Falência intestinal no contexto da judicialização na área da saúde

A falência intestinal nas crianças e nos adultos se caracteriza pela incapacidade de o paciente absorver nutrientes e fluidos (água, por exemplo) pela via enteral, ou seja, ingerindo os alimentos. A principal causa de falência intestinal é a síndrome do intestino curto (SIC), que, na maioria das vezes, ocorre por perda da massa funcional intestinal após grandes ressecções cirúrgicas. O tratamento para esses pacientes é extremamente complexo e requer equipes multidisciplinares e centros especializados para o cuidado. O tratamento dos grandes ressecados intestinais tem 3 desfechos possíveis:

1- Ocorre reabilitação intestinal e o paciente recupera a autonomia enteral;

2- O paciente poderá ficar dependente de nutrição parenteral total (NPT) através de um cateter que administra nutrientes na corrente sanguínea para sempre, com certo grau de autonomia enteral; e

3- Devido às complicações do uso da NPT, poderá haver a necessidade de transplante visceral. O transplante visceral é reservado para poucos pacientes (10 a 15%) e é a última parte do tratamento, quando todas as possibilidades terapêuticas se esgotaramRisto J. Rintala, Mikko Pakarinen,Tomas Wester, Current Concepts of Intestinal Failure, ISBN 978-3-319-42549-8, © Springer International Publishing Switzerland 2016..

Nos Estados Unidos da América, na Europa e em alguns países da Ásia, o tratamento desses pacientes existe há mais de 30 anos. Existem algumas diferenças de abordagem entre as escolas americanas e europeias em relação ao momento ideal para indicação do transplante visceral no curso da doença e o único consenso é que devem ser listados para transplante pacientes que perdem os acessos venosos centrais para nutrição parenteral, pacientes que evoluem com falência hepática com o uso da NPT e aqueles que apresentam infecções recorrentes dos cateteres para NPT. Outra informação importante refere-se à comparação dos resultados do tratamento conservador versus o transplante. A sobrevida de pacientes em 10 anos de seguimento é maior no grupo do tratamento conservador (85% vs 50%). 

O cuidado com essa população de pacientes foi negligenciado pelo Estado brasileiro por muito tempo, em parte porque a maioria dos pacientes que sofriam grandes ressecções intestinais faleciam antes mesmo de ter alta hospitalar. Porém, com a melhora do cuidado com a saúde e do acesso ocorrido após a implantação do SUS, uma parcela desses pacientes sobrevive em regime de internação hospitalar. A busca por soluções para esses problemas cruzou o caminho da judicialização em saúde, tema tão atual, produto da Constituição Federal de 1988 (art. 196). Ela determina o acesso gratuito à saúde como direito fundamental de todo cidadão, sem qualquer pré-condição (direito de todos e um dever do estado). As judicializações nesta área começaram há sete anos. Cinco pacientes judicializados custaram ao Estado R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de reais), segundo dados do Ministério da Saúde de 2018 (comunicação pessoal feita pelo Sistema Nacional de Transplantes).

No Brasil, existem dois centros multiprofissionais encarregados desse tipo de tratamento em crianças no SUS: Hospital de Clínicas de Porto Alegre (2014), pioneiro nesse tipo de tratamento pelo SUS, e o Hospital Municipal Infantil Menino Jesus/Hospital Sírio-Libanês (OSS), em São Paulo (2016), financiado com verba do PROADI-SUS. Coletivamente, esses dois centros já atenderam mais de 100 pacientes do SUS, sendo que 40% das crianças recebem hoje nutrição parenteral domiciliar. Existe uma mobilização do Ministério da Saúde para a realização de treinamento e capacitação de novas equipes para que mais pacientes possam ser atendidos nos estados e regiões de origem.

Em fevereiro de 2019, realizamos o primeiro transplante intestinal em uma paciente com síndrome do intestino curto no Hospital Sírio-Libanês. Tratava-se de uma criança de 3 anos de idade do sexo feminino. Dois meses após o procedimento a paciente passou a se alimentar exclusivamente por via enteral (via oral).  O principal argumento nos processos ajuizados contra a União, em que se requer a transferência dos pacientes para centros de transplante nos Estados Unidos, caiu por terra, já que se baseava no fato de o transplante visceral nunca ter sido feito em pacientes abaixo de 12 anos em nosso país. O que torna esses casos ainda mais peculiares é que nem todos os pacientes, mesmo aqueles judicializados, têm indicação formal de transplante visceral. Todavia, diferenças de prática médica e cuidado entre os centros geram controvérsias em relação à melhor abordagem. 

Todos os recursos utilizados para o transplante visceral estão disponíveis em nosso país, desde a estrutura hospitalar, logística, regulamentação, até drogas imunossupressoras e anticorpos utilizados no tratamento de rejeição. Entretanto, essa realidade é desconhecida não somente pela população do Brasil, como também pelos operadores do DIREITO. O que muda de um transplante para outro (fígado, rim, intestino) são as estratégias de imunossupressão e o tipo de seguimento e monitoramento do órgão transplantado. No campo da prática médica do dia-a-dia, não existe limitação ou defasagem de recursos em relação aos países desenvolvidos.

Por outro lado, a opção dos familiares de acionar a União para requerer o que a própria Constituição Federal assegura em seu artigo 196 é legítima e é difícil não sentirmos empatia pelo pleito. Todavia, o subfinanciamento do SUS requer racionalização das decisões. A “reserva do possível”Ricardo Lobo Torres, O mínimo existencial, os direitos sociais e a reserva do possível. In: António José Avelãs Nunes e Jacinto Nelson Miranda Coutinho (Org.), 2004, p. 455-6. é um tema presente e atual na administração pública. Os recursos públicos são insuficientes para atender às necessidades sociais, impondo ao Estado sempre a tomada de decisões difíceis. Investir recursos em determinado setor sempre implica deixar de investi-los em outros. De fato, o orçamento apresenta-se, em regra, aquém da demanda social por efetivação de direitos, sejam individuais, sejam sociaisGustavo Amaral, Direito, escassez & escolha: Em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas, p. 71-3: “Todos os direitos têm custos porque todos pressupõem o custeio de uma estrutura de fiscalização para implementá-los”.. A boa notícia no campo é o esforço que vem sendo feito pelo Ministério da Saúde para dar acesso ao tratamento aos pacientes que dependem exclusivamente do SUS. Hoje, a requisição por vagas hospitalares é centralizada pelo MS/Coordenação Geral do Sistema Nacional de Transplantes. 

Os papéis nesse contexto de escassez de recursos, doenças graves, judicializações e interesses outros estão claros e bem definidos. Aos médicos, o estudo, a atualização, o preparo e o seguimento dos preceitos ditados no juramento de Hipócrates. Ao Estado, o desenvolvimento de centros de reabilitação intestinal multidisciplinares para crianças e adultos, o financiamento da NPT domiciliar, o fomento às doações de órgãos. Aos familiares, a luta pelos direitos constitucionais. Mais do que isso, luta pela qualidade no atendimento e na assistência dentro do nosso país. Aos juízes e desembargadores, a tomada de decisões complexas embasadas na ciência e jurisprudência.