O equilíbrio econômico-financeiro e a suspensão do reajuste dos planos de saúde
Em qualquer situação em que se coloca o alto preço dos planos de saúde em discussão, um dos argumentos preferidos e sempre utilizados pela ANS e pelas operadoras de planos de saúde – e, diga-se, na maioria das vezes com absoluta razão – é a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos e do sistema de saúde suplementar.
O equilíbrio econômico-financeiro, aos olhos do consumidor, é como o personagem principal do livro “O Médico e o Monstro” (The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson). É o bondoso médico, Dr. Henry Jekyll, mas em certas circunstâncias pode se transformar no assustador e sombrio Mr. Hyde.
Todos os reajustes de mensalidades, todas as negativas de cobertura de procedimentos, todas as recuperações judiciais de operadoras têm um único culpado: o (ou a falta de) equilíbrio econômico-financeiro.
Mas e em 2020, em uma situação de emergência internacional em saúde, de que forma se comportou o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de planos de saúde? Tornou-se novamente Mr. Hyde para assombrar os consumidores?
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), desde o início da pandemia causada pelo – agora não mais tão novo – coronavírus vem adotando algumas medidas visando a adequada regulação dos planos de saúde.
Em março de 2020, com o surgimento no Brasil dos primeiros casos, foi traçado um cenário semicaótico para a saúde suplementar, com a expectativa de aumento da utilização dos serviços em saúde pelo beneficiários dos planos – especialmente de leitos hospitalares – e na certeza da transformação do nosso amável Jekyll, no irascível Hyde.
Em razão disso, adotou-se, em prejuízo dos beneficiários e em nome do sistema, a suspensão dos prazos de atendimento para realização de procedimentos eletivos e foi orientado aos consumidores que consultas, exames ou cirurgias que não se enquadrassem nos casos de urgência ou emergência fossem adiados. Não suficiente, os prazos previstos na Resolução ANS nº 259 – que estabelece os prazos máximos de atendimento – seriam em dobro (essa disposição esteve em vigência entre o dia 26 de março e 9 de junho de 2020).
Ainda, houve a recomendação do atendimento à distância pelas operadoras e que os usuários evitassem buscar diretamente os serviços de saúde, com um incentivo maior para utilização da telemedicina.
Também se esperava uma acentuada queda nos consumidores de planos de saúde e um aumento da inadimplência, em razão do impacto da pandemia na economia, que, por consequência, colocaria em risco inclusive a permanência de algumas operadoras no mercado.
Algumas outras medidas foram tomadas, como a flexibilização da gestão de recursos – adiando algumas exigências de provisão de passivo pelas operadoras, por exemplo, e possibilitando a utilização de ativos garantidores. Isso foi realizado em prol da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos e, por consequência, da saúde financeira das operadoras.
Não se está aqui criticando as medidas adotadas pela ANS. Eram preventivas ante o cenário de incertezas e poderiam ser adequadas para o bom funcionamento do sistema de saúde suplementar se as piores previsões se concretizassem.
Os fluxos de caixa das operadoras por natureza já não são muito previsíveis. Podem ocorrer maiores gastos decorrentes do aumento imprevisto da sinistralidade, diminuição das receitas por inadimplência ou perda generalizada de beneficiários, especialmente em situações de crise sanitária. Não por outras razões que se exigem reservas de capital por parte das operadoras.
A saída de uma operadora do mercado, em razão de não ter mais recursos para o cumprimento de suas obrigações, causa um grave problema regulatório que afeta beneficiários (que ficam sem a oferta do produto e, por vezes, sequer têm condições de migrar para um novo plano), prestadores de serviços em saúde (que acabam por não receber pelos serviços) e o mercado como um todo (com uma maior concentração e uma diminuição da concorrência).
Não sem razão o equilíbrio econômico-financeiro do sistema de saúde suplementar é, e deve sempre ser, um dos principais focos de atenção da ANS.
Entretanto, há necessidade de que o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de planos de saúde não sejam pensados unicamente pela ótica das operadoras. Se as previsões dos futurólogos em relação à saúde suplementar tivessem se concretizado, medidas até mais duras deveriam ser adotadas. Uma eventual revisão das prestações em razão de um aumento da sinistralidade certamente seria cogitada pelas operadoras para preservar o equilíbrio dos contratos (Mr. Hyde estaria enfurecido como nunca e exigindo um reajuste extraordinário nas mensalidades).
Porém, o cenário atual, passados seis meses do início da pandemia, é totalmente diferente do caos previsto. As previsões estavam equivocadas e as operadoras de saúde são uma das poucas atividades que tiveram um significativo aumento em seus lucros durante a pandemia. Sim, os números comprovam, nunca as operadoras tiveram um período tão positivo.
A perda de beneficiários foi mínima, a taxa de inadimplência é praticamente constante e a sinistralidade (que reflete o custo das operadoras com a assistência à saúde) nunca foi tão baixa. Enquanto os custos do sistema público de saúde são fortemente impactados com a pandemia, as operadoras voam em céu de brigadeiro.
A situação não deixa de ser peculiar. No Brasil temos um sistema público e universal de saúde, detratado por muitos, que tem um custo financeiro inferior ao sistema privado (segundo o Banco Mundial, em 2018 cerca de 55% dos gastos em saúde no Brasil foram realizados no âmbito privado). E em momentos de crise sanitária é o SUS quem efetivamente dá suporte e atendimento à população, sem qualquer distinção.
Não se deve esquecer que mesmo a saúde suplementar não se mantém apenas de recursos privados. É beneficiada por recursos públicos, seja por subsídios na forma de renúncia fiscal, seja pelo compartilhamento de grande parte da estrutura hospitalar. O mito de que a saúde suplementar apenas diminui o uso dos serviços públicos de saúde é contraposto especialmente nos momentos de crise.
Mas, afinal, o que houve com nosso estimado equilíbrio econômico-financeiro nesse período?
O Boletim Covid 19, divulgado no mês de agosto de 2020 pela ANS, ao analisar os dados econômicos-financeiros de 100 operadoras para o estudo do fluxo de caixa e de 101 para análise de inadimplência é bem elucidativo.
Como se está analisando fluxo de caixa mensal, é preciso observar o atraso existente entre a prestação do serviço aos beneficiários e o pagamento. Como os prestadores recebem das operadoras em aproximadamente 30 dias e os hospitais recebem em aproximadamente 70 dias, os valores de maio começam a refletir os atendimentos no início da pandemia, registrando os impactos da redução.
Com os beneficiários evitando o uso dos serviços em saúde, incentivo trazido pela própria ANS, verifica-se um aumento expressivo do lucro das operadoras.
O índice de sinistralidade de caixa – o percentual que os atendimentos dos beneficiários efetivamente custam para as operadoras – historicamente ocupa uma faixa entre 77% e 82% dos valores recebidos. Entre os meses de maio e julho deste ano a média ficou em apenas 63%!
Se antes, para cada 100 reais recebidos, as operadoras, após descontados os custos assistenciais, ficavam com aproximadamente 20 reais, nos últimos meses sobraram 37 reais. Considerando que os custos não assistenciais permaneceram constantes, a diferença é integralmente revertida em benefício da operadora.
Os dois outros fantasmas que assombravam o setor no início da pandemia – uma queda acentuada no número de consumidores dos planos e um aumento expressivo da inadimplência – não foram avistados.
Embora tenha ocorrido a saída de aproximadamente 300 mil usuários do sistema, entre março e julho de 2020, percentualmente esse não é um número significativo (cerca de 0,7%) e, comparado com o mês de julho do ano anterior, a redução é ainda menor (pouco mais de 100 mil usuários).
De igual forma, o índice mensal de inadimplência, apesar de um pequeno acréscimo inicial, está abaixo da mediana do período anterior, ficando em 7%, nos meses de junho e julho de 2020.
Assim, temos agora um Mr. Hyde reverso, em que se há hoje algum desequilíbrio econômico-financeiro a ser corrigido é em favor dos consumidores. E, no momento, uma das medidas adequadas para ajustar essa anormal situação é a suspensão dos reajustes.
Desde abril de 2020, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei – já aprovado pelo Senado Federal – para suspender o aumento das mensalidades dos planos de saúde no período da pandemia. Não havia, quando de sua propositura, olhando apenas o equilíbrio econômico-financeiro e excluindo a questão social envolvida, qualquer elemento que indicasse ser a suspensão uma medida adequada para o setor, sendo mais uma medida legal que, embora com boas intenções, não se preocupa com o impacto no sistema regulatório de uma forma abrangente.
Hoje, entretanto, a situação é diferente. O trimestre passado foi o de melhor resultado para as operadoras de planos de saúde nos últimos anos. Provavelmente o melhor desde que a ANS foi criada.
Tanto que, em 20/08/20, com a ameaça do Presidente da Câmara de colocar o projeto em pauta para votação, no dia seguinte (21/08/20), a Diretoria Colegiada da ANS em reunião extraordinária anunciou a suspensão de reajustes dos planos de saúde por 120 dias.
A decisão se efetivou com o Comunicado nº 85, de 31 de agosto de 2020, em que a ANS, visando a manter o equilíbrio das relações negociais, suspendeu a aplicação do reajuste anual e por mudança de faixa etária, no período de setembro a dezembro de 2020. Embora a ANS tenha agido corretamente, o comunicado que suspende os reajustes é pródigo em deixar lacunas.
Em relação ao reajuste por mudança de faixa etária o comunicado não é muito esclarecedor, mas, aparentemente, suspende apenas em relação aos consumidores que teriam o reajuste entre setembro e dezembro de 2020. Analisando exclusivamente o texto do Comunicado, uma pessoa que mudou de faixa etária no dia 31 de agosto de 2020 teria o reajuste aplicado no último quadrimestre, e aquele que tivesse a alteração de faixa a partir de 1º de setembro não teria aumento, pagando mensalidades menores no período.
Entretanto, nas “Perguntas & Respostas” sobre a suspensão do reajuste disponibilizadas pela própria ANS e publicado em seu site, em data anterior (28/08/20) ao Comunicado nº 85, informa-se que a suspensão deve considerar as mudanças de faixa etária ocorridas no ano de 2020. Ainda se essa for a interpretação, permanece uma situação de desigualdade entre consumidores incluídos em idêntica faixa etária de preços. Aquele que, por exemplo, completou 59 anos em 31 de dezembro de 2019 teria que pagar entre setembro e dezembro de 2020 uma mensalidade maior do que aqueles que ingressaram na última faixa etária a partir de 1º de janeiro de 2020.
Quanto ao reajuste anual, os planos individuais e familiares – com aniversário posterior a maio de 2020 – já não vinham tendo o reajuste anual aplicado pelo simples fato da ANS não ter divulgado o percentual referente ao ano de 2020. A novidade foi que o reajuste estaria suspenso pelo menos entre setembro e dezembro de 2020.
Os planos coletivos, em razão das peculiaridades existentes, tiveram regras próprias de suspensão: (a) a todos os planos coletivos com até 29 vidas, que possuem um percentual de reajuste idêntico em razão do agrupamento de contratos, não se aplica o aumento de 2020 no período de setembro a dezembro de 2020; (b) aos coletivos por adesão com mais de 30 vidas a regra é idêntica aos de até 29 vidas; e (c) aos coletivos empresariais com mais de 30 vidas se havia reajuste negociado até agosto de 2020 ele é mantido, caso contrário está suspenso o reajuste no último quadrimestre, exceto se houver uma opção da pessoa jurídica contratante em não ter esse reajuste suspenso.
Porém, a ANS excluiu da suspensão de reajuste os planos odontológicos (como se nada tivesse ocorrido de diferente no setor durante o período da pandemia) e informou que haverá uma “recomposição” dos efeitos da suspensão dos reajustes ao longo de 2021, sem deixar claro como e de que forma isso será realizado.
Mesmo em relação à modesta – e por vezes confusa – medida adotada pela ANS já houve críticas em relação ao fato de que posteriormente haverá um aumento da sinistralidade em razão da redução atual de utilização dos serviços. Mas, uma vez mais, trata-se de um exercício de futurologia que já sabemos falho. Obviamente alguns procedimentos eletivos não foram realizados e em algum momento deverão ser efetivados, mas não se tem a certeza se haverá um impacto concentrado, em alguns meses, na sinistralidade ou se acabará se diluindo no tempo e permanecendo dentro da margem histórica, o que é até mais provável.
O que se tem de concreto é que, no momento, e por um período de tempo ainda indefinido, uma vez que não se sabe até quando medidas de distanciamento social permanecerão, os usuários de planos de saúde utilizarão os serviços com maior parcimônia, evitando utilizar o sistema sem uma premente necessidade.
Com base no cenário atual e com os dados disponíveis, para uma real manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, a ANS não deve aplicar qualquer índice de reajuste anual para o ano de 2020 aos planos individuais e familiares e, em maio de 2021, realizar o cálculo do reajuste englobando o período de maio de 2019 a abril de 2021, para ser aplicado a partir dali, assim já avaliando o impacto da pandemia no Índice de Valor das Despesas Assistenciais (IVDA).
Considerando que na nova fórmula de reajuste anual dos planos individuais, o IVDA corresponde a 80% do índice de reajuste, não seria uma surpresa, se mantida a sinistralidade nos níveis atuais e não ocorrendo uma elevação anormal do IPCAÍndice de Preços ao Consumidor Amplo, medido mensalmente pelo IBGE e o índice de inflação mais utilizado (que corresponde aos outros 20% do cálculo), um reajuste próximo a zero ou até negativo para os planos individuais.
Em relação aos planos coletivos, de igual forma, pelo menos quando se refere a agrupamento de contratos (planos coletivos com menos de 29 vidas e, na prática, sem qualquer possibilidade de uma negociação direta e efetiva com a operadora em relação ao índice de reajuste) a suspensão dos reajustes até se ter uma análise efetiva e real do IVDA no período da pandemia, especialmente ante os dados de uma redução significativa dos custos assistenciais, seria medida adequada inclusive para evitar uma evasão de beneficiários.
Assim, esse é um momento ímpar para a ANS demonstrar que o equilíbrio econômico-financeiro não é um monstro utilizado única e exclusivamente para justificar o aumento da mensalidade pagas pelos consumidores, mas que também é usado em seu favor, sendo fundamental para o bom funcionamento do sistema da saúde suplementar.