Legado que podemos aprender com a pandemia: necessidade de autonomia operacional para o SUS

Há praticamente um ano, o Congresso Nacional reconhecia, por meio do seu Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, a ocorrência do estado de calamidade decorrente da emergência de saúde pública de importância internacional relacionada ao coronavírus.
Desde então, cerca de 350 mil mortes se acumularam em nosso país. A maioria delas poderia ter sido evitada se não tivessem sido apresentadas respostas de curtíssimo fôlego para um quadro pandêmico que reclama planejamento multissetorial de médio prazo.
Desde o envio do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO)-2021, em meados de abril de 2020, era preciso, no mínimo, um plano bienal com clara pactuação de responsabilidades federativas nas dimensões sanitária, assistencial e econômica. Todavia, o próprio Decreto Legislativo nº 6/2020, assim como a Emenda do Orçamento de Guerra (EC 106/2020), temerariamente se fiaram na tese de que a calamidade sanitária terminaria em 31 de dezembro do ano passado.
Acumulamos tais equívocos por força da imprudente pretensão de retomar em 2021 a “âncora fiscal” do teto dado pela Emenda 95/2016. Tanto sanitária quanto economicamente é inadequada e mortífera a insistência em retomar e manter o teto em plena pandemia. Aliás, o “Novo Regime Fiscal” da EC 95 já clamava por revisão antes mesmo da Covid-19, como analisamos aqui, haja vista seus limites e vieses unívocos de ajuste seletivamente incidente apenas sobre despesas primárias.
Nesse sentido, escolher manter o teto à revelia da realidade pandêmica, por meio de remendos frágeis mal formulados na Emenda 109/2021, bem como por meio de uma vigência curtíssima para o “orçamento de guerra”, é algo que se comprovou pragmaticamente mais oneroso para o erário e para a própria sociedade.
Contingentemente fixar limites temporais e fiscais curtos revelou-se, na dura tragédia factual brasileira, uma estratégia de controle equivocada para conter a tendência ao trato patrimonialista dos recursos públicos. Ao longo de 2020 e do primeiro trimestre de 2021, a gestão político-orçamentária da pandemia buscou, primordialmente, impactar as eleições municipais de novembro passado. Depois delas, manejaram-se os restos a pagar dos créditos extraordinários de 2020 para influenciar as eleições das mesas diretoras da Câmara e do Senado em fevereiro de 2021. Passadas ambas as agendas eleitorais de curtíssimo prazo, o foco nuclear agora tem sido pavimentar os caminhos de quem deseja se (re)eleger em 2022, o que explica, em grande medida, a longa e ainda presente interdição do debate do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA)-2021.
Em meio à (ir)racionalidade patrimonialista de curto prazo eleitoral, emergiu a falsa contraposição entre saúde e economia, a qual serviu de pretexto para uma equivocada e genérica prescrição de “tratamento precoce”, esse, por seu turno, manejado como um politizado argumento contra o isolamento social. Tudo isso em um contexto tanto de fragmentação da comunicação governamental com a sociedade, quanto de funesta polarização federativa.
As restrições fiscais foram incapazes de reduzir os desvios e abusos alocativos diante dessa guerra de narrativas político-federativas. A bem da verdade, tais dimensões — ao invés de se equalizarem — acumularam-se para nos legar um quadro de colapso sanitário-hospitalar inédito, como alertou o Boletim Extraordinário do Observatório da Covid-19 da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) emitido em 16 de março de 2021 e disponível aqui.
Não obstante isso, errática e ignorantemente, a recém-promulgada Emenda 109/2021 repete o erro de apresentar resposta fiscal de curtíssimo fôlego, como alertamos aqui. Isso porque o limite de R$ 44 bilhões (inscrito no §1º do artigo 3º da EC 109) para pagar o auxílio emergencial por meio de crédito extraordinário é francamente insuficiente e juridicamente inepto para a realidade brasileira atual.
Defendo que deveríamos já ter alterado o rol de exceções ao teto (§6º do artigo 107 do ADCT), desde a própria Emenda do Orçamento de Guerra, como, aliás, fora feito pela EC 102/2019 para a repartição federativa dos recursos da cessão onerosa do pré-sal. Tal alteração do teto serviria para cobrir a continuidade das despesas de enfrentamento da pandemia de forma planejada e pactuada dentro do PLOA-2021, evitando o manejo abusivo dos créditos extraordinários para atender a despesas previsíveis.
Neste momento de colapso sanitário e, infelizmente, até funerário, precisamos não só rever o teto como também resgatar a vigência do Orçamento de Guerra (Emenda 106/2020). Aludido instrumento permitiria ao Banco Central atuar no mercado secundário das dívidas privada e pública, sobretudo para gerir a ponta longa de juros, ao invés de majorar excessiva e abruptamente a taxa Selic contra todas as evidências de desaceleração econômica na pior fase da pandemia.
Não deixa, por sinal, de ser uma sintomática inversão de prioridades que tenhamos debatido e aprovado a autonomia do Banco Central (Lei Complementar nº 179, de 24 de fevereiro de 2021), sem havermos feito qualquer reflexão análoga para o funcionamento operacional do nosso Sistema Único de Saúde (SUS).
A alternância factual de quatro ministros da Saúde em menos de um ano e durante a maior pandemia desde 1918 é a face mais dramática da falta de racionalidade gerencial para o SUS. Somem-se a isso a omissão deliberada quanto ao dever de aquisição tempestiva de vacinas e o cancelamento do processo de compra de kits de intubação em agosto de 2020.
Ao lermos o Relatório Resumido de Execução Orçamentária relativo ao 6º bimestre de 2020 (disponível aqui), podemos concluir, com clareza, que o saldo inexecutado de R$ 22,826 bilhões pela União em 2020, relativamente aos créditos extraordinários abertos na função Saúde, foi uma falsa “economia”.
É inaceitável tamanha postergação quando havia dotação orçamentária autorizada no bojo do “orçamento de guerra”. Fica evidente, à luz dos dados do Relatório Resumido da Execução Orçamentária (RREO) do sexto bimestre de 2020 que o Ministério da Saúde deliberadamente escolheu adiar a contratação de vacinas, quando era necessária pronta aquisição de doses suficientes para garantir que fosse realizada a mais ampla e imediata cobertura vacinal, tão logo houvesse sua aprovação pelas instâncias competentes. Também escolheu cancelar a compra de kits de intubação ao longo do último semestre do ano passado, recusando-se ao dever prudencial de manter estoques de medicamentos e insumos hospitalares para fazer face à altamente provável continuidade da pandemia em 2021. Tudo isso foi feito sob uma falsa aposta na imunidade de rebanho, ainda que custasse a vida de milhares de brasileiros.
Diante do pior colapso sanitário-hospitalar da história brasileira, tal como diagnosticado pela Fiocruz, agora é preciso realizar lockdown nacional suficiente para aliviar o nível de saturação de leitos de UTI nas redes pública e privada de assistência à saúde, enquanto não atingimos cobertura vacinal ampla para conter a transmissão do vírus.
Todavia, para promover tal isolamento social amplo, é preciso resguardar renda adequada aos mais vulneráveis (R$ 150 mensais é evidentemente insuficiente), bem como é preciso garantir sustentação econômica mínima para a manutenção de empregos e para a sobrevivência das micro e pequenas empresas.
Vale destacar que o artigo 3º da Emenda 109/2021 é todo ele uma contradição jurídica em seus próprios pressupostos, sendo particularmente abusivo no seu §4º, já que o afastamento contingente dos requisitos de urgência e imprevisibilidade opera como franca burla à finalidade do instituto dos créditos extraordinários e ao próprio regime jurídico do teto da EC 95/2016.
Ora, manejar créditos extraordinários para continuar a pagar o auxílio emergencial em 2021 é uma afronta ao princípio da separação de poderes e ao devido processo legislativo orçamentário, porque essa é uma despesa previsível que, desde agosto de 2020, já demandava pactuação dialogada com o Congresso no âmbito do PLOA-2021.
Some-se a isso o fato de que créditos extraordinários, por definição, não demandam indicação de fonte de custeio, tampouco se submetem a tetos previsíveis, sob pena de negarem a sua própria razão finalística de ser, qual seja, atender a despesas urgentes, relevantes e imprevisíveis.
Tudo isso comprova ostensivamente que vivemos sob a égide voluntariosa de tentativas e erros no enfrentamento da pandemia. A falta de planejamento de médio prazo e a ausência de coordenação nacional para o enfrentamento da pandemia trouxeram-nos ao caráter errático, curto-prazista e insuficiente tanto da Emenda do Orçamento de Guerra (EC 106/2020) quanto da Emenda Emergencial (EC 109/2021).
O modo como se deu a gestão brasileira da calamidade acarretou, por si só, tanto o agravamento das condições de transmissão do vírus quanto a redução da capacidade operacional de enfrentamento da pandemia. Dito de outro modo, por ser tão curto-prazista, tão falsamente presa a limites fiscais autoimpostos e tão capturada por interesses político-eleitorais, a gestão brasileira da crise decorrente da Covid-19 acabou por ampliar incomensuravelmente a calamidade.
Vivemos hoje em nosso país uma calamidade político-gerencial dentro da calamidade sanitária, ao custo de centenas de milhares de mortes majoritariamente evitáveis. Cabe aqui, pois, reafirmar que a recém promulgada Emenda 109/2021 chega, nesse contexto, como mais uma resposta francamente insuficiente e inepta para o tamanho da crise em que nos encontramos.
Sem controle da transmissão do vírus para evitar a geração de novas cepas mais perigosas, seguimos celeremente a caminho das quatro mil mortes diárias. Como bem alertado por Deisy Ventura, Fernando Aith e Rossana Reis, a propagação da Covid-19 no nosso país foi intencional:
"Existe uma estratégia de propagação da Covid-19 no Brasil, implementada sob a liderança do presidente da República, como demonstramos em estudo publicado em janeiro de 2021, resultado de investigação do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa) da USP, em parceria com a Conectas Direitos Humanos.
A partir de abril de 2020, o governo federal passou a promover a imunidade coletiva por contágio como meio de resposta à pandemia. Ou seja, optou por favorecer a livre circulação do novo coronavírus, sob o pretexto de que ela naturalmente induziria à imunidade dos indivíduos, e de que a redução da atividade econômica causaria prejuízo maior do que as mortes e sequelas causadas pela doença".
De fato, o estado de coisas atual afasta a hipótese de imperícia, imprudência e negligência porque houve escolhas deliberadas no sentido de negar enfrentamento adequado à pandemia. Daí não houve custeio suficiente e tempestivo para amparar as ações e serviços públicos de saúde, não houve coordenação nacional, tampouco execução federativa pactuada conforme planejamento sanitário.
Apenas se priorizou falsamente a economia em detrimento da saúde, de modo a se escolher uma resposta temporal e fiscalmente tão curta, enquanto os agentes políticos colocaram seus interesses patrimonialistas à frente da população em uma guerra político-federativa com franco interesse em impactar primordialmente as eleições municipais, as eleições das mesas diretoras da Câmara e do Senado e, sobretudo, as eleições nacionais de 2022.
Para superar uma gestão sanitária tão calamitosa como a brasileira, precisamos retomar a origem dos nossos impasses, de modo que o arranjo federativo do SUS seja aprimorado para:
- Minimizar o baixo ganho de escala nos seus serviços majoritariamente municipalizados (a exemplo dos hospitais de pequeno porte), reorientando seu foco para as regiões de saúde;
- Afastar o manejo abusivo de exonerações imotivadas dos seus dirigentes (troca-troca que traz perda da memória do serviço e reinvenções voluntariosas da roda, além do alto risco de descontinuidade dos serviços públicos);
- Garantir aderência da execução orçamentária ao planejamento sanitário, em busca do efetivo atendimento às necessidades de saúde da população e aos riscos epidemiológicos diagnosticados na forma do artigo 36 da Lei 8080/1990 e do artigo 30 da LC 141/2012. Tal ação pressupõe avaliação de desempenho e controle de produtividade mínima nas terceirizações e na gestão de pessoas (sobretudo profissionais médicos e atendimento hospitalar) conforme as metas físicas e financeiras do planejamento sanitário, vedando o risco de desvio patrimonialista dos recursos vinculados ao SUS. É preciso priorizar a prevenção e a promoção da saúde, ao invés de apenas tratar a doença já instalada, onde há maior margem de lucro para a iniciativa privada e maiores retornos financeiros para o terceiro setor;
- Resguardar custeio suficiente e tempestivo para as ações e serviços públicos de saúde mediante cumprimento das pactuações celebradas no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite, a que se refere o artigo 14-A da Lei Orgânica do SUS, em caráter vinculante para o ciclo orçamentário de todos os entes da federação: e, por fim, mas não menos importante,
- Fortalecer os instrumentos de controle social em tempo real e online acerca da gestão sanitária, ampliando a capacidade de a sociedade fiscalizar seus atos e omissões.
Para o quadro atual de colapso sanitário, precisamos construir tal horizonte de autonomia operacional para o SUS com a imediata instituição de consórcio nacional, sob a forma de associação pública plurifederativa, na forma do artigo 241 da Constituição e da Lei 11.107/2005. Eis um bom ponto de partida para efetivamente enfrentarmos nossos problemas estruturais, de modo a resolvê-los e não apenas postergá-los.
Centenas de milhares de mortes não podem ser acumuladas impunemente. Para uma crise tão aguda e grave, somente uma solução estrutural se revela à altura do nosso desafio: a saúde pública precisa ser gerida tecnicamente e reclama maior autonomia que o Banco Central.
Afinal, por que ousamos aprovar a autonomia dessa autarquia, se não formos capazes sequer de discutir as fragilidades operacionais do SUS? Ora, aqui há uma clara ordenação de prioridades: antes da busca por se preservar o valor da moeda brasileira, temos de pautar a centralidade do dever de preservação das vidas de todos os cidadãos que aqui vivem.
*artigo originalmente publicado no ConJur em 23/03/21.