Aquele abraço – o clichê não é clichê por acaso

Faz 175 dias que me falta uma parte. Ela cabia tão facilmente e agora já não cabe mais. Acordo, dou uma olhada nas mensagens. Como sempre, é ele que está lá: Dr. Sobania, decano do grupo dos amigos do direito à saúde, querido, mantendo firme o vínculo com uma mensagem enviada por um servidor numa nuvem do céu californiano. E a vontade dessa parte surge. Vontade coletiva, de mais de uma pessoa, de um grupo.

Desço para buscar uma encomenda e encontro a minha vizinha de 6 anos (o “parafusinho” do prédio). Ela vem correndo, levanta os braços para mim, mas hesita e para. Eu olho pra ela, sem saber o que fazer, e ela, com a naturalidade que só uma criança tem, resolve a situação. Chega mais perto, encosta as mão no meu quadril, dá duas batidinhas, olha pra mim e dá uma risada. Vontade. 

Troco palavras com o simpático senhor, que vem sempre (sempre mesmo) entregar encomendas. Penso mais uma vez na parte faltante, porque receber caixas com setas laranjas me traz muita alegria.

À tarde, enquanto desempenho minha função de inspetora para refrear a evasão escolar, olho para a professora do meu filho, cansada, mas incansável, fazendo história, aprendendo a ensinar para alunos em retângulos. Quarta vontade do dia.

Na reunião de trabalho, vejo minha amiga e companheira de blog, Lu. Ela está tão longe, e, mesmo que estivesse perto, existiria uma capivara e meia entre a gente. Falo com minhas sobrinhas, que estão crescendo mais do que deviam. Mandam beijos, mas falta algo. Os dias vão seguindo, incompletos.

Mas ruim mesmo é quando a falta vira dor. Foi o que aconteceu quando eu não pude abraçar meu pai, que me pediu um abraço mais com os olhos do que com os braços, estendidos. Doeu quando eu não pude abraçar a minha irmã no momento em que ela precisava, o que fez com que eu precisasse também. E doeu quando eu não pude abraçar meus amigos e ex-vizinhos, ao receberem a notícia de que teriam uma etapa difícil pela frente (como se já não bastasse a pandemia).

Li esses dias que o abraço é a primeira forma de contato do ser humano e é o seu último desejo. Esse ato, que precisa do outro para tomar forma, libera hormônios que nos fazem felizes. É o reconhecimento de que a felicidade depende do outro, não se faz solitária. Por isso, resolvi, neste chazinho, saudar o abraço, essa importante ex-parte do meu dia.

Simplesmente Amor (Love Actually, 2003)

Essa cena de filme foi uma das que mais me emocionou (a campeã foi a da moça girando na corda no filme Abril Despedaçado). Desde então, sigo olhando as pessoas se despedindo e se reencontrando.

Nostalgia do Abraço

Julián Fuks, que vem “causando” ao defender que se deve começar a pensar no retorno às aulas presenciais, escreveu este lindo texto, cheio de emoção e saudosismo.

Into my arms – Nick Cave & The Bad Seeds

A canção do cantor australiano Nick Cave não é para os fracos. Lançada em 1997, é capaz de fazer qualquer um chorar.  “If He felt He had to direct you, Then direct you into my arms.” Alguém me traz um lencinho?

Vale a pena assistir a este vídeo em que crianças selecionam qual cumprimento querem dar no colega:

Das 20 crianças, 17 escolheram o abraço. Uma passou reto…

Grande Sertão: Veredas

No trecho em que Riobaldo reencontra Diadorim, que conheceu ainda menino, a vontade do abraço está lá também.

A imagem que abre o post e as a seguir são dos irmãos Gao, que, desde 2000, vêm registrando abraços coletivos.

Vontade. Um abraço,

Tia Carol

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Mais Chazinhos

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