Para mim, esse é um dos títulos mais bonitos da literatura universal. Hemingway inspirou-se num dos sermões do padre anglicano John Donne, que viveu no Século XVII.
“Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.”
Meditação XVII – John Donne
Os sinos fazem parte de uma tradição quase em desuso. Mas no passado eram reconhecidamente uma ‘voz’ importante em qualquer comunidade. Suas badaladas marcavam o tempo, acompanhavam solenemente a liturgia das missas, estabeleciam o compasso das procissões, anunciavam nascimentos, casamentos, funerais.
Hemingway, de certa forma, fala dos sinos que anunciam a morte de cada um de nós quando o que nos faz humano começa a morrer.
As obras de Hemingway, em geral, são bastante autobiográficas. Se ‘Adeus às Armas’ retrata as experiências que viveu durante a Primeira Guerra Mundial, quando se alistou na Cruz Vermelha e conseguiu uma vaga de motorista de ambulância na Itália, ‘Por Quem os Sinos Dobram’ é claramente influenciada pelos acontecimentos em torno da ‘ofensiva de Segóvia’, ocorrida durante a Guerra Civil Espanhola, época em que o Autor trabalhou como correspondente de guerra em Madrid.
Por quem os sinos dobram é uma obra extensa. A edição que eu li tem em torno de 650 páginas. No entanto, toda a história se passa em apenas três dias e meio da vida do protagonista Robert Jordan – um americano, professor de língua espanhola, que se alista junto ao exército republicano (que luta contra os fascistas) e é encarregado de explodir uma ponte estratégica para os fascistas, próxima à Segóvia.
Robert Jordan é enviado para sua missão numa região montanhosa, ocupada pelos guerrilheiros republicados, em sua maioria camponeses locais e ciganos. E são esses guerrilheiros que vão auxiliá-los em sua missão.
Tendo a Guerra Civil Espanhola como pano de fundo e a explosão da ponte como eixo condutor, a história ganha força a partir das relações de Robert Jordan e os guerrilheiros que ele encontra na montanha, em especial Pablo (velho guerrilheiro, atualmente bêbado e decadente, tomado de certa covardia, mas que no passado comandou o grupo com valentia e astúcia), Pilar (velha cigana, que já foi da vida, tornou-se companheira de Pablo e muito respeitada pelo grupo de guerrilheiros. É a personagem de maior densidade na obra de Hemingway), Maria (jovem que vê a família ser morta pelos fascistas e acaba sendo salva pelo grupo de Pablo e Pilar), e Anselmo (velho camponês que faz parte do grupo de Pablo e Pilar e que ganha a admiração de Jordan por sua lealdade).
Ao chegar a montanha, Robert Jordan está concentrado unicamente em sua missão. Recebido, inicialmente, por Pablo e Anselmo, longo no primeiro contato fica evidente a desconfiança recíproca entre o protagonista e Pablo.
Pablo não é um personagem que ganha a simpatia do leitor. Há nele um cinismo irritante. Ao contrário dos demais guerrilheiros que apoiam a todo tempo a ação de Robert Jordan, Pablo desde o início mostra-se avesso a sua empreitada e no decorrer da história tenta, inclusive, boicotá-la.
Todo o descontentamento de Pablo é explicado logo no primeiro capítulo. Ele sabe que a partir do momento em que a ponte for explodida, todos que se escondem naquelas montanhas passarão a correr risco.
Num diálogo com Robert Jordan, Pablo afirma: “Você não pode sair explodindo pontes perto de onde mora. Você vive num lugar e opera em outro. Eu sei o que faço. Quem está vivo hoje em dia, após um ano neste lugar, sabe muito bem o que faz” e segue dizendo: “Eu vivo aqui e opero para além de Segóvia. Se você perturbar este lugar, seremos afugentados destas montanhas. É somente porque não fazemos nada por aqui que podemos viver nestas montanhas”.
Mas Robert Jordan tem uma missão. Naquele momento, nada e ninguém importa para ele. Tudo nele está centrado em seu único objetivo: explodir a ponte.
Contudo, condições extremas – como a guerra – têm a capacidade de potencializar os sentimentos. A convivência nestas circunstâncias, ainda que por poucos dias, estabelece fortes vínculos entre as pessoas.
No terceiro dia na montanha, na companhia dos guerrilheiros, Robert Jordan, em pensamento, conclui: “Dois dias atrás eu não sabia que Pilar, Pablo e os outros sequer existiam. Não havia no mundo nada parecido com Maria. Com certeza o mundo era muito mais simples”. Neste momento, Robert Jordan não é mais apenas um soldado com sua missão. Ele, indiscutivelmente, se depara com uma dimensão mais humana de si mesmo. O futuro daqueles que moram nas montanhas passa a ser uma preocupação para Jordan. Mas ainda há a missão a ser cumprida.
É dessa humanização/desumanização que Hemingway fala. Em ‘Por Quem os Sinos Dobram’ Hemingway conseguiu escrever um dos trechos mais impactantes de todas as suas obras: a narrativa que Pilar faz a Robert Jordan, contando-lhe dos acontecimentos numa ocasião em que Pablo e seu grupo tomaram um vilarejo até então controlado pelos fascistas.
As autoridades – que eram fascistas – foram presas no ‘ayuntamiento’, o maior edifício do vilarejo, localizado de um dos lados da ‘plaza’ central. Do lado oposto, a ‘plaza’ terminava junto à beira do penhasco que se debruçava sobre um rio. Uma multidão se aglomerava do lado de fora do ‘ayuntamiento’. Pablo organizou duas filas de pessoas munidas de manguais1instrumento utilizado para debulhar cereais, que consiste em um pau comprido e fino, que serve de cabo, ligado por uma correia de couro a outro cabo, curto e grosso que atravessavam a ‘plaza’ formando um corredor desde a porta do ‘ayuntamiento’ até a beira do penhasco. Pablo concedeu aos presos o direito de se confessarem diante de um padre e de receberem os sacramentos necessários. Depois, fez com que os presos, um a um, saíssem do ‘ayuntamiento’ e atravessassem o corredor humano, para que fossem espancados com os manguais e depois arremessados ao rio do alto do penhasco.
Quando o primeiro preso saiu, “caminhou entre as colunas de homens com manguais, e nada. Passou por dois homens, quatro, oito, dez e nada. Caminhava de cabeça erguida entre aquelas duas paredes de homens, a cara gorda, piscando e virando alternadamente os olhos para os lados, e mantendo o passo. E nada aconteceu”. Mas bastou um primeiro homem tomar a coragem de açoitá-lo, que os demais o seguiram. E a cada um dos presos que passava pelo corredor humano, maior era a brutalidade dos ataques.
Nessa cena criada por Hemingway nos deparamos com seres humanos na crueza de suas realidades. Os condenados desfilaram naquele corredor os mais variados sentimentos humanos – alguns caminharam com medo, outros com bravura, outros com a cabeça levantada para mostrar dignidade, outros com desespero. Já os agressores, destituíram-se de toda a humanidade, e numa ação violenta em massa, agiram como animais reunidos em manada.
O personagem que faz um introspectivo contraponto a esse momento de barbárie é o velho Anselmo – homem bom e leal, atormentado pela consciência dos horrores da guerra. Em seus pensamentos, absorto, dizia a si mesmo: “Deve ser realmente um grande pecado. É claro que não temos o direito de matar alguém, mesmo que, como sabemos, seja necessário. … Queria não pensar tanto nisso. Queria que houvesse uma penitência que eu pudesse começar agora, pois é a única coisa, em toda a minha vida, que me faz sentir muito mal quando estou sozinho. Todas as ações são perdoadas, ou se tem a chance de repará-las com a bondade, ou de outra forma decente. Mas acho que matar é um pecado grande demais, e eu gostaria de compensá-lo.”
Anselmo, com suas simples verdades, é um personagem que comove o leitor.
Em ‘Por quem os Sinos Dobram’ Robert Jordan e Maria se apaixonam instantaneamente (assim como Frederic Henry e Catherine Barkley em ‘Adeus às Armas’). Num primeiro momento, a narrativa de Hemingway sobre o amor é quase leviana. Na vida real, dificilmente o amor acontece assim. Mas na história de Hemingway tem a guerra e, com ela, a imprevisibilidade do futuro e a possível escassez de tempo. As circunstâncias da guerra potencializam a urgência do amor.
“Sendo assim, se a vida de alguém pode trocar setenta anos por setenta horas, eu tenho este montante agora, e tenho a sorte de saber disso. E se não existir esta coisa de um longo tempo, nem para o resto de suas vidas, tampouco daqui para frente, mas existir somente o agora, então que se glorifique o agora, e ficarei muito feliz com isso. (….) Agora tem um som engraçado para conter um mundo inteiro e a sua vida.”
Como nas demais obras, a escrita de Hemingway é muito simples, mas tal como ocorre em ‘O Velho e o Mar’, a temática aqui é profundamente humana. Com diálogos magistralmente estruturados, ‘Por quem os Sinos Dobram’ é uma obra que envolve o leitor e o faz prosseguir até mesmo quando o texto se torna um pouco mais arrastado.
E ‘Por quem os Sinos Dobram’ afinal? Eles dobram por todos nós.
Por Daianne Souza.