seja pela possibilidade de fornecimento de medicamentos não padronizados, teremos um precedente de observância obrigatória por todas as instâncias inferiores que permitirá o fornecimento de medicamentos sem qualquer limite de valor e, como vimos, o céu é o limite para a indústria farmacêutica.

Nenhum sistema púbico de saúde pode se manter sustentável assim.

Na ausência de um critério para a relação de custo efetividade, uma alternativa seria permitir somente demandas coletivas, tendo por objeto a efetiva incorporação do medicamento, produto ou tratamento, nas quais a análise de custo efetividade pode ser melhor enfrentada, com participação da CONITEC. Não é a alternativa ideal, mas é mais próxima daquilo que já está estruturado dentro do sistema e permite a observância aos princípios da universalidade e igualdade.

O ideal, no entanto, seria que optássemos por uma deferência ao sistema instituído, respeitando a decisão de incorporação ou não feita pela CONITEC e somente permitindo interferência judicial em caso de inação do sistema ou erro. Como muito bem escreveu meu colega de blog, seria um grande presente de natal!

De qualquer forma, precisamos que o STF, no julgamento do Tema 6, caso a decisão seja pela possibilidade de fornecimento de medicamentos não padronizados, defina os requisitos para tanto, relacionados à necessidade de comprovação de esgotamento da alternativas já existentes, adequação de uso, imprescindibilidade do tratamento, incapacidade financeira etc. mas que não deixe de lado a definição de critérios para análise da relação de custo efetividade.

A ausência de uma definição objetiva do patamar para que algo seja considerado como custo efetivo faz com que precisemos utilizar mais que duas vezes a balança para chegarmos a uma conclusão, pois, ao contrário do mercador indiano, não sabemos se há “pérolas” mais leves, nem o tamanho, formato e cor de cada uma delas.

Se o mercador da história tivesse que definir qual dos seus produtos seria de alto custo sem um parâmetro, teria que aceitar não saber o valor da mercadoria que comercializa, aceitar receber menos pelo que vale mais e pior, submeter os compradores ao risco de não pagar o real valor pelo produto.

Submeteremos as ações judiciais e o sistema único de saúde à mesma situação.


Post scriptum: para os curiosos, Beremiz Samir (personagem principal da obra, viajante e grande matemático Persa) resolveu o problema do mercador da seguinte forma: primeiro dividiu as pérolas em três grupos, grupos A e B com 3 pérolas cada e o grupo C com as duas restantes. Levou os grupos A e B para a balança, cada grupo em um prato (primeira pesagem). Se os pesos forem iguais, a mais leve está no grupo C, assim bastaria levar as duas pérolas do Grupo C para a segunda pesagem para definir a mais leve. Caso os grupos A e B apresentem pesos diferentes, basta separar o grupo que pesou menos, pois a pérola mais leve certamente estará lá. Vamos supor que o grupo A pesou menos. Separamos então as três pérolas do Grupo A e colocamos duas delas na balança, se os pesos forem iguais, a mais leve é a que não foi colocada na balança. Se os pesos forem diferentes, a mais leve está na balança. Problema resolvido!Tahan, Malba, 1885-1974. O homem que calculava. Rio de Janeiro: 40ª ed., Record, 1995

Foto do post: Pau Casals on Unsplash