De médico e de louco…

Início dos anos 2000, Comarca de Curiúva-PR, juíza com atuação em todas as competências: cível, criminal, família, infância e juventude, juizados especiais, eleitoral e por aí vai.
Uma tarde entro no cartório e encontro uma funcionária com os pés em carne viva, pele toda descascada, de chinelos.
O que aconteceu com o teu pé fulana? – pergunto.
Não sei doutora, passei algumas pomadas, mas nada resolveu.
Como alguém que adora dar palpite arrisquei: será que não é fungo? Fiz recentemente um tratamento para micose nas unhas e tomei um remédio chamado fluconazol.
Como é o nome do remédio doutora? Vou anotar.
Ai falei demais.
Fulana, remédio precisa de prescrição, vá ao médico e confira com ele.
Cidade pequena, a moça comprou o remédio e na semana seguinte estava com a pele dos pés normal novamente, muito agradecida pela indicação.
Passados mais alguns dias, uma conselheira tutelar me procura no fórum.
Apreensiva, imaginando alguma criança em situação de vulnerabilidade, a recebi e perguntei: tudo bem? Alguma tarefa difícil para o Conselho?
Então doutora, queria perguntar uma coisa para a senhora, por isso vim até aqui – fala a conselheira meio sem jeito. Meu menino está com uma mancha no braço…o que a senhora acha que pode ser? Será que a senhora pode dar uma olhada nele? Passar algum remédio?
Livrei-me da saia justa prometendo para mim mesma nunca mais “receitar” nada para ninguém e a orientando a procurar o pediatra.
Ela ainda insistiu dizendo que eu havia “curado” a funcionária do cartório
Nos despedimos e minha “carreira” de médica (ou de curandeira?), para o bem da humanidade, terminou por ali.
A história, no entanto, permaneceu na memória e mais recentemente me trouxe a reflexão que agora compartilho de forma despretensiosa.
A proximidade do juiz estadual com a comunidade, seja em grandes ou pequenos Municípios, o torna mais suscetível na análise de demandas por medicamentos ou tratamentos médicos? É mais difícil para ele tomar decisões nas demandas por saúde?
A filosofia, com o conceito de justiça, e a psicologia, com o conceito de empatia, auxiliam nessa resposta. Daniel Wang em seu artigo “Judicialização da Saúde: da crítica à busca de uma jurisprudência construtiva” (2019), explicita que:
“Nossos julgamentos morais são moldados pela aprovação daquilo que faz os outros felizes e a rejeição ao que causa dor, mesmo se não somos diretamente afetados. Hume chamou a capacidade de sentir sympathy de “humanidade”. Humanidade para Hume, porém, é diferente de justiça. A humanidade é inescapavelmente parcial e escassa. Nossa sympathy é maior quanto mais próximos somos de uma pessoa ou quanto melhor a conhecemos. O drama de alguém cujo nome, rosto e história conhecemos e com quem nos identificamos nos afeta muito mais do que a de um estranho ou um número em uma estatística”. (WANG, 2019, p.2)
Um estudo que analisou a percepção de magistrados no Estado do Maranhão sobre as demandas envolvendo saúde pública (NEVES e PACHECO, 2017) confirma essa constatação. A maioria dos entrevistados referiu alguma dificuldade na apreciação de causas que envolvem a vida e a saúde das pessoas. Um deles, ao falar de tal dificuldade, chegou a se utilizar da expressão “a escolha de Sofia”, fazendo
analogia com a história da mãe polonesa, presa num campo de concentração durante a Segunda Guerra e que é forçada a escolher um de seus dois filhos para ser morto (p. 757-760).
O mesmo estudo ainda aponta as impressões da constitucionalista Ana Paula de BarcellosBARCELLOS, Ana Paula de. O direito a prestações de saúde: complexidade, mínimo existencial e o valor das abordagens coletivas e abstratas. In: Revista da Defensoria Pública, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 133-160, jul./dez. 2008. (2008) sobre o dilema:
“É certamente penoso para um magistrado negar […]. Um doente com rosto, identidade, presença física e história pessoal, solicitando ao Juízo uma prestação de saúde, é percebido de forma inteiramente diversa da abstração etérea do orçamento e das necessidades do restante da população, que não são visíveis naquele momento e têm sua percepção distorcida pela incredulidade do magistrado, ou ao menos pela fundada dúvida de que os recursos públicos estejam sendo efetivamente utilizados na promoção da saúde básica” (BARCELLOS, 2008, p. 136, apud NEVES e PACHECO, 2017, p. 759-760).
Transportando os conceitos da filosofia e da psicologia para o direito e encaminhando a questão para o enfoque processual, todavia, abre-se uma nova reflexão, em especial no que diz respeito às demandas relativas à saúde pública.
Note-se, primeiramente, que muitas vezes uma demanda com base no direito fundamental à saúde tem como pano de fundo a necessidade de incorporação de determinado medicamento ou insumo ao SUS ou a necessidade de revisão de determinado protocolo clínico ou de revisão de critérios administrativos de gestão de acesso a alguns serviços, como consultas especializadas, cirurgias ou leitos hospitalares.
O juiz se depara, deste modo, com questões como definição de políticas públicas, alocação de recursos orçamentários e análise de evidências científicas cuja amplitude e complexidade extrapolam os limites da lide individual e o colocam, antidemocraticamente, na condição de substituto do administrador.
Daí já se pode inferir que não é propriamente a natureza da demanda que dificulta ou dramatiza sua análise, mas sim seu tratamento sob o prisma da tutela individual encaminhada pelas vias processuais tradicionais.
Vale dizer, a causa ajuizada sob este formato, embora ingresse no sistema judiciário com a roupagem individual, encerra verdadeiro litígio de interesse público e sua abordagem convencional se revela ainda mais imprópria quando se repetem ações com o mesmo pedido.
A doutrina, aliás, já identificou os inúmeros problemas que o tratamento das demandas repetitivas nos mesmos moldes das individuais pode acarretar:
“I) abarrotamento dos juízos de demandas idênticas ou similares, com possível contraste de decisões (superficialmente produzidas) e eventual tratamento diferenciado das partes em presença da mesma lesão; II) diversidade de defesa técnica entre os litigantes habituais e eventuais; III) em decorrência da ausência de mecanismos legítimos e que proporcionem coerência e estabilidade decisória uma completa anarquia interpretativa e IV) déficits de representação (subrepresentação) no julgamento da causa piloto pelo fato de somente parcela dos argumentos e interesses são levados em consideração. E, em países como o Brasil, em que não são asseguradas políticas públicas adequadas de obtenção de direitos fundamentais, a já aludida litigância de interesse público (Publicinterestlitigation), que consiste num dos fatores determinantes da geração de demandas repetitivas, não constitui uma exceção, mas, sim, uma regra, de modo a conduzir inúmeras pessoas à propositura de demandas envolvendo pretensões isomórficas (v.g., contra o poder público), que merecem um tratamento diferenciado e legítimo" (THEODORO JÚNIOR, et al, 2016, p. 381, apud BAHIA, NUNES e COTA, 2019, p. 19)THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC – Fundamentos e sistematização. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016..
Para solucionar tais problemas e a inadequação dos instrumentos processuais habituais na tutela das ações por direitos fundamentais e de interesse público, apresenta-se o conceito de processo estrutural.
Neste a principal preocupação do julgador é a de decidir mediante observação do contexto social, político e econômico em que se insere a demanda, com a consciência de que sua decisão pode provocar mudanças institucionais complexas.
Conforme explica Fernando Alcântara Castelo (2017):
“a garantia da efetividade do provimento é uma das maiores, senão a maior, preocupação dessas decisões, que buscam privilegiar a solução mais ampla, que alcance resultados que possam beneficiar toda a coletividade, atendendo as suas necessidades” (ibidem, p. 5)
Desse panorama exsurge, por consequência, outra constatação, a de que é no âmbito das ações coletivas que o juiz pode, mais facilmente e com mais segurança, proferir decisões “estruturais”, uma vez que:
“ao contrário do processo individual, o conflito estrutural não diz respeito tão somente a dois polos de interesses contrapostos. A racionalidade destes conflitos é diversa: trata-se de um processo multipolar, nos quais, superando a lógica bipolarizada, são formados diversos núcleos de interesses, muitas vezes antagônicos, acerca do objeto do litígio” (FACHIN e SCHINEMANN, 2018, p. 237).
Ainda que se admita a prolação de decisões estruturais em demandas individuais por medicamentos, as vantagens da adoção do processo estrutural nas ações coletivas são evidentes, com destaque para:
“a maior capacidade de diálogo com os gestores públicos e com a sociedade organizada, bem como a potencialidade de ser um mecanismo capaz de levar a um efetivo aprimoramento da política pública de medicamentos pela via judicial” (CHAGAS et al, 2020, p. 108)
A par disso, o ajuizamento de uma ação coletiva relativa à macro-lide geradora de processos multitudinários enseja, por relação de prejudicialidade, a suspensão das ações individuais, consoante entendimento já reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de recurso repetitivoRecurso Especial No 1.110.549 – RS (2009/0007009-2), Relator Min. Sidnei Benetti, DJE 14/12/2009, fazendo estancar novos ajuizamentos com idêntica pretensão e evitando que sejam proferidas decisões conflitantes e desiguais.
Há de se ponderar, contudo, que as ações coletivas encontram pouco incentivo na cultura processual brasileira. Recente pesquisa promovida pelo CNJ (MELO e HERCULANO, 2019), embora tenha apresentado dados que “contrariam a crença que aponta que tribunais e juízes estariam mais dispostos a decidir casos individuais de forma favorável do que realizar reformas estruturais na política pública de saúde via ações coletivas” ainda verificou que “é baixo o número de ações coletivas se comparadas às individuais. Isso revela que a judicialização da saúde se dá muito mais pela via individual do que pela coletiva” (p. 4).
Como forma de iniciar uma mudança desse paradigma, algumas sugestões se mostram oportunas para incentivar o ajuizamento de ações coletivas, particularmente a utilização de dados estatísticos das próprias demandas individuais, tais como número de ações que se repetem em micro e macrorregiões e número de pareceres e notas técnicas solicitadas aos NATs em relação a determinado medicamento ou tratamento.
Os dados poderiam ainda ser confrontados com os pareceres e estudos em andamento pela CONITEC com identidade de objeto e informados aos órgãos competentes de modo a contribuir na definição de atualização ou estabelecimento de novos protocolos clínicos.
Igualmente no campo estatístico, em plena “era dos dados”, também a melhoria na pesquisa de informações disponíveis nos sistemas processuais poderia auxiliar na valorização da tutela coletiva.
Hermes Zaneti Jr. e Daniela Bermudes Lino, no artigo “Os painéis do CNJ e os dados da efetividade das ações coletivas no Brasil” (2019), trazem opiniões relevantes para tanto:
- “a taxonomia das tabelas unificadas CNJ/CNMP é fundamental. Uma boa alimentação dessas informações pelo Judiciário e pelos MPs poderá representar um ganho quantitativo, mas também qualitativo. Com dados poderemos evitar ajuizamento de ações desnecessárias e demonstrar a efetividade das ações ajuizadas;
- a taxonomia pode ser melhorada. Por exemplo, marcar as ações coletivas dentro de uma classe específica, evitando que ações com nome de ação civil pública, mas que são individuais, fossem consideradas para fins de coleta de dados. Embora isso já tenha sido resolvido em parte pelo Ministério Público com a disciplina dos procedimentos administrativos, o problema não foi eliminado e a questão do erro humano acaba sendo potencializada pela confusão terminológica;
- devemos evoluir nas ferramentas de pesquisa a partir do cruzamento de informações. Os painéis do CNJ apresentam algumas dificuldades de leitura, por exemplo, não foi possível, pelo menos até agora, obter um cruzamento dos dados de assunto e classe (ações coletivas por matéria). No MP-ES, esse cruzamento é possível, como foi demonstrado — assunto, movimento e classe podem ser combinados;
- para os novos rumos da pesquisa sobre a efetividade das ações coletivas, agora é importante, para além dos números, buscar dados sobre os resultados das ações coletivas, tempo de tramitação, eventualmente, número de membros do grupo. Claro que algumas dessas questões exigiria mudanças das ferramentas de alimentação de dados e de pesquisa, mas isso seria uma segunda etapa;
- no painel do CNJ, não conseguimos relacionar o movimento da classe (ação civil pública, por exemplo) com o movimento (procedência, improcedência etc.). No painel do MP-ES, esse cruzamento de dados é possível e permite-se a identificação, por assunto, das sentenças favoráveis, desfavoráveis ou parcialmente favoráveis ao MP do Espírito Santo”. (ibidem, p. 8)
A Resolução nº 339 de 08/09/2020 do CNJ, a propósito, dá um grande passo nesse sentido na medida em que estabelece a criação dos Núcleos de Ações Coletivas e as regras para implantação dos cadastros de ações coletivas dos Tribunais.
A Resolução, aliás, apresenta diretrizes bastante inovadoras para disponibilização de tais cadastros:
Art. 8º Cabe aos tribunais abrangidos por esta Resolução a criação ou aprimoramento, conforme o caso, de cadastros próprios de processos coletivos, que deverão ser disponibilizados em seus portais na internet, com
informações atualizadas e de interesse público, observadas as seguintes diretrizes:
I – as informações deverão ser de fácil localização, em formato de consulta e linguagem acessível ao jurisdicionado;
II – destaque dos temas de repercussão social, econômico e ambiental; e
III – apresentação de esclarecimentos sobre o funcionamento das ações coletivas e a possibilidade de direcionamento para cadastros de soluções administrativas, inquéritos ou soluções consensuais dos legitimados para as ações coletivas, como o Ministério Público e a Defensoria Pública.
O emprego de dados estatísticos consistentes, portanto, aliado ao diálogo institucional com os legitimados para as ações coletivas e com a própria Administração, poderia servir de termômetro para a análise de legítimas necessidades sociais e fazer emergir uma judicialização da saúde mais propositiva e eficaz no auxílio à construção de políticas públicas nesta área.
Voltando à história que serviu de ponto de partida para a presente reflexão, finalizo com a confiança de que, ao sair de um “modelo de atuação judicial meramente responsivo e repressivo” para assumir um “modelo resolutivo e participativo” (DIDIER JUNIOR e ZANETI JUNIOR, 2017DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes. Curso de direito processual civil – v. 4:processo coletivo. 11. ed. Salvador: JusPODIVM; 2017., apud CHAGAS et al., 2020, p. 106) na apreciação das demandas de saúde, o Judiciário deixa a posição de “curandeiro” para ocupar a de agente transformador da sociedade.
Imagem do post: Paolo Nicolello on Unsplash