…dúvidas, vazios e contradições. Coisas não organizáveis. Fico feliz quando percebo que Clarice, mesmo com sua aparência etérea, também tinha que lidar com todas essas vicissitudes.
Desses conflitos surgiu sua literatura, com toda a sua intensidade. Escrita que não esconde, que revela, ainda que o objeto revelado não seja bom ou bonito. Mas a coragem da revelação por si só é bela e construtiva. E, quanto mais se desvenda, mais dúvidas, vazios e contradições desorganizáveis surgem.
Quando leio Clarice, tenho a sensação de que ela escreveu para mim. Posso me reconhecer em quase todas as suas personagens, das mais simples às mais refinadas. Crianças, jovens, idosas, solteiras, casadas, divorciadas. Macabéa, G.H., Sofia. Todas elas cabem em mim.
“Aí está ele, o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais inteligível dos seres vivos.”
Do conto As Águas do Mundo
Seus contos, suas crônicas e, mais recentemente, suas cartas revelam a grande escritora que Clarice, que amanhã completaria 100 anos, era. Chaya, de origem judia, nascida em 10 de dezembro de 1920, na Ucrânia, chegou ao Brasil em 1922, quando lhe fizeram adotar o nome Clarice.
Publicou seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem, aos 21 anos. A Paixão Segundo G.H., sua obra-prima, foi escrita em 1963. Casou-se com um diplomata, teve 2 filhos e divorciou-se. Seu último livro foi a Hora da Estrela, que narra menos a história e mais as construções (psicológicas sempre) de uma jovem nordestina que se muda para o Rio de Janeiro. Macabéa, a jovem, vai morrendo junto com a escritora, que se foi em 09/12/1977.
Entre o cigarro e os remédios para dormir, Clarice sentia e explorava tudo o que a alma humana possibilita, abusando dos seus recursos e chegando a extrapolá-los. Deu apenas uma entrevista em frente às câmeras, pouco antes de falecer, que foi um momento único para reconhecer que, definitivamente, ela era insolúvel, desde o início e até o fim.

Escrita-terapia, seus textos falam sobre emoções em linguagem de fluxo de consciência. Ao lado de Guimarães Rosa, é considerada a maior escritora brasileira da segunda metade do século XX. São, sem dúvida, os meus favoritos. Fica aqui a nossa homenagem.
“Fortemente sedada, ela ainda ditava palavras a Olga na manhã de 9 de dezembro de 1977.
Súbita falta de ar. Muito antes da metamorfose e meu mal-estar, eu já havia notado num quadro pintado em minha casa um começo.
Eu, eu, se não me falha a memória, morrerei.
É que você não sabe o quanto pesa uma pessoa que não tem força. Me dê sua mão, porque preciso apertá-la para que nada doa tanto.
Um dia antes de sua morte, registrou Olga Borelli, Clarice Lispector sofreu uma intensa hemorragia.
Ficou muito branca e esvaída em sangue. Desesperada, levantou-se da cama e caminhou em direção à porta, querendo sair do quarto. Nisso, a enfermeira impediu que ela saísse. Clarice olhou com raiva para a enfermeira e, transtornada, disse:
“Você matou meu personagem!”"
Nossa eterna e centenária Clarice…
por Carol.
Desenho de Renato Stegun.