A saúde que temos é a saúde que queremos?

É comum, ao se debater o tema da saúde pública brasileira, citar como bons exemplos países que garantem saúde universal a seus cidadãos. Canadá, Espanha, Inglaterra, Itália, França e seus percentuais do PIB investidos. Sistemas de proteção social, frutos do welfare state, nascidos no pós-guerra, como o inglês, que data de 1948, contando hoje 72 anos.
O direito à saúde e o Sistema Único de Saúde (SUS) nasceram em 1988 e resultaram de forças sociais que pretendiam um país melhor e lutavam a favor de sua redemocratização. Nessa mesma época sopravam na Europa e nos Estados Unidos, desde 1979, os ventos do neoliberalismo que fincou suas garras em diversos países, como no Reino Unido de Margareth Thatcher. No entanto, tal tendência não conseguiu afetar o sistema público de saúde, porque o welfare state, ao diminuir as diferenças sociais, permite maior empoderamento da sociedade e poder de reivindicação. Políticas universalistas contribuem, sem dúvida, para ampliar a força política do cidadão e do trabalhador, que, ao ficarem menos dependentes do capital, têm maior participação social, o que contribui para a manutenção e efetividade dos direitos sociais.
No Brasil, como o direito à saúde e o SUS datam do florescimento do neoliberalismo europeu, eles nasceram de um jeito e viveram de outro. Se a Constituição de 1988 apontava para um modelo de estado de bem-estar social, por sua vez os governos, de modo sucessivo, constrangeram a efetividade do direito à saúde pela via orçamentária, tanto que a judicialização, nos anos 2000, aumentou progressivamente ante a insuficiência de serviços.
Se estruturalmente foi previsto na Constituição recurso financeiro suficiente para a implementação do SUS (art. 55 do ADCT), como uma ideia-matriz, uma ideia-força, tal fato não ocorreu. Mesmo que alocados 30% do orçamento da seguridade social nos primeiros anos das LDOs, eles se transformaram em 20% em razão de serviços próprios de outras áreas, como previdência e assistência social, terem sido incluídos no orçamento da saúde.
Nenhum país com mais de 70 milhões de habitantes garante saúde de forma universal: Canadá – 35 milhões; Reino Unido – 66 milhões; França – 67 milhões; Espanha – 45 milhões; Suécia – 10 milhões; Noruega – 5 milhões; Portugal, 10 milhões. As populações desses países somadas resultam na população brasileira, com 210 milhões de pessoas. Fiz essa afirmação em 2011Até então não se falava que o Brasil era o único país a garantir saúde universal com mais de 70 milhões de habitantes. Talvez não tivessem feito essa ilação. em artigo escrito após uma visita aos países escandinavos, cuja qualidade de vida chamou minha atenção, assim como o relevante papel do Estado na garantia de serviços públicos qualitativos e na regulaçãoNa Suécia, como exemplo, um estado liberal, até mesmo o aluguel de imóveis em sua capital é controlado pelo Estado para preservar a qualidade da cidade..
São países de elevado PIB, alta renda per capita e alto percentual de gasto público em saúde, sempre superior a 7% do PIB, e outras garantias sociais que diminuem as desigualdades, fortalecem e ampliam a classe média e apura a consciência política e o exercício dos direitos de cidadania, produzindo movimentos sociais a favor de políticas públicas.
Esses países não tergiversam quanto ao poder regulamentar sobre a saúde, que, para ser garantida a contento, precisa muitas vezes de regulamentação firme, como a definição de carteira de serviço ou o padrão de integralidade; a formação profissional; a liberdade da iniciativa privada. São sistemas muito regulados, com o cidadão respeitando as decisões de sobriedade, razoabilidade e racionalidade quanto à organização do sistema por sabê-las necessárias.
Exemplo disso, temos o Canadá, que regula de modo restrito a liberdade da iniciativa privada, e o Reino Unido, com ótimo modelo assistencial centrado na atenção primária de qualidade e mínima atividade privada em saúde. Esses países, não obstante os cortes nas políticas sociais em razão da onda neoliberal, aplicam em saúde pública sempre valores percentuais acima de 7% do PIB, enquanto o Brasil não sai dos 3,9% há décadas, mesmo sabendo de sua insuficiência.
A liberdade que se reserva à iniciativa privada, como é o caso da França, além de pequena, é bastante controlada pelo Poder Público. No Reino Unido, essa liberdade é muito restrita, tanto quanto no Canadá. Além do mais, esses países buscam regular com mais rigor a incorporação tecnológica, a ponto de discriminar por faixa etária alguns tipos de transplante, como ocorre no Reino Unido. Buscam um sistema integral, mas com sobriedade quanto às inovações tecnológicas, já que, segundo a União EuropeiaA Organização Mundial da Saúde (OMS) menciona, em seu Relatório 2010, que têm sido uma preocupação constante dos países que garantem a universalização da saúde os seus crescentes custos, citando a Alemanha como exemplo, ainda que a OMS sempre incentive a sua universalização., somente 25% das inovações trazem de fato algo novo para a saúde das pessoas.
No Brasil, garantiu-se o direito universal, mas a sua implantação ficou no meio do caminho, com restrições, enquanto nos países citados, o próprio neoliberalismo não teve força de afetá-los em sua qualidade. O SUS que queremos é o que cumpre os preceitos constitucionais e, para tanto, conta com recursos suficientes e organização centrada na pessoa.
Se fossem aplicados 30% do orçamento da seguridade social em saúde, teríamos a quantia de 270 bilhões de reais em recursos federais. Hoje são 125 bilhões de reais (2020), sem os créditos extraordinários para o enfrentamento da pandemia da Covid-19. O orçamento nacional da saúde em 2019 (União, Estados e Municípios) foi de 295 bilhões de reais. Quase o mesmo valor do que seriam os 30% do orçamento da seguridade social.
Afora a questão do subfinanciamento, o SUS precisa de atento planejamento, reflexo das realidades sanitárias, com organização regionalizada, e o Estado-membro exercendo seu papel de coordenador da saúde em seu território, unindo os municípios em regiões de saúde e diminuindo os vazios assistenciais.
Desde o seu início, com a extinção do INAMPS e a transferência de seus serviços, pessoal e acervo ao Ministério da Saúde e demais entes federativos, a centralização federal minimizou o papel do Estado-membro na sua relação com os seus municípios e instituiu um sistema de transferência de recursos que nunca cumpriu os critérios definidos pela Lei nº 8.080, de 1990 e depois pela Lei Complementar nº 141, de 2012, mantendo-se a herança de remunerar por procedimento.
Seria melhor priorizar as transferências em razão do planejamento estadual construído com os municípios em região de saúde, validado pela CIB e pela CITComissão Intergestores Bipartite (CIB) e Comissão Intergestores Tripartite (CIT)., em vez de tratar os entes federativos como prestadores de serviços da União, com pagamento por procedimentos e não em razão das necessidades de saúde estabelecidas em plano estadual-regional de saúde, a cargo do Estado, referendado pelas comissões. O que induz o planejamento do SUS não são as necessidades da sociedade, mas sim o financiamento federal, o que gera inúmeras distorções.
Em nosso país cresce, sem controle, o volume da prestação privada de serviços assistenciais de média e alta complexidade; a proliferação de planos privados que garantem consultas a baixo custo e outras formas de planos populares sem controle do Estado; o capital estrangeiro na saúde – sem a mínima regulação e pendente de julgamento, desde 2015, ADI 5435, uma vez que a Lei nº 13.097, de 2015 (art. 142), ao invés de discriminar as áreas de atuação do capital estrangeiro, tudo permitiu, anulando assim, na prática, a vedação constitucional -; a incorporação tecnológica garantida pelo judiciário, seja quanto à medicamentos e procedimentos, sem critérios de custo-benefício e sem a avaliação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia em Saúde (Conitec); crescimento da terceirização da mão-de-obra na saúde pública e da gestão privada de estabelecimento público; as duplas portas nos serviços públicos, além de grande crescimento de várias formas de subsídios públicos aos planos e seguros de saúde.
O Brasil fez a opção constitucional de garantir saúde gratuita a todos. Uma concepção de estado de bem-estar social; um ideal social a se perseguir pela humanidade que encerra, ao tempo em que garantiu à iniciativa privada a liberdade de explorá-la economicamente, com baixa regulação. Importante dizer que a coragem de se adotar um sistema universal de saúde, próprio dos países referidos, não foi a mesma em sua execução, regulação e seu financiamento.
De um lado, uma saúde gratuita; de outro, uma saúde paga, lembrando-se tratar do mesmo bem protegido como direito fundamental. Convivemos com um sistema público e um setor privado e, ainda que haja uma competência constitucional explícita de regulação, controle e fiscalização das ações e serviços de saúde (públicos e privados) pelo Poder Público, pouco se regula, estando a proliferar, como mencionado, serviços de pré-pagamento para consultas e exames de apoio diagnósticos de menor custo.
Mais de 45 milhões de pessoas têm planos privados de saúde. Parlamentares, magistrados, servidores públicos, a maioria têm planos privados financiados pelo governo. Os trabalhadores reivindicam planos de saúde em seus dissídios coletivos. Ou seja, a saúde é gerida por autoridades que não a usam. Esses são os nossos paradoxos nacionais. Queremos uma coisa, mas andamos por caminhados opostos.
Nesse passo cabe a pergunta se a saúde que temos é a saúde que queremos? Que saúde queremos? Queremos uma saúde pública que atenda a todos de modo racional e sóbrio, centrada na atenção primária, com a incorporação tecnológica rigorosamente regulada para ser de fato um sistema acessível a todos. Um sistema igual para todos. Aquilo que se pode dar para um tem que ser possível para todos.
Neste contexto, e num país de paradoxos, com alguns podendo se manter vivo em razão da utilização de aparatos tecnológicos inacessíveis à grande maioria da população, enquanto outros aguardam meses para ser atendidos em sua necessidade, é imperioso definir o modelo de atenção e o padrão de integralidade da assistência à saúde que o país deve garantir a toda a sociedade de forma igual.
Se a assistência à saúde deve ter uma base fincada na atenção básica ordenadora do sistema de referência, não seria o caso de dotar a atenção básica de competência estrutural para ordenar as referências, além, é lógico, de dotá-la de estrutura e recursos suficientes para agir como filtro e ser resolutiva em mais de 80% dos casos, como ocorre em países como Espanha e Inglaterra?
Vivemos uma dualidade: um sistema posto na Constituição e na lei e um sistema imposto por práticas que são próprias de sistemas não universais; um sistema que forma profissionais de saúde quase que integralmente para o setor privado; que não investe em ciência, tecnologia e inovação para dotar o SUS de suficiência, dentre outros aspectos.
Além do mais, bem sabemos que os custos da saúde nunca diminuem, sendo sempre crescentes ante os avanços tecnológicos, o aumento da expectativa de vida associado a uma política de consumo das indústrias da saúde, que hoje já mira a pessoa sã como consumidora de produtos e serviços de saúde, criando-se falsas expectativas de vida eterna, a elevados custos em todos os sentidos.
É preciso refletir porque não se estruturou, até hoje, o modelo de saúde imposto pela Constituição e perguntar:
a) a atenção básica está de fato estruturada para ser a ordenadora do SUS e resolutiva em 85% dos casos?
b) está o Poder Público disposto a investir na melhoria da gestão realizando as necessárias reformas no âmbito da Administração Pública?
c) há vontade política para transferir recursos em acordo a Lei Complementar nº 141, de 2011?
d) está o Ministério da Saúde decidido a enxugar suas atividades em relação aos Estados e Municípios, fortalecendo o papel do Estado-membro na coordenação estadual e regional do SUS?
e) a sociedade, de fato, quer debater e posicionar-se sobre os destinos da saúde e o Poder Público está disposto a permitir um verdadeiro acompanhamento e controle dos serviços públicos pagos com seus impostos, mediante processos de permanente escuta do cidadão e incorporação de suas opiniões?
f) quando haverá financiamento adequado ao SUS?
Outras perguntas poderiam ser feitas. É preciso de fato conhecer o SUS em suas estruturas constitucionais e legais, o seu modelo; fortalecer o papel do Estado-membro; viabilizar o seu financiamento e uma gestão de resultados qualitativos.
A visibilidade que a pandemia da Covid-19 deu ao SUS poderá, quem sabe, trazer o necessário sentimento de pertencimento social para abrir caminho para a saúde que queremos. Como ocorre com outros países que tem no sentimento de pertencimento da população ao sistema de saúde público a sua principal âncora.