Quando Hemingway, em 1952, apresentou ‘O velho e o Mar’ – seu último romance publicado em vida – parte dos críticos literários consideravam-no um escritor decadente. Isso por que, depois do grande sucesso de ‘Por quem os Sinos Dobram’, de 1940, Hemingway quedou-se num silencio literário que durou uma década, quebrado apenas no ano de 1950 com a publicação do romance ‘Na outra Margem, entre as Árvores” – obra mal recebida pela crítica e pelo público.
Talvez, por isso, seja tão frequente entre os especialistas em literatura a afirmação que a obra se trata de uma metáfora da própria condição do autor. Nas palavras de Daniel Puglia, professor do Departamento de Língua Inglesa da USP, “a obra é vista como uma alegoria da dificuldade de alcançar o almejado, o sonho do que seria uma grande obra, reconhecida pelos outros”, que segue afirmando: “Ao mesmo tempo, é uma realização cheia de dor, cheia de pavor, de percalços, do medo de chegar na praia e só encontrar o esqueleto da obra”.
Outros críticos de literatura interpretam a obra como uma metáfora da própria condição humana, de uma vida cheia de luta e que ao final se depara com a solidão.
Hemingway refutou essas interpretações metafóricas afirmando, em relação a sua obra: “O mar é o mar. O velho é o velho. Todo simbolismo do qual as pessoas falam é besteira”
Sim, o mar é o mar e o velho é o velho. Mas quantas sensações podem ser vivenciadas na imensidão do mar? Quantos sentimentos cabem no coração de um velho?
O mar e o velho são personagens de Hemingway e a ele pertencem, assim como os seus significados e as suas simbologias.
Ora, mas depois de publicada a obra, de certa forma o autor perde o domínio do significado e da simbologia de seu texto, porque cada leitor encontrará ‘seus’ próprios significados e simbologias, a partir do ‘seu’ olhar particular, a partir de ‘suas’ próprias vivências.
É essa liberdade – de poder olhar as personagens a partir das minhas vivências – que faz da leitura uma torrente de sensações e sentimentos. A leitura não é um diálogo apenas com o Autor e muito menos com a crítica literária. A leitura é, principalmente, um diálogo com as personagens.
O que importa para o leitor é apenas o que elas – as personagens – dizem.
A primeira vez que li ‘O velho e o mar’ eu era ainda muito jovem e creio que, em razão da ansiedade e impaciência tão próprias daquela idade, eu não consegui entender o que me diziam o velho e o mar…
Recentemente, numa tarde, deparei-me com o livro por acaso e comecei a lê-lo novamente. Logo depois das primeiras páginas eu já estava completamente envolvida naquele diálogo com o mar e sua imensidão e com o velho e os seus sentimentos.
Agora vai rolar um spoiler.
Santiago é um velho pescador, bastante experiente, mas que se encontra numa fase de má sorte, estando há 84 dias sem conseguir pescar um peixe sequer. Manolin, o jovem amigo do velho pescador, o incentiva a mais um dia sair para o mar (embora o próprio Manolin não o possa fazer na companhia de Santiago, pois os pais do jovem desejam que ele saia no barco de pescadores mais bem-aventurados). Na manhã do 85º dia, na sua pequena embarcação, Santiago consegue capturar um Marlin de tamanho descomunal, com aproximadamente sete metros de comprimento e pesando mais de meia tonelada.
O peixe oferece muita resistência e arrasta a embarcação de Santiago cada vez mais para alto-mar. Santiago sofre com o sol cegante e abre feridas nas mãos e nas costas, de tanto lutar com peixe.
Depois de horas, Santiago consegue finalmente matar o peixe e amarrá-lo junto ao casco de sua canoa (a dimensão do peixe impede que seja colocado dentro da embarcação). Porém, durante o retorno à terra firma, a sua grande pesca sofre constantes ataques de tubarões.
Quando finalmente consegue chegar à praia, o Marlin está quase todo devorado pelos tubarões, restando apenas a sua carcaça, e Santiago está completamente exaurido.
Hemingway utiliza de recursos literários e linguagem bastante simples (característica percebida em suas outras obras), e ao mesmo tempo (ainda que não tenha sido sua intenção) constrói a história com uma temática metafórica sofisticada.
Para mim, a essência da história de ‘O Velho e o Mar’ é a luta do homem com o mundo exterior e, também, com as suas próprias limitações. Ao mesmo tempo, é uma história sobre respeito, perseverança e, principalmente, sobre a responsabilidade que cada um tem em relação a suas próprias escolhas.
Santiago, apesar de toda a dureza da vida, consegue olhar para fora de si e solidarizar-se com criaturas que julga ter uma vida mais difícil que a sua:
“As aves têm uma vida mais dura do que a nossa, exceto as aves de rapina e as mais fortes. Por que existiriam aves tão delicadas e frágeis, como as andorinhas-do-mar, se o mar pode ser tão violento e cruel?
O mar é generoso e belo. Mas pode tornar-se muito cruel e tão repentinamente, que essas aves que voam, mergulhando e caçando, como as suas fracas e tristes vozes, são demasiado frágeis para o mar.”
Durante a ‘luta’ no mar, o velho Santiago se dá conta de que não sabe da coragem e das fragilidades de seu oponente e que o inverso também ocorre, pois o Marlin nada sabe sobre o pescador. Reconhecer – tanto em si mesmo como em seu adversário – a existência de coragem e fragilidade, de defeito e virtude, isso humaniza a luta.
“Depois começou a ter pena do enorme peixe que agarrara. “É maravilhoso e estranho, e quem saberá que idade tem?!”, pensou o velho. “Nunca pesquei um peixe tão pesado e tão estranho! Talvez seja demasiadamente inteligente para saltar. Podia acabar comigo se saltasse ou se se lançasse numa disparada louca. Mas talvez já tenha sido fisgado mais vezes e saiba que é assim que deve levar a cabo sua luta. Não tem meios de saber que sou apenas um homem contra ele, nem que sou apenas um velho. Mas que grande peixe ele é e que fortuna deve valer no mercado, se tiver boa carne. Agarra a isca como um macho e puxa como um macho, e em sua luta não há pânico. Terá algum plano ou estará tão desesperado como eu?”
Santiago, mesmo diante da exaustão que a luta com o imenso Marlin lhe causou, mantém o espírito de perseverança.
“Agora estou derrotado”, pensou ele. “Sou demasiado velho para conseguir, com martelada, matar um tubarão. Mas tentarei, enquanto tiver os dois remos, o martelo e o leme”.
“Mesmo assim trago metade do peixe”, pensou o velho. “Pode ser que tenha a sorte de trazer a parte da frente. Mereço ter um pouco de sorte. Não”, disse ele. “Você abusou da sorte quando se afastou tanto da costa”.
– Não seja estúpido – disse em voz alta. – E não adormeça. Preste atenção ao leme. Ainda pode ser que venha a ter muita sorte. Gostaria de comprar um pouco de sorte se houvesse algum lugar onde a vendessem.
“Mas com que poderia eu comprá-la?”, perguntou-se. “Poderia comprá-la com um arpão perdido, com a faca partida ou com estas duas mãos em carne viva?”
– Talvez – respondeu em voz alta. – Você tentou comprá-la com oitenta e quatro dias no mar. Quase lhe venderam isso também.
“Não posso continuar a pensar nesses disparates. A sorte é uma coisa que vem de muitas formas e quem é que a pode reconhecer? Por mim, aceitaria um bocado de sorte fosse qual fosse a forma como viesse e pagaria o que me pedissem por ela. Gostaria de poder ver o brilho das luzes. Estou sempre desejando coisas. Mas essa é a coisa que mais desejo agora”.
Santiago, já na praia, termina com a seguinte conclusão:
“Eu nunca tinha sido derrotado e não sabia como era fácil. E o que me venceu?”, pensou ele.- Nada – disse em voz alta. – Fui longe demais, foi isso.
Após se ver vencido, o velho Santiago não tenta justificar ou atribuir a culpa ao mar, aos tubarões ou a sua má-sorte. O velho reconhece que a derrota foi consequência de suas próprias escolhas. E com a serenidade que essa consciência lhe dá, o velho deixa a sua embarcação na praia, sem recolher seus apetrechos. Não se lamenta. Apenas caminha sozinho até sua cabana com o desejo de descansar da grande luta travada em alto mar.
Quanto a mim… dessa vez, ‘o velho e o mar’ me disseram muito … me comoveram profundamente. Enquanto o velho caminhava até sua cabana, eu o observava silenciosamente, sentada à mesa de um café.
Mas Hemingway foi muito generoso comigo. Eu não estava sozinha. Manolin – o jovem amigo do velho – o observava, comovido, junto comigo.
Por Daianne Souza.