Compliance faz bem à saúde

1.

As fraudes corporativas e os desvios de comportamento são fenômenos históricos globais e ocorrem nos diferentes setores do mercado. No Brasil, as investigações mais recentes demonstram que os maiores escândalos estão relacionados às empresas estatais e ao setor da infraestrutura. Entretanto, em âmbito internacional, as grandes fraudes corporativas ocorrem na área da saúde, envolvendo muitas vezes redes hospitalares, indústrias farmacêuticas e operadoras de planos de saúde.

‘Para ficar em apenas um exemplo, vale mencionar o curioso caso envolvendo as empresas Novartis e Roche, respectivas produtoras dos fármacos Lucentis e Avastin. Estes medicamentos possuem idêntica eficácia para o tratamento de Degeneração Macular Relacionada à Idade (DMRI), entretanto, a aplicação do primeiro custa cerca de 30 vezes mais que a aplicação do segundo (900 euros e 30 euros).

Com a intenção de canalizar as vendas para o medicamento mais oneroso, as empresas acordaram em excluir o Avastin do mercado italiano e manter apenas o Lucentis, sob a alegação de que haveria casos de efeitos colaterais relacionados ao primeiro remédio. O conluio foi devidamente investigado, e a autoridade competente multou cada uma das empresas em cerca de 90 milhões de euros, por violação à livre concorrênciaNovartis e Roche condenadas por conluio. Setor Saúde, 10 de mar. de 2014. Acesso em: 13 de agosto de 2020.

Infelizmente, não se trata de caso isolado. Outras fraudes no setor da saúde são apontadas pelos renomados autores Peter C. Gotzche e Márcia Angell, nos livros intitulados “Medicamentos Mortais e Crime Organizado”GOTZCHE, Peter. Medicamentos Mortais e Crime Organizado. Como a indústria farmacêutica corrompeu a assistência médica. Tradução Ananyr Porto Fajardo. Porto Alegre: Bookman, 2016. e “A verdade sobre a indústria farmacêutica”ANGELL, Márcia. A verdade sobre a indústria farmacêutica. Como somos usados e o que podemos fazer a respeito. São Paulo: Editora Record, 2007. . 

Nesse contexto, a Organização Mundial da Saúde já alertou que a ineficiência e a corrupção são responsáveis pelo desperdício de 20% a 40% dos valores destinados à saúde no mundoMERE JÚNIOR. Yussif Ali. Saúde, desperdício e corrupção. Revide, 07 de jun. de 2018. Acesso em: 13 de agosto de 2020. A Rede Europeia para Fraude e Corrupção na Saúde acrescenta que estes fatores correspondem a perda na ordem de 300 bilhões de dólaresBALESTRIN, Francisco. Como construir uma cultura compliance em instituições de saúde. In: BRAGA, Reinaldo; Filipe Souza (ORG.).  Compliance na saúde. Presente e futuro de um mercado em busca da autorregulação, p.31.

As razões para os desvios comportamentais são diversas. Donald Cressey e Gary Becker formularam teorias para explicar os motivos pelos quais as pessoas agem de modo ilícito. O primeiro, professor da Universidade da Califórnia, criou a teoria do “Triângulo das Fraudes” para sustentar que estas estão condicionadas à existência conjunta de três fatores: motivação, racionalização e oportunidadeCRESSEY, Donald. “Other people´s money: a study of the social psychology of embezzlement”, 1953.. O segundo, professor da Universidade de Chicago, afirma que a racionalidade do crime encontra fundamento na ponderação entre os custos e os benefícios, de modo que quanto menor o primeiro e maior o segundo, maior será a oportunidade para realização das fraudesBECKER, Gary S. Crime and punishment: an economic approach. In: BECKER, Gary S.; LANDES, William M.. Essays in the economic of crime and punishment. 1974..

Ambos, portanto, reconhecem que as fraudes decorrem de um comportamento racional do agente, que age principalmente quando o ambiente propicia oportunidades para a atuação ilícita. Desse modo, parece ser evidente que as empresas devem investir em instrumentos que reduzam o leque de oportunidades e criem estruturas de prevenção, detecção e mitigação de riscos.

2.

Para gerar este ambiente propício à redução das oportunidades, empresas ao redor do mundo têm adotado programas de integridade (compliance), disciplinados no Brasil pela Lei Anticorrupção (Lei n.º 12.846/2013) e pelo Decreto n.º 8.420/2015. Esta ferramenta viabiliza a promoção de padrões éticos de conduta, a identificação dos riscos da organização, a criação de procedimentos internos para orientar a tomada de decisões e o monitoramento contínuo de novos problemas.

Para que o programa seja eficiente, sugere-se a observância de 8 pilares: (i) o suporte da alta administração; (ii) a análise de riscos; (iii) a designação de uma instância responsável; (iv) a criação de um código de conduta e de políticas específicas; (v) a realização de comunicação e treinamentos; (vi) a implementação de um canal de denúncia; (vii) a realização de investigações e a aplicação das penalidades adequadas; e, por fim, (viii) o monitoramento contínuo.

Não há, no entanto, um modelo fixo e rígido a ser seguido. A implementação de algumas dessas bases certamente já auxiliará na proteção e saúde da empresa. Dito de outro modo, o compliance não precisa necessariamente ser complexo e grandioso, mas deve se amoldar às particularidades de cada instituição, tais como o tamanho, o número de colaboradores, a atividade econômica, os riscos e os processos internos.

O artigo 41, parágrafo único, do Decreto n.º 8.420/2015 bem destaca que “o programa de integridade deve ser estruturado, aplicado e atualizado de acordo com as características e riscos atuais das atividades de cada pessoa jurídica”. Por esta razão, o elemento chave de um programa não deve ser o alto investimento, mas a intenção dos administradores em implementá-lo e o modo de sua adoção a um custo compensadorMURPHY, Joseph E. A Compliance & Ethics Program on a Dollar a Day: How Small Companhies Can Have Effetctive Programs. Society of Corporate Compliance and Ethics..

Esse argumento é reforçado através de inúmeros escândalos envolvendo grandes empresas multinacionais, que não obstante possuam uma estrutura robusta de compliance, são responsabilizadas pela prática de atos ilícitos. Um exemplo a ser citado envolve a empresa Volkswagen, que foi recentemente responsabilizada em bilhões de dólares por manipular dados de emissão de poluentes (diesel)CREMER, André; SCHWARTZ, Jan. Volkswagen é multada por fraude em testes de emissão de poluentes. Exame, 13 de jun. de 2018. Acesso em: 14 de ago. de 2020..

Assim, respeitadas as particularidades e riscos de cada organização, não há dúvidas que a adoção de um adequado programa de integridade traz benefícios diretos à instituição e à sociedade. Por esta razão, diferentes leis e regulamentos brasileiros passaram a conceder incentivos e a exigir que as empresas incorporem ferramentas de compliance às suas estruturas.

A legislação anticorrupção previu a possibilidade de redução da multa aplicável em até 4%, caso a pessoa jurídica comprove possuir um programa de integridade efetivo (art. 7º da Lei n.º 12.846/2013 e art. 18 do Decreto n.º 8.420/2015). A Lei das Estatais (Lei n.º 13.303/2016) exigiu práticas de integridade nas atividades de empresas públicas e sociedades de economia mistaPIRONTI, Rodrigo. Práticas de compliance nas empresas estatais e o prazo que se esgota. Consulto Jurídico, 16 de fev. de 2018. Acesso em: 11 de ago. de 2020.. Além disso, diversos estados da federação estão exigindo que empresas adotem práticas de compliance para contratar com a administração pública, a exemplo dos estados do Rio de Janeiro, Amazonas, Goiás, Rio Grande do Sul, Distrito Federal etc.

3.

No que tange ao setor da saúde, merece elogio a atuação regulatória da Agência Nacional de Saúde Suplementar, que recentemente dispôs sobre a adoção de práticas mínimas de governança para fins de solvência das operadoras de planos de saúde (Resolução Normativa n.º 443/2019 da ANS).

A referida resolução introduz importante transformação na regulação da saúde suplementar, a fim de garantir que o patrimônio das operadoras seja suficiente para arcar com os riscos da operação. Busca-se a substituição gradual da atual regra de “margem de solvência” para a adoção do sistema internacional de “capital baseado em riscos”BRASIL. Governança Corporativa para fins de solvência das operadoras. Rio de Janeiro: Agência Nacional de Saúde Suplementar, 2019. Acesso em: 16 de ago. de 2020..

Este sistema passará a ser obrigatório para as administradoras de benefício e para as operadoras de médio e grande porte a partir de 2023, exceto para aquelas enquadradas na modalidade de Autogestão por Departamento de Recursos Humanos. No entanto, a normativa já contempla a possibilidade de as organizações migrarem, facultativa e antecipadamente, para este modelo.

A nova estrutura exige que a operadora observe as melhores práticas de governança para estimar os riscos da atividade e definir o valor do capital regulatório a ser cumprido. Como consequência, as operadoras terão que implementar práticas de governança corporativa, controles internos e gestão de riscos.

As práticas de governança deverão ser formalizadas e divulgadas amplamente dentro da instituição (art. 5º), observando os princípios da transparência, da equidade, da prestação de contas e da responsabilidade corporativa (art. 4º).

Os controles internos deverão assegurar a confiabilidade das informações, a utilização eficiente dos recursos e o cumprimento da legislação aplicável à operadora (art. 6º), incluindo documentos que descrevam os controles existentes e as ações contínuas a serem adotadas (art. 7º).

As práticas de gestão de riscos deverão prever os “riscos de subscrição, de crédito, de mercado, legais e operacionais”, de modo a orientar a tomada de decisões, aperfeiçoar os processos internos e promover o cumprimento dos objetivos da operadora (art. 9).

Portanto, verifica-se que as “práticas mínimas” de governança corporativa não se limitam a questões comerciais ou operacionais, abrangendo diversos elementos estruturantes de um programa de compliance, tais como a transparência, a confiabilidade das informações, a gestão dos riscos legais, a criação de controles internos para o cumprimento das leis e o aperfeiçoamento dos procedimentos.

O anexo II da norma regulatória, que versa sobre práticas avançadas de governança para operadoras com modelos próprios de capital baseado em riscos, é ainda mais preciso ao estabelecer a obrigatoriedade de implementação de um programa completo de integridade:

“A operadora deve possuir programa de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta internos, com vistas à prevenção dos atos previstos na Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998; de operações vedadas pelo art. 21 da Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, e de atos lesivos à administração pública nacional ou estrangeira, conforme o disposto na Lei nº 12.846, de 1 de agosto de 2013. Os programas de treinamento nesses temas deverão ser disponibilizados e implementados, definindo-se, pelo menos, público alvo e periodicidade”

Desse modo, o sistema de capital baseado em riscos caracteriza um importante passo para exigir que as operadoras de planos de saúde adotem medidas de integridade e governança corporativa voltadas à prevenção de riscos do negócio, bem como riscos decorrentes de ações ilícitas da operadora ou de parceiros.

Evidentemente que o compliance não será o único instrumento necessário para adequar as empresas aos requisitos regulatórios da ANS, mas certamente será um deles para gerir os riscos, estabelecer controles, criar uma cultura ética e preservar a boa reputação da empresa – o que tem se mostrado um diferencial competitivo na acirrada disputa comercial dos últimos anos.

A adoção de um programa de integridade, de mecanismos de controles e de gestão de riscos não deve estar restrito às operadoras de planos de saúde, mas deve se estender a toda a cadeia produtiva, incluindo hospitais, indústrias farmacêuticas, indústrias de equipamentos médicos e até mesmo prestadores de serviços.

O sistema de saúde brasileiro é bastante complexo e envolve inúmeros players, de forma que a implementação de programas de compliance fará bem à saúde das empresas e do sistema de saúde suplementar.