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legos em deferência

Bruno Henrique Silva Santos

Deferência judicial e controlabilidade das decisões da Conitec: o caso do nusinersena

1. Introdução

Este artigo traz uma avaliação crítica dos diversos posicionamentos expressados pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) nas vezes em que se manifestou sobre a incorporação do medicamento nusinersena para o tratamento de Atrofia da Medula Espinhal – AME. O tratamento é de custo elevadíssimo e a doença é rara e muito grave. Daí decorre a relevância das análises feitas pelo órgão, tanto em relação à própria política de assistência farmacêutica como em relação à judicialização da saúde.

Antes de mais nada, é preciso enaltecer a existência e o trabalho desenvolvido pela Conitec para a qualificação do SUS. A comissão, sem dúvida, foi uma das maiores conquistas do sistema público de saúde. Sua atuação é fundamental para a existência de uma política de assistência terapêutica qualificada, para a sustentabilidade do SUS e para a incorporação real da ciência como padrão de conduta no trato da saúde dos cidadãos. O trabalho por ela desempenhado é digno de elogios.

As considerações feitas neste texto têm como propósito apenas contribuir para o contínuo aprimoramento das atividades da Conitec e para uma aproximação harmoniosa entre ela e o Poder Judiciário, que cada vez mais é chamado a se manifestar sobre as questões avaliadas pela comissão de avaliação de tecnologias em saúde.

2. Deferência judicial e controlabilidade das decisões da Conitec

A importância da deferência judicial às análises e decisões técnicas da Administração Pública na fixação da política de assistência farmacêutica é inquestionável. De fato, o Poder Executivo – especialmente por meio da Conitec – é a instância com competência, legitimidade e capacidade técnica para avaliar as novas tecnologias em saúde passíveis de incorporação ao SUS, devendo as suas decisões ser respeitadas pelo Poder Judiciário, que normalmente atua em caráter pontual nas demandas de saúde, sem uma perspectiva global e necessária para o aperfeiçoamento e a sustentabilidade do SUS.

Por essas razões, havendo decisão expressa do Ministério da Saúde, após a devida avaliação da Conitec, pela não incorporação de um determinado medicamento ao SUS, não cabe, via de regra, ao Poder Judiciário imiscuir-se em nova análise e desconsiderar a decisão do gestor e do órgão técnico capacitado para avaliação de tecnologias em saúde.

Isso não significa, entretanto, que as avaliações técnicas e as decisões sobre incorporação de medicamentos ao SUS estejam imunes a qualquer apreciação judicial. Na medida em que tais atos impactam diretamente no direito fundamental à saúde (seja ele analisado sob a perspectiva individual ou coletiva), é atribuição do Poder Judiciário verificar se a Administração atua segundo o dever constitucional a ela imposto de proteção aos direitos fundamentais e dentro da margem de discricionariedade atribuída.

Neste cenário, ainda que o Poder Judiciário não seja o órgão tecnicamente preparado para a avaliação da necessidade e da conveniência de incorporação de novos tratamentos ao SUS, ele deve atuar no controle da Administração ao menos em relação a critérios de legalidade, razoabilidade e motivação das decisões administrativas, de forma a assegurar que o Poder Executivo exerça suas competências de forma satisfatória e legítima. Para tanto, é de suma importância que a motivação dos atos administrativos, especialmente daqueles que interferem no delineamento dos direitos fundamentais, seja adequada para justificar as razões pelas quais o Estado nega uma proteção pretendida pelo cidadão, ainda que por meio da instituição de uma política pública que não atenda ao caso concreto por fatos compreensíveis.

Especificamente na tutela do direito à saúde, é preciso que as decisões que recusam a incorporação de novos tratamentos ao SUS demonstrem de forma objetiva e consistente as razões que as fundamentam. É assim que se legitima a política pública, mesmo que ela não seja capaz de atender a todos os anseios dos cidadãos.

Como bem ensina CASS SUNSTEIN (The Cost-Benefit Revolution, p. 153, aqui em livre tradução):

“A desconfiança nas decisões de uma agência pode produzir considerações compensatórias. Se as agências são sistematicamente enviesadas ou se erros graves de análise são prováveis, a revisão da arbitrariedade pode ser intensificada.”

É justamente a clara motivação das decisões que afasta a desconfiança do órgão controlador e, consequentemente, reduz as chances de sua revisão.

Enfim, o dever de deferência do Judiciário às decisões técnicas da Administração pressupõe, no mínimo, que elas sejam satisfatoriamente justificadas. Com isso, os juízes podem ao menos compreender as razões de decidir e visualizar a sua razoabilidade, ainda que com elas não concordem.

Por esses motivos é que tanto a doutrina como a jurisprudência admitem, ao lado da deferência, um controle judicial mínimo sobre a competência e a motivação das decisões técnicas proferidas pelo Poder Executivo, inclusive para afastá-las quando for o caso.

 No voto condutor do acórdão que resultou na tese do Tema 500/STF (RE 657.718/MG) – relativo à obrigação do Estado de fornecer medicamentos não registrados na ANVISA – o ministro Roberto Barroso, após salientar a importância do respeito, pelo Poder Judiciário, às decisões técnicas da agência reguladora, ponderou que “isso, é claro, não impede a propositura de demandas judiciais que questionem a própria decisão da agência, comprovando-se técnica e cientificamente que foi equivocada”.

O voto do ministro Edson Fachin no mesmo julgamento tratou de forma substanciosa dos limites do controle judicial sobre as decisões das agências reguladoras. O seguinte trecho é digno de nota:

Em termos práticos, isso impõe ao Estado o dever de dar transparência às decisões tomadas pelas agências reguladoras. A transparência deve, ainda, atingir a todos os que forem afetados pela decisão. Ademais, deve a decisão também ter fundamentos verificáveis, isto é, ainda que se discorde das razões adotadas, todos devem reconhecer como suficiente para se chegar às conclusões as razões apresentadas. Finalmente, devem as agências garantir o direito de recurso ou revisão por parte daqueles que direta ou indiretamente possam ser afetados pela decisão

Com efeito, ainda que se discorde da decisão tomada em uma avaliação de tecnologia em saúde, é primordial que se compreenda ao menos as razões que a justificam para que, então, se exija deferência judicial. O dever de motivação (art. 2º da Lei nº 9.784/99) ganha especial relevo.

Lecionando sobre a correlação entre a deferência judicial e o dever de motivação na experiência estrangeira, EDUARDO JORDÃO1Controle Judicial de Uma Administração Pública Complexa – A Experiência Estrangeira na Adaptação da Intensidade do Controle – Melheiros Editores, p. 114 assim escreve:

A integração do dever de motivação no controle substancial deferente - Os tribunais de Estados Unidos e Canadá ampliaram a relevância do dever de motivação ao basear fortemente sobre ele o controle judicial substantivo, para o qual já haviam consagrado uma orientação deferente. Em suma, passou-se a considerar uma decisão juridicamente válida quando bem motivada. Neste contexto, a "razoabilidade" de uma decisão, por exemplo, deixa de ser examinada em relação a padrões substantivos próprios dos tribunais, e ganha conteúdo procedimental. A decisão razoável não é aquela que não se afaste consideravelmente de uma opção substancial de predileção dos tribunais, mas aquela que tenha sido adotada de forma transparente e bem justificada pela administração pública.

Novamente tratando da questão, mas desta vez no julgamento do Tema 6/STF (RE 566.471), relacionado ao dever do Estado de fornecer medicamentos de alto custo não incorporados ao SUS, o ministro Roberto Barroso assim se manifestou em seu voto:

Por isso, nos casos em que a CONITEC chegou a avaliar pedido de incorporação de medicamento, mas concluiu de modo desfavorável ao fornecimento gratuito do fármaco pelo Poder Público, deve-se privilegiar a decisão técnica do órgão responsável. Nessa situação, o que se deve poder questionar na via judicial é tão somente a fundamentação técnica e científica da decisão do SUS de não incluir a tecnologia nas listas de dispensação existentes.

Uma questão complexa que se coloca na hipótese de o Poder Judiciário concluir que a decisão do órgão gestor ou técnico do Poder Executivo possui vício de fundamentação ou falha técnica evidente é definir quais as consequências disso para o caso concreto.

Poderia o juiz determinar que o órgão ou autoridade responsável pela decisão suprisse a falha constatada, fazendo com que a interferência judicial no ato administrativo fosse mínima. Essa seria, em tese, a solução mais adequada para a preservação da competência do Poder Executivo. Por outro lado, poderia trazer consequências negativas para o processo que trate da situação individual de um paciente, que deveria aguardar a convalidação do ato administrativo que possivelmente demandaria tempo considerável.

Uma outra alternativa seria o juiz prestar a devida deferência à decisão administrativa ainda que considere a mácula na motivação ou a falha técnica, mas paralelamente a isso adotar medidas destinadas a regularizá-la para situações futuras, como a comunicação do fato ao órgão ou autoridade prolator ou a órgãos de fiscalização e controle de seus atos.

Uma terceira hipótese seria o juiz, reputando o ato nulo pela falha ou ausência de motivação ou mesmo por equívocos técnicos flagrantes, desconsiderá-lo no julgamento da ação individual, valendo-se de outras provas e informações técnicas para decidi-la.

Este é um tema realmente complexo que merece ser discutido separadamente.

Feitos esses esclarecimentos, é importante verificar como a Conitec se manifestou sobre a incorporação do nusinersena ao SUS para o tratamento da AME.

3. A avaliação da Conitec sobre a incorporação do nusinsersena para o tratamento da AME  

Em um primeiro momento, a Conitec avaliou a viabilidade de incorporação do nusinersena para o tratamento da AME Tipo I.

ROSÂNGELA CAETANO, RENATA CURI HAUEGEN E CLAUDIA GARCIA SERPA OSORIO-DE-CASTRO, em valioso artigo acerca da incorporação do fármaco ao SUS, assim relataram as sucessivas provocações e manifestações da Conitec:

Ocorreram duas solicitações de apreciação de incorporação do medicamento, separadas por um ano. A primeira demanda foi submetida pela SCTIE/MS em janeiro de 2018. Recomendação preliminar de não incorporação foi feita na 69ª reunião ordinária de agosto de 2018 e submetida à consulta pública por 20 dias, tendo recebido 36.972 contribuições. Na 72ª reunião ordinária, em novembro de 2018, as contribuições foram apreciadas. Conforme ata pública dessa reunião, estudos publicados após a busca feita para o relatório da CONITEC foram revisados e seus resultados corroboravam a recomendação de não incorporação. O Plenário entendeu que não houve evidência suficiente para alterar sua recomendação inicial e deliberou, por unanimidade, manter a não incorporação. O Relatório nº 400 correspondente à deliberação final não está disponível nas páginas eletrônicas da CONITEC; a demanda consta apenas como “processo encerrado a pedido do demandante”.
Em dezembro de 2018, a Advocacia Geral da União (AGU) emitiu o Parecer nº 01377/2018/CONJUR-MS/CGU/AGU17 em atendimento à consulta do então Secretário da SCTIE/MS, que versava sobre a possibilidade de sua decisão em sentido diverso da recomendação do Plenário da CONITEC. Segundo o Parecer, o Despacho SCTIE s/n (documento SEI “7088380”) traz como “principal motivação do não acatamento do relatório da CONITEC a existência de uma nova proposta de preço por parte da empresa Biogen, proposta essa ocorrida após a avaliação já realizada pela CONITEC” (argumento 38). Afirma que, ao entender como “pertinente a incorporação do medicamento nusinersena para todos os com AME 5q, independentemente de fenótipo...” (p. 3-4), o Despacho realiza “ampliação objetiva do escopo técnico da matéria”, uma vez que a apreciação da CONITEC se limitou à indicação para AME 5q tipo I. A AGU discute também que a nova proposta de preço não resolve a “fragilidade das evidências clínicas referidas na recomendação da CONITEC” (argumento 31).
O Parecer transcreve o resumo executivo do Relatório nº 400 da CONITEC, destacando os critérios que subsidiaram a recomendação de não incorporação (argumento 36). Diante das atribuições legais de competência, ressalta que, apesar do caráter de assessoramento das atividades da CONITEC, “não se pode concluir pela existência de um poder amplo e ilimitado de revisão, pelo SecretaÌrio da SCTIE, do entendimento exarado pela CONITEC” (argumento 23). Finaliza, considerando que “não obstante haver, de fato, a possibilidade do Secretário da SCTIE/MS, a priori, decidir”, pode “haver grave insegurança jurídica na opção pela decisão de não acatamento da recomendação da CONITEC”. Orienta que a SCTIE/MS, caso opte por não acatar a recomendação da CONITEC, promova nova submissão.
Em janeiro de 2019, nova submissão foi realizada, com indicação sem restrição por tipo de AME, tendo por demandante o fabricante. No relatório preliminar da CONITEC de março de 2019 consta, contudo, recomendação favorável de incorporação apenas para o tratamento da AME 5q tipo I, por considerar que os estudos avaliando a doença de início tardio eram escassos.
(...)
A nova recomendação foi submetida à consulta pública por 10 dias, recebendo 41.787 contribuições. Dos 172 relatórios com recomendação final favorável de incorporação pela CONITEC entre janeiro de 2012 e abril de 2019, 123 foram submetidos à consulta pública. As contribuições do nusinersena correspondem a 55,8% do total de 74.900 contribuições Tabela 3. O número máximo de contribuições até então tinha ocorrido na avaliação das insulinas análogas de ação prolongada para o tratamento de diabetes mellitus tipo I (2.574).
(...)
Em 4 de abril, apenas uma semana após o término da consulta, o Plenário da Comissão deliberou, também por unanimidade, pela incorporação do fármaco para o tratamento da AME 5q tipo I.
No relatório final da CONITEC, as condições estabelecidas diferem da recomendação preliminar. Continua exigido o diagnóstico confirmatório e que os pacientes não estejam em ventilação mecânica invasiva permanente contínua, mas não existem menções à idade ou ao intervalo de tempo para o início do tratamento. Também não há mais referência à doação de frascos e sim à negociação de preço com o fabricante. Consta ainda que, caso sejam apresentadas evidências adicionais sobre eficácia, efetividade e segurança do nusinersena para o tratamento dos tipos II e III de AME 5q, o tema poderá ser reavaliado pela CONITEC.
(...)
A Portaria SCTIE nº 24 foi assinada em 24 de abril de 2019. A sessão ocorreu no Senado, com o Ministro da Saúde informando que a aquisição do nusinersena seria realizada sob nova modalidade de compras, a partilha de risco.

Como se vê, em novembro/2018 a CONITEC emitiu relatório final (não disponível em sua página na internet) ratificando relatório inicial que recomendava a não incorporação do nusinersena para a AME ao SUS. Na ocasião, reputou-se não existirem evidências científicas seguras de sua efetividade.

Em janeiro/2019, nova consulta à agência foi feita, sendo pouco provável que em intervalo de tempo tão curto novas evidências científicas tenham surgido. Ainda assim, em março/2019 a CONITEC emitiu novo relatório, desta vez recomendando a incorporação do medicamento para o Tipo I da doença, o que foi confirmado no relatório final emitido logo na sequência, em abril/2019.

Esse mesmo relatório de abril de 2019 concluiu pela ausência de evidências científicas seguras a respeito da eficácia e efetividade do Nusinersena para o tratamento da AME tipos II e III, ou do tipo I com diagnóstico tardio.

Por essa razão é que foi feita a seguinte ressalva na Recomendação Final:

(...) A CONITEC informa que caso sejam apresentadas evidências adicionais sobre eficácia, efetividade e segurança do nusinersena para tratamento dos tipos II e III de AME 5q, o tema poderá ser reavaliado.

Em síntese, mesmo diante da ausência de evidências científicas robustas a respeito dos benefícios do Nusinersena no tratamento da AME Tipos II e III, os estudos ao menos sugeriam que o medicamento poderia ser eficaz também nestes casos, o que precisaria ser confirmado.

Justamente em razão dessa possibilidade é que o Ministério da Saúde, de forma inovadora, chegou a editar a Portaria GM nº 1.297, de 11 de junho de 2019, que “institui projeto piloto de acordo de compartilhamento de risco para incorporação de tecnologias em saúde, para oferecer acesso ao medicamento Spinraza (Nusinersena) para o tratamento da Atrofia Muscular Espinhal (AME 5q) tipos II e III no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS”.

É importante sublinhar que a Portaria GM nº 1.297/2019 não incorporou incondicionalmente o Nusinersena ao SUS para o tratamento da AME Tipos II e III. Ela apenas autorizou que fosse firmado um acordo de compartilhamento de riscos com a fabricante do medicamento, de maneira que, até que coletadas maiores evidências da eficácia do fármaco nestes casos, os custos financeiros do tratamento fossem repartidos entre o Ministério da Saúde e a indústria farmacêutica, na forma e nas condições que viessem a ser pactuadas.

Acontece que, nada obstante essa intenção inicial do Ministério da Saúde, no final do ano de 2020 tomou-se conhecimento de que a opção pelo acordo de compartilhamento de riscos não chegou a bom termo, tendo sido encerrada antes mesmo de sua implementação.

Ainda que não se disponha de informações oficiais a respeito, já que o Ministério da Saúde não se manifestou de forma clara e objetiva perante os cidadãos, a empresa fabricante do produto veio a público comunicar a ausência de êxito na formalização do acordo, noticiando o seguinte:

Orientada pelo princípio da transparência e comprometimento, a Biogen Brasil Produtos Farmacêuticos Ltda. (“Biogen”) vem, por meio desta, trazer esclarecimentos sobre o andamento do acordo de compartilhamento de risco por desfecho. Em audiência com representantes da Biogen Brasil na última semana, o Ministério da Saúde colocou que, após explorar diversas alternativas, não foi encontrada solução que viabilizasse a aquisição e dispensação do nursinersena para atender aos pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) tipos II e III, tal como originalmente planejado. A orientação é que a Biogen faça uma nova submissão à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec).

Na sequência, frustrada a iniciativa do acordo de compartilhamento de riscos, a Conitec avaliou o pedido de incorporação do nusinersena para o tratamento da AME Tipos II e III, o que se deu pelo Relatório de Recomendação nº 595 de 2021. A agência emitiu deliberação preliminar não recomendando a incorporação do tratamento. Eis a síntese das razões de que se valeu, segundo o próprio relatório:

Recomendação preliminar: Pelo exposto, os membros do plenário da Conitec, em sua 92ª reunião ordinária, no dia 05 de novembro de 2020, deliberaram por maioria simples dos presentes, que a matéria fosse disponibilizada em consulta pública com recomendação preliminar não favorável à ampliação de uso no SUS, do medicamento nusinersena para AME tipos II e III. Foi discutido sobre a possível influência de outras intervenções (por exemplo, cuidados fisioterapêuticos e OPME) no desfecho dos pacientes, comparado ao que seria oferecido pelo medicamento nusinersena e a importância da administração precoce para a obtenção dos desfechos esperados. Alguns membros do plenário apontaram também que o benefício dessa tecnologia isolada, apesar de existente, não é capaz de modificar o curso da doença e, do ponto de vista do custo-benefício, não justifica o montante de recursos necessários para sua implementação.

O processo foi, então, submetido a consulta pública, cujas contribuições a Conitec entendeu terem sido insuficientes para a modificação da recomendação preliminar, que foi, portanto, ratificada na recomendação final. Vejamos:

14. RECOMENDAÇÃO FINAL
Os membros da Conitec presentes na 94ª reunião ordinária, no dia 04 de fevereiro de 2021, deliberaram, por maioria simples dos votos, recomendar a não incorporação do nusinersena para o tratamento de AME 5q tipos II e III (início tardio). Os membros presentes entenderam que não houve argumentação suficiente para alterar a recomendação preliminar. Foi assinado o Registro de Deliberação nº 590/2021.
Ainda assim, sucedeu-se a realização de audiência pública que teve como finalidade "ouvir a sociedade sobre a proposta de incorporação do nusinersena para o tratamento da Atrofia Muscular Espinhal (AME) 5q dos tipos 2 e 3 e recepcionar contribuições, de modo a levantar mais subsídios, além dos já compilados no relatório técnico final da Comissão, para a tomada de decisão, após a demanda de diversos segmentos da sociedade".

A audiência contou com a participação de representantes das mais diversas instituições envolvidas na discussão (fabricante, gestores do SUS, profissionais da saúde, pesquisadores, membros da sociedade civil etc.), que expuseram os respectivos e variados pontos de vista a respeito da conveniência ou necessidade de incorporação do nusinersena ao SUS para o tratamento da AME Tipos II e III.

Ocorre que o relatório de recomendação, após compilar todas as opiniões e informações colhidas na audiência pública – as quais, frise-se, foram das mais diversas naturezas e nos mais diferentes sentidos – ateve-se a emitir uma “nova” recomendação final (após a audiência pública) no seguinte sentido, in verbis:

 16. RECOMENDAÇÃO FINAL APÓS A AUDIÊNCIA PÚBLICA 
Os membros da Conitec presentes na 5ª Reunião Extraordinária da Conitec, no dia 12 de maio de 2021, deliberaram, por maioria simples, modificar parcialmente a recomendação final da 94ª reunião ordinária. Tendo em vista o exposto na Audiência Pública nº 1/2021, os membros da Conitec recomendaram a incorporação do nusinersena para o tratamento da atrofia muscular espinhal 5q tipo II, com diagnóstico até os 18 meses de idade, conforme Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Ministério da Saúde; e pela não incorporação do nusinersena para tratamento da atrofia muscular espinhal 5q tipo III. Foi assinado o Registro de Deliberação nº 619/2021.

Com isso, o nusinersena foi efetivamente incorporado ao SUS também para o tratamento da AME Tipo II (Portaria SCTIE/MS Nº 26, DE 1º/06/2021), mas não para o Tipo III.

Da leitura do relatório não é possível inferir quais foram, exatamente, as informações colhidas na audiência pública que levaram a Conitec a alterar as recomendações inicial e final (antes da audiência pública, mas após a consulta pública) para, desta vez, sugerir a incorporação do medicamento para o tratamento da AME Tipo II. Da mesma maneira, não constam no relatório os fundamentos para que a incorporação do tratamento do Tipo III da doença permanecesse não recomendada. A agência ateve-se a explicar a mudança de posicionamento apenas “Tendo em vista o exposto na Audiência Pública nº 1/2021”

Como já dito, entretanto, inúmeras informações e opiniões foram expostas na audiência pública. Basta que se verifique o quadro 23 do relatório de recomendação para que se perceba quão variadas e até mesmo dissonantes elas são. Não há, portanto, forma de se extrair quais foram, de fato, os dados mais consistentes considerados pela Conitec para que revisse a recomendação contrária à incorporação do medicamento para a AME Tipo II, tampouco para que mantivesse a recomendação de não incorporação para a AME Tipo III.

Não houve, enfim, fundamentação clara e objetiva para a tão relevante mudança de postura. Grosso modo, seria algo como o juiz julgar procedente ou improcedente uma pretensão apenas “tendo em vista as provas dos autos”, o que evidentemente não atende ao dever de motivação.

Aliando este fato às bruscas e pouco compreensíveis mudanças de posicionamento da Conitec também na análise da incorporação do nusinersena para a AME Tipo I, conforme relatado acima, torna-se difícil prestar a aconselhável deferência judicial.

A deferência judicial é o acolhimento de decisões alheias que sejam bem fundamentadas e, portanto, compreensíveis. Não é um ato de fé, mas de respeito aos motivos demonstrados por aquele que tem competência e preparo para tratar da questão. Para se prestar deferência, não é necessário concordar com a decisão, mas é preciso bem entendê-la, tanto em relação aos fatos que a embasaram como em relação à avaliação sobre eles feita.

4. Conclusão

Para que a deferência judicial às decisões da Conitec seja satisfatoriamente atingida, é necessário que se trabalhe em duas frentes:

a) a conscientização dos juízes de que a Conitec é o órgão competente e qualificado para a avaliação de tecnologias em saúde a serem incorporadas ao SUS, de forma que suas análises e recomendações devem ser respeitadas porque feitas após rigoroso procedimento de levantamento das evidências científicas e de custo-efetividade; e

b) a conscientização da Conitec de que, quanto mais claros e objetivos forem seus relatórios e quanto mais fácil a identificação dos motivos que conduziram às recomendações firmadas, maior é a chance de serem acolhidos pelo Poder Judiciário.

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