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Placa avisando o caminho errado

Luciana da Veiga Oliveira

Medicamentos de dispensação excepcional: retrocesso ou necessidade?

Quando se trata de judicialização da saúde, há uma inversão de papéis há muito discutida, entre o judiciário e o executivo, a quem cabe a gestão da saúde pública no país.

A possibilidade de o judiciário intervir na política pública de saúde vem sendo sacramentada em diversos julgados dos tribunais superiores, o que nos traz a necessidade de refletir sobre a imperatividade de adequação administrativa visando evitar maiores danos não só financeiros mas à principiologia do sistema público, fundado na universalidade de acesso e igualdade.

Quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou o Recurso Especial 1657156, submetido ao rito dos recursos repetitivos (Tema 106), decidiu que há situações que não se enquadram no rol taxativo estabelecido pelo Sistema Único de Saúde e que há situações que não são atendidas pela saúde pública.

Ante tal constatação, decidiu o STJ pela obrigação do poder público no fornecimento de medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS, desde que presentes, cumulativamente, os seguintes requisitos:

  1. Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;
  2. Incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo do medicamento prescrito; e
  3. Existência de registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ou autorização de uso.

A decisão é de observância obrigatória pelos órgãos jurisdicionais inferiores, o que veio a legitimar a possibilidade do Judiciário determinar o fornecimento de medicamentos não incorporados, levando a milhares de ações no poder judiciário.

Hoje existe no SUS uma taxatividade sobre o que é oferecido pelo sistema. Mas nem sempre foi assim.

Houve um tempo em que o sistema público de saúde reconhecia a impossibilidade de pretender a definição de um elenco taxativo de tratamento para atender todas as possibilidades fáticas num universo de milhões de pacientes.

As doenças são dinâmicas, as situações dos pacientes peculiares e sempre haverá necessidade de adequação.

Seguindo essa premissa, a partir de 1982, ainda nos tempos do INAMPS, era permitida em caráter excepcional a aquisição de medicamentos não constantes da relação nacional de medicamentos essenciais (RENAME), quando a natureza ou a gravidade da doença e as condições peculiares do paciente o exigiam e desde que não houvesse na RENAME medicamento substitutivo aplicável ao caso concreto (Portaria Interministerial nº 3 MPAS/MS/MEC, de 15 de dezembro de 1982).

O médico prescritor deveria apresentar solicitação justificada e homologada pelo prestador do serviço de saúde.

Não havia um elenco de medicamentos considerados excepcionais, todos os medicamentos que não constassem na RENAME da época poderiam ser considerados excepcionais e disponibilizados ao paciente.

A redação da Portaria traz os mesmos fundamentos hoje impostos pelo STJ para permitir decisões judiciais, com exceção da exigência de demonstração de incapacidade financeira (de constitucionalidade duvidosa frente à universalidade do SUS).

Com o tempo, o regramento aberto de permitir que o gestor analisasse caso a caso as situações excepcionais e atendesse as excepcionalidades, foi cedendo espaço para uma lista paralela à RENAME, na qual passaram a ser discriminados os medicamentos excepcionais.

Passo a passo, com o incremento da lista, cada vez mais o sistema foi se distanciando da premissa original, qual seja, de que haveria situações excepcionais que não poderiam ser regradas de plano.

Posteriormente, os medicamentos excepcionais foram substituídos pelo componente especializado.

Hoje, na prática, o que há é a recriação do componente excepcional, só que nas mãos do judiciário, numa clara inversão de papéis.

O que o Judiciário faz, em atenção ao decidido no repetitivo, é verificar se há comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS, seguindo praticamente os mesmos critérios exigidos pela administração à época em que a dispensação excepcional era permitida pelo sistema público.

A dispensação somente do que está incorporado seria o ideal dentro de um sistema público de saúde, que foi desenhado para atender a coletividade. No entanto, a judicialização excessiva e a resposta dos tribunais superiores vem demonstrando que o sistema não está atendendo à contento àquilo que a sociedade entendeu como necessário – ressalvo aqui meu entendimento pessoal sobre a adequação ou mesmo prudência em relação a vários pontos dessa constatação jurisprudencial.

A criação da CONITEC e de um procedimento objetivo e com prazo certo para a incorporação de novas tecnologias em saúde foi um avanço enorme. Todavia, quer pela não avaliação de tecnologias muito judicializadas, quer pela demora na avaliação e incorporação ou pela resposta negativa frente a outras evidências científicas de grau elevado – ou quer pela interpretação da integralidade tal como apresentada na constituição -, o fato é que o sistema criado pela Lei nº 12.401/2011 não tem se mostrado suficiente para frear a judicialização.

Assim, é imperioso que a administração pública repense a possibilidade de recriar, ainda que para situações pontuais e com regras efetivamente limitadoras, algum sistema administrativo com a mesma essência do extinto sistema que permitia a dispensação excepcional de medicamentos.

Ainda que se possa argumentar que na época do componente excepcional a saúde pública não tinha abrangência universal, de modo que o impacto financeiro era menor, o que impediria a recriação da sistemática nos dias de hoje, o que ocorre é que, na prática, o componente excepcional foi recriado, só que nas mãos do judiciário.

Não só foi recriado nas mãos do poder que não deveria ditar políticas públicas, mas o foi com custos financeiros desnecessários e importantes, seja com o movimento da máquina do judiciário, de financiamento público, seja com os custos do processo (custas, perícias, honorários), seja com o custo de aquisição individualizado, inevitavelmente mais alto, sem controle administrativo, sem possibilidade de compra centralizada, etc.

Não só os custos financeiros são relevantes, mas também o impacto na desorganização do sistema e no afastamento dos princípios que regem o Sistema Único de Saúde, em especial da universalidade e igualdade de acesso.

Não se está aqui a defender a extinção do rol de medicamentos padronizados, mas sim a coexistência com a possiblidade de dispensação excepcional, quando a excepcionalidade do caso assim indique.

A dispensação poderia se dar, como visto acima, com regras efetivamente excepcionais e limitadoras, nas situações em que há efetivo vazio administrativo; para doenças raras; quando ainda não foi possível a análise ou quando a situação do caso concreto foge ao quadro que foi analisado pela CONITEC; ou ao menos para atender pontualmente situações mais graves e de maior risco no intervalo desde a incorporação até a efetiva disponibilização – prazo esse que, como sabemos, em grande parte das vezes ultrapassa em muito o prazo legal de 180 dias – ou nos casos em que a incorporação ainda não foi efetivada ante a ausência de pactuação de preço com a indústria.

A mera possibilidade de requerimento de dispensação excepcional abriria espaço para o diálogo entre prescritor, paciente e gestão, possibilitando a mediação, o acertamento de condutas, o controle e análise da prescrição pela administração, análise essa muito mais efetiva naquele espaço, que é o mais adequado, pela sua estrutura e pela qualificação técnica dos que lá atuam, do que a análise que é feita hoje pelo judiciário.

Poderia também se argumentar que a dispensação excepcional tal como anteriormente regrada seria um retrocesso, pois criaria um sistema de incorporação às avessas, contrário ao disposto na Lei nº 12.401/2011, paralelo àquele implementado pela CONITEC.

É um fato.

Mas também é um fato que a incorporação às avessas já foi criada, só que está a cargo do Judiciário.

Importante, portanto, que façamos o seguinte questionamento: há possibilidade real, tangível, de a jurisprudência pátria rever nos próximos anos a interpretação que permite ao judiciário condenar o poder público a fornecer medicamentos não padronizados?

Se a resposta for sim, talvez a reflexão aqui trazida não faça sentido.

Se a resposta for não – como me parece que é – ou mesmo se a resposta for sim, mas num longo prazo, deveria o poder executivo persistir na situação de passividade?

Persistir na passividade ou na obstinação por não mudar o que já está posto e regrado por certo não mitigará os danos, de modo que é premente buscar alternativas para que o Poder Executivo retome uma atribuição que é sua, ainda que as alternativas sejam imperfeitas. 

Ao abrir mão de manter a decisão sobre a excepcionalidade dentro da esfera administrativa, o sistema de saúde cria para si impactos desnecessários, não só por razões financeiras, econômicas e administrativas, como visto acima, mas também por permitir a violação aos princípios da universalidade e da igualdade, princípios estes que somente podem ser garantidos se a excepcionalidade for analisada dentro do sistema, o qual padronizará o acesso a todos que utilizem o SUS, o que não é assegurado se o acesso ao excepcional somente for garantido àqueles que procurem o poder judiciário.

A necessidade de coexistência dos dois sistemas, um rol e uma excepcionalidade, criada pela jurisprudência dos tribunais pátrios, faz lembrar trecho da peça “a exceção e a regra”, de Bertolt Brecht.

A reflexão não vem pelo título da peça – apesar deste trazer à lembrança a constatação da excepcionalidade sempre existente e necessária – mas sim por um pequeno trecho da narrativa.

A peça trata do julgamento de um homicídio ocorrido durante uma viagem pelo deserto, que tinha como viajantes um comerciante, um guia e um carregador. Durante a viagem o comerciante reflete sobre as diferenças sociais entre os três viajantes e considera que sua desvantagem numérica poderia fazer com que os outros dois se unissem contra ele, assim, decide por demitir o guia,  continuando  a viagem  apenas  com  o  carregador,  que era um homem mais simples, menos instruído e desprotegido pela lei. A estratégia se revelou catastrófica, pois a ausência do guia não eliminou as desconfianças que o comerciante tinha em relação ao outro viajante e trouxe mais conflitos, como ambos não conheciam o caminho, andaram em círculos até acabarem perdidos no deserto. A situação, que ao fim e ao cabo foi gerada pela demissão do guia, leva ao clímax da peça – o comerciante mata o carregador numa situação de erro gerado por seus preconceitos.

O sistema público contava com dois componentes, um padronizado, mais simples, menos sujeito a erros, outro mais complexo, que claramente trazia mais dificuldades operacionais.

Optou por manter somente um deles, o mais simples. A escolha acabou com o tempo se mostrando equivocada, pois a complexidade da viagem demandou a presença de ambos.

Ambos os companheiros de viagem eram necessários, ainda que trouxessem dificuldades ao comerciante. Um para dar rumo (RENAME e demais padronizações), outro para carregar o peso (excepcionalidade).

Ao recriar a possibilidade de acesso excepcional a medicamentos, a administração pública retomaria para si a parte da gestão da política pública em saúde que foi entregue ao judiciário, nas mãos de quem não deveria estar.

Foto do post: NeONBRAND on Unsplash

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