Haikai

Haikai ou Haiku é uma forma de poesia de origem nipônica, que prestigia a objetividade. Composto por três versos, geralmente trata da natureza e invoca um sentimento de sabishisa (melancolia).

Trazemos aqui três haikais, dois de grandes poetas paranaenses e um terceiro, complementando o post, que é o resultado de uma noite de insônia.

Poesia mínima

Pintou estrelas no muro
e teve o céu
ao alcance das mãos.
Helena Kolody
esta vida é uma viagem
pena eu estar
só de passagem
Paulo Leminski
Chora, Camélia

Tapete no chão
lágrima sempre é conforto
de sal ou de flor,
Carol Morozowski

A imagem que ilustra o post foi gentilmente cedida por Marcelo Malucelli.




A peste da insônia

A Fundación Gabo – instituição criada em 1995, pelo escritor colombiano Gabriel García Márquez, com a finalidade promover um melhor jornalismo e estimular a criatividade – divulgou o curta “La peste del insomnio” (A peste da insônia), produzido e dirigido pelo venezuelano Leonardo Aranguibel.

O vídeo conta com a participação de mais de 30 atrizes e atores da América Latina (entre eles Ricardo Darín e Alicia Braga) e imagens atuais de cidades como São Paulo e Bogotá. Busca despertar a esperança em meio à crise sanitária e econômica desencadeada por COVID-19, através da leitura ou interpretação de trechos da obra de García Márquez, que falam da doença do esquecimento que atinge Macondo, cidade imaginária do romance “Cem Anos de Solidão”.

As reflexões do confinamento no realismo mágico servem de contraponto para os dias atuais. Nas palavras do diretor: “Estamos viviendo un momento muy difícil pero está en nosotros que amanezca más tarde o más temprano, así que hemos querido, en medio de este confinamiento, recordar que el sol siempre vuelve a salir”.

La peste del insomnio

Aproveite o chazinho, sem moderação.




Rir!

João da Cruz e Sousa, nasceu no dia 24 de novembro de 1861, na cidade de Nossa Senhora do Desterro (atual Florianópolis). Filho de escravos alforriados, foi um dos precursores e um dos maiores representantes do simbolismo no Brasil.

Existe um fato curioso de sua biografia que o liga ao mundo jurídico, embora não definitivamente comprovado. Teria ele sido nomeado, ou cogitado para ser, Promotor Público em Laguna (ou Itajaí) e não pode assumir em virtude de oposição local pelo fato de ser negro.

Mas no chazinhos, o que nos interessa é apreciar um poema do nosso Cisne Negro:

Rir!

Rir! Não parece ao século presente
Que o rir traduza, sempre, uma alegria…
Rir! Mas não rir como essa pobre gente
Que ri sem arte e sem filosofia.
Rir! Mas com o rir atroz, o rir tremente,
Com que André Gil eternamente ria.
Rir! Mas com o rir demolidor e quente
Duma profunda e trágica ironia.
Antes chorar! Mais fácil nos parece.
Porque o chorar nos ilumina e nos aquece
Nesta noite gelada do existir.
Antes chorar que rir de modo triste…
Pois que o difícil do rir bem consiste
Só em saber como Henri Heine rir!…

A imagem que ilustra o post foi gentilmente cedida por Marcelo Malucelli.




Andar com fé

Gilberto Passos Gil Moreira completou 78 anos, no dia 26 de junho, e todos recebemos esse vídeo homenagem.

Desnecessários maiores comentários.

Gil 78 Anos

Sigamos. Força, time!




“It’s the prices, stupid” – O tema 500/STF, judicialização da saúde e doenças raras

Gerard Anderson e outros conseguiram um feito em 2002: publicaram em revista científica de prestígio – a Health Affairsum artigo com um título nada menos que injurioso.

O artigo explicava por que nos Estados Unidos se gasta tanto em saúde, porém lá os indicativos de saúde são piores que os de outros vários países desenvolvidos. E a explicação já vinha no título e no seu vocativo desaforado: estúpido, são os preços. Ou seja, é por causa dos preços em saúde que nos EUA se gasta um percentual enorme daquele que é o maior PIB do mundo, sem que isso redunde em saúde da população.

E o que o “estúpido americano” tem a nos ensinar? Pois a história do ianque gastão e morboso é um típico “cautionary tale”, e com uma lição bem clara: quando se esquecem os custos em saúde e quando políticas públicas que os controlam são ineficazes, quem sofre é a saúde da população.

O legislador brasileiro, ao contrário do americano, foi sábio e criou uma série de mecanismos tendentes a regular excessos no mercado de tecnologias em saúde.

Um deles é a CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos), órgão interministerial responsável pela regulação econômica do mercado de medicamentos no Brasil, composto pelo Ministério da Saúde, pela Casa Civil, pelo Ministério da Fazenda, pelo Ministério da Justiça e pelo Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços. Caso necessário, há a reunião dos seis ministros, a demonstrar que não se trata de mero órgão burocrático, mas de um dos colegiados mais poderosos da repúblicaA CMED foi criada em 2003 pela Lei nº 10.742, de 6 de outubro de 2003 e regulamentada pelo Decreto nº 4.766, de 26 de junho de 2003.

Depois de um medicamento ser registrado pela ANVISA e antes de sua comercialização, ele ainda deve se submeter à precificação perante a CMED, que fixará o preço-teto no mercado nacional. Além disso, quando a compra de medicamentos se der pelo SUS, a CMED impõe ainda o CAP (Coeficiente de Adequação de Preços), que reduz ainda mais os preços do fabricante.

A precificação da CMED tem dois parâmetros: o referenciamento externo de preços e o referenciamento interno.

O referenciamento externo se aplica a tecnologias superiores ao tratamento padrão, e, por meio dele, o preço no Brasil não pode exceder o menor preço encontrado numa cesta de preços de nove países (Austrália, Canadá, França, Grécia, Itália, Nova Zelândia, Portugal, Espanha e Estados Unidos).

Já o referenciamento interno se aplica quando a nova tecnologia não é superior ao tratamento padrão. Nesse caso, o preço inicial não pode exceder o do tratamento padrão.

Apesar de responsável por uma relevantíssima política pública, a CMED não é grande conhecida do juiz brasileiro. E o caso do medicamento Soliris é emblemático para demonstrar esse desconhecimento. Ele foi judicializado por quase dez anos sem registro na ANVISA e, portanto, sem precificação na CMED, sendo à época reputado o medicamento mais caro do mundo. Quando finalmente o laboratório promoveu o registro na ANVISA e sobreveio a precificação em 2017, concluiu-se que toda a judicialização anterior do Soliris representou um prejuízo ao SUS de algo como 300 milhões de reais por ano.

Eis um incentivo perverso promovido pelo judiciário: por que cargas d’água o laboratório se submeteria à precificação da CMED quando há juiz que manda bloquear valores do estado ou município e adquire o medicamento pelo preço de farmácia dos EUA (não raro com gordas taxas do importador)?

Verdade que desde 2018 há autorização para a CMED precificar o medicamento mesmo em face da inação do laboratório, impedindo repetição dessas condutas comercialmente perversas como a do Soliris. Porém, o juiz no Brasil é muito rápido no bloqueio de valores: é muito provável que, antes que a CMED constate processos judiciais sobre novos medicamentos e os precifique de ofício, um grande prejuízo já tenha se concretizado especialmente contra municípios e estados. E isso desonera o laboratório de um ônus instrutório imposto a todos os fabricantes de medicamento.

Pois bem.

Está explicada a importância da CMED e como ela protege o Brasil de injúrias desferidas pela academia (“stupid!”). E o que tem isto tudo a ver com o tema 500 do STF? Ele teve a seguinte tese aprovada:

1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais.
 
2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.
 
3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos:
(i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras) grifo nosso;
(ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e
(iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.
 
4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União”, vencido o Ministro Marco Aurélio. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello. Plenário, 22.05.2019.  

A proposta original de tese do relator para o acórdão, Ministro Barroso, não continha a exceção contida no item i, relativamente a drogas órfas/doenças raras. Ela surge no voto do Ministro Alexandre de Moraes (1:20:03) e é depois acolhida pelo ministro Barroso (1:30:24), ao argumento de que “nesses casos, muitas vezes o laboratório não tem interesse comercial em pedir o registro”.

A matéria não foi objeto de outras considerações senão essa lacônica passagem dos dois ministros. Então, de acordo com o entendimento do STF, os laboratórios não estão obrigados a submeter “orphan drugs” a controle de preços destinadas ao tratamento de doenças raras.

A CONITEC explica que doenças raras, segundo a OMS, são as que afetam até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos. Ou seja, cada uma delas afeta uma população limitada de doentes. O que não se pode esquecer é que existem mais de 8.000 doenças raras conhecidas, que afligem aproximadamente 8% da população mundial. Transposto este percentual para o Brasil, teríamos mais de 11 milhões de portadores de doenças raras.

Nos EUA, estima-se essa prevalência em aproximadamente 30 milhões de americanos, mesmo número de doentes de diabetes. Apenas uma pequena fração das doenças raras tem tratamento, mas se trata de um dos campos mais cobiçados pela indústria farmacêutica e conta com uma bem sucedida lei de estímulo nos EUA (o orphan drugs actE como a criatividade não tem limites, ainda mais quando isso representa um gordo faturamento, já houve laboratório buscando o status de orphan drug para tratar a COVID19, quando nada há mais de antitético que doença rara e pandemia. A grita foi tão grande que a Gilead desistiu da ousadia.). Para se ter uma ideia, de 59 medicamentos aprovados pela FDA em 2018, 34 se enquadraram como orphan drugs.

Trata-se de medicamentos cujos preços partem de centenas de milhares de dólares até alguns milhões de dólares anuais. E apesar de cada uma dessas doenças afetar um número não significativo de doentes, elas resultam em faturamentos extraordinários. O Strensig (alfa-asfotase) já rendeu 1,1 bilhão para o laboratório Alexion, sendo quase 300 milhões apenas na primeira metade de 2019. Aliás, a Alexion é justamente a fabricante do Soliris, que lhe rendeu, em 2018, 3,5 bilhões de dólares.

O que seria um farol de esperança para os doentes tornou-se um quebra-cabeças até agora insolúvel para os gestores na saúde privada e pública. A Organização Mundial da Saúde da ONU, objetivando maior justiça na fixação de preços  dos medicamentos, vem exigindo dos laboratórios mais transparência sobre os custos de desenvolvimento das tecnologias e sobre os preços nas negociações com os sistemas de saúde. A questão dos preços dos medicamentos conseguiu unir até antagonistas famosos, pois até o presidente Trump tem discurso contra os preços da indústria farmacêutica.

A ANVISA publicou a Resolução 205/17, para acelerar o registro de tratamentos para  doenças raras. Trata-se de procedimento tão expedito que, a partir daí, há casos de pedidos de registros de tecnologias no Brasil sem qualquer registro no mundo, ou apenas nos EUA. Essa circunstância impede a aplicação da precificação baseada na cesta de países estrangeiros, o que exigiu revisão da Resolução CMED 02/2004, estando em trâmite análise de impacto regulatório sobre a nova resolução.

Qual o panorama então? Temos tema – controle de preços estratosféricos de novos medicamentos – que une democratas e republicanos, Trump e OMS. E temos um órgão estatal (CMED) eficiente e que se esforça tecnicamente para estar à altura do desafio por meio de análise de impacto regulatório (AIR), que reformulará a política de preços de medicamentos no Brasil.

E então, em 2019, a despeito do primoroso voto-líder no Ministro Barroso, o STF vota o tema 500 e desvirtua essa política pública tão benfazeja ao mercado de saúde nacional. Porque se os laboratórios das orphan drugs não precisam se submeter à ANVISA, tampouco terão que se submeter à fixação de preço perante a CMED.

Isso parece reforçar que os chamados processos judiciais estruturantes devem ter a mais ampla participação, a fim de que o juiz não decida sem os influxos dos mais diversos interessados e experts na matéria. No processo que gerou o tema 500, ingressaram como interessados apenas a União e o colégio de procuradores-gerais dos estados. Não foram ouvidas a Anvisa, a CMED, as associações de pacientes nem a indústria farmacêutica. Tampouco se ouviu a academia. Ao final, parece que o Ministro Barroso, na discussão da tese, incorreu na censura da doutrina que ele próprio citara no voto:

“a cegueira diante das capacidades institucionais dos intérpretes da Constituição pode gerar perspectivas hermenêuticas muito bonitas na teoria, mas que, quando aplicadas na prática, se revelem desastrosas para a própria concretização dos valores constitucionais” (Daniel Sarmento, Interpretação Constitucional, Pré-compreensão e Capacidade Institucional do Intérprete. In: Cláudio Pereira de Souza Neto, Daniel Sarmento e Gustavo Binenbojm (coord.) Vinte anos da Constituição Federal de 1988, 2009, p. 312-313)

Porém, há ainda esperança. Resta ainda por votar a última e mais importante tese da judicialização da saúde no STF, o tema 6. A depender do que dele constar, pode-se retomar a deferência a uma política pública que, se não é perfeita, é muito melhor que deixar os laboratórios sem quaisquer freios na precificação das drogas órfãs.




Responsabilidade dos Gestores Públicos e Evidências Científicas no Tratamento da COVID-19

O instinto de sobrevivência faz parte da natureza de todos os animais. No ser humano, tido como o mais evoluído delesQuando observo grupos de outros animais complexamente estruturados e vivendo de forma harmoniosa e inofensiva em relação aos próprios membros e à natureza, sem ódio, ganância e comportamentos autodestrutivos, como ocorre, por exemplo, com as formigas, as abelhas e as manadas de elefantes, fico em dúvida se somos realmente os seres mais evoluídos., a luta pela manutenção da vida tem como aliadas a inteligência e a experiência que nos são peculiares. Para atingirmos o grau de conhecimento científico atual que nos permite uma melhor compreensão das doenças e a obtenção de meios mais seguros e eficazes de combatê-las, muitas tentativas foram feitas e muitas falhas foram cometidas.

Métodos de tratamentos de doenças que hoje certamente seriam considerados bizarros foram outrora adotados ou testados por reputados médicos e cientistas. Já no século XIX, algumas clínicas nos EUA usavam teias de aranhas para a cicatrização de cortes. Pães mofados eram utilizados como antibióticos pela civilização persa. Na mesma época, médicos indianos buscavam tratar a asma fazendo com que os pacientes engolissem pequenos peixes vivos que pudessem desobstruir as vias aéreas (certamente não sabiam que o caminho levaria ao estômago, não aos pulmões). Na antiga Grécia, Hipócrates afirmava que a menstruação era uma maneira de a mulher se livrar das impurezas do corpo e do mau-humor. Talvez por isso é que as sangrias foram comumente empregadas na idade média para tratar enfermidades das mais diversasOs exemplos foram extraídos da Revista Superinteressante.

Também em relação aos tratamentos medicamentos, muitas substâncias antes empregadas por profissionais gabaritados hoje soariam como piadas, tais como xarope de heroína para a tosse (utilizado até 1910), metanfetamina para combater a fadiga (Adolf Hitler era um usuário assíduo) ou mesmo a cocaína, recomendada por Freud como estimulante, anestésico e até mesmo tratamento afrodisíacoTambém aqui me socorri de exemplos da Revista Superinteressante

É provável que nada disso fosse considerado um grande absurdo na época, e talvez com razão. Na falta de tecnologia avançada como a hoje existente e em estágios iniciais do conhecimento científico, o empirismo ou mesmo uma pitada de senso comum eram as bases dos tratamentos testados e empregados.

Felizmente, a evolução tecnológica hoje nos fornece as mais diversa gama de exames laboratoriais, testes de diversas naturezas e uma série de métodos científicos apurados para o diagnóstico das doenças e para a condução de rigorosas pesquisas destinadas a encontrar tratamentos seguros e eficazes. Tudo isso resultou na adoção da medicina baseada em evidências como plano de trabalho a nortear o desenvolvimento e o tratamento medicamentoso. Os benefícios trazidos pela tecnologia e pelas pesquisas científicas impõem, para que eles sejam seguros e efetivos, rigor técnico e metodológico.

O rigor e a técnica não têm como objetivo apenas assegurar a acurácia científica, mas também a saúde dos pacientes. Medicamentos mal desenvolvidos ou mal ministrados, sabemos todos, podem colocar a própria vida dos usuários em risco. É justamente aí que reside a importância da medicina baseada em evidências, que foi expressamente adotada como método científico a ser empregado na política de assistência farmacêutica do SUS.

Com efeito, o parágrafo único do art. 19-O da Lei nº 8.080/90 estabelece que os medicamentos inseridos nos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas do SUS “serão aqueles avaliados quanto à sua eficácia, segurança, efetividade e custo-efetividade para as diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde de que trata o protocolo”. Além disso, a inclusão, exclusão ou alteração dos medicamentos em tais protocolos e diretrizes são feitas pelo Ministério da Saúde após relatório técnico da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC), que deverá considerar, além de outras questões, “as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou procedimento objeto do processo, acatadas pelo órgão competente para o registro ou a autorização de uso” (art. 19-Q, §2º, I da Lei nº 8.080/90).

Não há margem para dúvidas. Sem a comprovação de evidências científicas da eficácia, acurácia, efetividade e segurança de um medicamento, ele não pode ser disponibilizado pelo SUS. Não se está a tratar, neste momento, de liberdade de prescrição médica e da responsabilidade do profissional que ministra ao paciente um medicamento em desacordo com as indicações, o registro ou as evidências existentes. O prisma de análise, aqui, é outro. Medicamento que não conta com evidências científicas não pode ser incorporado ou entregue pelo SUS. Trata-se de imposição legal expressa.

É bem verdade que o momento atual pelo qual todo o planeta passa, com a gravíssima pandemia do COVID-19 ceifando centenas de milhares de vidas em todos os continentes e deixando milhões de pessoas enfermas, inevitavelmente impõe uma busca desesperada e desenfreada pela descoberta de tratamentos ou vacinas contra a doença. A urgência que o caso requer resulta na pressa das pesquisas científicas que muitas vezes é incompatível com o rigor metodológico exigível, flexibilizando de certa forma a análise das evidências disponíveis. Isso, contudo, não significa um “vale tudo” científico ou a completa desconsideração da ciência nos padrões atuais. A medicina baseada em evidências continua existindo e devendo ser respeitada.

A ânsia pela cura de uma doença nova e avassaladora em termos de saúde pública torna compreensível que os cidadãos leigos estejam mais abertos a depositar suas esperanças em promessas de tratamentos com eficácia e segurança não comprovadas. A divulgação de opiniões particulares de profissionais da saúde não especialistas e desacompanhadas de qualquer respaldo científico ganha amplitude e acessibilidade irrestrita nas redes sociais, atingindo um público que não tem conhecimento técnico para discernir fatos de opiniões. Com isso, é fácil transformar preocupação em esperança. 

É menos compreensível, mas aceitável que médicos busquem, quando munidos de bons propósitos e dentro de sua autonomia profissional responsável, tratar seus pacientes com medicamentos cuja eficácia ainda não esteja demonstrada de maneira incontroversa pela ciência, desde que com isso não coloque a saúde do paciente em perigo. 

É inadmissível, entretanto, com base no ordenamento jurídico hoje existente, que gestores públicos disponibilizem a pacientes do SUS tratamentos medicamentosos cuja segurança, eficácia e efetividade não estejam comprovadas cientificamente. Note-se bem: não basta a inexistência de evidências de que a droga não funciona. É necessário que haja evidências científicas de que funciona e é segura. 

A aquisição e a entrega, no âmbito do SUS, de medicamentos desprovidos de evidências científicas de segurança e eficácia infringe não apenas os arts. 19-0, parágrafo único e 19-Q, § 2º, I da Lei nº 8.080/90, mas também o princípio constitucional da eficiência da Administração, porque colocam em risco a saúde dos pacientes e acarretam gastos públicos que não produzirão os resultados a que se propõem, a menos que esses resultados sejam apenas uma esperança. Não é que o se espera de gestores de um sistema público de saúde notoriamente subfinanciado.

No julgamento da medida cautelar na ADI 6.427, que impugna o art. 2º da MP nº 966/2020Art. 2º  Para fins do disposto nesta Medida Provisória, considera-se erro grosseiro o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia., o qual trata da responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da COVID-19, o Supremo Tribunal Federal firmou as seguintes teses, perfeitamente aplicáveis ao que aqui se discute:

1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. 
2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos.

Como se percebe, o STF aliou a necessidade de comprovação de critérios científicos e técnicos seguros aos princípios da precaução e da prevenção. Fora desses parâmetros, a autoridade administrativa poderá ser corresponsável pelos danos que suas decisões causarem a terceiros. 

Dentro de todo este contexto, convém trazer à tona o que vem ocorrendo no Brasil com pretensos tratamentos medicamentosos para o COVID-19. Para abreviar a análise, centremo-nos em dois medicamentos cuja prescrição para o tratamento da doença vem sendo defendida por alguns médicos e encampada por alguns gestores, que os tem disponibilizado à população através do SUS. 

Um deles é a ivermectina, vermífugo já utilizado há longa data para outras doenças. Rumores de que ele poderia ajudar na prevenção ou combate ao novo coronavírus fizeram com que fosse largamente indicado país afora e utilizado pela população inclusive por conta própria, sem prescrição médica. Além de não haver estudos científicos confiáveis demonstrando a sua eficácia no tratamento, há pesquisas indicando o contrário, tais como uma triagem de drogas no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP. A Organização Pan-Americana de Saúde, vinculada à OMS, emitiu recomendação na qual consta que “os estudos sobre ivermectina tinham um alto risco de viés, muito pouca certeza de evidências, e as evidências existentes eram insuficientes para se chegar a uma conclusão sobre benefícios e danos”. Também a Sociedade Brasileira de Infectologia esclareceu, em informe elaborado em 30 de junho de 2020, que “os antiparasitários ivermectina e nitazoxanida parecem ter atividade in vitro contra a SARS-CoV-2, porém ainda não há comprovação de eficácia in vivo, isto é, em seres humanos. Muitos dos medicamentos que demonstraram ação antiviral in vitro (no laboratório) não tiveram o mesmo benefício in vivo (em seres humanos)”

A situação é ainda mais séria em relação à hidroxicloroquina. Muito embora o próprio Ministério da Saúde tenha orientado o seu uso no tratamento do COVID-19 desde os estágios iniciais da doença, neste caso não se trata apenas de ausência de evidências científicas de segurança e eficácia, o que por si só já seria suficiente para a vedação de sua disponibilização pelo SUS. Mais do que isso, respeitados estudos científicos têm comprovado que o medicamento não tem eficácia alguma, trazendo ainda o risco de efeitos colaterais adversos nos pacientes. Um exemplo dentre vários outros é o recente estudo brasileiro considerado como “padrão ouro” (ensaio clínico randomizado) e publicado no New England Journal of Medicine, um dos mais respeitados do mundo,  que contou com mais de 600 participantes atendidos em 55 hospitais. A suficiente demonstração de que a droga não produz efeitos no combate ao coronavírus levou a OMS a interromper os estudos sobre ela e a Associação Brasileira de Infectologia a recomendar, em seu Informe nº 16, que “a hidroxicloroquina seja abandonada no tratamento de qualquer fase da COVID-19” e que “os agentes públicos, incluindo municípios, estados e Ministério da Saúde reavaliem suas orientações de tratamento, não gastando dinheiro público em tratamentos que são comprovadamente ineficazes e que podem causar efeitos colaterais”.

Tamanhas evidências, bem como a não submissão da orientação do Ministério da Saúde sobre o uso da hidroxicloroquina para o tratamento do COVID-19 à análise da CONITEC tornam clara a ilegalidade da referida orientação.

Neste cenário, é preciso que se reflita profundamente sobre a responsabilidade de gestores e autoridades públicas, em todas as esferas do Poder, pelos recursos financeiros gastos com medicamentos que não possuem eficácia no tratamento do novo coronavírus ou cuja eficácia careça de indícios mínimos de evidências científicas, bem como pelos danos que venham a causar à saúde dos pacientes. A eficiência nos gastos públicos e no trato da vida humana é princípio constitucional que merece respeito.




A ilusão da integralidade

A ciência demonstrou que os neurônios não se regeneram?

Cada parte da língua é responsável por identificar um sabor?

O cérebro humano usa apenas 10% de sua capacidade?

Açúcar deixa as crianças hiperativas?

A muralha da China pode ser vista do espaço?

O golfinho é o animal mais inteligente depois do ser humano?

Temos a tendência de acreditar que uma afirmação é verdadeira quando somos expostos repetidamente àquela afirmação. Trata-se de um artifício mental conhecido como efeito da “ilusão da verdade”.

Olhando para as perguntas que ilustram o início do texto, muitos de nós responderíamos sim para grande parte delas. Acreditamos que nosso cérebro usa apenas 10% de sua capacidade total, que açúcar faz com que as crianças fiquem hiperativas, que é possível ver a muralha da China do espaço, que se “matarmos” nossos neurônios “matou bem morto”, que a língua está dividida em quadrantes responsáveis cada um por um sabor ou que os golfinhos são os animais mais inteligentes, depois dos humanos. Acreditamos nisso porque ouvimos essas informações reiteradamente.

No entanto, não há prova da utilização máxima de nossa capacidade cerebral, a muralha da China, por mais monumental que seja, não teria, ao que tudo indica, dimensão suficiente para que pudesse ser vista do espaço – o que foi visto na descrição de um astronauta foi o grande Canal da China -, açúcar pode gerar obesidade, resistência à insulina e hipertensão, mas não há evidência que cause hiperatividade, desde a década de 90 há provas da neurogênese, demonstrando a capacidade de regeneração de células cerebrais, os receptores de sabor estão distribuídos por toda a línguaver Revista Galileu, golfinhos são fofos, mas segundo testes de inteligência cães, orangotangos, ratos e pombos estão na frente deles.

Acreditamos na informação que é repetida múltiplas vezes.

Como nós não temos condições de submeter todas as informações que recebemos a uma busca profunda da verdade, para facilitar nossa vida, nosso cérebro organiza as informações com base no que já aprendemos.

Para demonstrar esse mecanismo são feitos experimentos nos quais voluntários devem avaliar a verdade de uma lista de afirmações, umas verdadeiras, outras não. O teste é repetido, sendo mantidas parte das afirmações do primeiro teste no segundo, acompanhadas de afirmações novas. Os resultados mostram que as pessoas tendem a avaliar como sendo verdade as afirmações que já ouviram no teste anterior, mesmo que sejam falsas, porque soam mais familiares.

Muitas vezes, a ilusão da verdade pode nos levar por caminhos perigosos.

Trazendo a questão para a área da saúde, isso se deu, por exemplo, com a afirmação reiterada de que vacina causava autismo, aceita por muitos como uma verdade sem que se buscasse a fundo a razão e confirmação da afirmação.

A ilusão da verdade mostra como é importante buscar fontes confiáveis, checar informações e ter uma mente aberta para a contraposição.

Por mais força que tenha, a ilusão não sobrevive à busca de evidência e à análise dos fatos.

Muitas vezes a ilusão da verdade é posterior, pois assim só se tornou diante do avanço da ciência, como nos exemplos da língua e dos neurônios. Não se poderia falar propriamente em ilusão quando a evidência disponível à época levava àquela verdade.

A ilusão da verdade pode ser resultado de uma análise açodada ou gerada por algum viés, lembrando que temos a tendência de valorizar apenas as evidências que confirmam nossas hipóteses.

Por isso, temos que estar abertos para sempre reanalisar as afirmações que temos por verdadeiras, mas que não submetemos ao teste da “ilusão da verdade”.

Trazendo o tema para o direito à saúde, em especial a judicialização do direito à saúde, penso que alguns conceitos merecem uma análise mais atenta para afastar a convicção que está embasada na reiteração de afirmações que em verdade não encontram fundamento na origem do conceito.

Trago como exemplo o conceito da integralidade, amplamente utilizado nas ações que discutem o direito à saúde e que tem origem Constitucional.

Vemos reiteradamente a diretriz da integralidade, apresentada na Constituição no artigo 198, sendo apresentada como fundamento em ações judiciais para o deferimento de pedidos que impõem ao Sistema Único de Saúde o fornecimento de medicamentos ou de tratamentos que não estão contemplados na política pública e, muitas vezes, sequer estão amparados por evidências científicas no que se refere à sua eficácia, efetividade, acurácia ou superioridade terapêutica.

Constantemente somos expostos à informação que atendimento integral corresponde a atendimento ilimitado, dever de fornecer todo o tratamento existente, sem qualquer limitação.

Estamos há anos ouvindo que integralidade é dar tudo a todos, que o direito à saúde é ilimitado, pois é isso que dita o texto constitucional.

“A saúde e direito de todos”, “a Constituição determina que o atendimento seja integral, ou seja, todo e qualquer tratamento cabível para aquela situação clínica deve ser fornecido”…

De tanto lermos a afirmação, passou a ser verdade.

No entanto, não o é.

Sem entrar em qualquer discussão sobre finitude dos recursos, medicina baseada em evidência, relação de custo efetividade, reserva do possível, sustentabilidade do sistema, mas somente fazendo uma análise do texto constitucional e da gênese da constituição, me parece que o conceito que nos vem sendo apresentado é uma “ilusão da verdade” que não sobrevive a uma análise mais atenta ao texto constitucional do qual se origina.

Vejamos.

De plano, o artigo 196 da Constituição estabelece que a saúde é direito de todos e dever do Estado “garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Em seguida, o artigo 197 dispõe que “são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle (…)”.

Ou seja, o direito à saúde é garantido de acordo com as políticas públicas que forem estabelecidas para tanto, o que já é um limitador. Ao garantir o acesso universal para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a Constituição deixa claro que isso ocorrerá mediante políticas sociais e econômicas (art. 196), considerando-se como de relevância pública aquilo que estiver regulado por lei (art. 197).

A Lei nº 8.080/90, por sua vez, dispõe que a integralidade de assistência é constituída por um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema (art. 7º, II) e estabelece que a assistência terapêutica integral consistirá na “I – dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para a doença ou o agravo à saúde a ser tratado ou, na falta do protocolo, em conformidade com o disposto no art. 19-P” (art. 19-M).

Mais uma vez, resta claro que a integralidade se dá dentro das políticas públicas instituídas, observando os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas.

Voltando ao texto constitucional.

A diretriz da integralidade vem disposta no artigo 198, nos seguintes termos:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:  (...)  
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

A diretriz constitucional de atendimento integral significa que todo e qualquer tratamento deve ser oferecido pelo SUS?

A resposta não permite algo além de sim ou não.

Se nem todos os tratamentos devem ser oferecidos a resposta é não.

Dentro do SUS, o atendimento integral eleito como diretriz do sistema guarda relação com atenção plena à pessoa.

O conceito foi trazido da chamada medicina integral, movimento surgido nos Estados Unidos para contrapor a crescente fragmentação ou especialização do atendimento médico, buscando que o paciente fosse visto como um todo, valorizando a saúde e a doença, permitindo o atendimento em todos os níveis, físico, mental e social e que a atenção se desse não somente na fase preventiva, mas também curativa.

Na 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, onde se começou a dar forma ao SUS, estabelecendo a saúde como dever do Estado, foram lançadas as diretrizes desse sistema único, dentre as quais a “integralização das ações, superando a dicotomia preventivo-curativo” (Relatório Final da 8ª Conferência Nacional de Saúde):

Fragmento do Relatório Final da 8ª Conferência Nacional de Saúde

Mas a interpretação que se dá em muitos casos para a integralidade é que há um direito amplo e irrestrito a tudo.

Analisando mais a fundo a gênese Constitucional, a compreensão da expressão “atendimento integral” fica mais clara.

O artigo 196 foi sendo transformando durante a constituição da seguinte forma:

Infográfico criado com base na obra “A Gênese do texto da Constituição de 1988

A integralidade foi citada pela primeira vez no texto Substitutivo 2, de 18/09/1987, no então artigo 226, que se transformaria na redação final no atual artigo 198, da Constituição:

Infográfico criado com base na obra “A Gênese do texto da Constituição de 1988

Analisemos as diversas fases do processo constitucional, as alterações e as discussões sobre o tema.

Na fase A até a Fase E, nas subcomissões temáticas (FASE A – Anteprojeto do relator, FASE B – Emenda ao anteprojeto do relator, FASE C – Anteprojeto da subcomissão, FASE E – Emendas ao anteprojeto da subcomissão) a proposta de redação era a seguinte:

Art. 2º. As ações e serviços de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um Sistema Único, organizado de acordo com os seguintes princípios:
I - comando administrativo único em cada nível de governo;
II - integralidade e continuidade na prestação das ações de saúde;
III- gestão descentralizada, promovendo e assegurando a autonomia dos Estados e Municípios;
IV - participação da população através de entidades representativas na formulação das políticas e controle das ações nos níveis federal, estadual e municipal, em conselhos de saúde.(...) 

Entre as Fases F e H nas Comissões temáticas, a redação alterou, no que se refere a integralidade para:

Art. 52 (...)
II - atendimento integral e completo nas ações de saúde;

Nas fases I até P, na Comissão de Sistematização, a redação se alterou ao final para a redação inicial que vemos no quadro acima, com o primeiro substitutivo:

Art. 226. (...)
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas.

Nas fases posteriores, em plenário, chegou-se à redação atual, passando a numeração do artigo para 198.

A alteração da redação de “atendimento integral e completo nas ações de saúde” para “atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais”, já deixa clara a intenção de limitação, com a retirada do atendimento “completo”, mantendo apenas o “integral”.

Ainda, foi destacado que as atividades preventivas estão dentro do conceito de “atendimento integral”, pois foram ressaltadas nesse como prioritárias, o que se coaduna com o conceito acima de integralidade, proposto pelo movimento da medicina integral e na 8ª Conferência Nacional de Saúde que antecedeu a constituinte.

Analisando as audiências públicas, reuniões e emendas apresentadas, que precederam a redação final do texto, fica claro que a expressão “atendimento integral” buscava o atendimento à saúde como um todo, sem deixar de lado todos os aspectos que envolvem o conceito de saúde.

O que o pretendia o constituinte era que a saúde fosse vista em sua integralidade, diferente do que acontecia anteriormente, de modo que o indivíduo fosse cuidado em seu aspecto físico, mental e social e que todas as áreas fossem objeto de atenção.

Vejamos alguns exemplos.

A emenda 7B0051-0 para que fosse garantida a assistência multiprofissionalDocumentos avulsos vol 193-3 p, 68:

A emenda 7B0052-8 que tem como origem proposta do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional relacionando a integralidade ao acesso aos tratamentos terapêuticos Documentos avulsos vol 193-3 p, 69:

A emenda 7B0158-3 é mais um exemplo que o que se buscava era o atendimento da saúde em todos os seus aspectos, físico, mental e socialDocumentos avulsos vol 193-2 p, 12:

A emenda 26220, apresentada na fase O, que tinha como proposta, dentre outras, adicionar um parágrafo com a seguinte redaçãoQuadro Histórico art. 198, p. 68:

"Art. 261. A saúde § 1o. - A mulher terá assistência integral e gratuita, nas diferentes fases de sua vida”

A justificativa para a emenda era a seguinte: O atendimento à mulher pelo sistema de saúde tem-se limitado, quase que exclusivamente, ao período gravídico puerperal e, mesmo assim, de forma deficiente. Ao lado de exemplos amplamente conhecidos, como a assistência preventiva e de diagnostico precoce de doenças ginecológicas, outros aspectos como prevenção, detecção e terapêutica de doenças de transmissão sexual, repercussões biopsicossociais de gravidez não desejada, abortamento e acesso a métodos e técnicas de controle de fertilidade, têm sido relegados a plano secundário. Esse quadro assume importância ainda maior ao se considerar a crescente presença da mulher na força de trabalho, além de seu papel fundamental do núcleo familiar.

A proposta foi rejeitada pois “como o direito à saúde é de todos e o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde está garantido no texto do substitutivo, o relator não considera adequado destacar um grupo da população em detrimento de outros também importantes, como as crianças, por exemplo.”

Assim, a contrário senso, a análise da proposta de emenda deixa claro que o atendimento integral teria como definição o atendimento em todas as fases, não limitado somente a algumas situações.

Ou ainda a emenda 09902, apresentada na fase M, que pretendia o acréscimo do inciso V, com a seguinte redação “Os serviços de saúde prestados e os medicamentos essenciais fornecidos pelos órgãos e unidades integrados ao Sistema Nacional de Saúde são universais e gratuitos”, para que se fixasse o caráter de gratuidade dos serviços de saúde, que foi rejeitada sobre o fundamento que a gratuidade estava implícita. Tratar dos medicamentos essenciais é mais uma demonstração do intuito que movia os constituintes à época, reforçando que não havia a intenção de se fornecer todo e qualquer tratamento sem qualquer limitaçãoQuadro Histórico Art. 198, p. 40.

Mas o conceito de integralidade fica ainda mais claro quando se analisa as reuniões que precederam a redação do texto constitucional.

Vejamos alguns trechos das reuniões da Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente, sem destaques no originalDiário da Assembleia Nacional Constituinte, p. 98:

A SRA REGINA SENNA – (...)Temos algumas questões a levantar em relação a essa questão de assistência de saúde, nos seguintes termos: A assistência de saúde, hoje, tem sido apontada e até mesmo executada como uma assistência médica, à população, e não como uma assistência de saúde. Consideramos importante levantar esse aspecto, na medida em que a assistência à saúde, na visão mais global, mais integral, ao indivíduo, deve ser prestada por uma equipe multiprofissional, onde o conjunto dessa assistência determine uma política de saúde muito clara. E essa politica para nós significa uma assistência de saúde como direito de todos os cidadãos no território nacional, e é dever do Estado subsidiar essa assistência. (10ª Reunião – 28/04/1987)
O SR. MOYSÉS GOLDBAUM – (...)Tradicionalmente, área de saúde coletiva vinha se voltando para aquilo que chamávamos ou se denominava área de saúde pública, que compreendia ações supletivas do Estado no atendimento às medidas que procurassem conter ou controlar os problemas de saúde que afetavam a grande massa da população brasileira, estando fora deste âmbito a questão da assistência à saúde. Quer dizer que poríamos, então, de um lado a área de saúde pública, e do outro a área da atenção médica propriamente dita, ou assistência a doentes, se assim pudermos colocar. No processo todo de modernização da sociedade, na medida em que a sociedade progride, se reorganiza, evidentemente, que se podem ver no decorrer da História as novas concepções de saúde vão surgindo e vão sendo concebidas novas formas de se entendê-Ias, e paralelamente com isso, corre a questão de uma reorganização, de uma reorientação dos serviços de saúde levando, então, a que os distintos fatores do setor venham desempenhar novos papéis no atendimento à questão de saúde da população. Esse processo que não é próprio somente da sociedade brasileira, ocorre em todos os países do mundo, observarmos os programas de medicina preventiva que nascem basicamente nos Estados Unidos; se nos debruçarmos sobre a sociedade americana, veremos o nascimento das diversas correntes que procuram atender às novas questões de saúde que surgem nesse País, como os programas de medicina preventiva, os programas de medicina familiar, os programas de medicina integral, os programas de medicina comunitária, que são também incorporados aqui na sociedade brasileira. (...) Lembraria aqui a participação intensa que tivemos na 8ª Conferência Nacional de Saúde e a realização do 10 Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, que nos permitiu referendar os postulados de eqüidade, de integralidade e de universalidade que são do sistema de saúde, e que estão expostos na 8ª Conferência Nacional de Saúde e referendado pelo Congresso brasileiro. Movimentos estes, então, nos têm permitido a elaboração de uma proposta, a qual foi elaborada pela Comissão de Política, e que eu pediria ao Dr. Eleutério Neto, que foi um dos elementos destacados na elaboração desta proposta, que apresentasse então a nossa proposta para a Constituinte. O SR.ELEUTÉRIO R. NETO- (....) Em 1º lugar, é a questão do conceito de saúde e na 8ª Conferência já se colocou isto de uma maneira bastante clara. Não podemos mais nos ater ao conceito de saúde como um conceito de assistência médica e não só como um conceito que engloba os aspectos preventivos, simplesmente. Entendemos que saúde é o resultante de fato de um conjunto de relações que se dão no interior da sociedade e que, portanto, a saúde está determinada por todas as condições de vida que cada um dos indivíduos e o conjunto da população obtêm num determinado momento histórico. Neste sentido é importante que se considere de fato como saúde ou como ações para a promoção, proteção e recuperação da saúde todas aquelas que incidem sobre a qualidade de vida do conjunto dos habitantes do território nacional. Isto é, a questão da habitação, a questão do saneamento, a questão do transporte, a questão da educação, a questão da alimentação e do abastecimento e, evidentemente, todas as outras ações específicas que tradicionalmente são consideradas como ações propriamente ditas do setor de saúde, que são as ações de promoção, de proteção e de recuperação da saúde, no interior do sistema de saúde propriamente dito. (...) entendemos que o Estado tem uma função fundamental e essencial para prover, para assegurar o cumprimento desse direito. E ele tem o dever, portanto, de assegurar que todos tenham acesso igualitário e universal a todas as ações, que de uma forma ou de outra incidem sobre as condições prévias, para as pessoas adoecerem ou não, e em relação à própria recuperação da saúde (...) porque o Estado, de fato, tem o direito de assegurar, de prover, de executar, inclusive, todas as ações que dizem respeito à promoção, à proteção e à recuperação da saúde para o conjunto dos habitantes do território nacional. (...)  A segunda diretriz fundamental, para o sistema único de saúde, é a diretriz da integralidade; isto é, o cuidado, a atenção ao paciente, à população, ao conjunto de seus indivíduos que constituem uma coletividade que deve ser de uma forma contínua, deve ser de uma forma integrada, zelando pela dignidade do atendimento, e não vendo o indivíduo em termos do seu pé, da sua cabeça, do seu abdômen, nas ações que são feitas por uma instituição na prevenção, por outras instituições na área de curativo. Não. Isso tem que ser contínuo, tem que ser um sistema que seja integrado, que seja único. A terceira diretriz para nós é a questão da descentralização (...)Uma quarta diretriz, que me parece a mais fundamental de todas, que acho que é uma diretriz que deve estar presente na Constituição, não é uma questão particular da saúde, mas na saúde ela se coloca de uma forma crítica, é a questão da participação (...) (11ª  Reunião - 29/04/1987)
(...) há necessidade de levar à frente a integralidade das ações de saúde, separando não mais a preservação da restauração da saúde, recompondo a unidade desse processo e chegando, assim, ao nível das comunidades, ao nível da prestação dos serviços, outro modelo de saúde diferente do que prevalece no Brasil, onde os centros e os postos de saúde cuidam da prevenção e os ambulatórios da previdência social, nos consultórios médicos privados, e os hospitais cuidam da restauração da saúde. Essa separação, os exemplos são abundantíssimos, tem sido altamente lesiva à saúde do brasileiro e não pode permanecer. E, daí a proposta de que se crie nas redes de unidades básicas de saúde um tipo de unidade onde a preservação e a restauração se reúnam, onde elementos que atualmente figuram nos centros e postos de saúde se associem, na mesma oportunidade de acesso da população, aos que cuidam da restauração da saúde (...) (12ª Reunião em 30/04/1987).

Assim, me parece claro que a análise da gênese constitucional demonstra que a afirmação que a constituição garante a integralidade do direito à saúde, vista como a obrigação de dar tudo que é possível no mundo dos fatos, não é uma verdade.

Não há em nenhum momento demonstração no sentido que era isso que buscava o constituinte.

Então, fica a pergunta:, ainda que se entenda que é possível obrigar o Estado a oferecer serviços e prestações que não estão instituídos em políticas públicas, será que se pode entender que integralidade é acesso irrestrito a tudo, inclusive àquelas opções de tratamento que não importam em maior efetividade, mas somente comodidade, dar a todos o tratamento de ponta e a melhor tecnologia, ou será que a integralidade, não aquela desejada num mundo ideal, mas aquela que se extrai do texto constitucional, é dar a todos os pacientes uma resposta satisfatória em todos os níveis de atenção?

Por fim, todo o contexto constitucional demonstra que na apreciação do que é acesso integral à saúde não se pode desvincular os conceitos de eficácia, custo-efetividade, nem ignorar que o sistema público de saúde tem por finalidade atender a coletividade e não somente interesses individuais, mas isso fica para um outro texto.

Quando olhávamos para a integralidade, achávamos que estávamos vendo uma muralha da China, uma obra grandiosa, com grandes pretensões e acessível a poucos, mas isso não correspondia à realidade, pois ela não podia ser vista. Na verdade estávamos vendo algo mais simples, menos grandioso mas talvez mais essencial, um canal, levando a todos – e não somente a alguns – um bem indispensável, a água.




Tema 793 do STF: pato, coelho ou chinchila?

Uma das questões que mais afligem os profissionais do direito que lidam com a judicialização da saúde diz respeito à responsabilidade pelo fornecimento de tecnologias. Mesmo sem estar prevista na Constituição Federal, em leis ou em atos infralegais, a jurisprudência brasileira sedimentou há mais de uma década que a União, os Estados e os municípios eram solidariamente responsáveis pelas prestações em saúde (art. 198, da CF e art. 15, da lei nº 8.080/90). É certo que todos esses entes compõem o SUS. Todavia, cada um tem a sua responsabilidade financeira definida, que passa pela pactuação na Comissão Intergestores Tripartite (art. 19-U, da lei nº 8.080/90). As prestações de um não se confundem com as prestações de outro. E nem poderia ser diferente.

A ideia de que todos seriam responsáveis por custear as mesmas coisas, além de não atentar à legislação de regência do SUS, desconsiderava um fato importantíssimo: a diferença econômica entre os entes. Um município pequeno não pode ser obrigado, ainda que solidariamente, a fornecer as mesmas tecnologias que devem ser fornecidas pela União.

Por causa disso, a tese da solidariedade original teve um efeito nefasto. Na medida em que o paciente podia propor a ação judicial contra qualquer um dos entes federativos, ele, não raro, escolhia como legitimado passivo aquele que oferecesse menos resistência ao cumprimento das decisões judiciais. Com frequência, notava-se uma preferência da parte autora por litigar contra os Estados e os municípios, tendo em visto que a União reiteradamente descumpre ordens judiciais e, mais, não dispõe de meios para que bloqueios judiciais possam ser efetivados. Ainda, a composição do polo passivo também levava em conta o órgão jurisdicional no qual o paciente tivesse mais chances de obter provimentos favoráveis (“forum shopping”).

Estados e municípios, com o aumento das demandas, viram-se obrigados a gastar altas somas para o fornecimento dos mais variados tipos de tecnologias em saúde, até mesmo de “alto custo” e contra o câncer. Houve um esgotamento dos recursos desses entes, o que levou a um grave desequilíbrio no SUS, agravado com a impossibilidade de obtenção de ressarcimento ou de rateio do que gastaram, tenha o processo tramitado na Justiça Federal ou na Justiça Estadual.

Pensando nisso, ao retomar o julgamento do RE 855.178, em embargos de declaração, o Supremo Tribunal Federal tentou corrigir os efeitos adversos da solidariedade, sem, contudo, afastá-la.

A tese fixada disse: “Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”.Sobre o tema da responsabilidade financeira dos entes em matéria de saúde, confira-se o artigo “Da Responsabilidade solidária na assistência à saúde no SUS”

O voto vencedor, do Ministro Fachin, no desenvolvimento da tese, disse “Se o ente legalmente responsável pelo financiamento da obrigação principal não compuser o polo passivo da relação jurídico-processual, compete a autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro, sem prejuízo do redirecionamento em caso de descumprimento”. Prossegue esclarecendo que “Se a pretensão veicular pedido de tratamento, procedimento, material ou medicamento não incluído nas políticas públicas (em todas as suas hipóteses), a União necessariamente comporá o polo passivo, considerando que o Ministério da Saúde detém competência para a incorporação, exclusão ou alteração de novos medicamentos, produtos, procedimentos, bem como constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica (art. 19-Q, da Lei nº 8.080/90), de modo que recai sobre ela o dever de indicar o motivo da não padronização e eventualmente iniciar o procedimento de análise de inclusão, nos termos da fundamentação”.Sobre o processo de incorporação de tecnologias no SUS, confira-se o artigo “A imprescindibilidade da transparência e da adequada fundamentação no processo de incorporação de tecnologias no SUS”.

Conclui-se que medicamentos padronizados devem ser obrigatoriamente demandados contra o ente responsável pelo seu financiamento, de acordo com as atribuições pactuadas na Comissão Intergestores Tripartite. Também ficou claro no voto vencedor que processos que pleiteiem medicamentos não padronizados devem ter a União no polo passivo.

Tais questões estão sacramentadas, pela simples razão de que o voto vencedor trouxe a solução para elas de maneira direta e objetiva. Aliás, no extrato da ata de julgamento ficou consignado que o tribunal firmou entendimento “nos termos do voto do Ministro Edson Fachin”.

Entretanto, da leitura da discussão que houve no plenário, as coisas deixaram de ser tão claras, pelo menos no que se refere aos processos de medicamentos não padronizados. O Ministro Lewandowski reafirmou a tese da solidariedade inicial. O Ministro Barroso defendeu que a tese deveria se referir somente a medicamentos não padronizados. Já o Ministro Alexandre de Moraes falou que somente a União deveria ser legitimada passiva para processos de tecnologias não incorporadas.

A falta de definição clara do resultado das discussões vem ensejando interpretações diferentes do julgado.

Assim como ocorre com a célebre imagem que ilustra este texto, alguns olham para o julgado e veem pato. Outros olham e veem coelho. Há quem veja também chinchila (ou seja, veem algo que definitivamente não está lá).

“Sério? Eu acho que ele se parece mais com minha família.” Ilustração de Will Santino

Todavia, como já dito acima, o voto vencedor detalhou a tese fixada e, portanto, é ele que deve servir de parâmetro para os processos de saúde. Extrair a ratio decidendi de diálogos entre 11 ministros contrariamente ao que foi estabelecido no voto vencedor é algo que não fornece segurança jurídica. Num primeiro momento, é importante salientar que as falas dos ministros, com frequência, sofrem interrupções. Algumas falas não são concluídas, o que fica expresso por reticências. Ainda, não se pode perder de vista que, no caso específico, não há como extrair um sentido único do que ficou decidido, a não ser através de uma análise detalhada do acórdão.

Da leitura atenta do decidido, percebe-se que nenhum dos ministros que acompanhou o relator para o acórdão (conhecendo e rejeitando os embargos de declaração) se posicionou expressamente contra a obrigatoriedade da União de compor o polo passivo em ações em que se pleiteia tecnologia não padronizada. Conclui-se, então, que eles aderiram ao voto nessa parte.

Já aqueles que votaram no mesmo sentido do Ministro Fux (conhecendo e dando efeitos infringentes aos embargos) expressamente falaram em seus votos que a União deve ser legitimada passiva nesses processos.

A dúvida surge em razão de duas circunstâncias. A primeira delas diz respeito ao fato do Ministro Fux, relator original da ação, ter se manifestado contra a segunda parte da proposta de tese do Ministro Toffoli, que se referia à legitimidade para os processos que envolviam tecnologias não distribuídas no SUS. No entanto, a fundamentação para afastar essa parte não trouxe nenhum argumento relativo especificamente à competência da União de iniciar e dar seguimento ao processo de incorporação de tecnologia. Ainda, no momento de fixação da tese, o Ministro Fux assentiu com a tese do Ministro Fachin, QUE ESTAVA DETALHADA NO VOTO DESTE ÚLTIMO, e dizia que a União deveria ser necessariamente parte no processo que pedia prestação fora do sistema. Assim, o primeiro suposto argumento contra a obrigatoriedade da União figurar nesse tipo de lide não se sustenta.

O segundo argumento é extraído da fala do Ministro Fachin, em resposta à inquietação do Ministro Lewandowski também no momento de fixação da tese. Este se mostrou preocupado com a parte da tese que dizia que aos juízes “competia” direcionar o cumprimento da obrigação contra o ente responsável. Ele, então, propôs a mudança da tese para que nela ficasse estabelecido que o juiz “poderia” direcionar o cumprimento ao ente responsável. Sua intenção era que o juiz não tivesse que se preocupar com questões de atribuição de competência em processos urgentes, como “num acidente grave”, “num AVC” ou “num enfarte”. Nesses casos, o ministro disse que a dificuldade de saber quem deveria prestar o serviço poderia dificultar a análise do caso pelo juiz. O Ministro Fachin asseverou que comungava das premissas expostas pelo seu colega. E acrescentou: “Por isso que a proposta da tese, na sua primeira parte, reafirma a solidariedade e, ao mesmo tempo, atribui esse poder/dever à autoridade judicial para direcionar o cumprimento. Não se trata da formação do polo passivo, tomei esse cuidado para evitar o debate sobre formação de litisconsórcio ou a extensão de um contraditório deferido para direcionar o cumprimento. Ainda que direcione e, por algumas circunstâncias, depois se alegue que o atendimento – exatamente naquela diferença de Bobbio citada por Vossa Excelência ontem – às demandas da cidadania possa ter levado a um eventual ônus excessivo a um ente da Federação, a autoridade judicial determinará o ressarcimento – é a parte final – a quem suportou o ônus financeiro”.

Não obstante, o que foi falado pelo Ministro Fachin também não guarda relação com a parte do detalhamento da tese que trata de tecnologias não incorporadas, justamente porque não era esse o tema do debate no momento. Ainda, quando o Ministro Fachin fala em “formação” de litisconsórcio passivo, parece-nos que ele quer dizer do momento inicial de propositura da ação. Aliás, essa é a única interpretação coerente com o que ficou exposto em seu voto.

O que se quis dizer, salvo melhor juízoE digo isso com a pretensa autoridade de quem ouviu por quatro anos as notas de rodapé mentais do Professor Fachin, eterno, único e querido por todos, na UFPR, paraninfo da turma, com quem eu tanto aprendi., é que, numa situação de emergência, o juiz pode
determinar o cumprimento contra o ente que estiver no processo para evitar o perigo de decisões tardias. Note-se que o ministro falou da “extensão de um contraditório deferido”, referindo-se ao elastecimento temporal da fase de contraditório acerca do ente responsável. Porém, nesses casos, em momento posterior e mitigada a situação de urgência, ao juiz compete (poder-dever) incluir o ente responsável no feito para que ele ressarça aquele que cumpriu a decisão judicial. Ou seja, trata-se de litisconsórcio, sim. Mas não se trata de necessidade de litisconsórcio desde o início (formação) do processo.

A própria União vem alegando sua ilegitimidade passiva nos processos, fundamentando seu pedido na citação acima do Ministro Fachin. Traz, inclusive, a citação em negrito no início de suas petições. Recorta um trecho do acórdão sem dar a devida atenção ao contexto em que foi trazido.

Com isso, as dúvidas estão surgindo, com evidente prejuízo para todos, mas principalmente para as partes. Há processos que tratam de medicamentos não padronizados que são ajuizados somente contra o Estado e que permanecem na Justiça Estadual. Os juízes estaduais, quando se deparam com esses feitos, ou (i) incluem a União de ofício no polo passivo ou (ii) mandam a parte autora emendar a inicial para fazer a inclusão ou (iii) remetem o processo à Justiça Federal sem que a União esteja na lide. O juiz federal, a depender da sua interpretação acerca do Tema 793, pode receber o processo e aceitar sua competência ou pode determinar que ele seja devolvido para o juiz estadual. Nos tribunais, as divergências continuam.

É importante salientar que não se trata só de fixação de competência, mas também de estruturação dos órgãos e do Poder Judiciário. Caso vingue a conclusão de que tecnologias não padronizadas têm de ser necessariamente pleiteadas contra a União, a Defensoria Pública da União, o Ministério Público Federal e a Justiça Federal terão de tomar uma série de medidas a fim de poder absorver a demanda.

Enquanto isso, temos um julgamento de repercussão geral, que deixou dúvidas em relação ao que deve repercutir. Não se sabe se é pato ou é coelho. Meu cérebro, no entanto, não tem dúvida. Só consegue ver pato. Estão abertos os debates!




Androides, testes sorológicos para COVID-19 e os planos de saúde

Los Angeles, novembro de 2019. Uma grande corporação é responsável pelo desenvolvimento de androides – clones denominados replicantes – semelhantes ao ser humano, para trabalhar como escravos em colônias fora do planeta. Alguns deles, da última geração (Nexus 6), conseguem retornar à Terra na busca de respostas para longevidade. A  polícia busca um ex-agente policial, que já trabalhou como Blade Runner, para que os localize e os “aposente”.

Wuhan, dezembro de 2019. Surgem os primeiros relatos da transmissão de um novo vírus em seres humanos, posteriormente identificado como SARS-CoV-2, facilmente transmissível, causador de uma síndrome respiratória aguda grave e com alto de índice de mortalidade para uma significativa parcela dos contaminados. Em poucos meses se espalhou pelo mundo, provocando a morte de milhares e alterando a rotina de vida em todos os países, uma vez que o distanciamento social foi identificado como a melhor forma de prevenção enquanto não há uma vacina disponível.

Em um dos casos, encontramos o enredo básico de Blade Runner, o Caçador de Androides, filme de 1982, baseado na obra Androides sonham com ovelhas elétricas? de Philip K. Dick. O outro caso certamente poderia ser um roteiro de filme catástrofe, sobre epidemias que se espalham rapidamente pelo mundo, mas em que acompanhamos a jornada de um herói (provavelmente um cientista menosprezado por seus superiores e com problemas de relacionamentos com seus colegas), que rapidamente consegue impedir uma tragédia maior. Infelizmente, não temos esse herói e nem se trata de uma ficção.

Mas o que têm em comum o cultuado filme de Ridley Scott e a atual pandemia da COVID-19 (Coronavirus disease 2019), além de uma simples coincidência temporal em relação à história? A importância da realização de testagem.

O teste de empatia Voight-Kampff é utilizado por Blade Runners para identificar possíveis replicantes. Como são cópias perfeitas de um ser humano, o teste serve para identificar a ausência de reações empáticas, monitorando respostas fisiológicas involuntárias, como a dilatação da pupila e o tempo de reação a determinadas perguntas.

Em vários pontos do livro e do filme, a precisão do teste ficcional é colocada sob suspeita. Primeiro, necessita de um aplicador com experiência para reconhecer o padrão de reações às perguntas formuladas (tanto que é aplicado somente por Blade Runners). E, embora considerado um bom teste, há riscos de ocorrerem falsos positivos (determinadas psicopatias poderiam afetar as reações empáticas) ou falsos negativos (replicantes com implantes de memória, que desconhecem sua natureza e necessitam de um tempo muito maior para identificação). Um teste mal aplicado poderia levar à não identificação de um replicante ou a que um ser humano fosse equivocadamente “aposentado”.

Rick Deckard (Harrison Ford) preparado para aplicar o teste de empatia Voight-Kampff

Em relação aos testes para identificação da COVID-19 pairam dúvidas idênticas. Qual a sua confiabilidade? Quando devem ser realizados? E, por fim, devem ser eles objeto de cobertura pelos planos de saúde?

Para tentar chegar à uma conclusão da primeira pegunta, como premissa, temos que ter claros pelo menos três conceitos, que ajudam a definir a confiabilidade de um teste:

  1. sensibilidade: a probabilidade de resultado positivo em relação aos que contraíram a doença (quanto maior a sensibilidade, menor a chance de termos falsos negativos);
  2. especificidade: a probabilidade de resultado negativo nos não contaminados (quanto maior a especificidade, menor a chance de termos falsos positivos); e
  3. acurácia: a probabilidade do teste fornecer resultados corretos para a finalidade a que se destina.

Assim como na ficção, resultados equivocados podem ter consequências indesejadas. Resultados de falsos positivos podem levar à uma quarentena desnecessária e a tratamentos inadequados. Resultados de falsos negativos podem levar à disseminação involuntária do vírus.

Para analisar os tipos de testes para a COVID-19, podemos dividi-los em dois grandes grupos:

  1. através da detecção direta do material genético, sendo o mais conhecido e utilizado o RT-PCR, em que se identifica a presença do vírus SARS-CoV-2 diretamente; e
  2.  pela detecção indireta de anticorpos (os denominados testes sorológicos).

RT – PCR

O RT-PCR, sigla para transcrição reversa seguida de reação em cadeia de polimerase (do inglês reverse transcription polymerase chain reaction), é uma ferramenta antigamétodo laboratorial usado desde 1983 em que é utilizada a transcrição reversa para transformar o RNA de um vírus em DNA complementar, que serve para identificar uma doença nova e vem sendo considerado o de melhor acurácia – por isso, é considerado o padrão-ouro na testagem da COVID.

Há virtualmente 100% de certeza na identificação do SARS-CoV-2, devido à sua altíssima especificidade, eliminando assim a chance de falsos positivos.

No que diz respeito à sua sensibilidade, existe uma variabilidade grande, especialmente em considerando o dia da coleta em relação à data de início dos sintomas. Calcula-se que a sensibilidade máxima ocorre entre o terceiro e o quinto dia a partir do início dos sintomas da doença (acima de 90%, chegando a 98% no quarto dia).

Além da janela temporal – que causa resultados inferiores especialmente após o 14º dia – também ocorre uma variação da sensibilidade relacionada à qualidade da coleta da amostra – através de swab (cotonete) de nasofaringe (nariz) ou orofaringe (garganta).

Testes sorológicos

A infecção pelo SARS-CoV-2 desperta uma resposta imunológica no organismo que promove a produção de anticorpos (Imunoglobina – Ig) de diversas classes (A, D, E, M, G), cuja função primária é auxiliar na neutralização e no controle da agressão do patógeno. Sua detecção auxilia no diagnóstico da doença.

Assim, é possível detectar anticorpos do tipo IgA, IgM ou IgG e também antígenos virais, que podem indicar, dependendo das características clínicas do paciente, exposição ao novo coronavírus.

Comparando com o RT-PCR, os testes sorológicos possuem menor acurácia devido a três fatores:

  1. janela sorológica ou imunológica (algumas pessoas mesmo tendo contato com o vírus podem ter uma resposta imunológica pequena);
  2. reações não reagentes em indivíduos infectados (resultando em falso negativo); e
  3. testagem cruzada com outros patógenos ou doenças auto-imunes que produzem anticorpos semelhantes (resultando em falso positivo).

A maioria dos pacientes infectados que efetivamente necessitam de tratamento hospitalar terão alguma manifestação clínica até o 7° dia, período em que o RT-PCR ainda está em sua performance máxima.

Os testes sorológicos, nesse período inicial da doença, apresentam baixa sensibilidade (abaixo de 40%), com altíssima probabilidade de falsos negativos, uma vez que o organismo ainda não produziu anticorpos suficientemente. Entretanto, sua performance melhora com o decorrer dos dias, atingindo índices especialmente melhores após completada a segunda semana.

Aqui, nos testes sorológicos, quase que como para separar o joio do trigo, é preciso fazer um distinção entre os métodos de análise. Devemos fazer a diferenciação dos testes sorológicos clássicos e os chamados testes rápidos (que utilizam uma metodologia de análise chamada imunocromatografia de fluxo lateral).

Os testes rápidos se disseminaram pelo Brasil, com a permissão da Anvisa para que sejam realizados diretamente ao público em farmácias e drogarias. Além de ter uma acurácia menor, a leitura da fita reagente é de relativo grau de complexidade e necessita de profissional de saúde capacitado e eficientemente treinado para que o resultado seja o mais próximo da realidade.

Embora tenham grande relevância para inquéritos epidemiológicos, o que infelizmente vem sendo pouco utilizado no Brasil, muito em razão de uma ausência de coordenação do Ministério da Saúde, acabam sendo de pouca utilidade para o uso individual, apesar do incentivo dado pela Anvisa para que sejam encontrados, mediante um valor considerável, em qualquer esquina.

Soma-se a isso a necessidade de que ocorra uma melhor orientação das pessoas no pré e no pós testagem, especialmente em relação à significativa possibilidade de falsos negativos nesse tipo de teste.

Mais que uma mera curiosidade, muitas vezes se faz o teste rápido na ilusão de que, detectado o anticorpo, se tenha um “passe livre” ou um “passaporte imunológico”. Ainda que o resultado seja correto, não há uma certeza científica de que se estará imune a uma nova infecção, nem por quanto tempo supostamente se estará protegido. Grande parte das questões que envolvem a COVID-19 ainda estão cobertas pelo manto da imprecisão e mudam a cada dia.

Assim, para fins de uma correta análise, deve-se distinguir os testes rápidos dos demais testes sorológicos (sendo que essa confusão existe inclusive em documentos oficiais do Ministério da Saúde, onde se usa o termo indiscriminadamente) realizados por outras metodologias (ELISA, por quimioluminescência – CLIA – e eletroquimioluminescência – ECLIA) com resultados de maior acurácia.

O LFIA corresponde aos testes rápidos.

Para se ter uma ideia do número de testes em uso no Brasil, segundo notícia publicada no site da Anvisa, em 31/07/2020, a agência havia zerado a fila de pedidos de registro para testes e das quase 600 solicitações aprovou 329 pedidos, sendo que 228 são de testes rápidos por imunocromatografia. Em razão da existência de tantos e tão variados tipos de testes, as entidades do setor laboratorial se uniram e criaram um programa de avaliação de kits para COVID-19, para tentar trazer um pouco mais de luz na escolha dos testes.

Quando devem ser realizados os testes?

Antes de serem substitutivos, os testes de RT-PCR e os sorológicos são complementares, devendo apenas se dar o necessário desconto aos testes rápidos como ferramenta de diagnóstico. Eles apenas terão sua aplicação em momentos distintos. Enquanto o primeiro deve ser aplicado logo no início dos sintomas, os sorológicos começam a ter resultados melhores à medida que o RT-PCR passa a ter uma menor acurácia.

A posição da Sociedade Brasileira de Infectologia, por exemplo, é de que os testes sorológicos somente passam a ter uma maior confiabilidade após o 14º dia dos sintomas, quando há uma significativa melhora de sua precisão.

A imagem abaixo mostra em que período cada teste deve ser aplicado para obtenção de melhores resultados:

A linha azul corresponde ao teste RT-PCR e a pontilhada em verde ao IgG

Nota-se na imagem que em cerca de duas semanas após o início dos sintomas a testagem por RT-PCR tem sua acurácia em declínio, enquanto aumenta a possibilidade de detectar o IgG.

Testagem para COVID-19 e os planos de saúde

Agora que temos uma noção dos tipos de testagem existentes, de sua acurácia e o momento em que devem ser utilizados, cabe responder se todos devem ser de cobertura obrigatória pelos planos de saúde.

 A ANS estabelece um rol de procedimentos e eventos em saúde, que deve ser a cobertura mínima obrigatória garantida pela operadora de plano de saúde aos seus consumidores, de acordo com a segmentação do plano contratado.

Encontra fundamento legal na Lei dos Planos de Saúde (art. 10, da Lei nª 9.656/98), que define o chamado plano-referência, cuja cobertura deve abranger todas as doenças.

O Rol atual foi publicado no final de 2017, com vigência a partir de 02 de janeiro de 2018, portanto muito antes do surgimento da COVID-19. Embora haja um processo específico para revisão, realizado periodicamente, e não entrando na discussão de que o rol seja ou não exemplificativo, a emergência em saúde causada pela pandemia exige medidas mais ágeis para sua atualização.

Posteriormente, através da Resolução Normativa nº 457, de 28 de maio de 2020, a agência incorporou ao rol obrigatório novos procedimentos que auxiliam no diagnóstico da COVID-19, ao possibilitar exames que auxiliam na diferenciação de outras doenças que também podem causar síndrome respiratória aguda grave (SARS).

Entretanto, em relação aos testes sorológicos, houve uma inexplicável omissão em realizar os estudos necessários para sua incorporação – ou justificar claramente sua não inclusão. Aparentemente, o entrave principal utilizado pela agência para considerar sua cobertura diz respeito mais à utilidade do teste, do que em relação a qualquer outro aspecto. Como o teste sorológico possui maior acurácia apenas quando realizado tardiamente, poderia se pensar equivocadamente que ele é desnecessário para fins de diagnóstico.

Importante lembrar que a utilidade da incorporação de um procedimento ao rol está ligada diretamente aos custos do planos de saúde. Exigir a cobertura de exame, sem que traga um benefício específico para a saúde dos usuários do sistema, apenas tem impacto no preço final do produto, sem ganhos na qualidade de vida. Ainda que se possa descartar a utilidade dos testes rápidos para fins de diagnóstico, isso não acontece com os demais testes sorológicos.

A paralisia da ANS em definir a utilidade dos testes sorológicos para identificação da COVID-19 acabou sendo interrompida por uma ação proposta na Justiça Federal de PernambucoAção Civil Pública nº 0810140-15.2020.4.05.8300, proposta pela Associação de Defesa dos Usuários de Seguros, Planos e Sistemas de Saúde (Aduseps) em curso perante a  6ª Vara Federal de Recife/PE, em que se obteve uma tutela provisória que obrigou a agência a incluir no rol a cobertura de testes sorológicos para pesquisa de anticorpos IgA, IgG e IgM, através da Resolução Normativa nº 458 de 26/06/20. A Resolução não durou muito, foi suspensa em 17/07/2020, após o Tribunal Regional Federal da 5º Região revogar a liminar deferida em primeiro grau.

A ação, ainda que de desfecho incerto, serviu para alertar a ANS de que não poderia mais ignorar a necessidade de incorporar os testes sorológicos, sob pena de ocorrer uma inclusão no rol de cobertura sem que fossem estabelecidos os critérios mínimos de viabilidade e efetividade. Tanto assim, que mesmo após a revogação da liminar realizou a audiência pública nº 16, em 24 de julho de 2020, com a finalidade de discutir a incorporação dos exames sorológicos ao Rol.

Embora efetivamente os exames sorológicos não sejam utilizados para detecção da doença logo em seu início, possui inegável utilidade para o diagnóstico tardio ou retrospectivo. Por isso, esse exame é a ferramenta correta a ser utilizado a partir do 10º dia da infecção, quando se acentua a queda de acurácia do teste de RT-PCR.

Obviamente sua utilidade ocorre apenas nos casos em que não houve a testagem por RT-PCR ou esse tenha tido um resultado negativo, haja vista que, confirmada a COVID-19, não há necessidade clínica na realização do teste sorológico. E, é bom lembrar, que muitas vezes o teste de RT-PCR deixa de ser realizado no momento mais agudo da doença por não estar disponível ou por eventual atraso da operadora em assegurar a cobertura para sua realização.

Assim, excluídos os testes rápidos, não restam dúvidas que os demais testes sorológicos (ELISA e por luminescência) devem ser incorporados, com diretriz de utilização, especialmente para detecção do IgG, que possui uma certeza melhor que os demais.

Aliás, verificou-se, na audiência pública realizada pela ANS, que a incorporação é um consenso entre os diversos atores da saúde suplementar, inclusive entre os representantes das operadoras, havendo apenas divergências quanto aos critérios de cobertura da testagem a serem incluídos na diretriz de utilização.

Por fim, é preciso destacar que a principal reclamação dos consumidores em relação aos planos de saúde, nos últimos meses, tem sido justamente quanto aos exames da COVID-19, para o qual o tempo é fator preponderante para realização do diagnóstico. Mais que apenas estabelecer a incorporação dos exames sorológicos, com diretriz de utilização, existe a necessidade da ANS estabelecer um prazo excepcionalmente curto para realização do exame RT-PCR, sob pena de perder sua utilidade, devendo de forma célere regular a matéria.

Post Scriptum:
Em 14 de agosto de 2020 foi publicada a Resolução Normativa ANS nº 460, regulamentando a cobertura obrigatória e a utilização de testes sorológicos para infecção pelo coronavírus, acrescentando a pesquisa de anticorpos IgG e anticorpos totais com diretriz de utilização. 
Como critério de inclusão estabelece: pacientes com síndrome gripal ou síndrome respiratória aguda grave a partir do 8º dia do início dos sintomas e crianças ou adolescentes com quadro suspeito de síndrome multissistêmica inflamatória pós-infecção pelo SARS-CoV-2.
Como critério de exclusão estabelece: RT-PCR ou teste sorológico prévio positivo para SARS-CoV-2; realização de teste sorológico negativo há menos de uma semana.
Além disso, exclui do âmbito da cobertura: os testes rápidos; a utilização dos testes sorológicos com finalidade diversa da de diagnóstico; e sua utilização para verificação de imunidade pós vacinal.