Volta às aulas presenciais: do Inferno ao Paraíso

Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi retrovai per una selva oscura,
ché la diritta via era smarita. (I, 1-3)
(“No meio do caminho de nossa vida/ me encontrei numa selva escura/ pois havia me extraviado do caminho certo”)
(*) O Canto I – A Divina Comédia – Dante
O Direito à Educação está previsto na Constituição Federal, bem descrito no Estatuto da Criança e do Adolescente e já é percebido no cotidiano da sociedade brasileira como fundamental. Se a criança é prioridade absoluta, a educação, base da dignidade da pessoa humana, também deve ser entendida como talO presente artigo pretende abarcar aspectos diferentes da necessidade da educação, sem ser exaustivo, baseando-se em estudos recentes, possíveis e paradigmáticos, sobre os efeitos da ausência de aulas presenciais, por conta da pandemia provocada pelo vírus SARS-Cov-2. Foram utilizados estudos abrangentes, não se ignorando a existência de estudos com conclusões diversas, mas que não contribuiriam para o objeto do presente artigo, vez que são apenas o ponto de partida para a análise jurídica do tema..
Assim como Dante em sua jornada espiritual tinha VirgílioPoeta romano, autor de Eneida. para guiá-lo pelo inferno e o purgatório em direção ao paraíso, nossas crianças em sua jornada existencial têm o Professor a orientá-las.
Antes de encontrar Virgílio, Dante estava numa selva escura.
O Inferno
A pandemia causada pela Covid-19 provocou o fechamento das escolas, deixando mais de 168 milhões de crianças em todo o mundo sem aulas por quase um ano inteiro, de acordo com novos dados divulgados pela UNICEF. Além disso, cerca de 214 milhões de crianças em todo o mundo — 1 em cada 7 — perderam mais de três quartos de sua aprendizagem pessoal. O relatório mostra ainda que 14 países em todo o mundo permaneceram praticamente fechados desde março de 2020COVID-19 and school closures: one year of education disruption”. Unicef For Every Child. New York, 02 mar. 2021.. Levantamentos da UNESCO mostram que, em média, dois terços de um ano acadêmico foram perdidos em todo o mundo devido ao fechamento das escolasUNESCO figures show two thirds of an academic year lost on average worldwide due to Covid-19 school closures. Unesco Global Education Monitoring Report..
Dado alarmante que consta num relatório do Banco Mundial, divulgado em 17 de março do corrente ano, indica que o fechamento de escolas pode deixar 70% das crianças sem ler corretamente no BrasilCovid-19 no Brasil: impactos e respostas de políticas públicas. World Bank Group. p. 20-23. 10 jul. 2020..
Quanto à questão do retorno das aulas presenciais, um estudo financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), desenvolvido por pesquisadores do Center for Child Well-Being and Development (CCWD) da Universidade de Zurique, na Suíça, em parceria com a Seduc-SP, apontou que a reabertura das escolas para atividades presenciais facultativas no estado de São Paulo, no ano passado, não aumentou o número de casos nem de mortes por Covid-19Richand, Guilherme; Alberto Doria, Carlos; Cossi Fernandes, Joao Paulo; Leal Neto, Onicio, Reopening Schools in the Pandemic Did Not Increase COVID-19 Incidence and Mortality in Brazil (March 25, 2021). Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3812173 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3812173..
Da mesma forma, salienta-se que, no estudo médico realizado por Maria Esther Graf, Maria Teresa R. de A. Oliveira e Rubens Cat intitulado “Segurança do Retorno das Aulas durante a pandemia: Da saúde para a Educação”GRAF, Maria Esther; OLIVEIRA, Maria Teresa R. de A.; CAT, Rubens. SEGURANÇA DO RETORNO DAS AULAS DURANTE A PANDEMIA: da saúde para a educação. 20/02/2021., concluiu-se que o retorno das aulas presenciais, com a utilização dos protocolos adequados para a prevenção da disseminação do novo coronavírus possibilitam um processo de educação sanitária da população e não apresentam impactos negativos significativos na curva de internações e óbitos:
O risco de infecção dentro do ambiente escolar não é maior que o risco comunitário e, ainda, a reabertura não se associou à piora da pandemia. A escola somente reflete o quadro epidemiológico da comunidade, assim como as escolas abertas não aumentam número de casos, as fechadas não os diminuem.
Outrossim, o Levantamento Internacional de Retomada das Aulas PresenciaisDisponível em: https://fundacaolemann.org.br/storage/materials/XubyJSfFwKjlukoJ6dJ4XGspLn7uzzzQbcWkz7GG.pdf., elaborado pela organização Vozes da Educação, observou padrões em vários dos comportamentos e decisões tomadas pelos governos em diversos países e apontou a possibilidade de um retorno seguro.
Em suma, abordam-se os diversos aspectos que envolvem o funcionamento das escolas, inferindo que a reabertura das instituições de ensino não prejudicará o controle da pandemia.
O número de crianças e adolescentes sem acesso à educação no Brasil saltou de 1,1 milhão em 2019 para 5,1 milhões em 2020, de acordo com o estudo Cenário da Exclusão Escolar no Brasil – um Alerta sobre os Impactos da Pandemia da Covid-19 na Educação, lançado dia 29 de abril pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em parceria com o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) EducaçãoCenário da Exclusão Escolar no Brasil: Um alerta sobre os impactos da pandemia da Covid-19 na Educação. Unicef. Abr. 2021..
O mesmo estudo aponta que o não retorno às aulas tem como consequência direta a não alfabetização de grande parte da população infanto-juvenil brasileira, com a regressão da evasão escolar a patamares de duas décadas atrásidem.
As consequências indiretas têm as mais variadas matizes, sendo que algumas contêm dentro de si a brutalidade do ser humano. Vão desde a evasão escolar, o não fornecimento de merenda escolarVários lugares tiveram políticas de manutenção da merenda. Por exemplo, Curitiba forneceu um kit alimentação para os alunos matriculados na rede municipal de ensino., a exposição excessiva a telas de televisão e outros equipamentos, a regressão no aprendizado, o abandono das crianças sozinhas em casa e a depressão, a qual, em casos mais graves, leva ao suicídioEstudo conduzido em emergência pediátrica do Texas (EUA) aponta, nessa amostra, o odds ratio (OR) da ideação suicida foi de 1,6 vezes maior em março de 2020 do que em março de 2019 e 1,45 vezes maior em julho de 2020 do que em julho de 2020. Já com relação às tentativas de suicídio, o odds ratio foi maior em 2020 do que em 2019, sendo os valores de 1,58 (fevereiro), 2,34 (março), 1,75 (abril) e 1,77 (julho). O estudo não apresentou diferenças estatísticas com relação à ideação ou tentativa de suicídio entre gêneros ou grupos étnicos..
Outra faceta da questão bem conhecida, mas pouco discutida, é a exposição da criança à violência dos próprios familiares e pessoas próximasA esse respeito, um levantamento do Ministério da Saúde realizado em 2018 apontou que, em 76,5% dos casos de violência sexual no Brasil, as vítimas são crianças e adolescentes, e que 69,2% ocorreram dentro da residência, com quase 40% dos agressores sendo da família. In: Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico: Análise epidemiológica da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, 2011 a 2017. 27. ed. nº 49. Sistema Único de Saúde: Ministério da Saúde, 2018. 17p, p. 5., de maneira muito mais acentuada e constante.
O Professor é um profissional treinado para identificar sinais de depressão e outros males em seus alunos, bem como identificar e denunciar abusos em infantes, e, em casos extremos, representa a única possibilidade de socorro à criança.
Ainda que assim não fosse, a comparação da importância do ensino com as diversas outras atividades permitidas conduz à única conclusão de que, havendo a necessidade de restrição, esta deve necessariamente ocorrer em atividade não essencial.
O Purgatório
No purgatório, localizado numa alta montanha, Dante descreve o encontro com as almas que aguardam para serem avaliadas. Elas esperam saber se mediante os pecados cometidos em vida vão para o inferno ou para o paraíso.
No Paraná, a Lei Estadual nº 20.506/21 estabeleceu que os serviços educacionais são considerados essenciaisArt. 1º Considera de natureza essencial às atividades e serviços educacionais essencial prestados no âmbito do Sistema Estadual de Ensino do Paraná, inclusive na inclusive na inclusive na inclusive na forma presencial. §1º. As restrições ao direito de exercício dessas atividades, As restrições ao direito de exercício dessas atividades, determinadas pelo Poder Público, deverão ser precedidas de decisão administrativa do chefe do Poder Executivo Estadual, que indicará a extensão, os motivos, critérios técnicos e científicos. §2º. Os trabalhadores da educação são considerados grupo prioritário, nos termos do Plano Estadual de Vacinação do Governo do Estado do Paraná., e o Poder Executivo estadual autorizou o retorno das aulas presenciais a partir do dia 10 de março de 2021 por meio de Decreto Estadual nº 7.020/2021Art. 8º Fica autorizada, a partir do dia 10 de março de 2021, a retomada das aulas presenciais em escolas estaduais públicas e privadas, inclusive nas entidades conveniadas com o Estado do Paraná, e em Universidades públicas, mediante o cumprimento da Resolução nº 98/2021 da Secretaria de Estado da Saúde – SESA..
A competência legislativa concorrente prevista no art. 24, inciso XII, da Carta MagnaArt. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (…) XII – previdência social, proteção e defesa da saúde; dispõe que cabe à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar sobre saúde. O art. 30 da Constituição Federal determina que cabe à municipalidade legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar as legislações federal e estaduais.
O Poder Judiciário vem sendo chamado a decidir, em face de decretos estaduais e municipais que restringem o funcionamento de instituições de ensino, quanto aos aspectos de legalidade e legitimidade desses, vez que a conveniência e oportunidade são elementos adstritos à Administração Pública.
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6341/DF, em que foi discutida a repartição de competências relativas às medidas de enfrentamento à COVID-19, foi deferida medida cautelar, posteriormente referendada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que os Municípios detêm competência comum para legislar em proteção à saúde pública, no âmbito do enfrentamento ao contexto pandêmico, nos termos do art. 23, da Constituição Federal.
No entanto, essa competência comum se dá na medida que permite à municipalidade suplementar a legislação estadual e federal, não as contrariar.
Assim vem sendo decidido pelos nossos Tribunais, como na controvérsia envolvendo o município de Maringá/PR (autos nº 0014762-68.2021.8.16.0000), em que se entendeu que o decreto municipal que contrariou o disposto na legislação estadual incorreu em ilegalidade.
A esse respeito, ressalta-se que o Supremo Tribunal Federal se manifestou sobre aquele processo em decisão monocrática do Ministro Luiz Fux, em que o pleito de suspensão de segurança foi denegado, confirmando a tutela provisória recursal(…)Nada obstante a argumentação formulada pelo Município requerente, dos elementos constantes nos autos não se depreende claramente, acima de dúvida razoável, a existência de potencial lesão de natureza grave ao interesse público a ensejar a concessão da medida pleiteada. Com efeito, sem embargo da decisão administrativa municipal estar supostamente amparada em planejamentos e dados técnico-científicos (Decreto Municipal nº 632/2021), o Sindicato dos Estabelecimentos Particulares de Ensino do Noroeste do Estado do Paraná, que impetrou o mandado de segurança na origem, colacionou igualmente aos autos elementos científicos que em tese atestariam a possibilidade de retorno às aulas com segurança, considerando as medidas e protocolos a serem adotados, na forma autorizada no Decreto Estadual. (STF. Suspensão de Segurança 5.478 PR, Relator: min. Luiz Fux, publicação da decisão em 23/03/2021).
Não há, portanto, como aferir qualquer ilegalidade ou possibilidade de responsabilização do agente público que realizar a volta às aulasTambém LINDB – Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.
Mesmo submetendo o caso aos diversos sistemas jurídicos, a conclusão é a mesma. Na perspectiva positivista, sendo a educação atividade essencial e direito fundamental do ser humano, conforme previsto expressamente na Magna Carta e na legislação pátria, o Estado deve prover a educação, e não a impedir.
Já Robert Alexy faz uma leitura axiológica do ordenamento jurídico, concebendo os princípios como valores, e defende que a solução de eventuais conflitos entre eles deve ser feita mediante a aplicação do princípio da proporcionalidade, com uso de ponderação. Assim, quanto ao conflito entre a saúde e a educação, de uma maneira simplista, ponderando os valores, podemos conceber que os riscos da abertura das escolas são menores que das demais atividades permitidas, e as consequências da ausência do aprendizado são irreparáveis, conforme referenciado anteriormente neste artigo.
Para Ronald Dworkin, que faz uma leitura deontológica, entendendo que o conflito aparente entre princípios é um conflito entre normas jurídicas e, como tal, deve ser resolvido mediante o reconhecimento do caráter deontológico dos princípios, tendo em vista o caso concreto e considerando o direito em sua integridade, temos que a finalidade da preservação da saúde não é a negação da educação de nossas crianças, e a finalidade da educação é uma sociedade próspera, tanto do ponto de vista do cidadão, quanto da sociedade.
O artigo 21 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro prescreve que o juiz deve levar em conta as consequências em decisões que apreciam normas administrativasArt. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas..
Da mesma maneira, o administrador tem seu norte no princípio da finalidade e seguirá os princípios insculpidos no artigo 37 da Magna Carta.
Tudo isso dito, os alunos, porém, ainda que já não se encontrem totalmente desamparados (os que possuem os meios de atender às aulas virtuais), permanecem longe dos requisitos de aprendizado mínimos, contidos em uma aula presencial.
Do engenho meu a barca as velas solta
Para correr agora em mar jucundo,
E ao despiedoso pego a popa volta.Aquele reino cantarei segundo,
Onde pela alma a dita é merecida
De ir ao céu livre do pecado imundo.Ressurja ora a poesia amortecida,
Ó Santas Musas, a quem sou votado;
Unir ao canto meu seja servidaCalíope o som alto e sublimado,
Que às Pegas esperar não permitira
Lhes fosse o atrevimento perdoado.[Trecho do Purgatório de Dante (Canto I)]
O Paraíso
Os estudos mencionados trazem as evidências científicas necessárias para o retorno seguro às aulas, há manifestação favorável sobre o tema da mais alta Corte Brasileira, indicando a possibilidade de agir do administrador público em não só permitir a volta às aulas, mas realizá-la em todas as escolas e para todos os alunos.
Trata-se de ponderar os benefícios com os riscos.
A terceira e última parte da Divina Comédia é formada por 33 cantos. No paraíso Dante reencontra seu grande amor, Beatriz.
Ainda que Virgílio represente o saber, Beatriz representa o amor. Ela que guiou Dante pelo paraíso.
Todavia, Dante não pode permanecer com ela, visto que ainda seu caminho como mortal não havia terminado.
Nós temos que ter amor por nossas crianças, amor que, ao fim e ao cabo, é por nós mesmos.
A trajetória de Dante termina quando ele encontra com Deus.
Imagem do post: Igor Santos em fotos públicas