O instinto de sobrevivência faz parte da natureza de todos os animais. No ser humano, tido como o mais evoluído deles1Quando observo grupos de outros animais complexamente estruturados e vivendo de forma harmoniosa e inofensiva em relação aos próprios membros e à natureza, sem ódio, ganância e comportamentos autodestrutivos, como ocorre, por exemplo, com as formigas, as abelhas e as manadas de elefantes, fico em dúvida se somos realmente os seres mais evoluídos., a luta pela manutenção da vida tem como aliadas a inteligência e a experiência que nos são peculiares. Para atingirmos o grau de conhecimento científico atual que nos permite uma melhor compreensão das doenças e a obtenção de meios mais seguros e eficazes de combatê-las, muitas tentativas foram feitas e muitas falhas foram cometidas.
Métodos de tratamentos de doenças que hoje certamente seriam considerados bizarros foram outrora adotados ou testados por reputados médicos e cientistas. Já no século XIX, algumas clínicas nos EUA usavam teias de aranhas para a cicatrização de cortes. Pães mofados eram utilizados como antibióticos pela civilização persa. Na mesma época, médicos indianos buscavam tratar a asma fazendo com que os pacientes engolissem pequenos peixes vivos que pudessem desobstruir as vias aéreas (certamente não sabiam que o caminho levaria ao estômago, não aos pulmões). Na antiga Grécia, Hipócrates afirmava que a menstruação era uma maneira de a mulher se livrar das impurezas do corpo e do mau-humor. Talvez por isso é que as sangrias foram comumente empregadas na idade média para tratar enfermidades das mais diversas2Os exemplos foram extraídos da Revista Superinteressante.
Também em relação aos tratamentos medicamentos, muitas substâncias antes empregadas por profissionais gabaritados hoje soariam como piadas, tais como xarope de heroína para a tosse (utilizado até 1910), metanfetamina para combater a fadiga (Adolf Hitler era um usuário assíduo) ou mesmo a cocaína, recomendada por Freud como estimulante, anestésico e até mesmo tratamento afrodisíaco3Também aqui me socorri de exemplos da Revista Superinteressante.
É provável que nada disso fosse considerado um grande absurdo na época, e talvez com razão. Na falta de tecnologia avançada como a hoje existente e em estágios iniciais do conhecimento científico, o empirismo ou mesmo uma pitada de senso comum eram as bases dos tratamentos testados e empregados.
Felizmente, a evolução tecnológica hoje nos fornece as mais diversa gama de exames laboratoriais, testes de diversas naturezas e uma série de métodos científicos apurados para o diagnóstico das doenças e para a condução de rigorosas pesquisas destinadas a encontrar tratamentos seguros e eficazes. Tudo isso resultou na adoção da medicina baseada em evidências como plano de trabalho a nortear o desenvolvimento e o tratamento medicamentoso. Os benefícios trazidos pela tecnologia e pelas pesquisas científicas impõem, para que eles sejam seguros e efetivos, rigor técnico e metodológico.
O rigor e a técnica não têm como objetivo apenas assegurar a acurácia científica, mas também a saúde dos pacientes. Medicamentos mal desenvolvidos ou mal ministrados, sabemos todos, podem colocar a própria vida dos usuários em risco. É justamente aí que reside a importância da medicina baseada em evidências, que foi expressamente adotada como método científico a ser empregado na política de assistência farmacêutica do SUS.
Com efeito, o parágrafo único do art. 19-O da Lei nº 8.080/90 estabelece que os medicamentos inseridos nos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas do SUS “serão aqueles avaliados quanto à sua eficácia, segurança, efetividade e custo-efetividade para as diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde de que trata o protocolo”. Além disso, a inclusão, exclusão ou alteração dos medicamentos em tais protocolos e diretrizes são feitas pelo Ministério da Saúde após relatório técnico da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC), que deverá considerar, além de outras questões, “as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou procedimento objeto do processo, acatadas pelo órgão competente para o registro ou a autorização de uso” (art. 19-Q, §2º, I da Lei nº 8.080/90).
Não há margem para dúvidas. Sem a comprovação de evidências científicas da eficácia, acurácia, efetividade e segurança de um medicamento, ele não pode ser disponibilizado pelo SUS. Não se está a tratar, neste momento, de liberdade de prescrição médica e da responsabilidade do profissional que ministra ao paciente um medicamento em desacordo com as indicações, o registro ou as evidências existentes. O prisma de análise, aqui, é outro. Medicamento que não conta com evidências científicas não pode ser incorporado ou entregue pelo SUS. Trata-se de imposição legal expressa.
É bem verdade que o momento atual pelo qual todo o planeta passa, com a gravíssima pandemia do COVID-19 ceifando centenas de milhares de vidas em todos os continentes e deixando milhões de pessoas enfermas, inevitavelmente impõe uma busca desesperada e desenfreada pela descoberta de tratamentos ou vacinas contra a doença. A urgência que o caso requer resulta na pressa das pesquisas científicas que muitas vezes é incompatível com o rigor metodológico exigível, flexibilizando de certa forma a análise das evidências disponíveis. Isso, contudo, não significa um “vale tudo” científico ou a completa desconsideração da ciência nos padrões atuais. A medicina baseada em evidências continua existindo e devendo ser respeitada.
A ânsia pela cura de uma doença nova e avassaladora em termos de saúde pública torna compreensível que os cidadãos leigos estejam mais abertos a depositar suas esperanças em promessas de tratamentos com eficácia e segurança não comprovadas. A divulgação de opiniões particulares de profissionais da saúde não especialistas e desacompanhadas de qualquer respaldo científico ganha amplitude e acessibilidade irrestrita nas redes sociais, atingindo um público que não tem conhecimento técnico para discernir fatos de opiniões. Com isso, é fácil transformar preocupação em esperança.
É menos compreensível, mas aceitável que médicos busquem, quando munidos de bons propósitos e dentro de sua autonomia profissional responsável, tratar seus pacientes com medicamentos cuja eficácia ainda não esteja demonstrada de maneira incontroversa pela ciência, desde que com isso não coloque a saúde do paciente em perigo.
É inadmissível, entretanto, com base no ordenamento jurídico hoje existente, que gestores públicos disponibilizem a pacientes do SUS tratamentos medicamentosos cuja segurança, eficácia e efetividade não estejam comprovadas cientificamente. Note-se bem: não basta a inexistência de evidências de que a droga não funciona. É necessário que haja evidências científicas de que funciona e é segura.
A aquisição e a entrega, no âmbito do SUS, de medicamentos desprovidos de evidências científicas de segurança e eficácia infringe não apenas os arts. 19-0, parágrafo único e 19-Q, § 2º, I da Lei nº 8.080/90, mas também o princípio constitucional da eficiência da Administração, porque colocam em risco a saúde dos pacientes e acarretam gastos públicos que não produzirão os resultados a que se propõem, a menos que esses resultados sejam apenas uma esperança. Não é que o se espera de gestores de um sistema público de saúde notoriamente subfinanciado.
No julgamento da medida cautelar na ADI 6.427, que impugna o art. 2º da MP nº 966/20204Art. 2º Para fins do disposto nesta Medida Provisória, considera-se erro grosseiro o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia., o qual trata da responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da COVID-19, o Supremo Tribunal Federal firmou as seguintes teses, perfeitamente aplicáveis ao que aqui se discute:
1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. 2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos.
Como se percebe, o STF aliou a necessidade de comprovação de critérios científicos e técnicos seguros aos princípios da precaução e da prevenção. Fora desses parâmetros, a autoridade administrativa poderá ser corresponsável pelos danos que suas decisões causarem a terceiros.
Dentro de todo este contexto, convém trazer à tona o que vem ocorrendo no Brasil com pretensos tratamentos medicamentosos para o COVID-19. Para abreviar a análise, centremo-nos em dois medicamentos cuja prescrição para o tratamento da doença vem sendo defendida por alguns médicos e encampada por alguns gestores, que os tem disponibilizado à população através do SUS.
Um deles é a ivermectina, vermífugo já utilizado há longa data para outras doenças. Rumores de que ele poderia ajudar na prevenção ou combate ao novo coronavírus fizeram com que fosse largamente indicado país afora e utilizado pela população inclusive por conta própria, sem prescrição médica. Além de não haver estudos científicos confiáveis demonstrando a sua eficácia no tratamento, há pesquisas indicando o contrário, tais como uma triagem de drogas no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP. A Organização Pan-Americana de Saúde, vinculada à OMS, emitiu recomendação na qual consta que “os estudos sobre ivermectina tinham um alto risco de viés, muito pouca certeza de evidências, e as evidências existentes eram insuficientes para se chegar a uma conclusão sobre benefícios e danos”. Também a Sociedade Brasileira de Infectologia esclareceu, em informe elaborado em 30 de junho de 2020, que “os antiparasitários ivermectina e nitazoxanida parecem ter atividade in vitro contra a SARS-CoV-2, porém ainda não há comprovação de eficácia in vivo, isto é, em seres humanos. Muitos dos medicamentos que demonstraram ação antiviral in vitro (no laboratório) não tiveram o mesmo benefício in vivo (em seres humanos)”.
A situação é ainda mais séria em relação à hidroxicloroquina. Muito embora o próprio Ministério da Saúde tenha orientado o seu uso no tratamento do COVID-19 desde os estágios iniciais da doença, neste caso não se trata apenas de ausência de evidências científicas de segurança e eficácia, o que por si só já seria suficiente para a vedação de sua disponibilização pelo SUS. Mais do que isso, respeitados estudos científicos têm comprovado que o medicamento não tem eficácia alguma, trazendo ainda o risco de efeitos colaterais adversos nos pacientes. Um exemplo dentre vários outros é o recente estudo brasileiro considerado como “padrão ouro” (ensaio clínico randomizado) e publicado no New England Journal of Medicine, um dos mais respeitados do mundo, que contou com mais de 600 participantes atendidos em 55 hospitais. A suficiente demonstração de que a droga não produz efeitos no combate ao coronavírus levou a OMS a interromper os estudos sobre ela e a Associação Brasileira de Infectologia a recomendar, em seu Informe nº 16, que “a hidroxicloroquina seja abandonada no tratamento de qualquer fase da COVID-19” e que “os agentes públicos, incluindo municípios, estados e Ministério da Saúde reavaliem suas orientações de tratamento, não gastando dinheiro público em tratamentos que são comprovadamente ineficazes e que podem causar efeitos colaterais”.
Tamanhas evidências, bem como a não submissão da orientação do Ministério da Saúde sobre o uso da hidroxicloroquina para o tratamento do COVID-19 à análise da CONITEC tornam clara a ilegalidade da referida orientação.
Neste cenário, é preciso que se reflita profundamente sobre a responsabilidade de gestores e autoridades públicas, em todas as esferas do Poder, pelos recursos financeiros gastos com medicamentos que não possuem eficácia no tratamento do novo coronavírus ou cuja eficácia careça de indícios mínimos de evidências científicas, bem como pelos danos que venham a causar à saúde dos pacientes. A eficiência nos gastos públicos e no trato da vida humana é princípio constitucional que merece respeito.