Para quem gosta de um filme noir, como eu, The killers (1946), é uma bela pedida.
Os filmes noir se caracterizam por temas de suspense e assassinatos e o termo foi criado pelo francês Nino Frank em 1946, uma mistura do expressionismo alemão e do jogo de sombras e luzes das telas de Caravaggio, com a classificação noir somente se solidificando nos anos 70.
Nesse filme, baseado num conto de Ernest Hemingway, dois matadores chegam a uma cidade do interior para dar fim ao misterioso personagem conhecido como “o sueco” (interpretado por Burt Lancaster). Após o evento, um funcionário de uma agência de seguros tenta desvendar o que realmente aconteceu. No papel da mulher fatal (típicas nos filmes noir) está Ava Gardner.
O filme ganhou o Oscar de melhor direção para o alemão Robert Siodmak, trilha sonora (Miklós Rózsa), montagem (com vários flash backs) e roteiro adaptado (sendo um dos roteiristas John Huston) .
Uma curiosidade sobre o ator Lancaster é que antes de estrear no cinema, aos 30 anos, foi artista circense tendo ganho o urso de prata em Berlim pela sua atuação em Trapeze (1956), onde ele próprio realizou as acrobacias exigidas no filme.
Por Marcelo BeckhausenMarcelo Beckhausen é Procurador Regional da República na PRR4, professor de Direito Constitucional na Unisinos e colaborador do DeC.
Livros de janeiro 2021
Ano novo e seguimos compartilhando nossos livros adquiridos (nosso book haul mensal).
Não necessariamente indicações, mas livros que entendemos que merecem estar em nossa biblioteca pessoal. E que 2021 seja um ano de muita saúde e leituras!
Os livros de janeiro foram escolhidos após a invasão do Capitólio pelos Garotos Orgulhosos e pela MAGA. O livro do Cal Newport evidencia os recursos que as redes sociais usam para nos induzir ao vício e também o modo como elas nos influenciam. Também traz dicas para os rebeldes que, como eu, querem se libertar do vício. Já o livro do Byung-Chul Han faz a análise política e filosófica do atual estado de coisas, num momento em que a Big Tech é o senhor de tudo e de todos. Que a força esteja com todos nós!
Um livro pequenininho, de um grande autor e com um tema mais do que atual. Despertou minha atenção na mesma hora em que o vi. Respeito e tolerância resumem tudo – ou quase tudo – o que a sociedade precisa para retomar o caminho do progresso humano.
Sobre os ossos dos mortos é o primeiro livro que compro da polonesa Olga Tokarczuk, ganhadora do Nobel de Literatura em 2018 (que, confesso, desconhecia completamente até então). Um mistério policial, no ritmo de uma fábula meio macabra, ou bem mais que isso.
Como o ciclo das flores, murchar, cair, enraizar, crescer e florescer, assim está dividido este livro de poemas de Rupi Kaur, poeta feminista contemporânea, que nos leva à reflexão sobre crescimento, amadurecimento e cura.
Estes livros da Clarice, além de lindos, são ótimos para ler aos poucos. São contos, crônicas e cartas curtos. O primeiro a ser lançado foi o de contos. As cartas chegaram agora no final do ano. Vale a pena ter para decorar por dentro e por fora.
Em uma das profundas conversas que eu, meu irmão e meu cunhado costumamos ter junto a uma mesa cheia de carnes e cervejas, eu disse que achava muito complexa a relação entre a humanidade repleta de maldades e um Deus criador perfeitamente bondoso e poderoso. Meu cunhado, um notável professor de filosofia, lembrou daquela conversa ao me presentear no Natal com esse livro de Santo Agostinho, que, segundo ele, é a melhor explicação filosófico-cristã deste paradoxo. Certo de que aliviará minha inquietude, será meu próximo livro a ser lido
Dez Contos Selecionados de Clarice Lispector. Nesse mês do centenário de Clarice resgatei na estante a edição da Confraria dos Bibliófilos para (re)ler alguns de seus melhores contos. A Legião Estrangeira, Felicidade Clandestina e Os Laços de Família estão entre eles.
Deviam exigir leituras desse tipo na faculdade de medicina e de direito.
Permite entender os embargos de declaração com efeitos infringentes como um ato de futilidade do advogado, ou excepcionalmente um ato de grande superação do juiz; faz também compreender a racionalidade por trás de institutos como o juiz de garantias.
Para a área da saúde, dá pistas sobre porque muita gente se obstina em condutas terapêuticas já superadas pelas evidências.
E explica porque todo mundo, inclusive juízes, médicos e presidentes da República (alguns mais que os outros…), se acham profissionais imbuídos sempre dos mais nobres motivos, e que sempre acharão justificativas que mantenham essa autoimagem.
Em homenagem ao centenário da escritora brasileira mais traduzida do mundo, única mulher entre os autores de língua portuguesa com mais títulos traduzidos, ocupa a nona posição, à frente de Machado de Assis. Ansiosa para começar a leitura!
…dúvidas, vazios e contradições. Coisas não organizáveis. Fico feliz quando percebo que Clarice, mesmo com sua aparência etérea, também tinha que lidar com todas essas vicissitudes.
Desses conflitos surgiu sua literatura, com toda a sua intensidade. Escrita que não esconde, que revela, ainda que o objeto revelado não seja bom ou bonito. Mas a coragem da revelação por si só é bela e construtiva. E, quanto mais se desvenda, mais dúvidas, vazios e contradições desorganizáveis surgem.
Quando leio Clarice, tenho a sensação de que ela escreveu para mim. Posso me reconhecer em quase todas as suas personagens, das mais simples às mais refinadas. Crianças, jovens, idosas, solteiras, casadas, divorciadas. Macabéa, G.H., Sofia. Todas elas cabem em mim.
“Aí está ele, o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais inteligível dos seres vivos.”
Do conto As Águas do Mundo
Seus contos, suas crônicas e, mais recentemente, suas cartas revelam a grande escritora que Clarice, que amanhã completaria 100 anos, era. Chaya, de origem judia, nascida em 10 de dezembro de 1920, na Ucrânia, chegou ao Brasil em 1922, quando lhe fizeram adotar o nome Clarice.
Publicou seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem, aos 21 anos. A Paixão Segundo G.H., sua obra-prima, foi escrita em 1963. Casou-se com um diplomata, teve 2 filhos e divorciou-se. Seu último livro foi a Hora da Estrela, que narra menos a história e mais as construções (psicológicas sempre) de uma jovem nordestina que se muda para o Rio de Janeiro. Macabéa, a jovem, vai morrendo junto com a escritora, que se foi em 09/12/1977.
Entre o cigarro e os remédios para dormir, Clarice sentia e explorava tudo o que a alma humana possibilita, abusando dos seus recursos e chegando a extrapolá-los. Deu apenas uma entrevista em frente às câmeras, pouco antes de falecer, que foi um momento único para reconhecer que, definitivamente, ela era insolúvel, desde o início e até o fim.
Escrita-terapia, seus textos falam sobre emoções em linguagem de fluxo de consciência. Ao lado de Guimarães Rosa, é considerada a maior escritora brasileira da segunda metade do século XX. São, sem dúvida, os meus favoritos. Fica aqui a nossa homenagem.
“Fortemente sedada, ela ainda ditava palavras a Olga na manhã de 9 de dezembro de 1977.
Súbita falta de ar. Muito antes da metamorfose e meu mal-estar, eu já havia notado num quadro pintado em minha casa um começo.
Eu, eu, se não me falha a memória, morrerei.
É que você não sabe o quanto pesa uma pessoa que não tem força. Me dê sua mão, porque preciso apertá-la para que nada doa tanto.
Um dia antes de sua morte, registrou Olga Borelli, Clarice Lispector sofreu uma intensa hemorragia.
Ficou muito branca e esvaída em sangue. Desesperada, levantou-se da cama e caminhou em direção à porta, querendo sair do quarto. Nisso, a enfermeira impediu que ela saísse. Clarice olhou com raiva para a enfermeira e, transtornada, disse:
Há muito de Hitchcock na cena da morte de Malone (Sean Connery), como em todos os filmes de Brian de Palma. O assassino é seguido pela câmera, que se esgueira pelos quartos e janelas.
Nessa cena, enquanto o policial irlandês e durão agoniza após ser metralhado por gângsters, toca na vitrola a mesma música ouvida por Al Capone (Robert de Niro), “Ridi Pagliaccio”.
O filme é apoteótico, exultando a luta do bem contra o mal. O paladino Elliot Ness (Kevin Costner) luta para garantir que a Lei Seca em Chicago, dominada por bandidos e corruptos, seja respeitada.
Os Intocáveis (The Untouchables, 1987) é perfeito em sua reconstituição da época, fotografia, música (Ennio Morricone, magistral) e enredo que empolgam do início ao fim.
A cena mais famosa, o tiroteio na escadaria, é uma ode do diretor ao filme Encouraçado Potenkim (Bronenosets Potyomkin, 1925) do genial Serguei Eisenstein.
O filme deu o Oscar de melhor ator coadjuvante ao escocês Sean Connery, falecido recentemente e a quem eu presto minha pequena homenagem.
Na cena onde Connery aparece pela primeira vez, encontra o personagem Ness em uma ponte, ele dá uma aula de interpretação e uma lição de como ser policial: “quando seu turno acabar, chegue em casa vivo”.
Sean Connery fica vivo na memória de todos os amantes do cinema (1930/2020).
Por Marcelo BeckhausenMarcelo Beckhausen é Procurador Regional da República na PRR4, professor de Direito Constitucional na Unisinos e colaborador do DeC.
Livros de novembro 2020
Aproveitando o nosso amor pelos livros resolvemos compartilhar, na última quarta-feira de cada mês, os livros que adquirimos (nosso book haul).
Não são necessariamente indicações, mas livros que, por alguma razão, entendemos que deveriam estar em nossa biblioteca pessoal.
No mês da consciência negra, comprei 3 livros de autores negros (eu sei, tinha q ter uma mulher…vou compensar na próxima).
Uma Terra Prometida, Barack Obama Não preciso nem dizer os motivos que me levaram a comprar este livro. Obama, com suas mangas arregaçadas estilo “fim de expediente tentando salvar o mundo” me emociona.
Torto Arado, Itamar Vieira Junior Comprei em uma livraria linda em Florianópolis (Letraria Livraria) por indicação da minha amiga e companheira de ministério da educação da JFPR, que é uma das pessoas mais leitoras que eu conheço. Fala sobre as marcas da escravidão em uma história que se passa na Bahia.
Um Preço Muito Alto, Carl Hart Vi no Instagram de um colega e me interessei porque eu preciso continuar enganando que eu sei muito sobre neurociência. Uma aula sobre os problemas que o racismo e a falta de oportunidades trazem, além de fazer uma análise bastante interessante sobre o problema das políticos de combate às drogas.
Uma Terra Prometida, Barack Obama – Em tempos de consciência negra, eu não poderia deixar de ler a obra de uma das grandes personalidades negras da história, cuja liderança, carisma, prestígio, inteligência e conhecimento político justificam saber o que ele tem para contar.
O dia em que a poesia derrotou um ditador de Antonio Skármeta. Misturando ficção e realidade conta a história da campanha do plebiscito que tirou Pinochet do poder no Chile. Trata de um tema pesado de forma bem leve. E nos lembra que a poesia trará dias melhores.
Fique Comigo de Ayòbámi Adébáyò. Primeiro romance da escritora nigeriana que esteve na FLIP em 2019. Uma narrativa muito bem construída sobre até onde podemos ir em relação a padrões culturais existentes, envolvendo questões como maternidade e machismo.
São 13 contos que mostram como a linguagem é capaz de nos transportar para dentro da narrativa. Um livro emocionante. Não à toa as declarações de Chico Buarque: “Fiquei chapado” e João Moreira Salles: “Geovani pula da oralidade mais rasgada para o português canônico como quem respira. Uma nova língua brasileira chega à literatura com força inédita”.
Não li o livro, indicado pelo amigo José Osmar Pumes. Mas vi o filme dirigido pelo francês Jacques Audiard.
O roteiro de “Os Irmãos Sisters” é baseado na obra do canadense Patrick deWitt, vencedor do book Prize de 2011.
A história gira em torno de Eli (melhor interpretação que vi de John C. Reilly) e Charlie (o recentemente oscarizado Joaquin Phoenix), dois irmãos que recebem uma missão do misterioso Comodoro (Rutger Hauer) para matar Hermann Kermit Warm (Riz Ahmed), um químico que trabalha na exploração de ouro.
O filme retrata a relação fraternal entre Eli e Charlie, diante da selvageria do Oeste americano com seus duelos sangrentos, perseguições a cavalo e muitos tiroteios (a cena inicial, noturna, é muito inovadora).
Também explora bastante o lado psicológico dos assassinos, com crises de consciência e ausências de afeto (a cena do xale e da prostituta é ao mesmo tempo engraçada e triste).
Um western diferente que parece uma remontagem de Butch Cassidy (Butch Cassidy and the Sundance Kid, 1969) ou uma apologia a Os Imperdoáveis (Unforgiven, 1992), mas sem a densidade dramática desse último.
Um filme sobre fraternidade e escolhas. Sobre diferenças. E sobre como voltamos para o lugar de onde partimos. Mesmo simbolicamente.
Por Marcelo BeckhausenMarcelo Beckhausen é Procurador Regional da República na PRR4, professor de Direito Constitucional na Unisinos e colaborador do DeC.
Ame, ou ao menos não odeie!
Não, este não é um post romântico. Apenas busca resgatar a humanidade que deve haver em todos nós.
Todo o mundo sabe que o ser humano é um animal social. Só que a vida em sociedade só é possível e desejável se tivermos paz. O ódio, a intolerância, o preconceito, o menosprezo, o senso de superioridade e a falta de empatia segregam, e a segregação esfacela a sociedade.
Quem ama, pode odiar ao mesmo tempo? O amor é compatível com a intolerância, com o preconceito e com o menosprezo? É possível amar sem reconhecer que a pessoa amada é tão digna como nós? Nós nos importamos com quem amamos?
Não é difícil responder a essas perguntas. Não é difícil, portanto, concluir que o amor resolve todas as mazelas da humanidade.
É óbvio que não estaremos, a partir de agora, apaixonados por todas as pessoas. Vamos tornar as coisas mais fáceis, então. Se você não consegue amar outro ser humano pelo simples fato de ele ser uma pessoa que vive e sente como todas as outras, ainda que diferente no modo de viver e de sentir, basta que não o odeie por isso.
Que o outro seja feliz vivendo a vida dele enquanto você vive a sua, afinal você tem tantas coisas para se preocupar com a própria vida que não terá tempo para criticar a dos outros. Se as preocupações com sua própria vida não lhe tomam todo o tempo (mas mesmo que tomem), que tal se preocupar com aqueles que precisam de ajuda, então? Se a felicidade alheia lhe faz mal, certamente o problema não está no outro.
Enfim, ame a si mesmo. Ame os outros pelo simples fato de serem pessoas como você. Se não quer se comparar aos diferentes para também amá-los, então não os odeie. Deixe que vivam as próprias vidas e transforme a energia do ódio em amor a quem você acha que o merece.
O amor é atemporal, não tem raça, cor, nacionalidade, convicções religiosas ou políticas.
Se você é da tribo dos religiosos cristãos, lembre-se do que disse Jesus: “O que vos mando é que vos ameis uns aos outros” (João 15:17).
Se é da tribo dos cristãos católicos, pode acrescentar um trecho da Oração de São Francisco:
(...)Onde houver ódio, que eu leve o amor.Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.Onde houver discórdia, que eu leve a união.(...)Ó Mestre, fazei que eu procure mais:consolar, que ser consolado;compreender, que ser compreendido;amar, que ser amado.Pois é dando que se recebe.É perdoando que se é perdoado.(...)
Se o budismo é a sua tribo, lembre-se então do Dalai Lama:
“Se existe amor, há também esperança de existirem verdadeiras famílias, verdadeira fraternidade, verdadeira igualdade e verdadeira paz. Se não há mais amor dentro de você, se você continua a ver os outros como inimigos, não importa o conhecimento ou o nível de instrução que você tenha, não importa o progresso material que alcance, só haverá sofrimento e confusão no cômputo final. O homem vai continuar enganando e subjugando outros homens. Basicamente, todo mundo existe na própria natureza do sofrimento, por isso insultar ou maltratar os outros é algo sem propósito. O fundamento de toda prática espiritual é o amor. Que você o pratique bem é meu único pedido”.
Os integrantes da tribo dos rockeiros certamente invocarão os Beatles (essa é uma versão sensacional com Paul McCartney, Joe Cocker, Eric Clapton, Rod Stewart e outras estrelas do Rock):
All you need is loveAll you need is loveAll you need is love, loveLove is all you need
Ou então Legião Urbana, que colocou guitarra e bateria em versos do apóstolo Paulo e criou a consagrada música Monte Castelo (quem acha, como eu, que nunca é demais ver e ouvir Renato Russo e cia, assista).
Ainda que eu falasse a língua dos homensE falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seriaÉ só o amor, é só o amorQue conhece o que é verdadeO amor é bom, não quer o malNão sente inveja ou se envaideceO amor é o fogo que arde sem se verÉ ferida que dói e não se senteÉ um contentamento descontenteÉ dor que desatina sem doer(...)É um não querer mais que bem quererÉ solitário andar por entre a genteÉ um não contentar-se de contenteÉ cuidar que se ganha em se perderÉ um estar-se preso por vontadeÉ servir a quem vence, o vencedorÉ um ter com quem nos mata a lealdadeTão contrário a si é o mesmo amor(...)
Já a tribo do rap certamente buscará inspiração em Gabriel, o Pensador (A Cura Tá no Coração), que fez uma parceria muito legal com Cynthia Luz:
A cura tá no coraçãoSó procure mais amar do que ser amadoOnde houver discórdia, leve a uniãoTamo junto e nosso amor nunca vai ser parado
Resumindo tudo isso, vale reproduzir trecho do discurso de encerramento da carreira política de Pepe Mujica:
Enfim, a solução para a salvação da sociedade é muito simples: o Amor! Pelas pessoas, pelo meio-ambiente, pelo planeta. Colocá-la em prática exige apenas um passo inicial: não odeie quem é ou pensa diferente de você. O resto vem como consequência.
Não tinha visto nenhum trabalho de Raúl Arévalo como diretor e fiquei bastante impressionado com a secura (literalmente) e a tensão do suspense(?) “A fúria de um homem paciente” (Tarde para la ira, 2016), premiado com o prêmio Goya de melhor filme.
A trama, que se desenrola como um western, é revelada na metade do filme e gira em torno de José (Antonio de La Torre, sensacional em sua frieza e amargura) que quer encontrar Curro (Luís Callejo), motorista de um assalto que assistimos nos minutos iniciais do filme.
O roteiro trata da vingança adormecida, da dor que só pode ser aplacada simbolicamente pelo sofrimento alheio e da angústia de um sujeito que nunca conseguiu resolver as mazelas do destino.
O percurso escolhido, cuja agonia carrega consigo o telespectador preso pelas brilhantes atuações e a direção firme de Arévalo, do olho por olho, dente por dente, nos remete a Cabo do Medo (Cape Fear, 1991), com Scorcese e De Niro em grande forma, ou Irreversível (2003, com Monica Belucci e Vincent Cassel, um filme que dimensiona o tempo de tal forma que a vingança parece acontecer ao contrário).
Atormentado, José é a figura paralisada no tempo, aguardando o momento apropriado para descarregar sua ira. Os dois personagens principais estão presos (inclusive vestem os mesmos uniformes em uma das cenas) e parece ser uma reflexão oportuna para se fazer em tempos onde o ódio é a linguagem das redes sociais e não leva a lugar algum, nos aprisionando indefinidamente.
Ou como ensina Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas:
"Vingar, digo ao senhor: é lamber, frio, o que outro cozinhou quente demais."
Por Marcelo BeckhausenMarcelo Beckhausen é Procurador Regional da República na PRR4, professor de Direito Constitucional na Unisinos e colaborador do DeC.
Livros de outubro 2020
Aproveitando o nosso amor pelos livros resolvemos compartilhar, na última quarta-feira de cada mês, os livros que adquirimos (nosso book haul).
Não são necessariamente indicações, mas livros que, por alguma razão, entendemos que deveriam estar em nossa biblioteca pessoal.
Seguindo com a intenção de aumentar a minha bibliografia de mulheres, comprei o livro Boa Economia para Tempos Difíceis. Os autores, vencedores do Prêmio Nobel de Economia, trazem propostas inovadoras para combate à pobreza e à desigualdade. Já no começo do livro, dá para perceber que a ideia deles é destruir ideias cristalizadas e repetitivas sobre economia.
O livro Talvez Você Deva Conversar com Alguém foi indicação da minha irmã e do Bookster. Fala sobre a terapia e a relação entre terapeuta e paciente. A leitura está sanando muitas das minhas dúvidas sobre terapia. Por outro lado, me fez pensar se meu terapeuta me considera uma paciente enfadonha e se ele sabe que, às vezes, eu dou uma floreada nas minhas histórias…
Resolvi começar a ler o clássico da ficção científica “Duna” (Frank Herbert) não apenas para relaxar a mente após muitas leituras densas e de assuntos pesados, mas também porque o enredo da obra abrange temas de que gosto muito, como a ecologia e a disputa pelo poder entre os diversos estratos sociais.
Apesar de ser uma obra de ficção, o livro explora de forma bastante profunda as relações entre o ser humano e o meio ambiente e entre as próprias pessoas, tudo isso em um planeta distante em que a água é o bem mais raro – e, consequentemente, mais precioso – que existe.
Marrom e Amarelo de Paulo Scott é um romance que fala do nosso atraso e dificuldades em compreender o racismo, tratando a questão com a devida profundidade. O personagem principal é convidado para participar no “novo governo” de uma comissão que pretende rever o critério de enquadramento nas cotas em universidades, utilizando um software, e ao mesmo tempo fatos do passado ressurgem para demonstrar a falsa democracia racial brasileira.
Minha Vida de Rata de Joyce Carol Oates. Um livro incômodo e que também trata de racismo e outros temas ainda mais pesados. Desconfortável na maior parte das vezes e impactante. Apesar de pouco traduzida para o português a autora é das mais produtivas, twitteira de carteirinha, corredora e volta e meia ainda aparece na lista de possíveis ganhadores do Nobel de Literatura.
Martin há vários dias está fascinado com a história do João e o pé de feijão. Tentei ensinar que o João é um péssimo exemplo: desobedece a mãe, rouba coisas e ainda machuca o gigante. Em temos de afastamento social e home office não consegui acessar meu exemplar do Carlos Maximiliano para uma sentença, então tive que me virar com o Scalia. Sinceramente, entre os dois justices, minha impressão é que o nosso produziu obra muito melhor!
Ambientado na África do Sul pós Apartheid, com uma narrativa muito rica, começa retratando a relação de um professor com uma aluna e segue com seus desfechos e as consequências na vida do protagonista, trazendo importantes reflexões sobre relações de poder, autoridade, consentimento, gênero, segregação e conflitos raciais. É um resumo muito singelo da força da narrativa, vale muito a leitura! Este foi o livro através do qual fui apresentada a J. M. Coetzee e me fez ler os demais.
Era uma vez em Tóquio (Tōkyō Monogatari, 東京物語, 1953) dirigido por Yasujiro Ozu, é um daqueles filmes que impacta pela leveza e impressiona pela simplicidade.
Conta a história de um casal de idosos (Chishu Ryu e Chieko Higashiyama) que vai para Tóquio visitar seus filhos adultos. Estes, muito atarefados e distantes, não lhes dão a atenção devida. Os netos não lhes respeitam.
Quem lhes demonstra muito carinho e interesse é sua nora, Noriko (Setsuko Hara), viúva de outro filho, morto na segunda grande guerra. Noriko também trabalha muito mas encontra tempo para construir preciosos laços.
O filme é delicado, repleto de cenas do cotidiano, registrando um Japão pós-desastre, ocidentalizando-se pouco a pouco, onde o dinheiro vai substituindo diversas tradições.
A heroína Noriko vai nos conduzindo pela necessidade desses laços, afetivos, respeitosos, onde a ausência de alguém querido é algo muito presente e a presença de amigos e familiares deve ser muito valorizada.
Filme que vale a pena celebrar, enquanto enfrentamos, juntos, uma guerra contra a pandemia e contra a ausência de respeito ao próximo.
Por Marcelo BeckhausenMarcelo Beckhausen é Procurador Regional da República na PRR4, professor de Direito Constitucional na Unisinos e colaborador do DeC.
Flores
Profissões desejadas nem sempre coincidem com as escolhidas. Assim como o Fabiano (nosso webdesigner) gostaria de ser “cineasta, biólogo ou economista”, o meu desejo livre e largo era ser florista e viver cercada de flores, como em dia de formatura. Para quem gosta delas também, fica a sugestão de alguns perfis no Instagram:
E para mostrar tudo o que as flores podem dizer, indico o filme Flores (Loreak, no original em basco), disponível na Netflix.
Como não podia deixar de ser, trago um trecho de Grande Sertão: Veredas. A vereda é o grande reino dos buritis, e Riobaldo compara seu grande amor à flor dourada da palmeira, em um dos momentos de maior emoção e dor do livro.
Aquela mulher não era má, de todo. Pelas lágrimas fortes que esquentavam meu rosto e salgavam minha boca, mas que já frias rolavam. Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus buritizais levados de verdes…Burití, do ouro da flôr…E subiram as escadas com ele, em cima de mesa foi posto. Diadorim, Diadorim – será que amereci só por metade? Com meus molhados olhos não olhei bem – como que garças voavam…E que fossem campear velas ou tocha de cera, e acender altas fogueiras de boa lenha, em volta do escuro do arraial…
Por fim, mostro o trabalho da Marília, que cuida de um jardim na minha rua na capital paranaense. Ela começou a plantar assim que cortaram as árvores de lá, como uma espécie de protesto. A intenção era passar a mensagem de cuidado com a natureza. Como “não tinha dom para professora”, resolveu ensinar plantando.
Sua obra, que tem até Pau-Brasil, virou referência no bairro e trouxe colorido, cheiro e beleza que podem fazer um agnóstico pensar que, de repente, pode até ser que exista.
Já gostava de Sam Mendes dos ótimos American Beauty, 1999, onde nada é o que parece ser, Road to Perdition (2002), uma bela adaptação da graphic novel com o mesmo nome, Skyfall (2012) e Spectre (2015) que, juntos, fazem uma releitura de James Bond.
1917, seu mais recente filme, é excepcional. A estética do filme é tão boa que nos transporta para um vídeo game ambientado na primeira guerra mundial. Mas as analogias com um jogo param por aí.
A atuação esmerada do elenco, figurinos, efeitos especiais e a engenhosidade do roteiro (que lembra o Saving Private Ryan, 1998 de Steven Spielberg) nos conduzem ao lado mais sombrio de qualquer guerra: a estupidez humana. Seja através dos corpos empilhados no chão, das cidades destruídas ou da ausência de explicações sobre os motivos das batalhas nada expõe com mais veracidade essa estupidez.
A câmera, com destreza e firmeza, acompanha o personagem principal, o jovem ator George Mackay, atravessando incríveis cenários de combate, tirando o fôlego do telespectador e fazendo uma homenagem ao gênio Hitchcock (mesmo que não queira), que realizou a primeira filmagem em uma única longa sequência (já visto aqui no DeC e na verdade, a tecnologia da época não permitiu, sendo filmado em dez planos sequência).
Aqui cabem também referências a Brian de Palma (em Snake Eyes, 1998) e El Secreto de sus Ojos, 2009, do argentino Juan José Campanella, com sua antológica cena sem cortes no estádio Tomás Adolfo Ducó (do Huracán), imperdível para os amantes do futebol.
1917 não retrata só a inutilidade do ódio presente nas batalhas do século XX. É sobre bravura, companheirismo, vida e morte. Uma reflexão cruel para a ausência de sentido de uma guerra e uma ode à amizade e à lealdade.
Por Marcelo BeckhausenMarcelo Beckhausen é Procurador Regional da República na PRR4, professor de Direito Constitucional na Unisinos e colaborador do DeC.
Livros de setembro 2020
Aproveitando o nosso amor pelos livros resolvemos compartilhar, na última quarta-feira de cada mês, os livros que adquirimos (nosso book haul).
Não são necessariamente indicações, mas livros que, por alguma razão, entendemos que deveriam estar em nossa biblioteca pessoal.
Motivada por uma amiga, resolvi checar na biblioteca de casa quantos livros escritos por mulheres eu tinha. Separei por livros técnicos e romances e fiquei desapontada. Decidi que ia focar em comprar mais obras femininas então.
1) A Vantagem Humana – sempre leio os artigos da nossa queridíssima Suzana Herculano-Houzel, mas nunca tinha lido um livro dela (fiquei com vergonha, ainda mais porque eu amo livro de neurociência). Lerei ainda neste ano.
2) Sobre a beleza, Zadie Smith – tem romance, ten humor, tem política e tem família. Só faltou a guerra!
3) Falso Espelho – em tempos de dilema de redes sociais (quem inventou de tocar no assunto em tempos de pandemia????), escolhi este livro que aborda diversas questões sobre como nós nos vemos nas redes e como queremos que os outros nos vejam. Além disso, a autora é 11 anos mais nova do que eu e já é escritora da New Yorker, enquanto eu só consegui escrever no meu perfil da famigerada rede social.
Duas coisas despertaram meu interesse por ler este livro.
A primeira é o fato de a autora – jornalista gabaritada e experiente – ter sido vítima de graves e injustas acusações relacionadas à sua atuação profissional, isso por ter feito reportagens de investigação da forma de atuação de grupos aos quais se imputa a disseminação de fake news pelas redes sociais. As acusações estão muito relacionadas à condição de mulher da autora. Fiquei curioso para ver o ponto de vista da vítima nessa história.
A segunda razão pela qual me senti instigado à leitura é a possibilidade de conhecer melhor aquilo que considero uma das maiores mazelas humanas atualmente: o ódio. Tenho convicção de que a alternativa para a salvação da sociedade é o amor. Para que ele prevaleça, nada melhor do que conhecer seu inimigo número um, que é o ódio.
“Brasil – Construtor de Ruínas”, da Eliane Brum, escritora e jornalista do El País, que se autodefine como uma escutadeira que escreve, certamente está entre as maiores e melhores vozes da imprensa atual. A promessa feita de narrar “as transformações de um país que acreditava ter finalmente chegado ao futuro, mas descobriu-se atolado no passado”, ao lançar um olhar sobre os governos do Brasil no século XXI, é cumprida fielmente.
A amizade de duas meninas ao longo dos anos, dessa vez não na Itália de Elena Ferrante, mas na Nigéria de Sefi Atta. ˜Tudo de Bom vai Acontecer˜ é narrado em primeira pessoa, e acompanha a amizade improvável de Enitan e Sheri por um país recém independente e permeado por conflitos políticos, golpes militares e todo tipo de violência, especialmente contra as mulheres.
Em período de contenção de despesas, investi mais nas leituras do Martin, elas todas com uma mágica morfética sobre o piá e em mim.
A única aquisição ao meu tsundoku foi uma apropriação junto à biblioteca do meu irmão, que renunciou ao papel em prol do e-ink. Ainda que física não seja meu primeiro interesse, quando vi que o coautor era o Mlodinov, que consegue transformar ideias áridas em boas histórias, não resisti e passei a mão no livro.
Peresépolis, de Marjane Satrapi Uma leitura diferente, literatura em quadrinhos! Livro da iraniana Marjane Satrapi, que também é artista gráfica, que ilustra a revolução islâmica, as alterações culturais decorrentes e o impacto na vida de todos. Fala de identidade, de conflito identitário, de cultura, de liberdade, do papel da mulher na sociedade Confesso que quando pensei em ler “história em quadrinhos” imaginei que não teria a profundidade que o livro tem. Talvez a profundidade venha exatamente da forma de apresentação da história, em quadrinhos, o apelo visual nos leva longe em nossos pensamentos…Vale muito a leitura!
Infiel, de Ayaan Hirsi Ali A biografia de uma mulher muçulmana nascida na Somália que se tornou parlamentar na Holanda e foi considerada uma das cem pessoas mais influentes do mundo, segundo a revista Time. A biografia por si só é rica e inspiradora, além disso o livro traz importantes reflexões sobre cultura, tradição e imigração, em especial sobre o respeito, impactos e limites quando a tradição cultural importa em práticas muitas vezes rechaçadas pelo país que acolhe o imigrante.
Muito mais que um meme…
Francisco Buarque de Holanda, ou apenas Chico Buarque, além de ser um meme famoso (utilizado inclusive para anunciar seu ingresso oficial no instagram) é um dos principais nomes da música popular brasileira. Chegou a ingressar no curso de Arquitetura, mas abandonou para se dedicar a carreira artística e ter uma prolífera carreira como músico, dramaturgo e escritor.
Talvez as lições do curso de arquitetura tenham ajudado a realizar “construção”, uma música sobre as relações de trabalho e mais, lançada no ano de 1971, em plena ditadura militar, no álbum de mesmo nome, em que une forte crítica social e versos construídos com perfeição.
Construção
Dividida em três partes, a música é toda construída com versos alexandrinos (apenas com versos dodecassílabos), em que há uma acentuação tônica na sexta e na décima segunda sílaba poética, criando ritmo e melodia em estilo parnasiano.
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
Todos os versos são terminados com palavras trissílabas e proparoxítonas (algo raro, na língua portuguesa). Na segunda parte da música, a história é repetida, desconstruída e construída de outra forma, ainda mais metafórica, apenas alterando as palavras finais.
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público
Já na terceira parte a história é contada de forma reduzida, retirando dez versos, e a nova construção poética é levada em um ritmo mais intenso no final da música.
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado
Poucas vezes a escolha de uma estrutura mais formal foi tão bem utilizada em uma música, o que apenas ressalta a qualidade de Chico como compositor.
Na versão original, ainda consta uma quarta parte, retirada de outra música do próprio Chico, em que o coro canta o agradecimento a esmola dada, um trecho de “Deus lhe pague”, do mesmo álbum, e com uma crítica social ainda mais mordaz.
Construção, o “disco”, é tão importante para a música brasileira, quanto para a literatura. Tanto que um dos “livros” indicados para o vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2021 é a audição do álbum.
Para finalizar, de forma mais leve, um momento de Chico Buarque, como intérprete, ao lado de Chiara Civello, cantando um dos clássicos da música italiana.
Io che amo solo te
O Iluminado (The Shining)
“Tremendous sense of isolation” diz o gerente do hotel Overlook para Jack Torrance (Jack Nicholson) alertando-o dos riscos de ficar isolado do mundo durante o inverno gelado do Colorado, nos Estados Unidos.
Rever o Iluminado (the shining, 1980) durante a pandemia não foi fácil, mas me pareceu um exercício necessário de como enfrentar o sentimento de desesperança atual.
O fio condutor da história é Jack, que vai levar sua família, Wendy (Shelley Duvall) e Danny (Danny Lloyd), um menino com poderes paranormais, para passar uma temporada como zelador em um Hotel totalmente vazio no meio de uma nevasca.
O genial Stanley Kubrick baseou seu roteiro no livro homônimo de Stephen King mas diretor e escritor acabaram não se acertando, pois Kubrick colocou seu toque autoral e alterou muito o enredo do thriller psicológico criado por King.
Na história, com toques sobrenaturais que faz o telespectador não perceber o que é real e o que é alucinação, o jovem Danny e sua mãe são desafiados a enfrentar um atormentado Jack Torrance (Nicholson espetacular) que, vagarosamente, no ritmo da fotografia, vai perdendo sua sanidade.
Como em 2001 (2001, a space odissey), a reflexão também gira em torno da solidão humana e dos ciclos entre nascimento e morte, atravessados pela estética de Kubrick, que transborda em cada sequência do filme.
São muitas cenas clássicas, talvez do melhor filme de terror de todos os tempos.
Para os aficcionados sugiro o documentário “Room 237” que aborda as diversas perspectivas da obra, inclusive aludindo a lenda de que o diretor teria ajudado a enganar o mundo fingindo que os americanos nunca chegaram realmente a Lua. Em tempos de terraplanismo nada mais atual😉.
Então, vamos aproveitar o confinamento e fazer como Danny, explorando (overlook) todos os cenários e labirintos criados por Kubrick, imaginários ou não.
Por Marcelo BeckhausenMarcelo Beckhausen é Procurador Regional da República na PRR4, professor de Direito Constitucional na Unisinos e colaborador do DeC.
Aquele abraço – o clichê não é clichê por acaso
Faz 175 dias que me falta uma parte. Ela cabia tão facilmente e agora já não cabe mais. Acordo, dou uma olhada nas mensagens. Como sempre, é ele que está lá: Dr. Sobania, decano do grupo dos amigos do direito à saúde, querido, mantendo firme o vínculo com uma mensagem enviada por um servidor numa nuvem do céu californiano. E a vontade dessa parte surge. Vontade coletiva, de mais de uma pessoa, de um grupo.
Desço para buscar uma encomenda e encontro a minha vizinha de 6 anos (o “parafusinho” do prédio). Ela vem correndo, levanta os braços para mim, mas hesita e para. Eu olho pra ela, sem saber o que fazer, e ela, com a naturalidade que só uma criança tem, resolve a situação. Chega mais perto, encosta as mão no meu quadril, dá duas batidinhas, olha pra mim e dá uma risada. Vontade.
Troco palavras com o simpático senhor, que vem sempre (sempre mesmo) entregar encomendas. Penso mais uma vez na parte faltante, porque receber caixas com setas laranjas me traz muita alegria.
À tarde, enquanto desempenho minha função de inspetora para refrear a evasão escolar, olho para a professora do meu filho, cansada, mas incansável, fazendo história, aprendendo a ensinar para alunos em retângulos. Quarta vontade do dia.
Na reunião de trabalho, vejo minha amiga e companheira de blog, Lu. Ela está tão longe, e, mesmo que estivesse perto, existiria uma capivara e meia entre a gente. Falo com minhas sobrinhas, que estão crescendo mais do que deviam. Mandam beijos, mas falta algo. Os dias vão seguindo, incompletos.
Mas ruim mesmo é quando a falta vira dor. Foi o que aconteceu quando eu não pude abraçar meu pai, que me pediu um abraço mais com os olhos do que com os braços, estendidos. Doeu quando eu não pude abraçar a minha irmã no momento em que ela precisava, o que fez com que eu precisasse também. E doeu quando eu não pude abraçar meus amigos e ex-vizinhos, ao receberem a notícia de que teriam uma etapa difícil pela frente (como se já não bastasse a pandemia).
Li esses dias que o abraço é a primeira forma de contato do ser humano e é o seu último desejo. Esse ato, que precisa do outro para tomar forma, libera hormônios que nos fazem felizes. É o reconhecimento de que a felicidade depende do outro, não se faz solitária. Por isso, resolvi, neste chazinho, saudar o abraço, essa importante ex-parte do meu dia.
Simplesmente Amor (Love Actually, 2003)
Essa cena de filme foi uma das que mais me emocionou (a campeã foi a da moça girando na corda no filme Abril Despedaçado). Desde então, sigo olhando as pessoas se despedindo e se reencontrando.
Julián Fuks, que vem “causando” ao defender que se deve começar a pensar no retorno às aulas presenciais, escreveu este lindo texto, cheio de emoção e saudosismo.
Into my arms – Nick Cave & The Bad Seeds
A canção do cantor australiano Nick Cave não é para os fracos. Lançada em 1997, é capaz de fazer qualquer um chorar. “If He felt He had to direct you, Then direct you into my arms.” Alguém me traz um lencinho?
Vale a pena assistir a este vídeo em que crianças selecionam qual cumprimento querem dar no colega:
Três homens em conflito (Il buono, Il brutto, Il cattivo)
Para quem quiser entender Tarantino recomendo o filme “Três homens em conflito” (Il Buono, il brutto, il cattivo, 1966) , dirigido pelo italiano Sérgio Leone (da obra prima “Once upon a time in America, 1984”) e que é o maior clássico do gênero Spaghetti Western.
Fui rever muito mais pela trilha magistral de Ennio Morricone (The untouchables, 1987, The Mission, 1986, Teorema, 1968), falecido recentemente é que é um dos meus compositores preferidos. A música combina tão bem com o filme que mereceria um comentário à parte.
Eli Wallach está sensacional como o primitivo Tuco, homem de infância pobre, que não tem compromisso com nada, a não ser sobreviver. “Blondie”, Clint Eastwood, foi o personagem pistoleiro que o consagrou nas telonas. Lee van Cleef, “angel’s eyes” perfeito como o vilão.
O enredo é banal, sobre uma disputa por um tesouro escondido em meio à guerra civil norte-americana. Mas mostra, de forma caricatural, os traços de caráter e de personalidade, que podem ser identificados em qualquer um de nós.
A linguagem e a estética foram dignamente apropriadas por Tarantino em toda sua filmografia. Vale a pena rever ou, para os amantes de Tarantino, ver pela primeira vez, para compreender melhor sua obra. Uma dica: a cena do duelo é antológica, reprisada descaradamente em Reservoir dogs, 1992.
Para quem já conhece o filme uma dica é o documentário Sad Hill Unearthed, 2017, disponível na Netflix, em que, entrecortado por peculiaridades das filmagens, mostra como alguns fãs, 50 anos depois da estreia do filme, “desenterraram” o cemitério de Sad Hill, local onde foi gravada a cena final.
Por Marcelo BeckhausenMarcelo Beckhausen é Procurador Regional da República na PRR4, professor de Direito Constitucional na Unisinos e colaborador do DeC.
Playing for change
Playing For Change é um movimento criado para inspirar e conectar o mundo através da música. A ideia do projeto surgiu da crença de que a música tem o poder de romper fronteiras e superar distâncias entre as pessoas.
Em 2005, Mark Johnson andava em Santa Monica, Califórnia, quando ouviu a voz de Roger Ridley cantando “Stand by me”, que concordou em ser gravado. Quando Mark voltou com equipamento e câmeras, perguntou a Roger: “Com uma voz como a sua, por que você está cantando nas ruas?” Roger respondeu: “Cara, eu estou no negócio da alegría”.
Desde então, a equipe do Playing For Change viajou o mundo gravando e filmando músicos, e criando os vídeos chamados Songs Around the World.
Posteriormente, estabeleceu uma fundação destinada a construir escolas de música e arte para crianças em todo mundo.
Aproveitando o nosso amor pelos livros resolvemos compartilhar, na última quarta-feira de cada mês, os livros que adquirimos (sim, temos nosso próprio book haul).
Não são necessariamente indicações, mas livros que, por alguma razão, entendemos que deveriam estar em nossa biblioteca pessoal.
Já que a humanidade, definitivamente, não aprende com os próprios erros, a ideia é que com a leitura do livro ao menos eu não repita os erros dos outros (meus próprios erros, eu espero que já conheça e me esforço para não os repetir).
“Afirma Pereira”, de Antonio Tabucchi. Sempre tive curiosidade por esse livro – a história se passa durante o regime salazarista em Portugal – e tem sido uma agradável leitura. O protagonista, Pereira, certamente afirmaria que é um ótimo livro.
O livro da Abdel Aziz, uma psiquiatra e escritora egípcia, é daquelas surpresas que se encontra passeando em uma livraria. “A Fila” tem aquele clima meio Orwell, meio Kafka. Uma frase sobre o livro na contracapa define bem: “Um retrato impressionante de uma autoridade que reivindica todo o poder, renuncia toda a responsabilidade e força seu povo a repetir inverdades e abraçar sua própria opressão”, por uma fração de segundos, me fez confundir ficção e realidade.
O livro sobre falácias porque achei que faria Martin dormir rápido e pensar melhor. Mas acho que é muito cedo pra ele, mesmo com as ilustrações.
O livro da patrulha canina para compensar a compra errada e porque ele é enlouquecido pelos filhotes.
E o Malignant porque o Vinay Prasad (sigam no twitter @VPrasadMDMPH) é alguém que põe o dedo na ferida da big pharma como ninguém; quem trabalha com judicialização da saúde tem que saber que muitos dos medicamentos que deferimos tem um valor terapêutico discutível e um preço astronômico, e que os reguladores não estão fazendo um bom trabalho.
“O sol é para todos” (Harper Lee) Para lembrar da atualidade e urgência de temas como segregacionismo, preconceito e a intolerância e para não esquecer que “é pecado ‘to kill a Mockingbird’”. Escrito em 1960, tem como título original “To kill a mockingbird”. “É pecado matar um mockingbird” (rouxinol, cotovia, sem tradução exata para o português) é uma frase de Atticus, pai da protagonista Scout, como uma advertência a Scout e Jem ao lhes entregar espingardas de pressão, dizendo que preferia que atirassem em latas no quintal, mas que sabia que iriam atrás dos passarinhos, então, não poderiam matar um mockingbird. Curiosa, Scout comenta com Maudie, pois nunca havia ouvido seu pai falar que algo era pecado, Maudie então explica que o mockingbird não faz nada além de cantar, não destrói jardins e não faz ninhos nos milharais, ele só canta, por isso é pecado matar um mockingbird. É um pecado atingir algo que não te fez mal algum. A referência ao título volta ao final do livro, em uma frase de Scout… deixo a curiosidade e a interpretação para quem quiser ler. Penso que o título original é de uma sensibilidade enorme e totalmente conectado com o texto, mais do que o título da tradução brasileira.
“As cidades invisíveis” (Italo Calvino) Ítalo Calvino teria dito que esse foi o livro no qual disse mais coisas, talvez porque tenha conseguido concentrar em um único símbolo todas as suas reflexões, experiências e conjeturas. Quando li, foi por indicação de uma pessoa importante na minha vida, que me apresentou uma das cidades de Calvino, Isidora. Me disse para ler aos poucos, uma cidade de cada vez. Assim o fiz. Posso dizer que cada uma delas nos traz alguma sensação de reconhecimento ou pertencimento. É um livro para reler de tempos em tempos, até porque dependendo do astral que estamos as impressões são diferentes. Em alguns momentos, lemos e tudo aquilo parece uma mera descrição, em outros a beleza de todas as metáforas prescinde qualquer explicação e a experiência de sentimentos simplesmente flui.
“O amor nos tempos do cólera” (Gabriel García Márquez) Relendo porque o momento atual tem tudo de cólera e de realismo fantástico. O livro fala não só de um caso de amor que “demorou” cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias, que encontrou inúmeros obstáculos, mas nunca desanimou. Fala na verdade de um amor que não deixou de ser vivido durante todo aquele tempo de espera. Mas fala de mais do que isso, fala de amores (no plural), memórias, espera, resiliência, persistência, amadurecimento e aprendizado. Fala de viver. Denso e ao mesmo tempo leve. Vale muito a leitura.
“Terra sonâmbula” (Mia Couto) O livro da foto foi emprestado pela Carol minha amiga do coração, companheira neste blog e quem eu admiro muito. Adoro Mia Couto, leio tudo que me cai nas mãos. Também tem muito de realismo fantástico, como Gabriel García Márquez. Muita crítica social e política, personagens complexos, elementos culturais fortes.