O tema 793 do STF e o dissenso jurídico. Aqui tem SUS?

Homem observando 3 cachoeiras

O Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde – Conasems – promove há alguns anos a mostra “Brasil, aqui tem SUS”A edição de 2020 é a 17ª.. Trata-se de projeto que estimula o compartilhamento de boas práticas, incentiva a reflexão e divulgação do serviço público de saúde, com enfoque na garantia do direito à população.

De fato, o Sistema Único de Saúde, SUS, está na vida de todos os brasileiros e residentes no país em variados contextos. Às vezes, com maior projeção, noutros casos, de forma mais discreta. 

Embora o sistema de saúde público instituído no Brasil pela Constituição Federal de 1988 seja de todos e para todos, ainda hoje, pouco se nota sua dimensão. Por exemplo, o atual Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, afirmou que, antes de ocupar o cargo, desconhecia a magnitude do SUS. Então, iniciativas como as do Conasems são primordiais.

Neste mesmo cenário se insere a discussão jurídica examinada pelo Supremo Tribunal Federal, no tema 793 (recurso extraordinário nº 855.178/SE e posterior embargos de declaração).

Num primeiro momento, a corte brasileira definiu pela possibilidade de qualquer cidadão propor demandas sobre assistência à saúde contra um ou todos os entes da federação, inspirada num ideal de fomento/efetivação do direito fundamental à saúdeRE 855178 RG, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 05/03/2015. Depois, o órgão modificou substancialmente o entendimento. Permitiu à autoridade judicial direcionar, caso a caso, o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquizaçãoRE 855178 ED, Relator(a): LUIZ FUX, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 23/05/2019.

Apesar de constar na ata de julgamento que o resultado se deu conforme o voto do Ministro Edson Fachin, a interpretação forense acerca do desfecho do provimento jurisdicional não logrou uniformidade.

Em alguns julgados de conflito de competência, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que a situação envolve os enunciados sumulares nºs 150 e 264, sobre a atribuição da Justiça Federal de examinar a existência de interesse que justifique a presença da União e a impossibilidade de o juízo estadual reexaminar o pontoCC 172.817/SC, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 09/09/2020, DJe 15/09/2020) e, AgInt no CC 172.061/PA, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 01/09/2020, DJe 03/09/2020. Ainda, mencionou o tema 500 do STF, sem atentar para a substancial alteração da tese do tema 793.

Além disso, apontam-se falas do Ministro Edson Fachin para se sustentar que o julgado não tratou do litisconsórcio na formação do polo passivo da demanda; apenas de um excessivo ônus a um dos entes da federação.

No meio de toda a celeuma estão o direito à saúde, em sua perspectiva relacionada ao papel estatal, e o próprio Sistema Único de Saúde.

Nesse momento, algumas ponderações se mostram pertinentes. No entanto, dentro da lógica da mostra “Brasil, aqui tem SUS”, a primeira pergunta pode ser: o que valoriza e reforça o SUS? A sua resposta exige a formulação de outra interrogação: qual o caminho indicado na Constituição Federal de 1988 para a efetivação do direito à saúde pelo estado brasileiro?

Se os arts. 6º e 196 do texto indicam um ponto de partida, a combinação dos arts. 197 a 200 permite uma visualização mais ampla do tema. Com efeito, o texto constitucional instituiu o SUS como o pilar da atuação estatal na área da saúde (sem prejuízo de outras intervenções) e delineou sua arquitetura fundamental. 

No ponto merece relevo a hierarquia das redes, o funcionamento da assistência à saúde de forma ascendente do nível básico para o complexo. Referida organização pressupõe também a correspondente atuação dos entes. 

Na sequência, é preciso atentar que o texto constitucional autorizou o desenvolvimento da organização do Sistema Único de Saúde por meio de legislação federal. Tal incumbência se concretizou, especialmente, por meio da Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde, LOS). 

A LOS definiu uma série de diretrizes e delimitou conceitos do sistema. Também estipulou responsabilidades comuns aos três entes (art. 15) e competências específicas para as unidades federativas (arts. 16, 17, 18 e 19-Q). 

Dentro de tal disposição legislativa se insere uma responsabilidade relevante: o Ministério da Saúde, assessorado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS, delibera pela incorporação ou não de novas tecnologias de saúde (art. 19-Q). O papel destinado à direção nacional decorre da natureza federativa da república brasileira e, ainda, da atuação dos serviços conforme os estágios de complexidade do assunto.

No tocante ao tema das competências, é importante pontuar que atribuições comuns na saúde pública não significam tarefas rigorosamente iguais. Primeiro, observa-se que os deveres em comum são expressamente delimitados. Em segundo lugar, numa federação, existem escalas de atuação, de maneira que os entes podem atuar num grau diverso.

Por fim, uma das regras de ouro do SUS é ser sistêmico e organizado em regiões de saúde, com portas de entrada específicas por área territorial e segundo as referências da rede. Logo, o direito à saúde é responsabilidade de todos os entes federativos, mas não de modo igual; a cada ente é definida função específicaVide Lenir Santos em “Decisão do STF sobre responsabilidade solidária ignora regras de ouro do SUS.”.

E a “solidariedade” do art. 23, II, da Constituição Federal? O dispositivo constitucional se refere a níveis de cuidado com as pessoas com deficiência (zelar pela saúde, assistência, proteção e garantia). Por conseguinte, sua pertinência tem outro enfoque. É equivocada a sua relação com a competência dos entes para atuar na saúde pública em geral.

Em acréscimo, uma vez que a tecnologia adentra no SUS, representantes das três esferas federativas pactuam a responsabilidade financeira pelo fornecimento, por meio da Comissão Intergestores Tripartite (art. 19-U, da LOS). Assim, o custeio da nova assistência é internamente regulado pelo sistema.

A apresentação desta ótica permite evidenciar que o ordenamento jurídico pátrio dispõe de uma legislação constitucional e infraconstitucional sanitária, destinada a expressar a forma e os caminhos da atuação estatal para a efetivação do direito à saúde.

À luz do exposto, a teoria jurídica sobre a saúde pública nacional deve partir, obrigatoriamente, do modelo constitucional do SUS. Princípios e regras constitucionais, que desenharam as políticas públicas de saúde, têm imperatividade e são centrais na interpretação jurídica. Analisar o direito à saúde pública, no contexto da importância que se pretende dar à Constituição Federal, implica reconhecer que seus dispositivos instituíram um regime jurídico regulado e, adiante, integrado por legislação infraconstitucional, para institucionalizar ainda mais o que ela determinouMAPELLI JUNIOR, Reinaldo. Judicialização da saúde: Regime jurídico do SUS e intervenção na administração pública. Atheneu: São Paulo, 2017, p. 50..

O que fortalece o SUS? A compreensão de seu desenho estrutural, com as suas virtudes e fragilidades. O que enfraquece o sistema? A inobservância de sua organização normativa.

Apontar a necessidade, talvez, de uma atenção especial para as doenças raras nos planos de saúde contribui para o reforço do papel estatal, democraticamente (art. 15, VIII, LOS e Lei federal nº 8.142/1990). De outro lado, pretender a responsabilização de um município/estado pelo custeio de um fármaco como nusinersena (Spinraza) certamente desestabiliza o serviço público de saúde.

Ademais, merece realce a essência do controle jurisdicional da administração pública: corrigir desvios e incitar o aperfeiçoamento da atuação estatal no cumprimento do ordenamento jurídico brasileiro.

Sob tal enfoque, é admissível uma demanda sobre tecnologia não incorporada na rede pública, sem a presença do responsável legal pelo exame da matéria? A concordância com tal questão resulta na proposição de que o ente competente, a União, esteja alheio e sem dados a respeito do problema.

Um dos princípios constitucionais mais destacados sobre a administração pública no meio jurídico é o da eficiência (art. 37 CF).  Todavia, o entendimento de que a direção municipal ou estadual do SUS cuidem de assunto que a legislação sanitária apontou como de competência específica da direção nacional – análise de tecnologias de fora da rede, financiamento de produtos inseridos no Grupo 1 do Componente Especializado de Assistência Farmacêutica, CEAF – é uma ofensa ao princípio citado. Sem embargo do exposto, ainda afronta a diretriz de vedação à duplicidade de meios para fins idênticos (art. 7º, XIII, LOS).

Com a devida vênia, ignorar tais aspectos é “descontrolar” a administração pública no âmbito da assistência à saúde e ignorar o art. 22 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, LINDB, Decreto-Lei federal nº 4.657/1942.

Outrossim, o ônus excessivo a municípios ou estados, citado na fala do Ministro Fachin, é visível na maior parte das demandas sobre tratamento não incorporado, tecnologia em fase de incorporação gradual (normalmente no grupo 1A do CEAF) ou assistência oncológica.

Neste contexto, após a leitura da Tese decorrente do Tema 793 é preciso fazer a seguinte pergunta: pode um Magistrado Estadual condenar a União a entregar um medicamento ou a ressarci-lo? Evidentemente, a resposta é não, pois o artigo 109 da Constituição confere apenas ao Juiz Federal tal possibilidadeVide Clenio Jair Schulze em “Federalização da judicialização da saúde (ainda em debate!)”.

Portanto, o que se espera da interpretação sobre o resultado do tema 793, do STF, é que todos se lembrem do SUS. Para a Constituição Federal de 1988, eis a melhor ferramenta estatal para a materialização do direito à saúde!

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